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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

- BEM VINDOS À
REDE MUNDIAL DE
'LA SEGUNDA
FUNDACION'
- SEJA BEM-VINDO! - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X
- SAUDAÇÃO
 
- NOTÍCIAS DE "LA
SEGUNDA Capítulo I
FUNDACION BRASIL"
- ISTO É LA SEGUNDA A ASPIRAÇÃO HUMANA
FUNDACIÓN
- JUSTA HOMENAGEM  
: “ROLF GELEWISKI -
Ela marcha em direção à meta daqueles que vão mais adiante, é a primeira na
UMA ALMA EM AÇÃO”
eterna sucessão de alvoradas por chegar; Usha se expande manifestando tudo o
- A VIDA DIVINA (SRI
AUROBINDO) -- que vive,  despertando alguém que morreu … Qual é seu alcance, quando
Capítulo I a X harmoniza as alvoradas que já brilharam com as que agora devem refulgir?
- A VIDA DIVINA (SRI Deseja as antigas manhãs e as enche de luz; projetando para diante sua
AUROBINDO) -- iluminação, entra em comunicação com o resto do que está por vir.
Capitulo XI a XX
- A VIDA DIVINA (SRI Kutsa Angirasa – Rig Veda [1]
AUROBINDO) --
Capitulo del XXI al São triplos aqueles supremos nascimentos desta força divina que está no mundo;
XXVIII são verdadeiros, são desejáveis; se desloca no Infinito e brilha puro, luminoso e
- LIVROS GRÁTIS pleno… O que é imortal nos mortais, e dotado da verdade, é um deus,
- O MENSAGEIRO DO estabelecido interiormente como uma energia, que opera em nossos poderes
INCOMUNICÁVEL divinos… Torna-te espiritualmente elevada, oh Força, atravessa todos os véus,
- O ESPÍRITO manifesta em nós as coisas de deus.
REVOLUCIONÁRIO
- CHAMADO AOS Vamadeva – Rig Veda [2]
JOVENS OCIDENTAIS
- O HOMEM NOVO
A primitiva preocupação do homem em seus pen­samentos despertos, e o que parece
- A FÉ DO
sua inevitável e última inquietude - pois ela sobrevive aos mais prolongados períodos
GUERREIRO ARIANO de ceticismo e retorna após cada banimento— é também a maior preocupação que
- A DESCOBERTA seu pensamento pode conceber. Manifesta-se no prenúncio da Divindade, no impulso
SUPREMA em direção à perfeição, na busca da pura Verdade e deleite não misto, no sentido de
- A EVOLUÇÃO MUITO uma secreta imortalidade. As antigas auroras do conhecimento humano nos legaram
ALÉM DO HOMEM o testemunho desta constante aspiração; hoje em dia vemos uma humanidade -
- SOCIOLOGIA DA saciada mas não satisfeita pela análise vitoriosa  das exterioridades da Natureza -
NOVA HUMANIDADE preparando-se para retornar a seus primitivos anelos. A fórmula primitiva da
- INVITATION (Sri Sabedoria promete ser a última: Deus, Luz, Liberdade, Imortalidade.
Aurobindo)
- UM ENCONTRO QUE  
TRANSFORMARIA O
MUNDO Estes ideais persistentes da espécie são, ao mesmo tempo, a contradição de sua
- A SUPRAMENTE E A experiência normal e a afirmação de experiências superiores e mais profundas que
VIDA DIVINA resultam anormais para a humanidade e só hão de obter-se, em sua inteireza
- CARTA A BARIN1 organizada, mediante um esforço revolucionário ou um progresso evolutivo geral.
- A VIAGEM DA ALMA Conhecer, possuir e constituir o divino ser em uma consciência animal e egoística [3],
- AS ONZE ATITUDES converter nossa sombria ou crepuscular mentalidade física na plena iluminação
BASICAS DO supramental, construir paz e felicidade auto-existentes ali onde só há tensão por

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SADHANA conseguir satisfações transitórias, perante o assédio da dor física e sofrimento
- ENTREVISTA A SRI emocional, estabelecer uma liberdade infinita em um mundo que se apresenta como
AMAL KIRAN um grupo de necessidades mecânicas, descobrir e compreender a vida imortal num
- REFUNDAÇÃO corpo sujeito à morte e a constantes mutações; tudo isto se nos oferece como a
- O CAMINHO manifestação de Deus na matéria e meta da Natureza em sua evolução terrestre. Para
- UMA ÚNICA CALMA o intelecto ma­terial comum, que crê que sua presente organização da consciência é o
E TREMENDA
EXISTÊNCIA
limite de suas possibilidades, a contradição direta dos ideais irrealizados com o fato
realizado é um argumento final contra sua validade. Mas se tomamos uma visão mais
reflexiva do trabalhar-do-mundo, essa contradição direta parece muito mais uma
parte do profundíssimo método da Natureza e o selo de sua mais completa aprovação.
Pois todos os problemas da existência são, em essência, problemas de harmonia.
Surgem da percepção de uma discórdia não-resolvida e da intuição de um não-
descoberto acordo ou unidade. Repousar contente com uma discórdia não resolvida é
possível para a parte prática e mais animal do homem, mas é impossível para sua
mente plenamente desperta, e geralmente inclusive suas partes práticas só evitam a
necessidade geral de harmonizar contrários evitando o problema ou aceitando um
compromisso tosco, utilitário e não-iluminado. Pois essencialmente, toda a Natureza
busca uma harmonia, vida e matéria em sua própria esfera, igualmente que a mente
na organização de suas percepções. Quanto maior é a desordem aparente dos
materiais oferecidos ou a aparente diferença essencial - até uma oposição
irreconciliável - dos elementos que serão utilizados, mais forte é o estímulo, e este leva
a uma ordem mais sutil e pujante do que aquela que seria o resultado de um esforço
menor. O acordo ou combinação da Vida ativa com o material com que se forja a
forma - no qual o estado de atividade por si mesma parece ser a inércia - é um
problema de opostos que a Natureza resolveu, e procura sempre resolver melhor com
maiores complexidades; pois a solução perfeita seria a imortalidade material do
corpo animal plenamente orga­nizado que serve de sustento à mente. O acordo ou
combinação de uma mente consciente e da vontade consciente como uma forma e
uma vida não-abertamente conscientes de si mesmas e capazes, quan­do muito, de
uma vontade mecânica ou subconsciente, é outro problema de opostos em que a
Natureza produziu resul­tados assombrosos e que aponta sempre para maravilhas
superiores; e seu último milagre seria uma consciência animal que já não marche em
busca da Verdade e a Luz senão que as possua, com a onipotência que resultará da
possessão de um conhecimento direto e aperfeiçoado. Então, não apenas é racional
em si mesmo o impulso ascendente do homem direção à conformidade de opostos
ainda mais elevados, como é também a única finalização lógica de uma regra e de um
esforço que parecem ser o método fundamental da Natureza e o próprio sentido de
seus esforços universais.
Falamos da evolução da Vida na Matéria, da evolução da Mente na Matéria; mas
evolução é uma palavra que apenas assinala o fenômeno, sem explicá-lo. Pois
aparentemente não há razão para a Vida evoluir a partir dos elementos materiais ou
a Mente a partir da forma vivente, a menos que aceitemos a solução Vedântica de que
a Vida já está envolta pela Matéria e a Mente pela Vida, porque, em essência, a
Matéria é uma forma velada na Vida, e a Vida é uma forma velada da Consciência.
Parece que, então, há escassa objeção a um passo mais adiante na séria e à aceitação
da idéia de que a própria consciência mental é apenas uma forma e um véu de
estados superiores de Consciência que estão além da Mente. Nesse caso, o indomável
impulso do homem em direção a Deus, a Luz, a Bem-Aventurança,  a Liberdade e a
Imortalidade, se apresenta em seu lugar correto na cadeia, do mesmo modo que o
impulso imperativo pelo qual a Natureza busca evoluir além da Mente parece tão
natural, verdadeiro e justo quanto o impulso em direção a Mente que a Natureza
implantou em certas formas de Vida. Tal como lá, aqui o impulso existe - com uma
série sempre ascendente no poder de seu querer-ser; tal como lá, aqui ele evolui
gradual­mente e obriga à evolução plena dos órgãos e faculdades necessários. Assim
como o impulso em direção à Mente parte das mais sensíveis reações da Vida no
metal e na planta, subindo até a plena organização no homem, de igual maneira no
próprio homem existe a mesma série ascendente, a preparação, se não algo mais, de
uma vida superior e divina. O animal é um laboratório vi­vo no qual a Natureza
elaborou o homem. O  próprio homem pode ser um laboratório pensante e vivo no
qual, com sua cooperação consciente, a Natureza elaborará o super-homem, o deus.
Ou melhor diremos que manifestará a Deus? Pois se a evolução é a progressiva
manifestação, na Na­tureza, do que dormiu ou trabalhou nela desde dentro, envolto po
ela, também é, igualmente, a realização aberta do que ela é secretamente. Então não
podemos atribuir lentidão a uma dada etapa de sua evolução nem temos o direito de
condenar qualquer intenção que ela ponha em relevo ou qualquer esforço que realiza
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para ir adiante, como fazem os fanáticos religiosos, qualificando tal intenção ou


