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Índice

Aula 1 3 A importância da doutrina antropológica

Aula 2 6 Imagens da humanidade

Aula 3 9 A criação da humanidade

Aula 4 12 O significado teológico da criação da humanidade

Aula 5 15 Imago Dei: história das interpretações

Aula 6 19 Imago Dei: três principais visões

Aula 7 22 Imago Dei: definições bíblicas

Aula 8 Tricotomia, Dicotomia e Monismo: A constituição do


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homem em alma, espírito e corpo

Aula 9 32 Psicologia, psiquiatria e a relação entre alma e corpo

Aula 10 35 A origem da Alma: tradução, criação ou preexistência?

Aula 11 38 Imortalidade da alma e estado intermediário

Aula 12 40 A criação do casamento

Aula 13 43 Igualitarismo, Hierarquismo e Complementarismo

Aula 14 45 A questão do aborto: Quando a vida começa?

Este material compõe uma das apostilas do curso Teologia Descomplicada, e é de uso
exclusivo e pessoal de seus alunos, não podendo ser distribuído, compartilhado ou ven-
dido em qualquer circunstância. Como material apostilar, baseia-se na transcrição adap-
tada das aulas, com adições de referências bíblicas e bibliográficas, possuindo colagens,
desenvolvimentos e paráfrases de várias teologias sistemáticas disponíveis, assim como
comentários autorais. Sempre que possível, as fontes são citadas no corpo do texto, con-
stando as referências completas ao fim do documento.

Autoria: Yago Martins e Matheus Fernandes


Transcrição: Matheus Fernandes
Revisão: Igor Mota Medeiros

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Aula 1
A importância
da doutrina
antropológica
​​
Antropologia deriva das palavras αντρωπρός [homem] e λόγος [palavra, es-
tudo]. Assim, antropologia é o estudo do homem. Há vários caminhos para
esse estudo: sociologia, obra missionária, psicologia, entre outros. O que fa-
remos aqui é antropologia teológica. Tentaremos, portanto, observar o que
a Palavra de Deus tem a nos dizer acerca do homem. O estudo do que é o
homem é essencial para a forma como vivemos, pois a forma como vivemos
é determinada pela forma como nos compreendemos como seres humanos.
Quem nós somos? Para que Deus nos criou? Qual é o nosso propósito no
mundo? O que nos constitui? Se não temos consciência da nossa concepção
acerca do homem, nossa vida será uma consequência disso. Assim, é fun-
damental que tenhamos uma compreensão bíblica acerca do homem, para

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que não nos entendamos de forma errada. Millard Erickson, em sua teologia
sistemática, dá pelo menos cinco motivos pelos quais a antropologia é uma
doutrina tão importante para aquele que deseja conhecer a Palavra de Deus.

• A antropologia é importante porque está relacionada com temas teo-


lógicos que são centrais para a fé cristã. A criação, a pessoa de Deus, a
salvação, o pecado, o destino eterno...tudo isso deriva de forma dire-
ta da forma como entendemos a antropologia. Pense no fato de que
Deus se tornou homem. Entender a humanidade é importante para
entendermos a encarnação do verbo, por exemplo. Se somos imagem
e semelhança de Deus, o que podemos ver sobre Deus a partir de
nós? Como alguém pode ser salvo da ira eterna? E o que a relação do
homem com o Senhor tem a dizer sobre isso? Todas essas doutrinas
são centrais e precisamos entender quem é o homem se queremos
entendê-las.

• É nela que temos uma convergência entre revelação bíblica e


preocupações humanas. A antropologia é um caminho de aplicação
direta da Bíblia para a prática da existência, porque a antropologia é
um objeto de estudo muito próximo de nós. Não estamos estudando
metafísica, mas quem nós somos diretamente e como isso afeta
de maneira clara nosso próprio comportamento. Então nossas
precocupações e questões acerca do dia a dia são afetadas pela
antropologia.

• A atenção dada à antropologia nas mais variadas disciplinas acadêmi-


cas hoje em dia. As pessoas discutem muito sobre o ser humano, prin-
cipalmente nas psicologias, quando se discute psiquiatria, biologia,
identidade de gênero e todas essas coisas...tudo isso está dentro de
antropologia. Termos uma boa antropologia bíblica nos dará respos-
tas às questões urgentes do nosso tempo. Essas respostas podem ser
dadas pela palavra de Deus. É muito negativo termos uma má teologia
pública por termos uma má teologia do homem. Se não temos uma
boa leitura de quem o homem é a partir da Palavra de Deus, podemos
crer em outras pregações acerca do que o homem é contidas nas ciên-
cias à nossa volta.

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• A presente crise de autoentendimento do homem moderno. Os dra-
mas da modernidade: o homem não sabe mais quem é e qual seu pro-
pósito no mundo, para que ele foi criado e quem é, qual seu senso de
identidade, se sua identidade deriva da nossa biologia ou não. Todas
essas questões são importantes e devem ser respondidas a partir da
palavra de Deus. As pessoas vivem em busca de identidade, propósito
e imagem. As pessoas não sabem onde depositar seu próprio senso
de identidade e de valor. A palavra de Deus pode fornecer isso por
meio de uma boa antropologia.

• Essa doutrina afeta o modo como servimos no ministério e como ensi-


namos o evangelho à outras pessoas, determina se interpretamos os
seres humanos como emocionais, volitivos ou intelectuais. Influencia
também como interpretamos a forma como as pessoas entendem e
aprendem coisas e como entendemos a relação do homem com o am-
biente. Tudo isso afeta nosso serviço, pregação e nosso ensino. Ter
uma boa antropologia nos ajuda a pregar o Evangelho e servir no mi-
nistério de forma mais eficaz.

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Aula 2
Imagens da
humanidade
• Uma máquina

O homem é interpretado em visões de eficiência e daquilo que ele consegue


produzir e fazer em si mesmo. Essa visão se tornou muito famosa nas críti-
cas feitas à Revolução Industrial, na qual o homem era sempre visto como
uma força de trabalho cujas capacidades são sempre criar e formar alguma
coisa. Homens que devem sempre render dentro de certas questões de pro-
dutividade. Isso muitas vezes é trazido para o ministério, quando o homem
tem que ser uma máquina de produção disso ou daquilo. Se sua saúde não
está bem, o único problema diz respeito a que efeitos isso pode gerar na sua
produção.

• Um animal

Ele é visto como um animal racional que cresceu nas escalas evolutivas e que
subiu ao topo da cadeia alimentar. Seríamos tão animais quanto cachorros,

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gatos e cavalos. A única diferença seria a capacidade de abstração e de raci-
cínio mais avançado. Essa é uma visão profundamente evolucionista do ser
humano que o reduz ao mesmo nível dos outros seres da criação. As pessoas
defensoras dos direitos dos animais e os veganos geralmente argumentam
que maltratar um animal, usá-lo como força de trabalho, comê-lo, seria o
mesmo que o fazer com o ser humano. Claro que, em algum nível, temos se-
melhanças com alguns animais, mas não das mais profundas, não de forma
total. Não fomos criados como animais, mas como parte especial da criação.

• Um ser sexual

Essa ideia vem das reflexões de Sigmund Freud e, principalmente, da má


interpretação de suas ideias. Ele argumentava que a sexualidade era uma
das principais chaves para interpretar quem é o ser humano. E ele trata toda
punção de desejo como sexualidade em sua linguagem. É claro que a sexua-
lidade é algo que move o ser humano. Diante disso, os evolucionistas acre-
ditam que a evolução foi em parte, de forma muito central até, uma evolu-
ção sexual. Os seres evoluíram e os genes foram transmitidos daqueles que
melhor se adaptaram sexualmente. Estes, por sua vez, conseguiram mais
parceiros para propagar seus genes em sua prole. O modo como as pessoas
vivem suas vidas hoje é intimamente sexual. Nossa cultura é altamente por-
nificada e as pessoas vivem como animais sexuais e interpretam que tudo o
que fazem está centrado num parceiro ou parceira sexual que justificas sua
própria existência. ​

• Um ser econômico

Ele é fundamentalmente alguém dentro desse processo de troca. Essa vi-


são é muito próxima do materialismo dialético de Karl Marx, que acreditava
que o homem, na sua superestrutura, nos seus valores, na sua moral, no
seu comportamento, era intimamente influenciado pela infraestrutura, ou
seja, pelos fatores econômicos à sua volta. São ideias também incoporadas
por ideias mais liberais que interpretam o ser humano como nada mais que
alguém dentro de um sistema de troca constante, o que faz muitas pessoas

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acreditarem que influências econômicas é aquilo de mais importante na for-
mação de quem é o indivíduo.

• Um peão do universo

É uma ideia particularmente moderna que propaga que seres humanos nada
mais são do que a congruência de forças do universo que o controlam e o
definem. Berthrand Russel, o famoso cético, defendia essa ideia ao ponto
do desespero com a ideia de que somos simplesmente predestinados por
forças que estão além do nosso controle. Essas forças não provêm de Deus,
são simplesmente forças da própria existência. Jean Paul Sartre, o famoso
existencialista, leva essas ideias ao ponto do desespero pessoal de acreditar
que não temos qualquer valor ou significado. Albert Camus defendeu essa
mesma ideia e hoje em dia pessoas defendem ideias muito parecidas ao
afirmarem que o homem nada mais é do que um fruto do meio. Talvez não
sejam forças cósmicas que de alguma forma nos definem, mas sempre a
circusntância em que nós estamos inseridos. Não somos nada mais em
termos de ideias, religião, valores, vontades, senão frutos do meio onde
estamos inseridos.

• Um ser social

Não somos nada além de membros de um meio da sociedade. O modo como


interagimos em grupo é aquilo que define quem somos. Essa percepção cos-
tuma alegar que o homem não possui uma natureza, uma essência. Ao con-
trário disso, é puramente aquilo que existe. Ele é só a sua interação. Não há
nada interior ao ser humano, não existem valores essenciais que provêm da
criação de Deus. Somos nada mais que interações constantes.

• Um ser livre

Homens que possuem vontade plena e absoluta para definir quem são e o
que querem ser, até mesmo uma liberdade contra suas imposições biológi-
cas, o seu sexo. Nada pode impedir o ser humano de ser o que ele é e o que
deseja ser. Exercemos nossa liberdade de acordo com nossos interesses.

