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ACONSELHAMENTO BÍBLICO E PSICOLOGIA

EM BUSCA DE UM MODELO CRISTÃO

Airton Williams (Th.M.)


INTRODUÇÃO

Em que consiste o trabalho pastoral na igreja e da igreja?


Mateus 9.35-38:
a) dida,skwn
b) khru,sswn
c) qerapeu,wn
Podemos dizer que até o século XX a igreja procurava cumprir sua missão
pastoral no mundo como testemunho da presença de Deus na história.
Com o avanço do Liberalismo Teológico no protestantismo, a igreja foi afetada:
a) Pela relativização da Palavra de Deus e a negação de sua suficiência para
todas as coisas que dizem respeito à fé e a vida;
b) Pela ênfase na experiência religiosa;
c) Pela ênfase no homem como centro e objetivo da religião.
Como consequência, a igreja viu:
a) A pregação e o ensino se esvaziarem do seu conteúdo bíblico e cristocêntico,
sendo substituídos por mensagens de autoajuda e estudos sócio-psicológicos.
b) O aconselhamento bíblico foi entregue nas mãos da psicologia.
Estes 3 enfoques do ministério pastoral (pregação, ensino e cura) da igreja no
mundo e para o mundo têm sido motivo de grandes lutas pela sua preservação em meio
à ortodoxia protestante.
Nosso enfoque nestas palestras é o problema que cerca o aconselhamento bíblico
e a psicologia.
I. ENTENDENDO O MINISTÉRIO DE ACONSELHAMENTO

O que é aconselhar?
De uma forma simples, aconselhamento é uma conversa em que alguém, diante
de uma situação difícil e em busca de respostas, pede a outra pessoa, de sua confiança e
a quem reputa sabedoria, ajuda na solução de seu problema.

Quais as possibilidades para este aconselhamento?


1. Aconselhamento Bíblico
Historicamente, até o início do século XX, a igreja cristã sempre acreditou que a
Bíblia tinha todas as respostas para os problemas existenciais dos homens.
Ex.: Patrística, Reforma, Puritanos (médicos das almas).

2. Psicologia
Com o advento do Iluminismo, e sua entrada na igreja por meio da teologia
liberal, paulatinamente a igreja foi entregando seu ministério de aconselhamento para a
psicologia. Daí, surgiu o que tem sido chamado de Psicologia Cristã, fortemente
representada pelo Dr. James Dobson; no Brasil, pelo Corpo de Psicólogos e Psiquiatras
Cristãos (CPPC).

3. Integracionismo
Uma terceira linha foi proposta para o ministério de aconselhamento feito pela
igreja, o Integracionismo, que acredita ser possível conciliar a teologia cristã com a
psicologia. Esta corrente tem sido representada por nomes como Gary Collins e Larry
Crabb.

4. Psicanálise
Ainda que não tão evidente no debate, há uma linha que ganhou força no Brasil
há alguns anos atrás por causa de cursos rápidos que, teoricamente, preparava
pessoas leigas para o exercício do aconselhamento por meio da Psicanálise.

Diante destas possibilidades, como deveria a igreja se posicionar? Seria válido o


uso da Psicologia ou da Psicanálise em um processo de aconselhamento que se
preocupe com a transformação da pessoa a partir do seu coração com o foco na
eternidade?
II. COMPREENDENDO A PSICOLOGIA
Sua Origem
A Psicologia tem sua origem na filosofia.
1º Período: Grego. Revolta contra as divindades. A escola naturalista.
2º Período: Idade Média: revolta contra o teocentrismo.
3º Período: Iluminismo: revolta contra todo sistema dogmático cristão.

Principais Escolas e Teóricos da Psicologia


1. Sigmund Freud:
a. A gratificação pessoal é o centro da personalidade humana.
b. Há dois impulsos básicos em busca da gratificação: o impulso para o prazer
sensual (eros) e o impulso para o poder e a destruição (tanatos)
c. A motivação egoísta não é reconhecida pelas pessoas, revestindo-a de
roupagem nobre.
Esta crise entre o desejo egoísta (id) e a consciência que deve ser protegida
(superego), desencadeia a ansiedade que gera a desordem psicológica.
d. A cura desta desordem se processa em três passos: (1) Descobrir a motivação
por trás de tudo; (2) amolecer a consciência ao ponto em que o motivo de
autogratificação se torne aceitável; (3) promover a autogratificação dentro dos
limites da realidade e da aceitabilidade social.
“Depois de acabar com uma consciência neuroticamente moral, o paciente se aceita
como animal autogratificante e passa a, inteligentemente e de propósito, procurar
satisfazer seus impulsos egoístas de modo que não entre em conflito com o seu mundo.
Ex.: o estupro é inaceitável, mas procurar parceiros para satisfação sexual ou pagar por
isto é aceitável.” (Crabb, p.24)
O ego se torna, neste modelo, o contato com a realidade aceitável.

2. Psicologia do Ego:
a. Esta escola trabalha dentro das estruturas da teoria freudiana, mas entende que
o homem é capaz de direcionar seu comportamento de forma inteligente e
adaptadora.
b. É tarefa do psicólogo desenvolver o potencial do homem para o
comportamento sensato, razoável, capaz de tomar decisões que deem freios aos
impulsos brutos e conduzi-los a canais aceitáveis e produtivos.
c. Para desenvolver o potencial humano os psicólogos do ego investem na
formação de autoimagem positiva do homem, bem como na autoconfiança.
d. A psicologia do ego compreende a necessidade de adaptação do homem a
partir de necessidades biológicas dentro de uma estrutura social realista. Assim,
o homem é apenas um ser biológico.
e. À medida que a terapia do ego funcione, o ser humano tende a se tornar
orgulhoso, se afastando de Deus.
f. Como as necessidades verdadeiras ficam sem ser atendidas, o sentimento de
frustração toma conta.

3. Carl Rogers e a Escola Humanista:


a. O homem, em si, é totalmente positivo. Tudo dentro dele é bom.
b. A corrupção vem de fora.
c. Todo problema de personalidade vem de uma única raiz: a pessoa ser ela
mesma, ser autêntica.
d. A cura do problema psicológico é oriunda do relaxamento dos limites fixados
às pessoas. Confie implicitamente nela, encoraje-a à autoexpressão, de tudo o
que está lá dentro (“se você sente isso, faça-o!”), e eventualmente a tendência
para a autoatualização apropriada se evidenciará nela em sentimentos externos e
internos de bem-estar.
e. Roger erra: (1) ao crer que a integração se atinge melhor ao estimular a
expressão de tudo o que somos; (2) ao achar que se eu for entregue a mim
mesmo, sem ser dirigido por outrem, sempre escolherei o melhor curso de ação.