esforço como perverso e presun­çoso, ou os racionalistas, considerando esta intenção
ou esforço como enfermidade ou alucinação. Se é verdade que o Espírito está envolto
pela Matéria e que a Natureza aparente é o Deus secreto, então a manifestação do
divino em si mesmo e a realização de Deus, dentro e fora, são o objetivo supremo e
mais legítimo do homem sobre a terra.
Dessa maneira, o eterno paradoxo e a eterna verdade - de uma vida divina em um
corpo animal, de uma aspiração imortal ou realidade que mora numa habitação
mortal; de uma única, solitária e universal consciência que se apresenta em limitadas
mentes e egos divididos; de um ser transcendente, indefinível, não sujeito ao tempo
nem ao espaço, que por si só, faz possível o tempo, o espaço e o cosmos, e em todos
estes, a verdade superior que é realizável por meio e desde o termo inferior- se
justifica, tanto perante a reflexiva razão quanto perante o persistente instinto ou
intuição da humanidade. Com frequência, efetuaram-se intentos - concretados em
questões muitas vezes reputadas insolúveis  pelo pensamento lógico - procurando
persuadir o homem a limitar suas ativida­des aos problemas práticos e imediatos de
sua existência material no universo; mas essas evasões jamais foram permanentes em
seu efeito. A humanidade retorna delas com um impulso mais veemente de
investigação ou uma fome mais violenta de solução imediata. Através dessa fome
medra o misticismo e surgem novas religiões para substituir as antigas, que foram
destruídas ou despojadas de significado por um ceticismo que em si mesmo não pode
satisfazer, pois, ainda que sua atividade fosse a investigação, deliberadamente não
quis investigar o suficiente. A tentativa de negar ou afogar uma verdade porque
ainda é obscura em sua estrutura externa - e mui frequentemente se acha
representada por uma supers­tição obscurantista ou uma fé inculta - é em si mesma
um gênero de obscurantismo.
A vontade de escapar à necessidade cósmica de investigar a Verdade - porque é
árdua, difícil de justificar com resultados tangíveis imediatos, lenta em regularizar
suas operações - deveria haver desembocado na não-aceitação da verdade da
Natureza e em uma rebelião contra a secreta e mais poderosa vontade da grande
Mãe. É melhor e mais racional aceitar que ela não nos permitirá, como espécie,
rechaçar essa dita Verdade, e a elevará a partir da esfera do cego instinto, da obscura
intuição e da esporádica aspiração até colocá-la dentro da luz da razão e de uma
vontade instruída e conscientemente-guiando-se-a-si-mesma. E se existe qualquer luz
superior de iluminada intuição ou verdade auto-reveladora, que agora está obstruída
e inoperante no homem ou trabalha com lampejos intermitentes - como por trás de
um véu ou com manifestações ocasionais, como as luzes do norte em nossos claros
céus materiais - então também não precisamos ter medo de aspirar. Pois é possível
que esse seja o próximo estado superior da consciência, do qual a Mente é apenas
forma e véu, através dos esplendores dessa luz pode aparecer o caminho de nosso pro‐­
gressivo auto-engrandecimento em qualquer estado supremo em que se ache o último
lugar de descanso da humanidade.
[1] I. 113. 8. 10.

[2] IV. 1. 7; IV. 2; IV. 4. 5.

[3] A palavra inglesa é “egoistic” que poderia ser traduzida por “egoística” se estivesse admitida
pela R.A.E., e reservar o termo “egoísta” para sua correspondente inglesa “egoist”, mas os
termos aceitados na língua espanhola, como “egocêntrica” ou “egotista”, não são melhores, o
termo optado para o espanhol: “egoísta”, e há que se ter em conta esta nota, pois o termo
aparece frequentemente.