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Aula 3
A criação da
humanidade
1. Evolução naturalista. Essa teoria rejeita qualquer ação sobrenatural
na criação do homem. “Os processos imanentes na natureza produ-
ziram os seres humanos e tudo o que existe” (Erickson, 2015, p. 470).
Isso significa que o homem, assim como todas as criaturas, surgiu de
processos naturais e não há qualquer ser divino que tenha participa-
do na criação do que é natural. A evolução naturalista considera que
os processos físico-quimicos dos átomos e partículas subatômicas de-
ram origem à vida e, assim, ao processo biológico. Esses processos
são aleatórios e causais, sem um propósito de ser, e aqueles seres que
surgiram desses processos são selecionados pelo meio externo a eles.
Os que são selecionados positivamente podem perpetuar sua gera-
ção, reproduzindo-se. Por outro lado, aqueles que são selecionados
negativamente podem chegar à extinção. Novamente, esse processo

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de seleção natural é arbitrário e sem propósito de ser. O homem existe
como tal hoje simplesmente porque foi selecionado positivamente e
se reproduziu. Essa posição não encontra respaldo bíblico, pois desde
seu início considera que Deus não existe.

2. Evolução Deísta. Essa teoria ainda aceita a evolução como descrita na


evolução naturalista. Entretanto, o processo criativo não foi originado
na própria natureza, mas por um ser divino que, depois de dar início
a tudo, abandonou a criação, deixando-a entregue aos processos físi-
co-quimico-biológicos que estebelecera. Tal ser divino, portanto, não
atua no desenvolvimento do mundo e dos seres que nele existem. Ele
é meramente um espectador. Pode-se ainda dizer que tal ser divino
nem sequer se comunica com o homem por meio de algum tipo de
revelação especial. Por causa disso, também está em desacordo com
a Bíblia, uma vez que a Bíblia mostra um Deus providente que está
dentro da criação por meio de sua ação soberana.

3. Evolução Teísta. A diferença dessa teoria para a anterior é a pessoa-


lidade do ser que criou o mundo. Esta afirma que foi o Deus Triúno da
Bíblia que criou o mundo. Porém, igualmente com a anterior, acredita
que o homem, assim como os demais seres, é fruto de um proces-
so evolutivo de milhares de anos, a macroevolução. Dessa forma, o
aspecto material do homem teria sido fruto da evolução, enquanto
o espiritual teria sido infundido por Deus em algum momento. Essa
posição surge de uma tentativa por tentar conciliar o que o meio cien-
tífico afirma – a evolução –, mas dando uma resposta cristã – não é
naturalista, mas foi Deus que criou.

4. Criacionismo progressivo. Essa teoria difere da anterior quando re-


jeita a macroevolução, mas aceita a microevolução. Isto é, essa teoria
defende que o Deus Triúno criou o homem como ele é e os demais
cabeças de família dos demais seres (animais e vegetais). Esses cabe-
ças de espécie sofreram variabiliade genética e deram origem a todas
as distinções dentro das famílias de animais. Por exemplo, Deus criou
o cabeça da família dos cachorros, o qual chamaremos de canídeo.
Esse canídeo continha em seu DNA a informação genética de todas

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as espécies de cachorros que hoje existem. O processo de mutação e
seleção foi dando origem às variações dentro da família de determi-
nado animal ou vegetal. Ou seja, Deus não criou o poodle, o rusky, o
rotweiller e o lobo, mas criou um canídeo que pôde dar origem a todos
esses. Não obstante, o homem foi criado de modo especial e distinto,
não derivando de um ser anterior. A interpretação dessa posição sur-
ge porque a palavra hebraica ‫[ ןיִמ‬min], que é traduzida como “espécie”,
é vaga, “de modo que não é necessário idenficá-lo com as espécies
biológicas” (ERICKSON, 2015, p. 473). Ou seja, quando a Bíblia fala que
Deus criou os animais segundo suas espécies, ela não quer dizer o
mesmo sentido científico que a espécie adquiriu, mas pode significar
que Deus criou os animais segundo suas “famílias”.

5. Criacionismo fiat. Esse é o extremo oposto da evolução naturalista.


Essa teoria afirma que “Deus, em um ato direto, trouxe à existência, de
modo praticamente instantâneo, tudo o que existe” (ERICKSON, 2015,
471). Ou seja, Deus criou cada espécie, cada raça em suas particulari-
dades e distinções, e o homem como ele é hoje.

Dentro dessas visões sobre a criação do ser humano, existem visões sobre a
criação da terra. Alguns vão argumentar acerca de uma terra jovem e outros,
de uma terra antiga. Existem pelo menos 3 visões sobre a idade da terra den-
tro dessas visões sobre a criação do homem.

• A terra teria sido criada, na perspectiva do criacionismo fiat como uma


terra jovem. Assim, a terra teria cerca de 6 mil anos e, à medida que
Deus criou o ser humano, ele criou também tudo da forma como exis-
te hoje.

• Há também a ideia de que existe uma terra antiga, mas o é porque


Deus a criou com aparência de velha. Sob essa perspectiva, a terra te-
ria sido criada há 6 mil anos, mais ou menos, juntamente com o início
da humanidade nos seis dias literais da criação, mas foi criada com
aparência de velha, por isso as datações parecem apontar para uma
terra mais antiga.

• Uma terceira posição, que seria oposta à visão da Terra Jovem, seria
a de que Deus criou a terra há bilhões de anos e ela chegou ao que é
hoje por meio do processo evolutivo.
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Aula 4
O significado
teológico da criação
da humanidade
1. Dizer que o homem é criado é dizer que temos existência depen-
dente. Nossa existência não existe em si mesma, mas depende da
criação do Senhor. Existimos em submissão a ele porque ele existe
e porque ele nos criou. Ele tem uma existência plena e contida em
si mesma. Quando ele diz que “é o que é”, está demonstrando a sua
soberania, grandeza e autoridade. Sua existência é soberana, mas nós
existimos em sujeição a Deus. Somos limitados por aquilo que Deus é
e pelo que ele intentou para nós.

2. O ser humano faz parte da criação. Somos parte do que Deus fez.
Não estamos acima da criação, mas somos parte dela, ainda que se-
jamos sua coroa. Então, somos criados de forma especial, mas somos
parte desse meio ambiente. Isso diz respeito a alguma coisa sobre
ecologia, cuidado com o meio ambiente, sobre nossa relação com o

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meio e tudo mais. Por isso, também somos afetados pelo que aconte-
ce com ela.

3. O
​ ser humano tem um lugar distinto. Não podemos interpretar
que somos tão importantes quanto o resto da criação, mas que
somos mais importantes que as outras coisas criadas. Somos mais
importantes que os animais, as plantas, que as belezas naturais. Como
seres humanos, fomos criados por Deus como coroa, como aquilo que
há de mais belo e elevado em tudo aquilo que ele fez. A vida humana
vale mais que qualquer outra coisa.

4. Existe um sentimento de fraternidade entre humanos. O simples


fato de sermos seres humanos criados por Deus nos faz irmãos.
Somos pessoas que podem ter relacionamento umas com as outras.
O termo “irmão” é usado no NT para falar diretamente da igreja, uma
unidade muito maior do que qualquer outra coisa. Porém, mesmo
fora dessa linguagem eclesiástica, principalmente, nós somos irmãos
também, não no sentido de sermos filhos de Deus, mas de sermos
criados por Deus. A ideia de Deus ser pai de todos não é que ele é pai
de todos no sentido espiritual, mas que é o Criador de todos e que
fez todos. Qualquer ser humano é parte dessa irmandade da raça, de
forma que racismo, desprezo por outras etnias, escravidão, tráfico de
gente, essas coisas não cabem dentro de uma antropologia e cosmo-
visão cristã, pois, como parte do gênero humano, somos todos criados
pelo mesmo Deus e devemos todos viver em harmonia.

5. A humanidade não é o que há de mais valioso no universo. Não


somos o centro da existência nem do universo. Deus é centro de tudo
e é em torno dele que tudo se move. Tudo é dele, por ele e para ele. É
nele em que nos movemos, vivemos e existimos. É apenas pelo Senhor
que existimos. Como seres humanos, não podemos nos interpretar
como aquilo de mais importante na existência, porque Deus está
na existência e é maior que nós. Somos criados por ele, logo somos
menores do que ele.

6. Como parte da criação, temos limitações. Não somos infinitos, oni-


pontentes, não somos Deus. E porque não somos Deus, temos que in-

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terpretar a nossa pequenez como algo inerente ao que somos. Todos
nós vamos morrer. Enfrentamos também a fome, o sono, a fraqueza.
Este corpo de carne foi entregue por Deus a nós e tem o objetivo de
nos lembrar que estamos sempre sujeitos às forças de um Deus que
é maior que nós.

7. Limitações não são inerentemente más. ​Deus nos criou com limita-
ções. Elas nos acompanharão para sempre, talvez até nos Novos Céus
e Nova Terra.

8. Precisamos entender nossas limitações. Para viver de forma apro-


priada, precisamos entender nossas limitações e quem nós somos
dentro desse grande propósito criador de Deus. Se nos interpretar-
mos como mais do que somos e acharmos que temos capacidades e
poderes muito maiores do que aquilo que realmente temos, viveremos
uma vida muito triste e frustrada. A cultura do nosso tempo quer nos
fazer acreditar que podemos tudo. Ela diz que se vencermos os pensa-
mentos limitantes e reprogamarmos o DNA por meio de pensamento
positivo, ou sei lá, conseguiremos coisas das mais variadas. Mas nem
todos nós conseguimos muitas coisas, nem todos nós estaremos no
topo ou algo assim. Não somos o centro do universo. Temos limita-
ções e viver de forma correta muitas vezes depende de entendermos
que somos limitados, onde somos limitados, como somos limitados e
qual a forma de vencermos ou não certas limitações para podermos
viver de forma coerente com esse propósito criacional de Deus.