4. B.F. Skinner e o Behaviorismo


a. O ser humano é realmente nada, um imenso e vazio zero. Assim, ele é um ser
amoral.
b. Por ser amoral, o comportamento humano é totalmente controlado. O homem
é um cachorro complicado, totalmente determinado pelo seu ambiente, até o
mínimo detalhe de seu pensamento, sentimento e ações.
c. O problema comportamental reside no fato de sermos controlados por forças
imperceptíveis que reforçam nosso comportamento.
d. A cura estaria em identificarmos os reforços que controlam o comportamento
e manipulá-los sistematicamente a fim de produzir o comportamento desejado.
e. Crítica de Francis Schaeffer:
(1) Se todas as pessoas são realmente controladas, quem controlará os
controladores?
(2) Se o controle for possível, deve-se determinar a direção em que as pessoas
devem ser modificadas. Qualquer decisão sobre mudança de valores assume
implicitamente um sistema de valores, o que contradiz a tese de Skinner.

5. Existencialismo:
a. O homem é um produto do acaso, um ponto de interrogação, um
acontecimento não planejado que não obedece a leis e está indo em nenhuma
direção intencional.
b. O problema psicológico resulta da neurose noogênica, segundo Victor Frankl.
As pessoas não sabem quem são e nem porque estão aqui.
c. A cura consiste em persuadir as vítimas a se agarrarem arbitrariamente em
alguma coisa pela qual vivam.

Os Pressupostos da Psicologia Moderna


1. NATURALISMO:
Uma teoria metafísica que defende que todos os fenômenos podem ser
explicados mecanicamente em termos de causas e leis naturais. O naturalismo opõe-se
ao sobrenaturalismo.

2. MATERIALISMO:
Doutrina filosófica que admite como realidade apenas a matéria. Nega a
existência da dinâmica espiritual, bem como do mundo espiritual ou divino.
3. REDUCIONISMO:
Teoria filosófica aplicada à psicologia que advoga que o ser pessoa, assim como
todo o comportamento humano, pode ser explicado reduzindo-o aos processos
psicológicos, biológicos e químicos que acompanham a atividade humana.

4. DETERMINISMO:
Doutrina segundo a qual a totalidade dos fenômenos constitutivos da realidade
se encontra submetida a determinadas leis de caráter natural. Assim, todo
comportamento humano é determinado pelo processo natural.
5. EVOLUÇÃO:
Todas as coisas tiveram origem no processo evolutivo de formas mais simples.

6. EMPIRISMO:
Pressupõe que o conhecimento só é possível através dos sentidos e/ou através do
método científico.

7. RELATIVISMO:
Pressupõe que tudo é relativo e que nada é absoluto.

8. HUMANISMO:
Pressupõe que o homem é a coisa mais importante do universo e que tudo gira
em torno da sua felicidade.
9. OCULTISMO:
Pressupõe a realidade da espiritualidade, mas uma espiritualidade comprometida
com o bem-estar do homem a partir de deuses que se colocam à seu serviço.

Considerando a origem histórica, suas escolas e ensinos, e os pressupostos


fundantes da Psicologia, surge a questão: existe alguma possibilidade de conciliarmos
os ensinamentos das Escrituras no aconselhamento de alguém? Vejamos os
fundamentos do Aconselhamento Bíblico, talvez isto torne mais clara a nossa resposta.
III. PRINCÍPIOS FUNDANTES DO ACONSELHAMENTO BÍBLICO

1. Todo aconselhamento bíblico, em todo o seu processo, visa a glória de Deus.


É necessária uma correta compreensão do Deus que se revela nas Escrituras.

2. Se a glória de Deus é o alvo do aconselhamento bíblico, então, somente a


revelação que Ele faz de si mesmo e sua vontade nas Escrituras pode servir de
instrumento no processo de transformação do coração humano (suficiência das
Escrituras).
É necessário conhecer bem a Escritura, bem como saber interpretá-la
corretamente.

3. O aconselhamento bíblico é necessário porque o ser humano se encontra


distante, espiritualmente, do seu Criador por causa do pecado, raiz de todos os
problemas emocionais e comportamentais de toda pessoa e da pessoa toda.
É necessário compreender bem a doutrina bíblica do pecado.

4. O aconselhamento bíblico procede da evangelização, nunca antes, pois somente


os salvos se dispõem à obedecer as ordens de Cristo (Mt 28.18-20).
É necessário saber evangelizar e saber ensinar as doutrinas da graça ao
convertido.

5. Aconselhamento bíblico exige confrontação e amputação do pecado.


É necessário firmeza e amor no processo de transformação da pessoa.
IV. DE VOLTA AO ACONSELHAMENTO BÍBLICO
Não há dúvida na história do Movimento de Aconselhamento Bíblico que Jay
Adams foi o grande “Lutero” desta reviravolta no cenário eclesiástico mundial. Ele tem
sido chamado de o “pai” do moderno movimento de aconselhamento bíblico no mundo.
Eis algumas poucas razões para isto:
a) Suas obras principais: O conselheiro capaz, Manual do conselheiro cristão,
Lectures on Counseling e More than Redempetion (atualmente, A Theology
of Christian Counseling).
b) Instituições:
• Westminster Theological Seminary abraçou a visão de Adams no início
dos anos 60.
• Em 1968, com John Bettler, fundou o CCEF (Christian Counseling and
Educational Foundation).
• Em 1976, fundou a National Association of Nouthetic Counselors.
• Em 1977, fundou The Journal of Pastoral Practice, publicada pelo
CCEF. Em 1992 o nome da revista foi alterado para The Journal of
Biblical Counseling.