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Capítulo II

AS DUAS NEGAÇÕES
1
A negação materialista

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Ele colocou em ação a força-consciente (na austeridade do pensamento) e


chegou ao conhecimento de que a Matéria é o Brahman. Pois da Matéria nascem
todas as existências; uma vez nascidas, através da Matéria elas crescem, e por
isso entram na Matéria em sua passagem. Então ele foi até Varuna, seu pai, e
disse: “Senhor, ensine-me sobre o Brahman.” Mas seu pai lhe respondeu: “Aciona
(novamente) a energia-consciente em ti; pois a energia é Brahman”.
Taittiriya Upanishad [1]
 

A afirmação de uma vida divina sobre a Terra e de um sentido imortal na existência


mortal pode carecer de fundamento a não ser que reconheçamos não apenas o
Espírito eterno como habitante desta mansão corpórea, o usuário desta vestimenta
mutável, como também que aceitemos a Matéria de que ela está feita, como material
apropriado e nobre com que Ele tece constantemente seus Trajes, e constrói
incansavelmente a série interminável de Suas mansões.
Isso tampouco é suficiente para nos precavermos contra um retrair-se da vida no
corpo, a não ser que, como os Upanishads, percebendo por trás das aparências a
identidade em essência desses dois termos extremos da existência, possamos dizer, na
mesma linguagem daqueles antigos escritos: “A Matéria também é o Brahman”, e
conceder pleno valor à vigorosa figura com que o universo físico é descrito, como o
corpo externo do Ser divino. Tampouco – tão separados, aparentemente, estão estes
dois termos extremos – consegue essa identificação convencer o intelecto racional, se
recusamo-nos a reconhecer uma série de termos ascendentes (Vida, Mente,
Supramente e os graus que vinculam a Mente com a Supramente), que estão entre
Espírito e Matéria.  Ao contrário, ambos aparecerão como oponentes inconciliáveis
ligados por um infeliz matrimônio, sendo o divórcio a única solução razoável.
Identificá-los, representar cada um nos termos do outro, se torna uma criação
artificial do Pensamento, oposta à lógica dos fatos e só possível mediante um
irracional misticismo.
Se afirmamos que só existe um Espírito puro e uma substância ou energia mecânica
carente de inteligência, chamando ao primeiro Deus e à segunda Natureza, o
inevitável fim será negarmos Deus ou dar às costas à Natureza. Tanto para o
Pensamento como para a Vida, torna-se imperativa uma escolha. O Pensamento vai
negar a Deus como ilusão da imaginação ou à Natureza como ilusão dos sentidos; A
Vida vai fixar-se no imaterial e fugir de si mesma com desgosto ou cair num êxtase de
auto-esquecimento, ou então negar sua própria imortalidade e orientar-se para longe
de deus e em direção ao animal. Purusha e Prakriti, a passivamente luminosa Alma
dos Sankhyas e sua Energia mecanicamente ativa, nada têm em comum, nem mesmo
seus modos opostos de inércia; suas antinomias só podem ser resolvidas mediante a
cessação da Atividade inertemente dirigida, dissolvendo-se no imutável Repouso
sobre o qual o estéril cortejo de suas imagens foi projetado em vão. O mudo
Shankara, o inativo Eu e sua Maya de muitos nomes e formas são igualmente
entidades díspares e inconciliáveis; seu rígido antagonismo só pode terminar pela
dissolução da múltipla ilusão na Verdade única de um Silêncio eterno.
O materialista tem diante de si uma tarefa mais fácil; é-lhe possível  negar o Espírito,
para chegar a uma mais convincente simplicidade de  afirmação, um Monismo real, o
Monismo da Matéria ou da Força. Mas é-lhe impossível persistir permanentemente
nessa rigidez de critério. Ele também acaba por pressupor o incognoscível inerte, tão
distante do universo conhecido como o passivo Purusha ou o silencioso Atman. Isso
não tem nenhum propósito salvo o de adiar – por uma vaga concessão – as
inexoráveis exigências do Pensamento, ou servir como desculpa para a recusa em
estender os limites da investigação.
Por isso, nessas contradições estéreis, a mente humana não pode descansar satisfeita.
Ela deve sempre buscar uma afirmação completa, e só pode encontrá-la mediante
uma luminosa reconciliação entre Matéria e Espírito. Para alcançar essa
reconciliação, deve passar pelos graus que nossa consciência interior nos impõe e, seja
pelo método objetivo de análise aplicado à Vida e à Mente, seja pela síntese e a
iluminação subjetivas, chegar ao repouso da unidade última sem negar a energia da
multiplicidade manifesta.  Somente com essa completa e universal afirmação podem
harmonizar-se todos os multiformes e aparentemente contraditórios dados da
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existência, e as múltiplas forças em conflito que governam nosso pensamento e nossa


vida podem descobrir a Verdade central que aqui simbolizam e de várias formas
realizam. Só então nosso Pensamento pode, tendo alcançado um verdadeiro centro,
cessar de andar em círculos, trabalhar como o Brahman do Upanishad, fixo e estável 
mesmo em sua forma lúdica e em sua corrida mundial, e nossa vida, conhecendo  seu
objetivo, servi-lo com firme e serena alegria e luz, assim como com uma energia
ritmicamente discursiva.
Mas quando esse ritmo for perturbado, será necessário e útil que o homem teste
separadamente, em sua afirmação extrema, cada um dos dois grandes opostos. Esse é
o meio natural da mente de retornar mais perfeitamente à afirmação que perdeu. No
meio do caminho pode tentar descansar nos graus intermediários, reduzindo todas as
coisas aos termos de uma Vida-Energia original, de sensação ou de Idéias; porém
todas essas soluções excludentes têm sempre um ar de irrealidade.   Podem, por um
tempo, satisfazer a razão lógica, que só trabalha com idéias puras, mas não podem
satisfazer o sentido de realidade da mente. Pois a mente sabe que existe algo atrás de
si que não é a Idéia, sabe, por outro lado, que dentro de si há algo que é mais que a
Respiração vital. Tanto o Espírito como a Matéria podem oferecer, transitoriamente,
um sentido de realidade última; não pode fazê-lo qualquer dos princípios
intermediários. Por  isso, eles devem dirigir-se aos dois extremos antes de regressar
frutiferamente ao todo. Pois, por sua própria natureza – servido por um sentido que
só pode perceber com clareza as partes da existência e por uma linguagem que,
igualmente, só pode obter clareza quando cuidadosamente separa e limita – o
intelecto é dirigido, tendo diante de si essa multiplicidade de princípios elementais, a
buscar a unidade reduzindo tudo, rudemente, aos termos de um.  Para afirmar esse
um,   tenta praticamente desembaraçar-se dos outros. Para perceber a verdadeira
fonte de identidade desses princípios sem esse processo excludente, ele deve ou ter 
ultrapassado a si mesmo ou ter completado o circuito apenas para descobrir que
todos se reduzem igualmente a Aquilo, que escapa a definições ou descrições e que
não só é real mas também alcançável. Qualquer que seja o caminho por onde
viajemos,   Aquilo é sempre a meta que alcançaremos, e só podemos evitá-la se
recusar-mo-nos a completar o trajeto.
Por isso, é de bom augúrio que, após muitos experimentos e soluções verbais,nós nos
encontremos  agora em presença em presença dos dois que suportaram
sozinhos,durante muito tempo, as mais rigorosas provas de experiência, os dois
extremos; e que ao final da experiência ambos tenham chegado a um resultado que o
instinto universal da humanidade – esse juiz oculto,sentinela e representante do
Espírito da Verdade universal – se recusa a aceitar como correto ou satisfatório. Na
Europa e na Índia, respectivamente, a negação do materialista e a recusa do asceta
procuraram afirmar-se como verdade única e dominar a concepção de vida. Na
Índia, se o resultado se constituiu numa grande acumulação dos tesouros do Espírito
– ou de alguns deles – também representou uma grande falência da Vida; na Europa,
a abundância de riquezas e o domínio triunfante dos poderes e posses deste mundo
progrediu rumo a uma igual bancarrota nas coisas do Espírito. Nem o intelecto, que
buscava a solução de todos os problemas no termo único da Matéria, encontrou
satisfação na resposta que recebeu.
Por isso, o tempo faz amadurecer e a tendência mundial se move em direção a uma
nova e compreensiva afirmação no que concerne ao pensamento e à experiência
interna e externa, e ao seu corolário, uma nova e rica auto-realização numa existência
humana integral, para o indivíduo e para a espécie.
Da diferença nas relações de Espírito e Matéria com o Incognoscível que ambos
representam, surge uma diferença de eficácia nas negações material e espiritual. A
negação do materialista, embora mais insistente e de sucesso imediato, mais fácil em
seu apelo à generalidade da espécie humana, é no entanto menos durável, menos
efetiva, finalmente, que a absorvente e perigosa recusa do asceta. Pois carrega em si
mesma a sua própria cura. Seu elemento mais poderoso é o Agnosticismo, que,
admitindo o Incognoscível por trás de toda manifestação, estende os limites do
incognoscível até a compreensão do que é meramente desconhecido. Sua premissa é 
que os sentidos físicos são a nossa única forma de Conhecimento, e que a Razão, por
isso, mesmo em seus mais extensos e vigorosos vôos, não pode escapar para além de
seu domínio; ela tem que lidar sempre e somente com os fatos que eles fornecem ou
sugerem; e mesmo as sugestões devem sempre estar vinculadas às suas origens; não se
pode ir além, não podemos usá-las como uma ponte para um domínio em que