9. Ser um humano é uma coisa incrível. D ​ eus nos criou como a co-
roa de sua criação, como aquilo que há de mais elevado em tudo o
que foi criado. Isso nos faz acreditar que Deus tinha um propósito
especial para nós e que ser um humano é maravilhoso, incríve. É ser
criado por Deus justamente para refletir a sua glória e grandeza. Não
podemos desprezar o ser humano, porque Deus nos fez grandes,
gloriosos, um pouco menor do que os anjos (Sl 8) e, apesar de des-
truídos pelo pecado, ainda seremos resgatados pela obra perfeita de
Cristo Jesus. Deus nos criou à sua imagem e semelhança para refletir
a sua glória a esse mundo caído

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Aula 5

Imago Dei: história


das interpretações
​​ relato da criação do homem, a Bíblia revela que fomos criados à imagem
No
de Deus (no latim, Imago Dei). Isso fala sobre essa representação de Deus que
temos nesse mundo. Lemos isso em Gênesis 1.26-27, onde é dito que somos
criados à sua imagem [‫ ֵ֖]מְלַצ‬e semelhança [‫ ֑]ֵתּומְד‬.

Berkhof (2007 p. 187) afirma que

Irineu e Tertuliano traçavam uma distinção entre a “ima-


gem” e a “semelhança” de Deus vendo a primeira nas
características corporais e a última na natureza espiri-
tual do homem. Clemente de Alexandria e Orígenes, po-
rém, rejeitaram a ideia de qualquer analogia corporal e
sustentavam que a palavra “imagem” indica as caracte-
rísticas do homem como tal, e a palavra “semelhança”,
qualidades não essenciais do homem, mas que podem

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ser perdidas.

Segundo Ferreira e Myatt, Irineu entendia que a semelhança foi perdida na


queda, mas a imagem permaneceu. Eles citam-no: “Se, porém, falta o Espírito
à alma, este homem será verdadeiramente psíquico e moral, mas imperfeito,
porque possuiria a imagem de Deus enquanto criatura modelada, mas não
teria recebido a semelhança por meio do Espírito. (IRINEU apud FERREIRA e
MYATT, 2007, p. 389)”. Ele continua dizendo

Segundo Pelágio e seus seguidores, a imagem consistia


apenas em que o homem foi dotado de razão, para que
pudesse conhecer a Deus; de livre arbítrio, para que fos-
se capaz de escolher o bem e praticá-lo; e do necessá-
rio poder para governar a criação inferior Mesmo com o
passar do tempo, alguns escolásticos continuaram com
a ideia dos Pais da Igreja.

Concebia-se que a imagem incluía as faculdades intelectuais da razão e da


liberdade e que a semelhança consistia da justiça social. A isto acrescentou-
-se outro ponto de distinção, a saber, a distinção entre a imagem de Deus
como dom natural ao homem, algo pertencente à própria natureza do ho-
mem como tal, e a semelhança de Deus, ou a justiça original como dom so-
brenatural, que servia de controle da natureza inferior do homem (BERKHOF,
2007). Ferreira e Myatt (2007, p. 390) afirmam que

Para ajudar o homem a controlar os desejos inferiores


(o sexo, por exemplo) Deus concedeu-lhe o domum supe-
radditum (dom adicional), ou seja, a semelhança, que é a
justiça e a graça de amar a Deus sobrenaturalmente. Na
queda, o homem perdeu a semelhança com Deus, mas
a imagem permaneceu .

Já os reformadores rejeitaram a ideia da distinção entre imagem e semelhan-


ça. Entretanto, Lutero considerava que a Imagem de Deus havia sido des-
truída por causa do pecado, restando apenas vestígios do que constituía a
semelhança com Deus e buscava simplesmente a justiça original que haveria
de ser restaurada por Cristo. Calvino, por outro lado, entendia que a Imagem

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de Deus diz respeito à totalidade do que o homem é e aquilo que o diferencia
dos animais. Não obstante, essa imagem foi contaminada pelo pecado. Calvi-
no (CALVINO apud FERREIRA e MYATT, 2007 p. 393) afirma que

Deus decretou criar o homem à sua imagem, porque


não era tão claro, explicativamente o reitera nesta breve
locução: à semelhança, como se estivesse a dizer que
iria fazer um homem no qual, mediante marcas impres-
sas de semelhança, haveria de representar-se a si pró-
prio como uma imagem. Por isso, referindo o mesmo
pouco depois, Moisés repete duas vezes a frase imagem
de Deus, omitindo a menção da semelhança

Ele também diz que “Embora concordemos que a imagem de Deus não foi
nele [no homem] aniquilada e apagada de todo, todavia foi corrompida a tal
ponto que, qualquer coisa que lhe reste, não passa de horrenda deformida-
de (As institutas, I.15.4)”. Ainda segundo FERREIRA e MYATT (p. 394)

Os teólogos arminianos, a partir do século XVII, de modo


geral, concordam com os reformados sobre a imagem
de Deus, a não ser na questão da liberdade da vonta-
de. Os arminianos entendem que ainda permanece, por
causa da graça preveniente, algum tipo de liberdade re-
sidual no ser humano, no sentido de uma capacidade de
agir sem qualquer predeterminação, seja ela divina ou
natural, o que seria um aspecto essencial da imagem de
Deus no homem.

No século XX, o teólogo neo-ortodoxo Emil Brunner propôs que a Queda


não teria sido um evento histórico, mas que a condição atual do homem é
diferente da condição em que ele foi criado. Para ele, a Queda teria sido um
aspecto em outra categoria. Como esse “evento” implica a concepção do que
é a imagem de Deus, Brunner (apud FERREIRA e MYATT, 395-396) afirma que:

Uma vez mais, ambos [Deus e o Homem] estão correla-


cionados e conectados, estar consciente do santo Amor
de Deus e estar consciente do fato que minha natureza

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é criada por Deus, resulta a mesma coisa. É assim, e não
de outra maneira, que sou planejado ser pelo Criador.

Brunner ainda acrescenta que existe uma diferença entre aspecto material e
aspecto formal da imagem de Deus.

No Antigo Testamento, a Bíblia descreve esse aspecto


formal da natureza humana pelo conceito de “ser criado
à imagem de Deus”. No pensamento do Antigo Testa-
mento, o fato de que o homem foi “feito à imagem de
Deus” significa algo que o homem nunca pode perder,
mesmo quando peca não pode perdê-la. Esta concepção
não está, portanto, afetada pelo contraste entre peca-
do e graça ou pecado e obediência, precisamente por-
que descreve o aspecto “formal” ou “estrutural”, e não o
“material” da natureza humana. Então, como é possível
perceber refletida similaridade nesta semelhança for-
mal com Deus? A similaridade consiste em existir como
“sujeito”, existir como “pessoa”, liberdade. Seguramente,
o homem tem apenas uma liberdade limitada, porque
é responsável, mas tem liberdade; só assim pode ser
responsável. Assim, o aspecto formal da natureza do
homem, como um ser “feito à imagem de Deus”, denota
sua existência como Sujeito, ou sua liberdade; é isto que
diferencia o homem da criação inferior; isto constitui
sua qualidade humana especificamente; é isto que é
comunicado a ele – e somente a ele – e sob todas as
circunstâncias – por ordem Divina.

Karl Barth, que também era um teólogo neo-ortodoxo, apresenta três está-
gios do que pensava ser a imagem de Deus. No primeiro, ele não usava a ex-
pressão “imagem de Deus”, mas falava de uma unidade entre Deus e os seres
humanos. Tal unidade foi perdida com a Queda, apesar de ele também não
considerar a queda um evento temporal. No segundo estágio, devido à con-
trovérsia com Brunner, ele negou qualquer ligação entre Deus e o homem,
e a capacidade de o homem de receber palavra de Deus. No seu terceiro
estágio, ele refere-se à imagem de Deus como algo que ainda é presente no
homem. Ele entende que a imagem consiste não apenas no relacionamento
do homem com Deus, mas do homem com seu semelhante. Para Barth, com-
preenderíamos mais o ser humano estudando Cristo, não os homens, pois
este é aquele que reflete perfeitamente o que Deus pensou para a humani-
18 dade (ERICKSON, 2015).
Aula 6

Imago Dei: três


principais visões
​ ênesis 1.26-27 descreve a criação do homem, à “imagem” e “semelhança”
G
de Deus. Os termos não significam coisas diferentes. Ao contrário, a estru-
tura de paralelismo nesses versículos aponta que eles descrevem a mesma
coisa, e um termo reitera o outro. Em Gênesis 5.1, a Bíblia reitera o fato de
que Deus criou o homem segundo sua semelhança [‫]ֵ֑תּומְד‬, mas no verso 3
somos informados que Adão gerou um filho à sua semelhança [‫ ֑]ֵתּומְד‬. Ao
contrário do que alguns podem pensar, isso não quer dizer que a Imago Dei
foi perdida, mas que ela foi maculada. Isto é, uma vez que Adão pecou, a Ima-
go Dei foi deturpada. Dessa forma, todo descendente de homem e mulher
hoje herda essa semelhança com Adão: a semelhança deturpada de como
ele havia sido criado. A prova de que o ser humano continua portando a
imagem de Deus depois da Queda é que tanto Gn 9.6, quanto Tg 3.9 apresen-
tam o homem como ainda dotados da imagem e semelhança do Senhor. Em
Tiago, não deveríamos falar mal dos outros porque eles ainda são imagem
e semelhança de Deus. Tanto no AT quanto no NT, continuamos imagem e
semelhança de Deus mesmo após a Queda. Essa imagem foi maculada, mas
não totalmente destruída.

Millard Erickson diz que a Imago Dei possui 3 concepções:

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• Concepção essencial

Segundo o autor, “as concepções mais comuns da imagem de Deus distin-


guem-na como uma qualidade espiritual ou psicológica na natureza huma-
na, principalmente a razão” (2015, p. 489). Porém, não podemos isolar que
a semelhança com Deus se restrinja somente à razão, pois “certamente, a
onisciência e a sabedoria constituem uma dimensão importante da natureza
divina, mas não são, de forma alguma, a essência da divindade” , (p. 489). O
ponto de síntese dessa concepção é que a imagem de Deus está presente no
homem “como uma qualidade ou capacidade intrínseca” (p. 489). Somos ima-
gem e semelhança porque possuímos características em nós que nos fazem
assim, seja racionalidade ou o que for. ​

Essa concepção não vê a imagem de Deus como algo intrínseco à natureza


do homem. Os teólogos que defendem essa posição entendem que “a ima-
gem de Deus está nos relacionamentos que experimentamos” (p. 491). Os
seres humanos seriam ou manifestariam a imago dei quando vivenciassem
um relacionamento. Emil Brunner e Karl Barth defendiam variações dessa
concepção. Apesar de suas diferenças, Barth e Brunner tinham os seguintes
elementos em comum (ERICKSON, 2015, p. 493):

• A imagem de Deus e a natureza são mais bem compreendidas por


meio do estudo da pessoa de Jesus, não da natureza humana per se.