Desde de Jay Adams que o movimento de aconselhamento bíblico se espalhou e


se multiplicou. Todavia, em alguns pontos o movimento conseguiu uniformidade, o que
é próprio do cristianismo histórico também. Por isso, podemos identificar três
movimentos básicos hoje em dia:

1. Movimento Clássico
Fundado por Jay Adams, defende a suficiência das Escrituras somente para o
aconselhamento, mas não despreza os estudos comportamentais desenvolvidos e
apresentados pela Psicologia Comportamentalista. Estes estudos são definidos como
“úteis”, porém “não essenciais” para a transformação de alguém.
Sua principal rejeição à Psicologia é à sua tentativa de tratar os problemas à luz
de suas inúmeras psicoterapias humanistas.
Os principais conselheiros desta linha são membros das principais instituições de
aconselhamento bíblico mundial: ACBC, IABC, ABC, FBC, BCF (EUA), ABCB,
NUTRA, SEBI, Logos, CETEVAP, Palavra da Vida, CPAJ-Mackenzie (Brasil).
2. Movimento Fundamentalista
O nome deste movimento não é pejorativo, visto ser assim que seus proponentes
se identificam. O principal nome desta linha é Martin Bobgan, e sua instituição mais
famosa é o Bereian Call.
Esta linha rejeita qualquer uso da Psicologia e considera totalmente herética
qualquer tentativa de estudo comportamental.

3. Movimento “Liberal”
Como indicado pelo título, este movimento tem sido pejorativamente chamado
de liberal porque aceita estudar temas que foram propostos pela Psicologia a partir de
uma análise bíblica (e.g. Personalidade, Emoções, Neuroplasticidade, etc.).
Muitos do movimento clássico são inseridos aqui também, entre eles, Jay
Adams. Mas seus principais proponentes são Sam Williams, Robert Kellemen, e sua
principal instituição é a BCC (Biblical Counseling Coalition).
V. A GRANDE QUESTÃO:
A BÍBLIA É, DE FATO, SUFICIENTE PARA ACONSELHAR TODO HOMEM
E O HOMEM TODO?

A Bíblia é, realmente, plenamente suficiente para tudo o que diz respeito à vida
e à piedade?
Em todo o mundo, o movimento de Aconselhamento Bíblico tem sustentado: A
Bíblia tem todas as respostas, o que implica dizer que tudo, e absolutamente tudo, o que
diz respeito não somente à piedade (a saber, o que diz respeito à fé), mas também à vida
(a saber, o que diz respeito ao todo da existência humana), tem nas Escrituras instrução
clara, exata e transformadora.
Todavia, este ensinamento não é aceito por um grande número de pessoas que
trabalham com a perspectiva religiosa de aconselhamento (e.g. psicólogos), nem mesmo
por inúmeros cristãos que propõem uma abordagem espiritualizada no processo de
aconselhamento (e.g. psicólogos cristãos e conselheiros cristãos, nomeados
integracionistas.
Para estes (se forem cristãos convertidos), a Bíblia diz respeito à tudo que é
próprio da fé (e.g. Quem é Deus? Quem é Jesus? Quem é o Espírito Santo? O que devo
fazer para ser salvo?, etc.), mas ela não é suficiente para as questões que desafiam a
existência humana, principalmente as que dizem respeito aos assim chamados
“problemas psicológicos” (e.g. traumas emocionais, transtorno de ansiedade
generalizada), e/ou biopsiquiátricos (e.g. depressão, transtorno bipolar).
Esta dicotomia entre vida e fé quanto à suficiência das Escrituras não é um mal-
entendido produzido por conselheiros bíblicos, também conhecidos como “noutéticos”,
mas é algo que tem sido disseminado, às vezes, de forma sutil ou, às vezes abertamente
em muitos círculos evangélicos por meio de livros (e.g. A Árvore da Cura, Roger
Hurding, Edições Vida Nova), ou declarações como estas:

A Palavra de Deus jamais reivindicou ter as respostas para todos os problemas da


vida.

É claro que existe muito conhecimento moderno que era desconhecido nos dias de
Jesus e de Paulo, que foi dado por Deus para nos ajudar a ministrar uns aos outros, e
para servir a Cristo com maior eficácia.
Gary R. Collins, Can You Trust Psychology? (p. 97, 91, respectivamente).

Qual é a verdade?
Diante desta clara confrontação de ideias que afirmam alicerçar-se na própria
Escritura Sagrada, como posicionar-se?
Seria a Bíblia suficiente para todas as coisas que dizem respeito à vida e à
piedade, ou seria limitada em seus ensinos à fé (salvação e doutrina)?
Pela quantidade de cristãos que cursam Psicologia procurando exercer um
ministério (ou trabalho profissional) de ajuda ao outro, incluindo milhares de pastores;
pela quantidade de Seminários que substituíram a disciplina de aconselhamento bíblico
pelo estudo da Psicologia; temos a impressão (e acredito que correta), de que o
cristianismo cedeu à doutrinação de uma Escritura limitada em seus ensinos.
Mas isto está de acordo com as declarações e ensinos da própria Escritura?
Psicólogos cristãos e conselheiros cristãos têm afirmado que nem a Bíblia e nem
a Teologia cristã advogam a doutrina da Suficiência das Escrituras quanto à vida e seus
conflitos existenciais, mas somente à doutrina.
Um trabalho muito citado em defesa deste ponto de vista é o de Eric Johnson,
Foundations for Soul Care: A Christian Psychological Proposal.
Johnson declara que as raízes da doutrina, na realidade, têm a ver com debates
entre os reformadores e os católicos quanto à fonte de autoridade, o magisterium
eclesiástico ou o Sola Scriptura.
Assim, o debate motriz da Suficiência das Escrituras seria a doutrina, e não os
problemas da existência humana. Segundo Johnson, deveríamos falar de Suficiência
Doutrinária das Escrituras somente.
As declarações de Johnson precisam ser analisadas com clareza e desejo sincero
da verdade. Estaria ele certo quanto à acusação que faz ao movimento de
Aconselhamento Bíblico ao dizer que temos entendido errado a doutrina?

Examinando nosso Entendimento Histórico-Teológico da Suficiência das Escrituras


Acredito que precisamos começar onde Johnson diz estarmos errado: na raiz da
doutrina, a saber, na Reforma Protestante. Teria a doutrina do Sola Scriptura se limitado
aos debates doutrinários?
Examinemos.
Confissão de Fé de Westminster
Talvez esta seja a Confissão mais importante produzida pela Reforma
Protestante. Ela não somente declara o Sola Scriptura, como também expõe a doutrina
sobre as Escrituras no capítulo 1.
No capítulo 1, seção 6 da Confissão encontramos a seguinte declaração:
“Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a
glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente
declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela”.

A declaração da Confissão de Fé de Westminster aponta para o fato de que os


reformadores entendiam que toda a sua vida deveria ser pautada pelo claro ensino das
Escrituras. Neste sentido, devem saltar aos olhos 2 afirmações nesta declaração
reformada:

1. Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória


dele e para a salvação, fé e vida do homem...