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faculdades mais poderosas e menos limitadas entrem em ação e outro tipo de


investigação tenha que ser instituído.
Uma premissa tão arbitrária contém em si mesma sua própria declaração de
insuficiência. Só pode ser mantida ignorando-se ou descartando todo o vasto campo
de evidência e experiência que a contradiz, negando ou minimizando nobres e úteis
faculdades, ativas consciente ou obscuramente ou, no pior dos casos, latentes em todo
ser humano, e recusando-se a investigar fenômenos suprafísicos, exceto se
manifestados em relação com a matéria e seus movimentos e concebidos como uma
atividade subordinada às forças materiais. Assim que começamos a investigar as
operações da mente da supramente, nelas mesmas e sem o preconceito, determinado
desde o início, de ver nelas apenas um termo subordinado da Matéria, entramos em
contato com um conjunto de fenômenos que escapam inteiramente ao controle rígido,
ao dogmatismo limitador da fórmula materialista. E no momento em que
reconhecemos - pois nossa ampla experiência nos compele a reconhecer – que existem
no universo realidades cognoscíveis que estão além do alcance dos sentidos e no
homem poderes e faculdades que determinam, em vez de serem determinados pelos
órgãos materiais através dos quais eles mantém contato com os com o mundo dos
sentidos – essa concha externa de nossa verdadeira e completa existência - a premissa
do Agnosticismo materialista desaparece. Estamos prontos para uma afirmação
maior e uma investigação sempre em desenvolvimento.
Mas, primeiro, é bom que reconheçamos a enorme, a indispensável utilidade do breve
período de Materialismo racionalista pelo qual a humanidade esteve passando. Pois
esse   vasto campo de evidência e experiência, que  agora começa a reabrir seus
portões para nós, só pode ser adentrado com segurança quando o intelecto foi
severamente treinado para uma clara austeridade; se adentrado por mentes
imaturas, prestar-se-á  a perigosas distorções e idéias enganosas, e, realmente, no
passado, incrustou-se um real núcleo de verdade com tal acréscimo de superstições
deturpantes e dogmas irracionalizantes, que tornou-se impossível qualquer avanço
em direção ao verdadeiro conhecimento. Tornou-se necessário, por  um certo tempo,
fazer uma limpeza completa da verdade e de sua máscara, com a intenção de clarear
o caminho para uma nova partida e um avanço mais seguro. A tendência racionalista
do Materialismo rendeu à humanidade esse grande serviço.
Pois as faculdades que transcendem os sentidos, pelo próprio fato de estarem imersas
na Matéria, destinadas a trabalhar num corpo físico, com os arreios postos para
dirigir um carro em que também atuam os desejos emocionais e os impulsos nervosos,
estão expostas a um funcionamento misto, em que correm o risco de iluminar a
confusão em vez de esclarecer a verdade. Esse funcionamento misto resulta
especialmente perigoso quando homens com mentes  indisciplinadas e sensibilidades
impuras tentam escalar os domínios mais altos da experiência espiritual. Em que
regiões de nuvens insubstanciais e névoa semibrilhante, ou trevas visitadas por
clarões que cegam mais do que iluminam, eles não se perderiam nessa aventura
prematura e temerária! Uma aventura certamente necessária dado o modo como a
Natureza escolheu  efetuar seu avanço – pois ela se diverte enquanto trabalha –
porém ainda, para a Razão, prematura e temerária.
É necessário, por isso, que o Conhecimento que avança tenha sua base sobre um
intelecto claro, puro e disciplinado. É necessário, também, que ele corrija seus erros
mediante um retorno, às vezes, às restrições do fato sensível, as realidades concretas
do  mundo físico. O toque terreno é sempre revigorante para o filho da Terra, mesmo
quando ele busca um Conhecimento suprafísico. Pode ser dito também que o
suprafísico só pode ser dominado completamente – até as alturas que sempre
podemos  alcançar – quando mantemos os pés firmemente pregados no físico. “A
Terra é   a Sua base” [2], diz o Upanishad sempre que representa o Eu que se
manifesta no universo. E      é certo que, quanto mais ampliamos e tornamos seguro
nosso conhecimento do mundo físico, mais amplo e seguro será o nosso fundamento
para obter o conhecimento superior, mesmo o mais alto, mesmo o Brahmavidya.
Por isso, ao emergir do período materialista do Conhecimento humano, devemos ter
o cuidado de não condenar temerariamente o que estamos deixando para trás ou
descartando, nem mesmo uma partícula de suas conquistas, antes que possamos
dispor de percepções e poderes bem seguros para ocupar o seu lugar. Ao invés disso,
deveríamos observar com respeito e admiração o que o trabalho que o Ateísmo fez
pelo Divino e admirar o serviço que o Agnosticismo rendeu, preparando o
crescimento ilimitável do conhecimento. Em nosso mundo, o erro é continuamente o
servidor e o ‘achador do caminho’ da Verdade;  pois o erro é na realidade uma meia-