• Obtemos nosso entendimento da imagem de Deus por meio da reve-


lação divina

• A imagem de Deus não deve ser entendida como qualidades estru-


turais intrínsecas aos seres humanos. Não se trata de algo que o ho-
mem é ou tem. Antes, a imagem é uma questão de relacionamento da
pessoa com Deus; é algo que o ser humano experimenta. Assim, ela é
dinâmica, não estática.

• ​Concepção funcional

A terceira concepção talvez seja a mais popular e propõe que a imagem de

20
Deus não é algo da concepção do ser humano nem sua experiência de rela-
cionamentos, mas algo que a ele foi designado. A Imago Dei seria o exercício
humano do domínio da criação. Essa concepção se baseia na declaração de
Gênesis 1.26, “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa seme-
lhança; e domine sobre os peixes do mar...” e também nos versos 27 e 28
quando Deus ordena que homem e mulher exerçam domínio. A ideia seria
que o homem reflete a Imago Dei porque, assim como Deus exerce controle
da criação, o homem exerceria domínio sobre ela.

Outra passagem que trata a respeito disso é Salmo 8.5-6: “Pois pouco menor
o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste. Fazes com que
ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de
seus pés”

A intenção de Deus ao fazer o homem à sua imagem seria que este exercesse
domínio – nisto consistiria a Imago Dei. Essa ênfase acompanhou o entendi-
mento do mandato cultural. O mandato cultural seria o exercício do domínio
da criação conforme Deus prentendeu.

Erickson analisa as implicações positivas e negativas de cada uma das con-


cepções. Quanto à concepção relacional, ele entende que, de fato, só o ho-
mem se relaciona conscientemente com Deus e suas outras criaturas. O ho-
mem foi feito para se relacionar. Porém, até que ponto pode-se dizer que
uma pessoa que é descrente, que está em rebelião contra Deus, exerce esse
relacionamento que diz respeito à imagem de Deus? Se até mesmo os des-
crentes são imagem de Deus, como lemos na Escritura, não faz sentido que
ele dependa de relacionamentos corretos com os outros e com Deus para
poder refletir essa imagem.

Quanto à concepção funcional, ele observa que realmente há uma ligação


entre a imagem de Deus e o exercício do domínio sobre a criação. Porém,
isso seria visto como uma consequência da Imago Dei e não propriamente
ela. Berkhof comenta que “Deus menciona a criação do homem à imagem
divina e seu domínio sobre a criação inferior no mesmo compasso, Gênesis
1. 26., isto indica a glória e a honra com que o homem é coroado, Salmo 8.5-
6” (p. 190). Isso indica que ser aquele que domina e ser imagem de Deus não
é a mesmoa coisa. Um decorre do outro, mas não se confundem.

Por fim, a concepção essencial carece de apontar precisamente quais carac-


terísticas são as que constituem a imagem de Deus e pode reduzir a um ele-
mento do ser humano toda a imagem de Deus (ex: razão).

21
Aula 7
Imago Dei: definições
bíblicas
• A imagem de Deus é universal. Todo ser humano, pecador ou cristão,
é imagem de Deus. Isso não é próprio de uma pessoa de determinada
classe social, língua, etnia, ou nascido de um país. A imagem de Deus
é algo dado a todo ser humano seja ele salvo ou não.

• A imagem de Deus não se perdeu, mas foi maculada. Temos uma ima-
gem quebrada e não refletimos Deus de forma absoluta. Mesmo as-
sim ainda temos algo dessa imagem em nós e ainda somos valiosos
por causa dessa imagem.

• Não há grau de imagem de Deus nas pessoas. Ninguém é mais ima-


gem de Deus que outra pessoa. Apesar de os pecados se manifes-
tarem de formas distintas, o pecado afeta cada indivíduo da mesma
forma e todo homem é maculado do mesmo jeito pelo pecado. A ima-
gem de Deus permanece e é corrompida em cada homem do mesmo
nível. Não existem gradações e nínguem pode se achar mais imagem
de Deus mais que outra pessoa.

• A imagem de Deus não está correlacionada a nenhuma variável. Não


há texto bíblico que aponte a imagem de Deus como sendo dependen-
te exclusivamente de relacionamento ou do exercício do domínio ou
de alguma habilidade que manifestemos na vida.

22
• Portanto, considera-se que a Imago Dei é basicamente essencial. É
algo que o ser humano é, não algo que ele tem ou faz. Ainda que não
se possa precisar um elemento, não se deva, a imagem de Deus diz
respeito à própria constituição humana. As dimensões funcional e re-
lacional seriam consequências da Imago Dei.

Como diz Erickson (2015, p. 499), “a imagem propriamente dita é o conjunto


de características necessárias para o desenvolvimento dos relacionamentos
e para o exercício do domínio”. Tais características são as coisas que “tornam
possíveis a adoração, a interação social e o trabalho” (p. 500).

O teólogo arminiano Norman Geisler (2013 p. 451) afirma que a imagem de


Deus “inclui características tanto morais quanto espirituais.”

Imagem inclui semelhança intelectual com Deus. Deus é um ser inteligente. Na


verdade, ele conhece tudo (Sl 139. 1-6). Apesar de os humanos serem finitos,
não obstante, eles são como Deus no que se refere à sua inteligência (cf. Jó
35. 11). Paulo fala do ser “renovado em conhecimento à imagem de Deus” (Cl
3. 10). Judas declara que os humanos estão acima dos “animais irracionais”
(Jd 10).

Imagem inclui semelhança moral com Deus. Deus é Santo (Is 6. 1-3); ele é amor
(1 Jo 4.16); ele tem muitos outros atributos morais também. Já que humanos
foram criados como Deus, é esperado que eles compartilhem essas caracte-
rísticas morais. Portanto, Deus nos ordena: “sedes perfeitos, portanto como
o pai celestial é perfeito (Mt 5. 48). O Senhor também disse a Israel: “sedes
santos, porque eu sou santo” (Lv 11.45).

Geisler considera que a semelhança moral e intelectual com Deus implica


outros elementos, como representação, reprodução e governo. Também há
um aspecto de responsabilidade, porque Deus é responsável por suas ações.

A imagem inclui semelhança volitiva com Deus. Essencial para moralidade é


a volição. Assim como Deus, humanos possuem livre agência, limitados por
sua natureza. Dessa forma todas as pessoas são responsáveis por seus pe-
cados.

23
• Imagem inclui o corpo.

• Corpo e mente são uma unidade.

• Matéria é boa e reflete a glória de Deus. Com isso, rejeitamos os gnós-


ticismos que propõem que a matéria é má e tudo aquilo que é físico é
necessariamente pecaminoso. Ser imagem de Deus inclui ter um cor-
po para refletir essa imagem. Logo, o corpo não é algo negativo ou
pecaminoso. O corpo não nos foi dado depois da Queda, mas antes. A
matéria é boa e reflete a imagem de Deus.

• Homem e mulher são imagem de Deus

• Matar um corpo é errado por causa da imagem de Deus. O assasina-


to é pecado porque é um crime à imagem de alguém. A eutanásia, o
aborto e todas essas práticas que se pretendem modernas, mas que
não são muito antigas no mundo, são ofensas à imagem de Deus no
ser humano.

• Cristo encarnou corporalmente e veio à terra para representar, como


nós, Deus no mundo. Porém, o fez como homem perfeito e de forma
perfeita, já que Cristo encarnado era um homem sem pecado.

• A ressurreição do corpo revela que nosso aspecto físico faz parte da-
quilo que Deus intentou que carregássemos para sempre, até mesmo
no Novo Céu e Nova Terra. O que representa talvez a ideia de sermos
físicos também faz parte da imagem de Deus.

O teólogo calvinista Louis Berkhof também concorda que o corpo humano


expressa algo da imagem de Deus. Ele diz:

pode se levantar a questão se o corpo do homem tam-


bém constitui uma parte da imagem. E,ao que parece,es-
ta questão deve ser respondida afirmativamente.Diz a
bíblia que o homem -não apenas a alma do homem -foi
criado à imagem de Deus,e o homem, a “ alma vivente”
não é completo sem o corpo (2007, p. 189)

Também, para Berkhof, não podemos desprezar o corpo no que diz respeito
à imagem de Deus porque ele o vê como um “instrumento próprio de autoe-
xpressão da alma” (p. 189). Ele lembra que o corpo “está destinado a tornar-
24
-se no fim um corpo espiritual” (p. 189). Ou seja, o corpo é considerado como
uma expressão da Imago Dei, ainda que o próprio Deus não tenha corpo,
porque ele é parte do que o ser humano é.

Ele considera que outro elemento da imagem de Deus é a imortalidade. Ao


dizer isso, ele não esquece que somente Deus é imortal em sua essência (1
Tm 6.16). Porém, acrescenta que o homem foi criado imortal “não apenas
no sentido de que sua alma foi dotada de uma existência interminável,mas
também no sentido de que ele não levava dentro de sias sementes da Morte
física, e em sua condição não estava sujeito além da morte” (p. 189). A causa
da morte é o pecado (Romanos 5.12; Romanos 6.23; 1 Corintios 15.20-21),
não uma condição em que o homem foi criado. Mesmo assim permanece-
mos com almas imortais que vão passar a eternidade próximas ou distantes
de Deus.

Ele resume a posição reformada da seguinte forma:

pode-se dizer que a imagem de Deus consiste (a) da alma


ou espírito do homem, isto é, das qualidades desimpli-
cidade, espiritualidade, invisibilidade e imortalidade. (b)
Dos poderes ou faculdades psíquicas do homem como
um ser racional e moral, a saber, o intelecto e a vontade
com as suas funções. (c) Integridade moral e intelectual
da natureza do homem, que se revela no verdadeiro co-
nhecimento, justiça e santidade, (Efésios 4.24; Colossen-
ses 3.10). (d) Do corpo, não como substância material,
mas como apto orgão da alma,e que participa da imor-
talidade desta; e como o instrumento por meio do qual
o homem pode exercer domínio sobre a criação inferior.
(e). Do domínio do homem sobre a terra. (p. 191).