O que significa fé e vida aqui? Ou esta frase é coordenativa (ou seja, refere-se a
dois termos diferentes), ou é conjuntiva (ou seja, refere-se a dois termos que comunicam
a mesma ideia), ou, então, é subordinativa (ou seja, refere-se a dois termos diferentes
cujo segundo é deriva seu sentido do primeiro).
Observemos o que diz um famoso teólogo reformado contemporâneo sobre o
sentido desta frase:
“...fé e vida são um par de conceitos abrangentes. O Catecismo Menor de
Westminster diz: ‘As Escrituras ensinam principalmente o que o homem deve crer
acerca de Deus e o dever que Deus requer do homem’.
Por isso, é razoável pensar que ‘fé e vida’, no ponto I, vi. Da Confissão, refere-
se a tudo o que devemos crer e fazer, ao conteúdo completo da Escritura
aplicado a todo o escopo da vida cristã. (FRAME, John, A doutrina da Palavra
de Deus, p.194,195).

Não deveria existir dúvida para os que advogam a fé reformada que o Sola
Scriptura não se referia apenas às questões salvíficas e doutrinárias como afirma Eric
Johnson.
É claro, à luz do discurso da Confissão de Fé de Westminster, que a frase “fé e
vida” é coordenativa, sendo “fé” referente às questões salvíficas e doutrinárias”, e
“vida” referente à todas as situações que experimentamos na caminhada humana.
Será que Johnson, realmente, estudou e entendeu este ponto? Não parece que a
crítica feita ao Aconselhamento Bíblico, de que este “inventou” o conceito da
“suficiência das Escrituras” a partir de um mal entendido do conceito do “Sola
Scriptura”, seja consistente, pois o entendimento do par de palavras “fé e vida” é muito
claro quanto à sua abrangência para longe do significado restrito de “dogmas”.
Ainda na própria CFW, vemos o tratamento de questões pertinentes à “vida”,
como “O Magistrado Civil” (cap. XXIII) e “Do Matrimônio e do Divórcio” (cap.
XXIV); e em seus catecismos Maior e Menor explicita condutas do viver diário, por
meio da exposição dos Dez Mandamentos.

2. Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele
e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou
pode ser lógica e claramente deduzido dela.
“Fé e vida”, os dois conceitos, segundo a CFW são ou expressamente declarados
na Escritura ou podem ser lógica e claramente deduzidos dela. Observemos que a frase
não diz respeito somente à “fé” (questões salvíficas e doutrinárias). A “vida” (questões
da nossa existência), é contemplada nas Escrituras da mesma forma que a “fé”.
Questões declaradas: Ansiedade (Mt 6.25), amargura, cólera, ira (Ef 4.31); etc.
Questões lógicas e claramente deduzidas: Depressão (Sl 42), pecado intrauterino
e suas implicações para a formação da personalidade do indivíduo (Jo 9).
Mais uma vez precisamos perguntar: será que Johnson, realmente, estudou o
conceito e as implicações do Sola Scriptura? E se estudou, será que realmente
entendeu? Se estudou, parece ter abandonado o sensus literalis (o sentido pretendido
pelos reformadores) e impôs à doutrina a sua interpretação particular.
Para enfatizar o entendimento errado de Johnson, vale examinar alguns
exemplos sobre o entendimento de “fé e vida” na história da Reforma.

Exemplos da Reforma
À luz da crítica de Johnson, podemos apontar para exemplos concretos de que os
reformadores entendiam a Suficiência das Escrituras quanto à tudo o que diz respeito à
vida?
A resposta é Sim! Vejamos:
1. A Reforma em Genebra
Calvino promoveu a reforma em Genebra não somente numa perspectiva
doutrinária, mas numa perspectiva político-sócio-educacional.
Em sua obra, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, o sociólogo francês
André Biéler demonstra que todo o trabalho teológico-pastoral de Calvino junto ao
consistório de Genebra foi pautado pelo claro ensino das Escrituras para a
transformação social da cidade.
A Suficiência das Escrituras foi a base para todo pensamento revolucionário de
Calvino quanto à vida em sociedade.

2. A Reforma Luterana
Quando a Alemanha cedeu ao ensino reformado de Martinho Lutero, a mesma
passou por um processo de transformação social, a partir da escrita de sua língua, que
teve as Escrituras como base de todo processo sócio-político-cultural.
Lutero, enquanto músico, procurou discernir a cultura e sua utilização cristã a
partir do conceito Lei e Evangelho, segundo as Escrituras.
Os fundamentos educacionais, políticos e econômicos na Alemanha foram
estabelecidos tomando por base o ensino das Escrituras.

3. A Reforma Puritana
O Puritanismo teve sua origem na Inglaterra do século XVI, quando calvinistas
(presbiterianos, batistas, congregacionais), se opuseram à condução anglicana e,
posteriormente, católica da igreja cristã, e seu impacto social.
Por isso, os puritanos passaram a lutar pela “pureza” (daí o nome) da igreja e do
Estado na sua forma de viver diante de Deus (Coram Deo).
A Confissão de Fé de Westminster foi o principal documento elaborado pelo
movimento puritano.
Por causa da doutrina do Sola Scriptura, e sua implicação óbvia da Suficiência
das Escrituras, os puritanos instruíram sobre todas as coisas no que diz respeito à vida,
e não somente sobre o que diz respeito à piedade (doutrina), a saber: casamento, sexo,
dinheiro, relacionamentos, trabalho, etc.
Leland Ryken fez um excelente trabalho em seu livro “Santos no Mundo”, Ed.
Fiel, demonstrando como a Escritura era entendida como suficiente para instruir todo o
homem sobre tudo aquilo que Deus criou.
Como temos visto, a doutrina da Suficiência das Escrituras era uma conclusão
óbvia tanto da declaração que se encontra na Confissão de Fé de Westminster como da
prática adotada pelos principais reformadores. Mas e a prática do aconselhamento
bíblico, onde ficava na Reforma?