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verdade que tropeça por causa de suas limitações; muitas vezes é a Verdade que usa
um disfarce para chegar, sem ser percebida, ao seu objetivo. Estaria bem se o erro
pudesse ser sempre,  como foi no grande período que estamos deixando para trás, o
fiel servidor, severo, consciencioso, honrado, brilhante dentro de seus limites, uma
meia-verdade e não uma irrefletida e presunçosa aberração.
Certo gênero de Agnosticismo é a verdade final de todo o conhecimento. Pois quando
chegamos ao final de qualquer caminho, o universo aparece como apenas um símbolo
ou a aparência de uma realidade incognoscível que se traduz aqui em diferentes
sistemas de valores, valores físicos, valores vitais e sensoriais, valores intelectuais,
ideais e espirituais. Quanto mais Aquilo se torna real para nós, mais parece estar
sempre além do pensamento definidor e além da expressão formuladora. “A Mente
não chega até aqui, nem a linguagem” [3].  E no entanto, como é possível exagerar,
com os Ilusionistas, a irrealidade da aparência, também é possível exagerar a
incognoscibilidade do Incognoscível. Quando falamos dele como Incognoscível,
queremos dizer, na realidade, que ele escapa ao alcance de nosso pensamento e de
nosso discurso, instrumentos que procedem sempre pela diferenciação e expressam
em forma de definição; mas, se não é cognoscível pelo pensamento, Ele é alcançável
por um supremo esforço de consciência. Existe, inclusive, um gênero de conhecimento
que é uno com a Identidade e através do qual, num certo sentido, Ele pode ser
conhecido. Certamente, esse Conhecimento não pode ser reproduzido exitosamente
em termos de pensamento e linguagem, mas, quando o alcançamos, o resultado é uma
reavaliação d’Aquilo com os símbolos de nossa consciência cósmica, não só com um,
mas com todas as cadeias de símbolos, o que culmina numa revolução de nosso ser
interno e, através do interno, de nossa vida externa. Além disso, há também um
gênero de conhecimento através do qual Aquilo se revela com todos os nomes e
formas da existência fenomênica, que, para a inteligência ordinária, apenas O oculta.
É esse processo superior mas não supremo do Conhecimento que podemos alcançar
passando dos limites da fórmula materialista e escrutando Vida, Mente e Supramente
nos fenômenos que são característicos delas, e não meramente naqueles  movimentos
subordinados pelos quais eles se ligam à Matéria.
O Desconhecido não é o Incognoscível [4]; ele não necessita permanecer desconhecido
para nós, a menos que optemos pela ignorância ou persistamos em nossas limitações
primeiras. Pois, a todas as coisas que não são incognoscíveis todas as coisas no
universo, correspondem, nesse universo, faculdades pelas quais se pode   tomar
conhecimento delas,e no homem, o microcosmo, essas faculdades são sempre
existentes e, num certo estágio, capazes de desenvolvimento. Podemos optar por não
desenvolvê-las; onde estão parcialmente desenvolvidas, podemos desencorajá-las e
impor nelas uma espécie de atrofia. Mas, fundamentalmente, todo conhecimento
possível é um conhecimento acessível à humanidade. E como no homem há o impulso
inalienável da Natureza em prol da auto-realização, nenhuma luta do intelecto para
limitar a ação de nossas capacidades, numa determinada área, pode  prevalecer para
sempre.   Quando tivermos experimentado a Matéria e percebido suas secretas
possibilidades, o verdadeiro conhecimento – para o qual foi conveniente aquela
temporária limitação de faculdades – vai gritar-nos, como os Guardiões Védicos:
"Para diante agora,avance também em outros campos [5]."
Se o Materialismo moderno fosse simplesmente uma ignorante aceitação da vida
material, o avanço seria infinitamente adiado. Mas como sua verdadeira alma é a
busca do Conhecimento, será incapaz de pedir parada; no momento em que alcançar
as barreiras entre sensação e conhecimento, e o raciocínio a partir de sensação –
conhecimento, seu próprio ímpeto o levará além, e a rapidez e a segurança com que
abraçou o universo visível é apenas um avanço de energia e êxito que esperamos que
se repita na conquista do que vem adiante, uma vez que foi dado o passo para cruzar
a barreira. Já vemos esse avanço em seus obscuros começos.
Não só em sua concepção final, mas na grande linha de seu resultado geral, o
Conhecimento, em qualquer caminho que tome, tende a se tornar uno. Nada é mais
notável e sugestivo que a extensão até a qual a Ciência moderna confirma, no campo
da Matéria, as concepções e até as fórmulas de linguagem a que se chegou por um
método muito diferente, no Vedanta – o Vedanta original, não o das escolas de
filosofia metafísica, e sim o dos Upanishads. E estes, por outro lado, muitas vezes só
revelam seu completo significado, seus conteúdos mais ricos, quando são vistos à nova
luz emitida pelas descobertas da moderna Ciência – por exemplo, aquela expressão
Vedântica que descreve as coisas no Cosmos como uma semente disposta pela Energia
universal em múltiplas formas [6].  Especialmente significativo é o esforço da Ciência