Segundo Berkhof, a teologia reformada afirma que a imagem de Deus “cons-


titui a essência do homem”. Entretanto, ela faz uma distinção entre elemen-
tos que pertencem à imagem, os quais o homem não pode perder sem dei-
xar de ser homem, e aqueles como perfeição moral e justiça original, que
foram perdidas por causa do pecado.

25
Aula 8
Tricotomia, Dicotomia e
Monismo: A constituição
do homem em alma,
espírito e corpo
Há basicamente três posições acerca da constituição do homem:

• Tricotomismo

Defende que o ser humano é constituído de 3 elementos: Corpo, alma e es-


pírito. O corpo físico seria o que todos os “indivíduos têm em comum com
os reinos animal e vegetal” (ERICKSON, 2015, p. 506). A diferença entre o
homem e os demais seres vivos seria em grau de complexidade. O segundo
elemento é alma. É considerado o elemento “psicológico, a base da razão, da
emoção, dos relacionamentos sociais e aspectos afins”. (p. 506). O terceiro
elemento seria o espírito. Esse seria o elemento religioso que “capacita os
seres humanos a terem percepção das questões das questões espirituais e a
reagirem a estímulos dessa natureza. Ele é a sede das qualidades espirituais
do indivíduo, enquanto os traços de personalidade residem na alma”. (ERI-
CKSON, 506).

J. Rodman Williams (2011, p. 185) pende para o tricotomismo ao dizer que

ao iniciar a reflexão sobre o homem como um ‘ser viven-

26
te’ ou ‘alma’, não devemos compreender isso como uma
terceira parte do homem, mas como a expressão resul-
tante do espírito funcionando por meio do corpo. Pode-
-se dizer que o espírito é o princípio do homem como
alma. A alma (ou vida) está ancorada no espírito e assim
é inseparável do espírito, mas não é uma terceira parte.
É a vida como um todo pela qual o espírito do homem se
expressa.

Apesar de considerar que alma e espírito são “usados de maneira bem simi-
lar ou em estreita relação”, o autor afirma que

é possível dividir, pois, mesmo que não sejam substâncias


diferentes, significam dimensões profundamente
diferentes em que a alma se estabelece. Assim, embora
espírito e alma possam ser empregados para expressar
exatamente a mesma coisa, há uma diferença que a
Palavra de Deus pode destrinchar.

Ele afirma em uma nota de rodapé: “a tricotomia[...]também possui uma fra-


queza séria: a “alma” não é uma terceira parte do homem. Entretanto, uma
vez que não é idêntica ao corpo ou espírito, a tricotomia aponta na direção
correta”.

Acrescenta: “a ‘alma’, portanto, é o tipo de vida que o homem possui. A alma


representa o ato humano de viver em suas várias dimensões intelectuais,
emocionais e volitivas. A alma é aquilo que procede das profundezas do
espírito quando este anima o corpo”. (WILLIAMS, 185)

Os dois principais textos bíblicos utilizados para embasar a tricotomia são 1


Tessalonicenses 5.23 e Hebreus 4.12. Pelo primeiro, entende-se que há uma
clara distinção entre alma e espírito. Pelo segundo, entende-se que a espa-
da divide a alma do espírito. Portanto, são coisas distintas. Outro texto usa-
do indiretamente para defender o tricotomismo é 1 Coríntios 2.14-3.4. Para
tricotomistas, a diferença que Paulo faz entre pessoas “carnais” (σαρκικός),
“naturais” (ψυχικός – literalmente “almático”, aquilo que é da alma) e “espi-

27
rituais” (πνευματικός) daria a entender que há uma diferença entre o corpo
natural (ψθχικόν) e corpo espiritual (πνευματικόν).

• Monismo

O Monismo defende que o ser humano não tem mais de uma parte distinta,
mas que é uma unidade radical. De acordo com os monistas, “os termos
que às vezes são usados para distinguir as partes do ser humano devem ser,
na realidade, interpretados basicamente como sinônimos” (ERICKSON, 2015,
p. 510). Para o monista, é impossível existir sem um corpo. Nesse sentido,
a realidade de uma existência pós-morte em um estado incorpóreo não é
possível.

O monismo surge como uma reação à ideia liberal da imortalidade da alma,


tornando-se popular na neo-ortodoxia e no movimento da teologia bíbli-
ca. Um dos que se destacam no seu estudo é John A.T. Robinson. Segundo
ele, o fato de não existir uma palavra equivalente a corpo na língua hebraica
como há na língua grega indica que os pressupostos hebraicos revelam que
o ser humano não deveria ser visto como partes diferentes, mas como uma
unidade radical. Em hebraico, existe a palavra basar [‫]רָשָב‬, que significa es-
sencialamente “carne” e não “corpo”. Em grego, as palavras como σαρξ re-
presentam um original hebraico e deve ser entendida à luz do hebraico, ou
seja, sem fazer uma distinção entre partes constituintes do ser humano.

Para Robinson, a concepção dualista grega advém do seu pensamento que


(1) diferenciava corpo de alma como coisas distintas; (2) contraste entre um
e muitos, o corpo é contrastado com suas partes ou componentes; (3) antí-
tese entre corpo e alma, pois, no pensamento grego, o corpo não é essencial
para a personalidade, logo poderia haver vida incorpórea e (4) o princípio da
individualização que diz que o corpo está em contraste com “carne” que não
é individualizada.

Assim, o uso por Paulo das palavras gregas não deveria ser visto à luz do pen-
samento grego – dualista. Ele admite que Paulo usa a palavra σαρξ, mas ela
deve ser entendida como “humanidade”, não um elemento da constituição

28
do homem ou a fraqueza e mortalidade do homem. Portanto, “corpo e alma”
devem ser entendidos como uma descrição exaustiva da personalidade hu-
mana. O homem é uma carne que recebe vida. De acordo com H. Wheeler
Robinson, “O homem é uma unidade e [essa] unidade é o corpo como um
conjunto de partes, que extrai vida e atividade de uma alma-fôlego, a qual
não tem existência separada do corpo”. Essa visão monista não é muito co-
mum em círculos cristãos e é muito próxima de elementos secularizados ain-
da que espirutualistas em algum nível.

• Dicotomismo

Postula que o ser humano é composto de um aspecto material (corpo) e


um imaterial (alma/espírito). Essa posição entende que alma e espírito são a
mesma coisa. O corpo é a parte mortal do homem e a alma/espírito a parte
imortal.

Podemos também constatar passagens onde alma e espírito são usadas de


forma intercambiável

Alma Espírito Explicação


Lucas 1.46 Lucas 1.47 Estrutura de paralelismo: os 2 versos que-
rem dizer a mesma coisa, mas usam pala-
vras diferentes. O objetivo disso é enfatizar
o que está sendo dito
Mateus 6.25; Lucas 23.46; A palavra grega para alma é também tra-
Mateus 2.20; duzida muitas vezes como “vida”, aqui, por-
Mateus Atos 7.59 tanto, vida e alma são vistas como a mesa
10.39; Ma- coisa. Perder a vida é perder a alma. Se
teus 16.25 apegar à vida é se apegar à alma.

A morte de Jesus acontece quando ele en-


trega seu espírito ao Pai, ou seja, a perda
do espírito é a perda da vida. A morte de
Estevão também acontece quando ele en-
trega seu espírito a Deus.

29
Mateus Jesus faz uma comparação com aqueles
10.28 que querem matar o corpo, mas nada po-
dem fazer à alma. Porém, Deus é aquele
que pode lançar no inferno tanto um como
o outro. Percebemos que há uma distinção
entre alma e corpo, mas nenhuma menção
a uma terceira parte.
Sl 42.5 Sl 51.10 Tanto alma como espírito são palavras usa-
das em um contexto de restauração de ale-
gria, um sentimento, como de restauração
do relacionamento firme com Deus
Gênesis 2.6 Zacarias 12.1 Ser vivente pode ser traduzido para alma
vivente, a partir do orginal (nepesh é a pa-
lavra usada para alma).

Porém, Zacarias descreve que Deus formou


o espírito humano (Ruach é a palavra he-
braica para espírito)
Deuteronômio Espírito recebe tanto a capacidade de sabe-
34.9, Números doria e de inveja.
5.30

Portanto, a parte imaterial, alma/espírito, é imortal e não está localizada em


uma parte do corpo. Esta vai ao seio de Abraão ou ao inferno quando o indi-
víduo morre. A parte material, o corpo, é mortal. Quando morre, ele volta ao
pó, mas aguarda a ressurreição, por meio da qual será refeito e revestido de
glória. Na ressurreição, corpo e alma/espírito serão reunidos.

Uma variação do dicotomismo é a unidade psicossomática, ou unidade con-


dicional. Essa posição vê corpo e alma como estruturas não tão separadas,
como o dicotomismo. Seu nome explica o seu próprio conceito. Por “unida-
de” entende-se que o ser humano é constituído de um elemento integral,
uma unidade. Já a psicossomática advém da junção de psico (ψιχή - alma)
e somatica (σοματικός - corpo). Ou seja, é uma unidade composta de dois
elementos: corpo e alma. A diferença para o dicotomismo seria no âmbito

30
da integração. Enquanto o dicotomismo entende uma maior distinção entre
corpo e alma, a unidade psicossomática entende uma maior integração. Uma
possível ilustração seria que enquanto dicotomismo entende corpo e alma
como água e óleo (uma mistura heterogênea), a unidade condicional entende
como água e álcool (uma mistura homogênea). A proposta é que o homem foi
criado como um ser completo, uma unidade, de alma e corpo. O pecado teria
causado uma deturpação nesse estado, trazendo a separação entre alma e
corpo – aquilo que não era para ser separado –, portanto, causando assim
uma anomalia no homem. No estado intermediário, onde a/o alma/espírito
do homem está com Deus, somos incompletos e somente na ressurreição
do nosso corpo seremos plenamente aquilo que fomos criados para ser.
Erickson (2015, p. 521) afirma que “o estado normal do ser humano é de um
ser unitário com corpo, e é assim que as Escrituras o consideram e o tratam”.