A Suficiência das Escrituras na prática do Aconselhamento na Reforma


Hoje, muitos livros têm sido publicados expondo o lado pastoral dos
reformadores. Infelizmente, poucos chegaram à língua portuguesa ainda. Assim,
vejamos alguns exemplos:
1. Calvino
Antes de liderar a reforma em Genebra, era pastor de uma comunidade de
aproximadamente 500 membros refugiados da perseguição católica. Neste tempo não
somente expunha as Escrituras, como aconselhava de casa em casa suas ovelhas,
ensinando-lhes a Palavra de Deus para os problemas e sofrimentos do dia-a-dia.
Em Genebra, não somente pregava a Palavra de Deus, como aconselhava
biblicamente suas ovelhas e orientava os posicionamentos políticos do consistório
mediante as Escrituras.
Não somente escreveu tratados teológicos e comentários bíblicos, mas escreveu
obras pastorais visando o aconselhamento bíblico de pessoas (e.g. A Verdadeira Vida
Cristã).
De forma resumida, podemos ver o trabalho de Calvino como conselheiro
bíblico no artigo de Jay Adams, Calvin the Counselor.
Um trabalho mais detalhado desta faceta de Calvino seria John Calvin: Pilgrim
and Pastor, W. Robert Godfrey.

2. Lutero
Lutero, assim como Calvino, é pouco conhecido pela igrejas evangélicas como
um pastor de ovelhas. Todavia, sua vida pastoral foi muito intensa produzindo não
somente tratados teológicos e comentários, como obras pastorais de aconselhamento.
Consolo no Sofrimento é um pequeno livro que reúne dois sermões de Lutero
sobre a morte e o sofrimento provendo instruções bíblicas para os fiéis.
Lutero sofreu com a depressão, mas lutou biblicamente com esta reação,
sabendo tratar-se de questão espiritual (e.g. seus escritos sobre o sofrimento, a teologia
da cruz e o hino Castelo Forte).
Cremos que estes dois exemplos aplicados ao aconselhamento bíblico sejam
suficientes para demonstrar que os reformadores entendiam a ideia de Suficiência das
Escrituras aplicada ao todo da vida humana, inclusive suas crises existenciais.
Assim, a tese de Eric Johnson perde credibilidade, visto que o mesmo sequer
aponta para exemplos claros das confissões reformadas e da vida prática dos
reformadores.
VI. SUFICIÊNCIA DAS ESCRITURAS

DEFINIÇÃO E ABRANGÊNCIA

Eric Johnson acusou o movimento de Aconselhamento Bíblico de ter


“inventado”, ao distorcer o ensino reformado do Sola Scriptura, a doutrina da
Suficiência das Escrituras. Como demonstramos outrora, foi Johnson quem omitiu a
doutrina por meio de um entendimento míope e enganoso do sensus literalis pretendido
pelos reformadores quando enunciaram o Sola Scriptura.
Todavia, está claro que a doutrina da Suficiência das Escrituras tem sofrido
abuso por parte de uma ala do aconselhamento bíblico por causa do que tenho chamado
de letrismo (e.g. Martin Bobgan).
Irmãos e irmãs, ao redor do mundo, têm declarado, piedosamente, que a Bíblia
tem todas as respostas para todo o homem e o homem todo. Porém, estão piedosamente
errados quando admitem apenas o que é “expressamente declarado” (CFW) nas
Escrituras, rejeitando o que pode ser “Lógica e claramente deduzido” nas Escrituras
(CFW).
Assim, rejeitam e consideram integracionismo qualquer estudo e compreensão
de fenômenos antropológicos e comportamentais que não encontrem termos específicos
declarados na Bíblica, como, por exemplo, personalidade, depressão, e etc.
Estes irmãos demonstram confusão ao definirem o conceito de sensus literalis,
defendido pelos reformadores quanto ao sentido da Palavra de Deus, em oposição ao
sensus alegoris, como sendo “sentido literal”. Assim, o sentido de suficiência se
restringe ao declarado somente na Escritura.
Todavia, um estudo rápido de latim nos ajudará a entender que sensus literalis
diz respeito ao sentido pretendido pelo autor, e não ao sentido literal. Por isso, a fé cristã
histórica pôde elaborar termos para descrever e definir doutrinas essenciais da fé cristã
não declaradas, mas lógica e claramente deduzidas das Escrituras como, por exemplo,
a doutrina da Trindade, do Pecado Original, os Atributos de Deus, e etc.
Diante do exposto, é necessário estabelecer um campo seguro para o trabalho do
Aconselhamento Bíblico quanto à doutrina da suficiência das Escrituras.
Definição
O que queremos dizer quando afirmamos a Suficiência das Escrituras?
De uma forma clara e objetiva, John Frame define: “A Escritura contém todas as
palavras divinas necessárias para cada aspecto da vida humana” (DPD, p.194)
“A Escritura não faz qualquer tipo de distinção geral entre sagrado e secular,
entre questões de salvação e meras questões terrenas” (DPD, p.160).
“Cada aspecto da vida humana” inclui, nas Escrituras a forma como entendemos
e aconselhamos o comportamento humano (e.g. Hokma e Halaka)

Abrangência
“...o conteúdo dotado de autoridade da Escritura não é algo religioso em
oposição a algo secular. Não se trata de ‘questões de salvação’ em contraste com
questões não relacionadas à salvação. Em vez disso, a Escritura se dirige a toda a
vida humana, como só Deus mesmo tem o direito de fazer. Isto se aplica a todas
as situações que experimentamos” (Frame, DPL, 191).