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em  direção a um Monismo que é compatível com a multiplicidade, em direção à idéia


Védica da essência una com suas múltiplas derivações. Mesmo se insistirmos na
aparência dualística de Matéria e Força, isso não se coaduna com esse Monismo. Pois
se tornará evidente que a Matéria essencial é algo inexistente para os sentidos, e é
apenas, como o Pradhana dos Sankhias, uma forma conceitual de substância; e, de
fato, é cada vez mais firme a conclusão de que apenas uma distinção arbitrária do
pensamento  separa a forma da substância da forma da energia.
A Matéria se expressa a si mesma, por fim, como a formulação de alguma Força
desconhecida. A Vida também, aquele  mistério insondado, começa a revelar-se como
uma obscura energia de sensibilidade aprisionada em sua formulação material; e
quando a ignorância divisória for curada, aquela que nos dá a sensação de um
abismo entre Vida  Matéria,será difícil supor que Mente, Vida e Matéria sejam outra
coisa senão uma Energia triplamente formulada, o triplo mundo dos profetas
védicos.Também não poderá persistir o conceito de uma força bruta material como a
mãe da Mente. A Energia que cria o mundo só pode ser nada mais que uma Vontade,
e Vontade é apenas consciência aplicada a um trabalho e a um resultado.
Que são esse trabalho e esse resultado, senão uma auto-involução da Consciência na
forma e uma auto-evolução fora da forma, como que para realizar alguma poderosa
possibilidade no universo que ela criou? E o que é essa Vontade no Homem senão a
vontade de ter  Vida infinita, Conhecimento ilimitado, Poder sem amarras? A
própria ciência começa a sonhar com a conquista física da morte, expressa uma sede
insaciável de conhecimento, está realizando algo como uma onipotência terrestre para
a humanidade. O Espaço e o Tempo estão se até o ponto de fuga *, lutando de cem
modos distintos para fazer do homem o mestre das circunstâncias e, assim, iluminar
os grilhões da causalidade. A idéia do limite, do impossível, começa a surgir meio
indistintamente,e o que aparece, em vez dela, é que o que quer que o homem deseje
constantemente, ele será ao final capaz de realizar; porque a consciência da espécie
finalmente achará os meios.  E ainda quando olhamos mais profundamente, não é
qualquer Vontade consciente da coletividade, mas um Poder supraconsciente que usa
o indivíduo como centro e meio, e a coletividade como condição e campo. E o que é
isso, senão Deus no homem, a Identidade infinita,a Unidade múltipla, o Onisciente, o
Onipotente que, tendo feito o homem à Sua própria imagem, com o ego como centro
de funcionamento, com a espécie, o coletivo Narayana [7], o vi´svamãnava [8] como
molde e circunscrição, procura expressar nestes alguma imagem da unidade, da
onisciência, da onipotência que são a auto-concepção do Divino? “O que é imortal nos
mortais é um Deus, estabelecido intimamente como uma energia operando em nossos
poderes divinos” [9]. É a esse vasto impulso cósmico que o mundo moderno, sem
conhecer suficientemente seu próprio objetivo, ainda serve, em todas as suas
atividade e labores, subconscientemente, para realizá-lo.
Mas há sempre um limite e um entrave  - o limite do campo material no
Conhecimento, o entrave do a maquinário material no Poder. No entanto, aqui
também  a última tendência é altamente significativa de um futuro mais livre. Assim
como os postos avançados do conhecimento Científico se assentam cada vez mais nas
fronteiras que separam o material do imaterial, também as mais altas conquistas Da
Ciência prática são as que tendem a simplificar e reduzir ao ponto de fuga* o
maquinário pelo qual os maiores efeitos são produzidos. A telegrafia sem fio é um
sinal exterior da Natureza e um pretexto para uma nova orientação. O meio físico
sensível para a transmissão intermediária da força física é removido; só é preservado
nos pontos de impulsão e recepção. Com o tempo, até estes vão desaparecer; pois,
quando as leis e as forças do suprafísico forem estudadas do correto ponto de partida,
infalivelmente será encontrado pela Mente, diretamente, o meio de aproveitar a
energia física e despachá-la velozmente, com exatidão, conforme a sua ordem. Aí – se
pudermos reconhecê-los – estão os portões que se abrem em direção às enormes
perspectivas do futuro.
Mas, mesmo se tivéssemos o conhecimento completo e o controle dos mundos
imediatamente acima da Matéria, ainda haveria uma limitação e ainda um além. O
último nó de nossa escravidão está no ponto em que o externo puxa para uma
unidade com o interno, o maquinário do próprio ego se sutiliza até o ponto de fuga(*)
e a lei de nossa ação é, por fim, unidade abraçando e possuindo a multiplicidade, e
não mais, como agora, multiplicidade lutando contra alguma imagem da unidade. Aí
está o trono central do Conhecimento cósmico contemplando seu mais vasto domínio;
aí o Império de si mesmo com o império do seu mundo [10]; aí a vida no Ser

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eternamente consumado [11] e a realização de Sua divina natureza [12] em nossa


existência humana.
 

Notas:

(*) Vanishing-point significa ponto de fuga, se retiramos o traço fica “vanishing point” – ponto de
desaparecimento. Se o autor aplicou-se em colocar o traço, é porque, evidentemente, queria ressaltar a diferença,
e não quer dizer, como sucede em alguma tradução, que o Tempo e o Espaço desaparecem (primeiro dos
asteriscos).Preferimos deixar a tradução literal, já que essa expressão pode sugerir diversas interpretações. Ponto
de fuga, para o desenho técnico, na projeção cônica, é o ponto sobre o horizonte, para o qual se dirigem todas as
linhas horizontais, quebrando o seu paralelismo, para dar a sensação de profundidade, e, ao mesmo tempo, é o
ponto-de-vista do observador; seria, ao mesmo tempo, o zero e o infinito. A contração do campo espaço-temporal
parece indicar uma qualidade do mesmo, como a possibilidade de acelerar a evolução humana, acelerando a
chegada do futuro.

O dicionário de termos hindus da Sociedade Teosófica diz sobre o zero:

“Seu símbolo, o círculo, representa ao mesmo tempo nada e tudo; é o símbolo do infinito ilimitado; e um círculo
pode ser definido como uma única linha não-dividida e não-terminada, ou como um número infinito de linhas
infinitamente curtas. Os finais se encontram, não há nenhuma diferença essencial entre o infinitamente grande e o
infinitesimal. O ponto zero é o ponto de fuga, o laya ou   estado neutro. Em matemática, esta é a posição neutra
entre a série de números negativos e positivos. É também o estado neutro da matéria entre dois planos; quando a
matéria física é reduzida a zero ou ao estado laya, ela está pronta a manifestar-se sobre o plano seguinte, mais alto,
ou vice-versa. O mesmo se aplica à consciência e a seus planos.

Damos importância a esta nota porque, nos últimos parágrafos deste capítulo, a expressão “vanishing-point”, que
só aparece três vezes em toda “A Vida divina”,precisamente aparece as citadas vezes na página anterior a esta
nota, sem voltar a ser citada em toda a obra, havendo sido sublinhada pelo tradutor, não aparecendo esse
sublinhado no original.

[1] III.1, 2.

[2] "Padbhyám prthví" - Mundaka Upanishad. II. 1. 4.

“PrithivI pájasyam" - Brihadaranyaka Upanishad. I. 1. 1.

[3] Kena Upanishad. I.3.

[4] Isso difere do conhecido; também está acima do desconhecido - Kena Upanishad. I.3.

[5] Rig Veda. I. 4. 5.

[6] Swetaswatara Upanishad. VI. 12.

[7] Um dos nomes de Vishnu, que, como o Deus no homem, vive constantemente associado em
unidade dual com Nara, o ser humano.

[8] O homem universal.

[9] Rig Veda. IV.2.1.

[10] Svárajya y Sámrájya, o duplo objetivo proposto a si mesmo pelo Yoga positivo dos
antigos.

[11] Sálokya-mukti, liberação mediante existência consciente em um mun­do do ser com o


Divino.

[12] Sádharmya-mukti, liberação assumindo a Natureza Divina.

--------------------------------------------------------------------O---------------------------------------------------------------
 
Capítulo III

AS DUAS NEGAÇÕES
2
A renúncia do asceta

"Tudo isso é o Brahman; este Eu é o Brahman e o Eu é quádruplo.

Além de toda relação, incolor, impensável, em que tudo está imóvel."

Mandukya Upanishad [1]

E AINDA existe um além.

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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

Pois do outro lado da consciência cósmica existe uma consciência ainda mais
transcendente, acessível para nós - transcendente não só para o Ego como também
para o próprio Cosmos - contra a qual o universo parece sobressair-se como uma
pequenina pintura contra um in­comensurável fundo. Ela (essa consciência) suporta a
atividade universal - ou talvez apenas a tolera; Isso (ela) abraça a Vida em Sua
vastidão - ou então a rejeita, em Sua Infinitude.