31
Aula 9
Psicologia,
psiquiatria e a
relação entre alma e
corpo
Como se dá a relação entre as partes material e imaterial do ser humano?
Essa é uma pergunta muito séria porque tem aplicações importantes na área
da psicologia, psiquiatria e várias outras áreas do conhecimento. É um assun-
to sobre o qual a Escritura fala muito pouco, mas que é importante dicutir. Se
temos uma parte material e uma imaterial, existe comunicação entre essas
duas partes? Aquilo que acontece na alma afeta o corpo? Aquilo que aconte-
ce no corpo afeta a alma? Esse é um assunto extremamente amplo e difícil,
que requer atenção especial devido a sua importância, principalmente de-
pois do avanço das psicologias e psiquiatrias dentro dos contextos religiosos.
Há muitos cristãos que acreditam que crentes não devem tomar remédios
psiquiátricos ou coisas assim. Porém, se existe uma unidade entre as partes
material e imaterial do ser humano e uma comunicação entre essas partes,
é interessante que percebamos que coisas que acontecem no corpo afetam
nossa alma e vice-versa. A Escritura dá alguns exemplos disso.

32
Pense no episódio em que os discípulos não conseguem orar com Jesus no
Getsemani e Jesus os repreende por estar dormindo. Jesus diz que o espírito
deles não estava pronto. O problema de os discípulos não estarem orando
não era espiritual, mas de fraqueza da carne. Eles dormiam por causa de
uma fraqueza física, algo que afetava o corpo e o espírito. Era um problema
de natureza fisiológica. Por outro lado, observamos elemento de natureza
psicossomática na Escritura. No mesmo texto do Getsemani, vemos um Cris-
to que seu sangue por causa do terror psicológico da cruz e da separação
de Deus. Doenças psicossomáticas são exatamente isso: Nosso corpo sendo
afetado por questões da alma. Muitas depressões físicas surgem por conta
de problemas espirituais e problemas espirituais surgem por causa de de-
pressões físicas com origem biológica e bioquímica.

O fato é que não sabemos como delimitar as fronteiras da relação do corpo


com a alma. Existe uma relação entre as partes. E se há essa relação mis-
teriosa que não sabemos descrever em detalhes, e os esforços bíblicos de
fazê-lo se mostram um pouco inúteis, temos que ter cuidado com as duas
coisas. Sempre que tivermos problemas no corpo, precisamos averiguar se
sua origem não é na alma. Sempre que tivermos problemas na alma, temos
que averiguar se aquilo não tem origem no corpo. Não somos uma alma ha-
bitando um corpo, mas nosso corpo e nossa alma. Somos em completude.

Existem muitos comportamentos físicos e efeitos físicos de coisas que acon-


tecem em nossa alma. Ao longo do AT, vemos várias vezes os homens com
o espírito baixo, com tristeza no corpo, com os ossos secando por causa de
problemas espirituais, por causa de perseguições que afetavam o psicoló-
gico, por causa de pecados que eram escondidos e causavam depressões,
tristezas e angústias.

O semblante de Caim estava caído por causa de um problema espiritual que


ele tinha com Deus contra seu irmão. Muitas doenças hoje em dia se mani-
festam dessa forma, sejam efeitos físicos de problemas emocionais ou vice-
-versa. Quando o cristão possui uma depressão física e não consegue agir,
trabalhar e nada mais, é preciso averiguar se essa situação é um problema
no corpo, se ele precisa de remédio ou se o problema também é espiritual.

33
Pode ser que haja um pecado oculto, uma pressão demoníaca ou algo que
está afetando a sua espiritualidade ao ponto de isso mudar o seu corpo.

A mesma coisa acontece quando temos problemas espirituais. Se alguém


tem um transtorno que se dá na escala espiritual, nos aspectos emocionais
ou imateriais, isso pode ter origem física, o que deve ser corrigido na esfe-
ra bioquímica ou pessoas podem problemas nos hormônios cerebrais, com
tumores na hipófise etc. Existem várias razões que podem afetar nossa espi-
ritualidade quando nossa carne está fraca e nosso espírito pode ser afetado
por isso mesmo quando ele está pronto. Por isso, é preciso ter cautela e
muita maturidade ao lidar com essas questões de relacionamento entre o
corpo e a alma. Nós não somos seres totalmente separados e aquilo que
é espiritual é alheio ao nosso corpo. Isso significa que também precisamos
tomar cuidado com nosso corpo. Exercitar-se, perder peso e cuidar da saúde
está ligado a uma vida de cuidado espiritual também. Nós conseguimos cui-
dar da nossa espiritualidade tendo um corpo bem cuidado. Precisamos de
um corpo bem cuidado se o quisermos dedicar a Deus.

Muitas vezes, no meu ministério, o serviço espiritual foi afetado por causa do
meu bem-estar físico. Eu estava cansado ou doente e não conseguia pregar
como gostaria. Não conseguia gastar tempo aconselhando, cuidando como
eu gostaria. Isso acontecia por causa do meu corpo, não por causa da minha
espiritualidade. Ou seja, o fato de o meu corpo estar fraco afetava o serviço
espiritual à igreja. Precisamos cuidar do nosso corpo se quisermos gastar
nosso corpo. Precisamos cuidar bem nosso corpo físico se quisermos ter um
serviço espiritual que realmente será útil para o reino de Deus. Claro que
Deus muitas vezes sobrepõe nossas misérias físicas e nos usa mesmo na fra-
queza, mas nós, ao cuidarmos do nosso corpo, afetaremos nosso espírito. Ao
estar bem cuidado fisicamente, exercitado, bem alimentado, consigo ter uma
vida espiritual melhor. Ao cuidar do corpo, consigo pregar com mais vigor,
passar mais tempo lendo e estudando, porque as costas doem menos, o joe-
lho dói menos. Cuidar do corpo ajuda na nossa espiritualidade justamente
porque existe essa unidade entre corpo e alma.

Temos que cuidar da nossa alma para ter o corpo mais cuidado. Precisamos
cuidar do nosso corpo para ter uma alma mais cuidada.

34
Aula 10
A origem da Alma:
tradução, criação ou
preexistência?
• Pré-existencialismo

O pré-existencialismo é uma posição muito conhecida e até mesmo defendi-


da na teologia católica romana. Ele postula que todas as almas de todas as
pessoas que irão nascer já pré-existem no céu. Ela já existe antes da concep-
ção física da pessoa, isto é, antes de o corpo da pessoa ser gerado pelos pais.
Orígenes, do lado da teologia, e Platão, do lado da filosofia, foram defensores
dessa posição. Orígenes cria na queda pré-temporal das almas humanas e
explicava as desigualdades físicas e morais da presente existência dos seres
humanos como castigo por pecados cometidos em uma existência anterior.
Entretanto, não há base bíblica alguma para tal posição. Ela é totalmente es-
peculativa e baseada em um dualismo pagão que encontra base em textos
deuterocanônicos, dos quais já foram tratados em bibliologia.

• Traducionismo

Essa posição afirma que, assim como nosso corpo procede de nossos pais,
nossa alma também. Ela é defendida por homens como Gregório de Nissa,
Lutero, Jonathan Edwards, William Shedd, Augustus Strong, entre outros.

35
Alguns argumentos do traducionismo são:

• Deus soprou uma única vez o fôlego de vida, conforme explicitamente


descrito na Bíblia e descansou, cessando sua obra de criação no séti-
mo dia (Gn 2.2). Depois disso, caberia ao homem e à mulher multipli-
car a espécie. (BERKHOF, 2007, p. 182-283)

• Diz que os descendentes estão potencialmente nos lombos de seus


pais (Gênesis 46.26; Hebreus 7.9,10). Quando a Bíblia fala que Levi es-
tava em Abraão, ela quer dizer que nós estamos naqueles que nos
precedem, porque corpo e alma são traduzidos e transmitidos por
meio da concepção.

• Semelhanças intelectuais, morais e emocionais dos pais com os filhos.

• Transmissão da depravação total. A culpa é imputada, mas a deprava-


ção é transmitida. O pecado estaria apenas no corpo? Não, o pecado
também seria transmitido nos nossos aspectos espirituais e isso seria
transmitido na tradução da alma do pai para o filho.

Porém, existem objeções ao traducionismo:

• Almas são imateriais, únicas e indivisíveis. A alma seria originada de


quem? Do pai? Da mãe? De uma composição de ambos?

• O traducionismo afirma que depois da criação Deus só age de forma


mediada. Porém, o que dizer da regeneração, a qual não é efetuada
por causas secundárias?

• Para explicar a culpa herdada, geralmente se alia à teoria do Realismo.


Ao fazer isso, afirma a unidade numérica da substância de todas as al-
mas humanas, o que é insustentável. Consequentemente, tem dificul-
dade em responder por que os homens não respondem pelos outros
pecados de Adão nem pelos de seus antepassados.

• Qual a resposta para a natureza humana de Cristo não ter herdado o


pecado de Adão?

36
• Criacionismo

Segundo essa corrente, a alma humana é imediatamente criada por Deus


por ocasião da concepção de cada pessoa. Defendido por Jerônimo e Hilário,
Tomás de Aquino e Calvino.

Alguns argumentos do criacionismo são:

• Está em harmonia com a idéia filosófica acerca da alma como simples


e indivisível, em função da sua imaterialidade e espiritualidade.

• Base bíblica mais consistente: Zc 12.1; Nm 16.22; Is 42.5; Jr 38.16; Hb


12.9

• A alma de Cristo não herdou o pecado, pois foi criada por Deus. Cristo
não partilhou da mesma essência numérica que Adão, portanto não
foi concebido em pecado. Ele foi verdadeiramente homem, possuindo
uma alma e nascido de mulher, sendo semelhante a todos nós.

Objeções ao criacionismo

• Como explicar o pecado com o qual todo homem nasce? Deus cria
uma alma pecadora, criando-a má?

• Como relacionar com o ensino de que Deus cessou seu ato criativo (Gn
2.2)?

37
Aula 11
Imortalidade da
alma e estado
intermediário
​​ morte é fator inegável (Hebreus 9.27). Deus amaldiçoou o homem com
A
a morte por causa do pecado. O capítulo 5 de Gênesis repetidamente diz
“...e morreu” para evidenciar que a maldição havia recaído sobre o homem.
Aqueles que não concebem a existência de uma parte imaterial no homem,
entendem a morte como a cessação da existência. Porém, a morte não deve-
ria ser vista como não-existência, mas como um modo diferente de existên-
cia. Como diz Erikson (2015, p. 1116), “a morte é simplesmente a transição
desse estado para uma forma diferente de existência; ela não é, como alguns
tendem a pensar, a extinção da vida”.