Exemplos:
a) Os mandatos da criação
b) A aliança com Israel (“Deus ordena um calendário, feriados, dieta, roupas,
economia, práticas empregatícias, educação, casamento e divórcio, governo
civil, bem como suas orações e sacrifícios sacerdotais”, DPL, 191).
c) “Os mandamentos de Jesus não lidam apenas com arrependimento, fé e
adoração. Eles também abrangem nosso tratamento ao pobre, nossa ética sexual,
casamento e divórcio, ira, amor aos inimigos, jejum, ansiedade, hipocrisia e
muitos outros assuntos” (DPL, 192).
d) A ética paulina é regida pelo ensinamento de 1Co 10.31.
É indiscutível, quando examinamos com boa vontade de conhecer a verdade, que
a Escritura abrange tudo da nossa vida, não somente questões salvíficas-doutrinárias,
como também questões éticas, científicas e de aconselhamento.
Infelizmente, o comprometimento com o secularismo tem lobotomizado nosso
entendimento da verdade e criado uma dicotomia entre “fé e vida” não existente nas
Escrituras.
John Frame argui dizendo:
Às vezes os cristãos dizem que a Escritura é suficiente para a religião, ou
pregação, ou teologia, mas não para coisas como encanamento, pecuária e
odontologia. E, claro, muitos argumentam que ela não é suficiente para a
ciência, filosofia, ou mesmo ética. Quem diz isso está se esquecendo de um
ponto importante. Certamente, a Escritura contém informações específicas mais
relevantes para a teologia do que para a odontologia. Porém, suficiência, no
presente contexto, não é suficiência de informações específicas, mas suficiência
de palavras divinas. A Escritura contém palavras divinas suficientes para tudo na
vida. Ela tem todas as palavras divinas de que o encanador precisa e todas as
palavras divinas que o teólogo precisa. Assim, ela é tão suficiente para o
trabalho de encanação quanto para a teologia. E, nesse sentido, ela também é
suficiente para a ciência e a ética. (DPL, 195)
VII. A SUFICIÊNCIA DAS ESCRITURAS E A GRAÇA COMUM
Um pressuposto mais antigo para defender que a Suficiência da Escritura diz
respeito à doutrina e não à vida é a inferência que psicólogos e conselheiros cristãos
fazem da doutrina bíblica da Graça Comum.
Definição: Graça comum é a graça de Deus pela qual Ele dá às pessoas
bênçãos inumeráveis que não são parte da salvação. A palavra comum aqui significa
algo que é dado a todos os homens e não é restrito aos crentes ou aos eleitos somente
(Wayne Grudem, em Teologia Sistemática, p. 297-304).
Inferência Integracionista: Toda a verdade é verdade de Deus. Alguns
acrescentam: Não importa de onde proceda a verdade.

A Origem da Doutrina da Graça Comum


A formulação da doutrina da Graça Comum, em seu início, nada tinha a ver com
a produção intelectual, científica, dos homens.
No início do século XIX, a Igreja Estado da Holanda passou a defender uma
soteriologia que incluía uma “graça especial”, ofertada a todos os homens para a
salvação. Esta graça especial ficou conhecida como “graça comum”, que defendia que
Deus desejava, sinceramente, que todos os homens fossem salvos, mas que o
recebimento desta graça dependia da disposição do homem para recebê-la,
estabelecendo uma forma de arminianismo nas igrejas reformadas holandesas.
Este posicionamento levou à divisão a igreja-estado holandesa, conhecida na
América como Christian Reformed Church, e a fundação da Protestant Reformed
Churches in America.
Abraham Kuyper se manteve ligado à igreja-estado da Holanda, mas não
confessou o posicionamento de uma graça especial, ou comum da oferta do Evangelho.
Todavia, pensou ter entendido o aspecto legítimo da doutrina em debate e propôs
um novo entendimento do tema referindo-se à operação do Espírito Santo no coração de
todos os homens que restringe o pecado e capacita o homem a fazer o bem, conforme
defendeu em sua obra “De Geemene Gratie” (A Graça Comum).
Mas o que levou Kuyper a elaborar esta doutrina? Herman Hanko, professor do
Reformed Protestant Seminary, analisa esta questão dizendo:
Antes da Separação de 1834, a única igreja Reformada na Holanda era a Igreja
Estado (Hervormde Kerk). Muitos na Holanda, incluindo Kuyper, criam que seu
país estava destinado a ser a fonte da fé reformada em todo o mundo. A verdade
da fé reformada, fluindo da Holanda como uma poderosa corrente, pensavam
eles, percorreria como um rio todo o mundo e teria tamanha influência que todas
as nações se tornariam reformadas ou ficariam, no mínimo, sob a influência da
fé reformada e se beneficiariam da prosperidade e bem estar nacional que
floresceriam nos países reformados. A Holanda estaria nessa posição poderosa
porque era um país reformado com um governo que apoiava a igreja reformada.

Quando Kuyper viu a possibilidade de organizar um partido político que poderia


controlar o governo, ele resignou ao ministério e entrou na política. Primeiro seu
partido, o Partido Anti-Revolucionário, ganhou assentos no parlamento holandês, e
então Kuyper viu a possibilidade que ele mesmo poderia se tornar primeiro ministro.
Mas ele foi capaz de se tornar primeiro ministro somente ao formar uma coalizão com
outro partido político, visto que seu partido não tinha uma maioria absoluta por si
mesmo. Essa coalizão foi feita com o partido católico romano, e como resultado dessa
coalizão, Kuyper teve sucesso em seu objetivo de se tornar primeiro ministro.
A coalizão de Kuyper com os católicos romanos não foi uma ação estranha no
seu partido. Era óbvio para todos que, embora a Igreja Reformada fosse a igreja
patrocinada pelo Estado, nem todos os cidadãos da nação eram verdadeiros filhos de
Deus, nem membros da Igreja Reformada. Se, portanto, a Holanda haveria de ser a fonte
da fé reformada como um país reformado, deveria ser considerado os muitos que não
eram reformados, de forma que todos pudessem se unir numa causa comum de
promover a fé reformada por todo o mundo.
Kuyper encontrou a base para tal cooperação entre todos os cidadãos em sua
doutrina da graça comum. A graça comum era o fundamento sobre o qual crentes e
incrédulos, na verdade todos os cidadãos da Holanda, poderiam cooperar numa causa
comum de cristianizar o mundo, ou torná-lo verdadeiramente reformado. Esse foi o
fundamento, portanto, para o envolvimento de Kuyper na política e para sua coalizão
com os católicos romanos. (http://www.monergismo.net.br/textos/eleicao/graca-
comum-cap34_hanko.pdf).