Se o materialista se justifica, do seu ponto-de-vista, insistindo na Matéria como


realidade, o mundo relativo como a única coisa sobre a qual podemos, de certo forma,
estar seguros, e o Além como totalmente incognoscível, senão realmente inexistente,
um sonho da mente, uma abstração do Pensamento que se divorcia da realidade,
assim também  o Sannyasin (Asceta), enamorado desse Além, justifica-se, do seu
ponto-de-vista, insistindo no puro Espírito como realidade, a única coisa livre de
mudança, nasci­mento, morte, e o mundo relativo como uma criação da mente e dos
sen­tidos, um sonho, uma abstração no sentido contrário ao da Mentalidade
retirando-se do puro e eterno Conhecimento.

Que justificação, lógica ou experimental, pode ser dada para apoiar um extremo que
não encontra uma lógica convincente e uma experiência igualmente válida no outro
extremo? O mundo da Matéria é afirmado pela experiência dos sentidos físicos, que,
por serem eles mesmos incapazes de perceber algo imaterial ou não-organizado como
a Matéria bruta, iriam  persuadir-nos de que o suprassensível é irreal. Este erro
rústico ou vulgar de nossos órgãos corporais não ganha valor por ser promovido ao
campo do raciocínio filosófico. Sua pretensão, obviamente, é infundada. Mesmo no
mundo da Matéria, há existências das quais os sentidos físicos são incapazes de tomar
conhecimento. Mas a negação do suprassensível, considerando-o necessariamente
uma ilusão ou uma alucinação, depende da constante associação sensorial do real com
o materialmente perceptível, o que  é também uma alucinação. Presumindo todo o
tempo o que ele procura estabelecer, cai no vício do argumento em círculos e não tem
valor como raciocínio imparcial.

Não só existem realidades físicas que são suprassensíveis, como, se a evidência e a


experiência são realmente um teste para a verdade, há também sentidos que são
suprafísicos [2] e pertencentes a um outro mundo - incluídos, por assim dizer, numa
organização de experiências conscientes que dependem  de outro princípio que não a
Matéria bruta da qual nossos sóis e terras parecem feitos.

Constantemente afirmada pela experiência humana e a  hu­mana crença desde as


origens do pensamento, essa verdade, agora que a preocupação exclusiva com os
segredos do mundo material já não existe, começa a ser justificada por novas formas
de raciocínio científico. As crescentes evidências, das quais só as mais óbvias e
explícitas se colocam sob a denominação de telepatia e fenômenos derivados, não
podem ser negadas a não ser  por mentes enclausuradas na brilhante concha do
passado, por intelectos limitados, apesar de sua acuidade, no seu campo de
experiência e investigação, ou por aqueles que confundem iluminação e razão com a
fiel repetição de fór­mulas legadas por um século passado e pela ciumenta conservação
de dogmas intelectuais mortos ou agonizantes.

É certo que o vislumbre de realidades suprafísicas adqui­rido através de pesquisa


metódica foi imperfeito e ainda é mal afirmado; pois os métodos usados são ainda
defeituosos. Mas estes sentidos sutis redescobertos ao menos revelaram-se
verdadeiras testemunhas dos fatos físicos que estão além do alcance dos órgãos
corporais. Então não se justifica rejeitá-los como falso testemunho, quando eles
confirmaram os fatos suprafísicos que estão além do campo da organização material
da consciência. Como toda evidência, como a própria evidência dos sentidos, seu
testemunho tem que ser controlado, escrutinado e ordenado pela razão, corretamente
traduzido e corretamente relatado, e seu campo, leis e processos, determinados. Mas a
verdade das grandes extensões de experiência cujos objetos existem  numa substância
mais sutil e são percebidos por instrumentos mais sutis do que aqueles da física
Matéria bruta, reclama no final o mesmo valor que a verdade do universo material.
Os mundos que estão além existem: eles têm seu ritmo universal, suas grandes linhas
e formações, suas leis e energias auto-existentes poderosas, seu justo e luminoso  meio
de conhecimento. E aqui em nossa existência física e em nosso corpo físico eles
exercem sua influência; é aqui também que eles organizam seu meio de manifestação
e comissionam seus mensa­geiros e suas testemunhas.

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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

Mas os mundos não são se não molduras  para nossa experiência e sentidos, apenas
instrumentos de experiência e conveniências. A Con­sciência é o grande fato
subjacente, a testemunha universal para a qual o mundo é um campo de ação, e os
sentidos, instrumentos. Para essa testemunha, os mundos e seus objetos apelam por
sua realidade, pois tanto o único mundo como os muitos mundos, não temos outra
evidência de que existam, tanto o físico como o suprafísico. Argumentou-se que isso
não é uma relação peculiar entre a constituição da humanidade e sua pers­pectiva de
um mundo objetivo, e sim a verdadeira  natureza da existência; toda  existência
fenomênica consiste em uma consciência observadora mais, e a Ação não pode
proceder sem a Testemunha, porque o Universo só existe na ou para a consciência
que observa, e não tem realidade independente. Foi argumentado, em resposta, que o
universo material desfruta de uma auto-existência eterna; ele estava aqui antes que  a
vida e a mente fizessem sua aparição: ele irá sobreviver depois que elas tiverem
desaparecido e já não estejam perturbando - com suas dispustas efêmeras e
pensamentos limitados - o ritmo eterno e inconsciente dos sóis. A diferença, tão
metafísica em aparên­cia, é porém de suprema importância prática, pois ela
determina a visão que o homem tem da vida, o objetivo ao qual se dirigirão seus
esforços e o campo no qual ele circunscreverá suas energias. Pois aí surge a questão
da realidade da existência cós­mica e, ainda mais importante, a questão do valor da
vida humana.

Se levamos muito longe a conclusão materialista, chegaremos a uma insignificância e


uma irrealidade na vida do indivíduo e da espécie que nos deixarão, logicamente, a
opção entre um esforço fer­voroso do indivíduo por “agarrar” o que puder de uma
existência efêmera, por “viver sua vida”, como se diz, e um serviço desapaixonado e
sem ob­jetivo da espécie e do indivíduo, sabendo-se que este último é uma ficção
efêmera da mentalidade nervosa, e o anterior, nada mais que uma forma coletiva, um
pouco mais duradoura, do mesmo espasmo nervoso regular da Matéria. Nós
trabalhamos e desfrutamos sob o impulso de uma energia material que nos
decepciona com a breve ilusão da vida ou com a mais nobre ilusão de um objetivo
ético e de uma consumação mental. O Materialismo, como o Monismo espiritual,
conduz-nos a uma Maya que é e não é – é, porque é presente e compulsiva, e não é,
porque é fenomênica e transitória em suas obras. Por outro lado, se acentuamos
demasiado a irrealidade do mundo objetivo, chegaremos por um caminho diferente, a
conclusões semelhantes porém ainda mais incisivas - o caráter fictício do Ego
individual, a irrealidade e a falta de propósito da existência humana, o retorno ao
Não-Ser ou Absoluto sem relações como único escape racional da confusão
desprovida de sentido da vida fenomênica.