Outra morte da qual a Bíblia fala é a morte espiritual, na qual a pessoa vive
em pecado (Efésios 2.1-3), e ainda a segunda morte, que é a condenação
eterna (Apocalipse 20.14) por não viver nos caminhos de Deus.

Concebendo a alma, é preciso responder para onde ela vai depois da morte.

38
Os liberais acreditavam em uma forma de imortalidade da alma que rejeitava
a ressurreição corpórea porque também rejeitavam que Jesus voltaria, em
sua segunda vinda, de forma corpórea. Assim, a alma é imortal e o homem
passa a existir numa realidade espiritual eterna depois que morre. Já os neo-
-ortodoxos viam a imortalidade da alma como um conceito grego e criam
numa ressurreição do corpo futuro. Porém, atrelada a essa concepção, es-
tava a ideia do ser humano como unidade radical. Portanto, entre a morte e
a ressurreição não haveria vida espiritual, porque não pode haver vida sem
um corpo. Isso faz parte de uma das posições famosas acerca do estado in-
termediário: onde o ser humano está nesse momento depois que ele morre?
Seria a ideia do sono da alma.

Há ainda as posições mais disseminadas acerca do estado intermediário:


Purgatório, sono da alma, ressurreição instantânea e a proposta bíblica. O
purgatório é a doutrina católica romana que diz que a alma precisa purgar
os pecados que não foram pagos em vida. Elas estarão nesse lugar até que
sejam purificadas totalmente. Sono da alma, que é muito comum entre ad-
ventistas do sétimo dia, propõe que entre a morte e a ressurreição a alma
está em um estado de latência, aguardando a volta de Cristo. A ressurreição
instantânea postula que depois da morte o crente recebe um “corpo de res-
surreição” temporário até que haja a ressurreição corporal definitiva. Mas
nenhuma dessas propostas é realmente a proposta bíblica apresentada no
NT. A proposta bíblica é clara ao afirmar que ao morrer a alma irá para o
céu ou para o inferno. O indivíduo estará com Deus, gozando das bençãos
de Cristo, ou no inferno, sendo punido pelos seus pecados. No ultimo dia,
haverá uma ressurreição eterna, um juízo final, um novo corpo para todos os
homens. Os santos estarão na Nova Terra juntamente com Deus e os ímpios
serão condenados junto com o com os anjos caídos, seus demônios, no lago
de fogo e enxofre.

39
Aula 12
A criação do
casamento
​​
Um dos pontos importantes é sobre a criação do casamento. Ele foi criado
como algo intrínseco à criação do homem e mulher. Eles foram criados e,
quando o homem ainda não tinha sua esposa em casamento, isso não era
muito bom. A mulher é criada para o casamento com o seu marido. O ca-
samento não é uma estrutura inventada, não é uma tradição humana, não
é algo das culturas ocidentais ou orientais. O casamento é algo que Deus
criou preparado para a humanidade. Ele possui uma estrutura diferente dos
outros relacionamentos humanos. Ele não é como uma amizade, mas uma
entrega de vida e posse de um homem para com a mulher e vice-versa, de
forma que ambos, quando se unem, se tornam uma só carne.

Isso é lido em Gn 2.23-24, onde Deus cria homem e mulher para se unirem
como uma só carne. O casamento se torna um ato familiar em que homem e
mulher decidem se unir em matrimônio, em amor um ao outro. Nessa união,
eles largam sua antiga família, não simplesmente a abandonando, mas cons-
truindo um novo núcleo familiar. Então agora existe uma nova unidade que
se dá também de forma sexual. O sexo foi construído para ser desfrutado
dentro dessa relação de matrimônio.

40
Primeiro, o matrimônio cobra essa deixa de pai e mãe. Isso porque estamos
lidando com a transferência de submissão e de auxílio. Filhos que antes eram
submissos aos seus pais, agora estão num relacionamento de parceria e sub-
missão um com o outro dentro do casamento. Agora, a mulher não deve
mais submissão absoluta aos seus pais, nem o marido em submissão absolu-
ta a seus pais. É interessante que no NT, quando Paulo fala sobre obediência
de escravos, ele adverte “obedecei em tudo” (Cl 4.22); quando fala dos filhos,
diz “obedecei em tudo” (Cl 4.20). A postura de um filho para com o pai é
de extrema e absoluta obediência. Porém, quando menciona um relaciona-
mento familiar, aconselha as mulheres a serem submissas aos seus maridos
e, na sequência, usa uma palavra diferente da que é usada para os filhos,
porque submissão não é obediência absoluta e total, mas no casamento há
agora esse novo relacionamento em que uma nova família é constituída. Os
filhos não dependem mais financeiramente dos pais, não mais dependem de
autoridade e e propósito dos pais. Agora os filhos vão construir sua própria
história em um novo núcleo familiar.

O segundo ponto é que o texto diz que o homem e a mulher se unem. Ele
tem esse propósito unificador familiar. Eles não simplesmente decidem fazer
sexo, mas se unem em um esforço em direção à unidade nesse relaciona-
mento. O texto fala de homem e mulher em união. O casamento, dentro da
visão judaico-cristã, é algo que não se dá em relacionamentos homossexuais.
O casamento se dá entre homem e mulher justamente porque o fruto do
casamento é uma coabitação fecunda. Sempre potencialmente fecunda. A
ideia é que, por causa da prole, dos filhos e dessa união em uma só carne
que gera fruto, o casamento se dá entre homem e mulher nesse propósito
que Deus conferiu. A gente não está entrando na questão da esfera civil, mas
qualquer outra coisa, segundo o cristianismo, não é casamento.

O casamento também é monogâmico e se dá entre um homem e uma mu-


lher. Ao longo da história do AT, vemos a bigamia entrando no mundo. A
bigamia entra no mundo por meio da família de Caim, que estava separada
de Deus e que foi descrita no livro de Gênesis como uma raça diferente do
grupo de pessoas que seguia e amava o Senhor. De lá, nasce a bigamia. A
poligamia cresce no AT, a bigamia é ignorada e as metáforas entre Cristo e a

41
Igreja sempre são tratadas com caráter monogâmico. Por mais que o AT não
possua longas condenações à bigamia, a história da bigamia e da poligamia
no AT é geralmente relacionada a famílias que se deram ao pecado. Por mais
que Deus gerencie a poligamia e a bigamia no AT, isso não necessariamente
representava o padrão de Deus para aqueles povos. No NT, no auge da reve-
lação, sempre encontramos padrões monogâmicos. Na criação de todas as
coisas, Deus criou uma família monogâmica entre um homem e uma mulher.
Eles então se unem. A palavra hebraica fala acerca de apegar-se, grudar-se a
uma unidade de fato. O sexo não é casual. O relacionamento não é algo de
que se pode abrir mão a qualquer momento, mas é um relacionamento pro-
fundo e intímo no qual os contraentes se amam e preferencialmente nunca
se separam. A morte vai separá-los em algum momento, mas adultérios e
imoralidades sexuais não deveriam separar o homem e mulher. O casamen-
to foi criado para que divórcio não existisse. O divórcio vem por causa do
pecado entrando no mundo em Gênesis 3.

Como é que o casamento é estabelecido? Ele se dá de forma familiar. É quan-


do uma família decide fundar outra família. O casamento não é um ato reli-
gioso no sentido de que não é a festa na igreja que faz com que o casamento
exista. O casamento também não é algo civil. Não é escrever no papel diante
do Estado que o casamento passa a valer. O casamento é um ato familiar.
O casamento existe quando alguém sai da casa de seus pais e então se une
com o propósito de casamento com outra pessoa. Agora, o normal é que
existam celebrações religiosas que as igrejas possam se alegrar nesse pro-
cesso de casamento, mas a ausência da festa não faz com que o casamento
deixe de existir. O normal é que, em nossa sociedade ocidental, uma vez
que o casamento possui um aspecto civil, nós possamos registrar civilmente
os nossos relacionamentos de casamento. Não existe nenhum bom motivo
para alguém não querer casar no civil. Homem e mulher se tornam uma só
carne por meio do coito, do ato sexual, da intimidade física, que só aparece
depois desse processo. O homem deixa pai e mãe, une-se à sua mulher, en-
tão torna-se uma só carne com ela. O sexo não é algo que pode ser adianta-
do para antes do casamento, mas se dá quando esse propósito de uma nova
família é estabelecido. Quando essa união sexual é potencialmente fecunda,
cria filhos e louva o nome de Deus por meio da fecundidade.

42
Aula 13

Igualitarismo,
Hierarquismo e
Complementarismo
​​
Qual é o papel do homem e da mulher no casamento ou na sociedade, de
forma geral? Existem pelo menos três visões baseadas na criação do casa-
mento que devem ser conhecidas para que você possa entrar nesses deba-
tes tão minunciosos acerca de sexualidade e do papel do homem e da mu-
lher na cultura. Há o hierarquismo, o igualitarismo e o complementarismo,
três visões importantes que merecem nossa atenção.

A primeira posição é o igualitarismo. O igualitarista defende que não há di-


ferença alguma entre os papéis do homem e da mulher na igreja ou mesmo
na sociedade. Nesse sentido, dentro da igreja, mulheres podem ser pastoras,
homens podem ser pais que ficam em casa enquanto mulheres trabalham
fora. O igualitarista não observa nenhum papel intrínseco que marque o que
é homem e o que é mulher. Homem e mulher possuem a mesma dignidade

43
e podem assumir os mesmos papéis na sociedade, assim como os mesmos
papéis dentro da igreja. Para eles, mulheres podem ser pastoras tranquila-
mente.