A Natureza da Graça Comum Kuyperiana


Ainda segundo o Hanko, a ideia de graça comum de Kuyper seguia as seguintes
linhas.
A queda de Adão no paraíso foi de uma devastação tão severa que sem a
intervenção divina, a criação teria se tornado um deserto estéril e o homem teria se
tornado uma besta ou um diabo. Deus, portanto, interveio com a graça comum que ele
concedeu a todos os descendentes de Adão para preservá-los de se tornarem bestas ou
demônios. Essa mesma graça comum foi dada à criação no tempo do dilúvio, quando
Deus estabeleceu um pacto com toda a criação e colocou o arco-íris nos céus como um
sinal de sua graça comum.
O resultado dessa graça comum é que o homem, por meio do seu poder, é capaz
de cumprir o mandato original da criação de subjugar a terra. Sem a graça comum isso
seria impossível; com a graça comum, subjugar a terra se torna uma realidade.
Esse chamado para subjugar a terra é dado a todos os descendentes de Adão, e
porque todos são capazes de se engajar com sucesso nessa tarefa, a graça comum forma
um terreno comum para os crentes e incrédulos cooperarem na tarefa comum de
subjugar a terra.
O mandato cultural implica a obrigação de todos os homens em descobrir todos
os poderes e recursos da terra e fazer uso deles de forma que esses poderes possam ser
utilizados apropriadamente. Ao subjugar a terra, os homens descobrem os poderes do
vento, da chuva, eletricidade, átomos, etc. Esses poderes são, por sua vez, usados de
forma que beneficiem a humanidade, torne sua vida mais fácil e agradável, e dê ao
homem tempo livre para desenvolver a arte: pintura, escultura, música, arquitetura, e
assim por diante. Dessa forma, a raça humana progride no desenvolvimento da cultura,
que por sua vez pode ser usada para resolver os problemas de doença, pobreza,
sofrimento, guerra, conflitos trabalhistas e raciais.
Porque os não regenerados estão lutando pelos mesmos objetivos que os
regenerados, a cooperação é possível entre os dois tipos de pessoas, e o resultado é uma
área ampla de interesse e preocupação mútua, na qual o ímpio e o justo trabalham lado a
lado para colocar toda a criação e todas as instituições da sociedade ao serviço de Cristo
o Rei (pro rege).
Hanko cita dois exemplos para demonstrar os perigos desta linha de raciocínio
teológico de Kuyper.
Alguns pensam que essa cooperação entre justos e ímpios poderia acontecer no
mundo das ideias também. O Dr. Ralph Janssen recorre à graça comum kuyperiana para
defender a sua Alta Crítica da Bíblia. Ele descobriu muitas boas ideias na adoração pagã
das nações ao redor de Israel por causa da graça comum nelas, e viu a religião de Israel
como formada e modelada pelo pensamento pagão e desenvolvida pela graça comum.
O Evolucionismo, abertamente ensinado em escolas reformadas e presbiterianas,
é justificado sobre a base que a ciência incrédula, pelo poder da graça comum, é capaz
de determinar como o mundo veio à existência.
Pela natureza da exposição doutrinária da Graça Comum, tanto com relação à
oferta do Evangelho quanto à teoria Kuyperiana, a Protestant Reformed Churches
rejeitou esta doutrina como bíblica, reputando-a como herética.
Hanko lembra uma observação crítica à teoria Kuyperiana feita por Herman
Hoeksema, ao dizer que “se a teoria kuyperiana da graça comum fosse alguma vez
adotada, ela seria o fim da antítese entre o povo de Deus e os ímpios. E assim ficou
provado. A graça comum tem sido um buraco no dique da antítese, um buraco que
cresceu com o passar dos anos até que se tornou uma brecha escancarada por meio da
qual tem passado um maremoto de mundaneidade e perversidade. Olhe para a igreja ao
redor de nós e chore”.
Como vimos, a doutrina da Graça Comum tem origem num embate da Igreja-
Estado da Holanda sobre uma questão soteriológica, e que se desdobra para uma
questão cultural a partir de Abraham Kuyper, sofrendo uma forte rejeição em
determinados círculos reformados que a consideram herética em suas duas formulações.
Como a fé cristã, em geral, deveria reagir a esta questão? Haveria, de fato, um
tipo de graça que possa ser chamada de comum? Ou seria isto uma forma de
secularismo travestido de teologia bíblica?
Não é produtivo para este trabalho debater as duas variáveis da doutrina, pois a
que se refere ao embate entre Aconselhamento Bíblico e Psicologia é a teoria de
Kuyper.
A Protestant Reformed Church arguiu como heresia a teoria de Kuyper à luz de
Rm 14.23, onde a palavra “fé” é entendida como o “entendimento doutrinário” dado aos
santos. Neste sentido, os ímpios não tem esta “fé” ao produzirem o conhecimento, de tal
forma que este fica comprometido em sua “verdade”.
A crítica é verdadeira, mas não é salutar ignorar que num sentido lato, o
significado da graça comum pode ser observado nas Escrituras (e.g. os dons, a bondade
de Deus sobre todos).
Também é necessário ressaltar que, ainda que a doutrina da Graça Comum possa
ser aplicada ao campo do conhecimento (também por inferência, mas não por
declaração bíblica), a doutrina não afirma que existem verdades ainda a serem
produzidas ou descobertas, mas que as verdades da Palavra de Deus ainda podem ser
esclarecidas à luz do conhecimento que Deus concede aos homens.
Quanto à esfera intelectual, Wayne Grudem diz que duas são as implicações da
Graça comum:
1. A graça comum de Deus na esfera intelectual é vista no fato de que todas as
pessoas têm certo conhecimento de Deus (Rm 1.21; At 17.22,23).
2. A graça comum de Deus na esfera intelectual também resulta na capacidade
de captar a verdade e distingui-la do erro e de experimentar crescimento em
conhecimento que pode ser usado na investigação do universo e na tarefa de dominar
a terra. Isso significa que toda ciência e tecnologia desenvolvida pelos não-cristãos é
resultado da graça comum, permitindo-lhes fazer descobertas e invenções incríveis,
para desenvolver os recursos do planeta na criação de muitos bens materiais, para
produção e distribuição desses recursos e para alcançar habilidades na obra
produtiva.
De forma resumida, podemos ver que a doutrina da Graça Comum nada tem a
ver com a possibilidade da descoberta de novas verdades que possam andar
paralelamente à verdade e suficiência das Escrituras.
Usar a doutrina da Graça Comum para atacar o aconselhamento bíblico e sua
defesa da Suficiência das Escrituras é demonstrar ou ignorância da matéria ou má
intenção ao atribuir-lhe definição e implicações que não lhe cabem.
Sugestão de leitura: Teologia do Aconselhamento Bíblico, Heath Lambert,
Editora Peregrino.
VIII. A SUFICIÊNCIA DAS ESCRITURAS E A REVELAÇÃO GERAL
Outro pressuposto antigo para defender que a Suficiência da Escritura diz
respeito à doutrina e não à vida é a inferência que psicólogos e conselheiros cristãos
fazem da doutrina bíblica da Revelação Geral.
Um defensor desta ideia é o psicólogo cristão, porém defensor do
aconselhamento cristão, Larry Crabb. Além de ser um escritor muito conhecido do
público brasileiro, sendo um best-seller em nosso país, ele é diretor da Associação
Americana de Conselheiros Cristãos.
Em seu livro Aconselhamento Bíblico Efetivo, Crabb demonstra um profundo
nível de confusão teológica ao utilizar a doutrina da Revelação Natural para
fundamentar a utilização de pressupostos e conceitos psicológicos no aconselhamento.
Segundo Larry Crabb:
Toda verdade é, certamente, verdade de Deus. A doutrina da revelação geral
proveu garantia para se ir além da revelação proposicional da Escritura no
mundo secular do estudo científico na expectativa de se achar conceitos
verdadeiros e utilizáveis.