Uma segunda visão, no outro extremo, é o hierarquismo. Os hierarquistas


geralmente defendem que existe uma hieraquia entre homem e mulher. O
hierarquismo pode se manifestar em duas vias: a machista ou a feminista.
Pela via machista, as mulheres são vistas como inferiores aos homens. Elas
não são apenas comandadas pela liderança masculina, mas também não
possuem voz diante dela. Elas devem obediência completa, seja no lar, na
igreja ou na sociedade. Infelizmente, muitas mulheres são mantidas sob do-
mínio machista dentro dessa posição. Pelo lado feminista, pelo menos o fe-
minismo de terceira onda, nessas ondas atuais misândricas de feminismo, o
homem é visto como ser inferior, principalmente por causa de alguma cultu-
ra de estupro que possa ser imputada sobre os indivíduos ou sobre alguma
dívida histórica que os homens devem às mulheres. Os homens são vistos
como seres que devem ser destruídos ou desprezados ou excluídos da so-
ciedade porque, hierarquicamente, mulheres são superiores aos homens.
Essa não é uma posição muito comum dentro dos ambientes cristãos, mas é
muito comum dentro de ambientes progressistas e revolucionários.

Uma terceira posição é a complementarista, uma visão muito famosa acerca


dos papéis do homem e da mulher. A ideia é que homens e mulheres são
parceiros em cada área da vida e ministram juntos em igual valor, dignidade
e capacidade, mas com papéis diferentes que se complementam, por isso
o nome complementarismo. Esses papéis podem ser intercambiados em
momentos específicos ou difíceis da vida, mas o normal e ordinário é que
mulheres e homens possuam certos papéis específicos em casa, na igreja
e na sociedade. Homens devem liderar suas famílias em amor e em graça.
Mulheres devem ser auxiliadoras de seus maridos também em amor e em
graça. Não por causa de capacidades, mas porque Deus deu para cada um
funções complementares e específicas. Nesse caso, apenas homens podem
ser pastores nas igrejas, mas mulheres teriam amplo espaço de atuação nas
comunidades e isso não seria aplicado à vida em sociedade, na qual as mu-
lheres têm espaço de atuação, em que não haveria nada que impedisse as
mulheres de assumir papéis de liderança na vida social ou civil.

44
Aula 14

A questão do aborto:
Quando a vida
começa?
​​ assunto do aborto está dentro da antropologia, já que falar sobre a ques-
O
tão do aborto é falar sobre quando começa a vida e, como diz o Dr. Glauco
Barreira :

a vida é um direito inviolável. Se a vida for fragilizada


poderá sê-lo, porque não há direito que não decorra da
vida. Ela é o pressuposto de todos os direitos. Demolir o
direito à vida, relativizá-lo, enfraquecê-lo é enfraquecer
todos os direitos humanos que estão assentados sobre
o direito à vida humana.

Portanto, é justamente a defesa do direito à vida de qualquer pessoa em


qualquer condição de concepção que é a base para que os viventes possam
reivindicar seus direitos.

Manuela D’Avila, assim como as feministas de terceira onda, sugere que o

45
aborto deveria ser tratado como uma questão de saúde pública. Segundo
ela, cada país deveria ter um diálogo com a população para escolher o pro-
cesso de legalização do aborto. Para ela, o aborto acontecerá invariavelmen-
te e, por isso, legalizar o aborto é proteger a mulher pobre de condições
precárias de atendimento que podem levá-las à morte, enquanto o mesmo
não acontece com mulheres ricas. A Manuela perde o debate porque o abor-
to não é sobre saúde pública, mas sobre antropologia, sobre a vida humana,
sobre onde a vida começa. Não importa questões de saúde pública se não
discutirmos primeiro questões de antropologia.

Percebemos, então, que a questão do aborto vem de um conjunto de ideias


que cada indivíduo possui que fundamentam aquela decisão. Isto é, depen-
dendo de como a pessoa pense sobre como o mundo está estruturado, ela
defenderá sua posição a favor ou contra o aborto. Por isso, alegar que ser
contra o aborto é questão religiosa é tolice porque ainda que a religião seja
considerada por esses que são contra o aborto. As raízes ideológicas são tão
ideológicas como qualquer outra em um debate público. Aqueles que não
são religiosos também têm suas bases não religiosas ou de outras religiões
para argumentar a favor do aborto. O que importa é o debate acerca da an-
tropologia da questão.

Uma das principais argumentações apresentadas a favor do aborto é que até


determinado período o ser na barriga da mulher não é uma pessoa, portan-
to, com aborto não se está matando uma vida, mas apenas removendo um
conglomerado de células. Ouve-se até mesmo que “fungos são células que
se multiplicam”, como diz certa feminista de certo coletivo brasileiro. Ou seja,
para abortistas, parece não haver diferença entre as células em multiplicação
de um fungo e de um ser humano.

O problema está no reducionismo. Aqueles que enxergam o todo da vida hu-


mana simplesmente a partir da esfera biológica reduzem o ser humano a um
composto de células desenvolvidas. André Gonçalves Fernandes diz que a
“redução da antropologia à biologia, da biologa à química, da química à fisíca,
se pode ser muito importante como metodologia de pesquisa setorial, não
tem legitimidade para assumir a condição de um postulado de interpretação

46
global da realidade”. Não podemos reduzir toda a complexidade da antropo-
logia a um desenvolvimento físico, biológico, psíquico ou mesmo social. Ten-
tar reduzir o aborto à questão do desenvolvimento biológico é escolher um
único aspecto da realidade e reduzí-la a apenas isso. O todo é sempre mais
complexo que as partes que o constitutem. Escolher a parte biológica do ser
humano e afirmar que por ele não estar totalmente desenvolvido ele não
é ser humano é bobagem. Nenhum de nós está plenamente desenvolvido
mesmo depois de nascido e nem por isso nossa vida deixa de ser uma vida
humana. É a partir daí que precisamos considerar o que é ser uma pessoa.

Afinal, se um amontoado de células não for uma pessoa, não há problema


moral em abortá-lo. André Gonçalves Fernandes aponta algumas etapas do
processo de desconstrução ou de resignificação do conceito do que é uma
pessoa. A primeira etapa teria vindo com Descartes

ao separar ontologicamente a alma do corpo, introdu-


ziu-se inevitavelmente uma fratura na unidade do ser
humano, ao se identificar a pessoa como um processo
auto-relacionado do ego e se reconhecer somente a
alma, sede do pensamento e da autoconsciência, como
pessoa e autoconsciente.

A segunda etapa de reducionismo e descontrução viria com o empirismo,


que negou a consciência, reduzindo a pessoa a ideias, impressões e estados
afetivos. No decorrer do tempo, novas compreensões sobre o que era uma
pessoa, sempre reducionistas, remodelam o valor humano.

É daí que vem o termo tão conhecido, “pessoa em potencial”, a ideia de que
aquele amontoado de células que está dentro da mulher não é uma pessoa,
mas uma pessoa em potencial. Deverá se tornar pessoa em potência, mas
ainda não é pessoa em ato. Ele não é um ser humano de fato, mas será,
porque essa potencialidade para ser humano ali está.

O embrião está no processo de se tornar uma pessoa. Então, o que ocorre


é que as pessoas criam barreiras arbitrárias para determinar onde é que a
pessoalização do feto começa. É com a criação do sistema nervoso central?

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É quando o coração começa a bater? É com o cortex cerebral? Onde nasce o
indivíduo e onde encerra o amontoado de células? Ninguém sabe dizer com
convicção, justamente porque essas definições são arbitrárias. Essa concep-
ção que separa a pessoalização do ser humano que está sendo gerado pre-
cisa ser arbitrária na definição de quando começa um ser humano dentro da
formação do indivíduo.

Em Livre para nascer: o aborto e a lei do embrião humano, André Gonçalves


Fernandes argumenta que

o ser pessoal pertence à dimensão ontológica e o ser hu-


mano não é mais ou menos uma pessoa: é uma pessoa
ou não é. O ser pessoal não pode ser adquirido ou di-
minuído gradualmente. Uma vez alcançado, não é mais
subtraído. A ausência, vista como não atuação ou priva-
ção, de propriedades ou funções, não nega a existência
do referencial ontológico pessoal, o qual permanece por
natureza, pre-existente às suas próprias qualidades.

Quais são as qualidades que, se as perdermos, nos fazem deixar de ser pes-
soa? Se meu coração deixar de bater, eu paro de ser um ser humano? Se eu
tiver morte cerebral, ainda sou ser humano? Posso estar morto, mas tenho
ali características de pessoalização. Não importa que partes faltem em mim,
ainda sou ser humano. Podem faltar certas partes no feto em desenvolvi-
mento, mas qual são as partes fulcrais para defini-lo como pessoa? Isso é
arbitrário e vem de um processo de desumanização da vida intrauterina.

Como cristãos, temos motivos o bastante para sermos contra o aborto. A


Bíblia nos informa que o ser humano não é composto somente de uma parte
material, o ser humano não só um corpo, mas ele também tem uma parte
imaterial (Gn 2.7; Zc 12.1; Lc 1.46-47). O ser humano não é só corpo, ele tam-
bém é alma. O óvulo fecundado já é alguém que possui uma alma dada por
Deus.

A Bíblia também diz que todo ser humano é imagem de Deus (Gn 1.26-27). O
feto é imagem de Deus tanto quanto qualquer um de nós. Matar um embrião
é matar a imagem de Deus que está no ventre de uma mulher.

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O salmista declara que o Senhor já o conhecia enquanto ele era informe no
ventre de sua mãe (139.13-16). Deus já conhecia Davi enquanto ele próprio
não tinha consciência de si mesmo. Mesmo quando Davi não tinha mãos,
pulmões, coração ou cérebro, ele já era uma pessoa, já era imagem de Deus
e já era conhecido pelo Senhor.

João Batista louvou a Cristo no ventre de sua mãe e reconheceu no ventre o


Deus que estava no ventre. É impossível que cristãos como nós considere-
mos o aborto uma possibilidade, quando é João Batista reconheceu Cristo
ainda no ventre de sua mãe. A antropologia cristã não permite a prática do
aborto.

Referências:

BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.


ERICKSON, Millard J. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2015.

FERNANDES, André Gonçalves. Livre para nascer: o aborto e a lei do em-


brião humano. Campinas: Vide Editorial, 2018

FERREIRA, Franklin. MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma análise his-


tórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova,
2007
GEISLER, Norman. Systematic theology (Vol. 3) Minneapolis. Minnesota:
Bethany House, 2003

WILLIAMS, J. Rodman. Teologia Sistemática: uma perspectiva pentecos-


tal. São Paulo: Editora Vida, 2011.

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