Definindo a Revelação Geral

Na teologia cristã, revelação geral é a realidade que Deus demonstra de si


mesmo ao mundo por meio das coisas que Ele criou, de forma que o mundo é
indesculpável ao rejeitá-lo. A revelação geral, portanto, condena a humanidade
por uma declaração óbvia da existência e bondade de Deus, a qual eles
rejeitaram devido aos seus pecados (Heath Lambert, Teologia do
Aconselhamento Bíblico, Apêndice 2).

Implicações
Segundo Heath Lambert
1. A revelação geral é revelada. Ela é revelação. Ela não é alguma coisa que
pessoas descobriram. Ela é algo que “Deus revelou”, e se Deus não tivesse nos
mostrado, nós nunca saberíamos.
2. Segundo, revelação geral é sobre Deus. O objeto da revelação geral é o
próprio Deus.
3. A verdade sobre Deus transmitida na revelação geral é suprimida por
descrentes.
4. A revelação geral conduz à condenação.
A revelação geral não é aquilo que seu cardiologista sabe a respeito de como
fazer uma cirurgia; não é o que seu eletricista sabe a respeito de como fixar a luz
na sua casa; e não é o que criadores de cachorro sabem a respeito de cuidar de
um canil. Mais relevante para a nossa discussão é que a revelação geral não é o
que um psicólogo sabe a respeito do funcionamento humano (Lambert).
IX. A REIVINDICAÇÃO DAS ESCRITURAS QUANTO À SUA SUFICIÊNCIA

Após examinarmos as dimensões histórica e teológica quanto à Suficiência das


Escrituras, resta-nos uma pergunta: Mas a própria Bíblia reivindica esta doutrina?
Há muitos textos bíblicos que tratam da autoridade e suficiência das Escrituras
para vida e a piedade. Mas alguns são muito diretos sobre o tema, não deixando dúvidas
sobre a questão:

Salmo 19.7:
A lei do Senhor é perfeita e restaura a alma (hebraico vpn); o testemunho do
SENHOR é fiel e dá sabedoria ( hebraico hmkx) símplices.

2 Pedro 1.3
Visto como, pelo seu divino poder, nos têm sido doadas todas as coisas que
conduzem à vida e à piedade...

2 Timóteo 3.14-17
Destes textos bíblicos que são diretos sobre o tema, julgo que 2 Timóteo 3.14-17
seja mais exaustivo e inconfundível sobre a doutrina.
Algumas observações exegéticas sobre o texto e a suficiência das Escrituras:

1. Sobre a tradução
Duas traduções são possíveis para o v.16, a saber:
a) Toda a Escritura é inspirada por Deus. Neste caso, a tradução assume o uso
predicativo (cf. Almeida Atualizada).
b) Toda Escritura divinamente inspirada é. Neste caso, a tradução assume o uso
atributivo (cf. Almeida Corrigida).
Independente da tradução que se adote, a suficiência das Escrituras é clara nesta
passagem, mas a segunda tradução, caso atributivo, harmoniza-se melhor com a
estrutura linguística e discursiva do texto.
Texto Grego:

pa/sa grafh. qeo,pneustoj kai. wvfe,limoj pro.j didaskali,an( pro.j evlegmo,n( pro.j
evpano,rqwsin( pro.j paidei,an th.n evn dikaiosu,nh
Tradução Proposta:

Toda Escritura soprada por Deus é, também, benéfica para o refutar o erro
(doutrina), guiar a vida das pessoas (instruir acerca das situações da vida),
corrigir falhas e instruir as pessoas a serem justas.

2. Sobre o Significado de qeo,pneustoj


O problema da Teologia Sistemática: ver a palavra como se referindo ao
processo de inspiração (mecânica versus dinâmico-plenária).
Estudo de Interdiscursividade: Gn 2.7; Ez 37.
Significado: toda a Escritura carrega a vida de Deus em cada uma de suas
palavras.

3. Sobre a Estrutura Discursiva


Exortação: “Permanecer naquilo que aprendeste e foste inteirado” (v.14)
Razão: “Sabes...(v.14b e 15a)
a) Procedência: “De quem o aprendeste” (a casa materna e o próprio apóstolo)
b) Benefícios: “As sagradas letras podem tornar-te sábio para a salvação” e que
“Toda Escritura é, também, benéfica para...”

4. Sobre os Benefícios das Sagradas Letras:


a) Salvação – fé
b) Refutar o erro – doutrina
c) Guiar a vida das pessoas – instrução sábia para o dia-a-dia (Paulo estava
exortando Timóteo contra o comportamento depressivo dele (1.6).
d) Corrigir falhas – ética
e) Instruir as pessoas a serem justas – ética
Quando considerado em seu ambiente discursivo e seu Sitz im Leben correto, o
texto de 2 Timóteo salta aos olhos como um dos mais claros e objetivos no ensino da
Suficiência das Escrituras para tudo o que diz respeito à vida e à piedade.
CONCLUSÃO
Diante do exposto nestas palestras, creio que fique claro para nós que o
trabalho de cura por meio do aconselhamento que a igreja presta ao mundo não
necessita de nada mais além das Escrituras.
Ainda que a Psicologia possa prestar ajuda com seus estudos comportamentais,
com suas observações metodológicas (e.g. formulário de coleta de dados e
interpretação), estas não são essenciais, ainda que úteis.
Também deve ficar claro que o trabalho do aconselhamento bíblico tem como
foco a transformação do coração humano e a eternidade de sua alma. Ainda que a
Psicologia possa corrigir posturas comportamentais erradas dos seres humanos, esta
nunca poderá oferecer transformação do coração rumo à eternidade.
Que o Senhor da Igreja erga valorosos cristãos que assumam a
responsabilidade de curar àqueles que se encontram “aflitos e exaustos”, como
ovelhas que não tem pastor (Mt 9.36).

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