E no entanto, a questão não pode ser resolvida pelo argumento lógico com base nas
informações de nossa existência física ordinária; pois nessas informações há um hiato
de experiência que torna qualquer argumento inconclusivo. Não temos, normalmente
nem a experiência definitiva de uma mente cósmica ou supramente não-ligada à vida
do corpo individual, nem, por outro lado, nenhum limite firme de experiência que nos
justificaria, supondo que nosso Eu subjetivo realmente depende da moldura física e
não pode nem sobreviver a ela nem alargar-se além do corpo individual. Só por uma
extensão do campo de nossa consciência ou com um inesperado aumento de nossos
instrumentos de conhecimento a antiga querela poderá ser decidida.

A extensão de nossa consciência, para ser satisfatória, tem de ser necessariamente um


prolongamento do indivíduo para a consciência cósmica. Para a Testemunha, se ela
existe, não é a mente corporificada individual nascida no mundo, mas aquela
Consciência Cósmica que abarca o universo e aparece como uma Inteligência
imanente em todas suas obras, para qual cada mundo subsiste eternamente e
realmente como Sua própria existência ativa, ou então da qual ele nasce e na qual ele
des­aparece por um ato de Conhecimento ou por um ato de Poder consciente. Não
uma Mente organizada, mas aquela que, calma e eterna, paira igualmente sobre a
terra vivente e o corpo humano vivente, e para a qual mente e sentidos são
instrumentos dispensáveis, e esse é a Testemunha da existência cósmica e o seu
Senhor.

A possibilidade de uma consciência cósmica na humanidade esta sendo pouco a pouco


admitida  na moderna Psicologia, como também a possibilidade de instrumentos de
conhecimento mais flexíveis de conhecimento, embora ainda não-classificados,
mesmo quando seu valor e poder são admitidos, como uma alucinação. Na psicologia
oriental, isso sempre foi reconhecido como realidade e como a meta de nosso

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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

progresso subjetivo. A essência da superação dessa meta é a ultrapassagem dos


limites impostos em nós pelo ego-sentido, e pelo menos um compartilhamento, no
máximo uma identificação do autoconhecimento-do-ser que paira secreto sobre toda
a vida e sobre tudo o que parece a nós ser inanimado.

Entrando nessa Consciência, podemos continuar a habitar, como Ela, a existência


universal. Então tornamo-nos conscientes — pois todos os nossos termos de
consciência e mesmo nossas ex­periências sensoriais começam a mudar— da Matéria
como uma existência e dos corpos como suas formações, nas quais a existência una
separa-se fisicamente, no corpo individual, de si mesma e em todos os demais, e,
novamente por meios físicos, estabelece comunicação entre estes múltiplos pontos de
seu ser. A Mente, experimentamo-la de forma semelhante, e a Vida também, como a
mesma existência una em sua multiplicidade, separando-se e reunindo-se em cada
domínio como por meios apropriados a esse movi­mento. E, se desejamos, podemos ir
além e, após atravessar muitas etapas conexas, tornar-nos conscientes de uma
Supramente cuja operação universal é a chave para todas as atividades menores. Não
nos tornamos meramente conscientes dessa existência cósmica, mas igualmente
conscientes nela, recebendo-a em sensação, mas também entrando nela em
conhecimento. Nela vivemos como vivíamos no Ego-sentido, ativamente, cada vez
mais em contato, até mesmo unificados mais e mais com outras mentes, outras vidas,
outros corpos distintos do organismo que chamamos de nós, produzindo efeitos não
só em nosso ser moral e mental e no ser subjetivo de outros, mas também no mundo
físico e seus eventos por meios mais próximos do divino que aqueles possíveis para
nossa capa­cidade egoísta.

Real, então, para o homem que teve contato com ela ou vive nela, é essa consciência
cósmica, de uma realidade maior que a física; real em si mesma, real em seus efeitos e
obras. E como ela é dessa forma real para o mundo, que é a sua própria expressão
total, dessa mesma forma o mundo é real para ela; mas não como uma existência
inde­pendente. Pois, nessa experiência superior e sem obstáculos, per­cebemos que ser
e consciência não são diferentes um do outro, e sim todo ser é uma consciência
suprema, toda consciência é autoexistente, eterna em si mesma, real em suas obras e
nem um sonho nem uma evolução. O mundo é real precisamente porque ele existe
somente em consciência; pois é uma Energia Consciente uma com o Ser que o cria. É
a exis­tência da forma material por seu próprio direito, diferente da energia auto-
iluminada que assume a forma que seria uma contradição em relação à verdade das
coisas, uma fantasmagoria, um pesadelo, uma falsidade impossível.

Mas este Ser Consciente que é a verdade da infinita Supramente, é mais que o
Universo e vive independentemente em Sua inexpressiva infinitude, bem como nas
harmonias cósmi­cas. O mundo vive através Dele; Ele não vive através do mundo. E,
assim como podemos entrar na consciência cósmica e ser uno com a existência
cósmica, também podemos entrar na consciência que transcende ao mundo e
tornarmo-nos superiores a toda a existência cósmica. Então ressurge a questão que
nos ocorreu em princípio, se essa transcendência é também, necessariamente, uma
renúncia. Que relação tem este universo com o Além?

Pois, nos portões do transcendente acha-se aquele Espírito simples e perfeito descrito
nos Upanishads, luminoso, puro, sustentando o mundo mas inativo nele, sem fibras de
energia, sem imperfeição de dualidade, sem marcas de divisão, único, idêntico, livre
de toda a aparência de divisão ou de multiplicidade - o puro Eu dos Ad­waitins [3], o
inativo Brahman, o transcendente Silêncio. E a Mente, quando passa por estes
portões repentinamente, sem transições inter­mediárias, recebe um senso de
irrealidade do mundo e da única realidade do Silêncio, que é uma das mais poderosas
e convincentes experiências das quais é capaz a mente humana. Aqui, na per­cepção
desse puro Eu ou do Não-Ser  por trás dele, temos o ponto de partida para a segunda
negação ― paralela, no outro pólo, ao materialista, porém mais completa, mais
definitiva, mais perigosa em seus efeitos sobre os indivíduos ou coletividades que
ouvem seu poderoso chamado para o deserto — a renúncia do asceta.

É essa a revolta do Espírito contra a Matéria que, por dois mil anos — desde o
Budismo perturbou o equilíbrio do velho mundo ariano — dominou crescentemente a
mente indiana. Não que o senso da ilusão cósmica seja o total do pensamento indiano;
há outras afirmações filosóficas, outras aspirações reli­giosas. Tampouco um ajuste
entre os dois termos foi tentado mesmo pelas filosofias mais radicais. Mas todos
viveram na sombra da grande Renúncia e do término da vida, pois essa é a atitude do
asceta. A concepção da vida foi impregnada com a teoria budista da cadeia do karma
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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

e com a conseguinte antinomia da escravidão e liberação, escravidão por nasci­mento,


liberação por cessação do nascimento. Por isso, todas as vozes se juntaram num
grande consenso: não é neste mundo de dua­lidades que acontecerá o nosso reinado
celestial, senão no mais além, nas beatitudes do eterno Vrindavan [4] ou na superior
bem-aventurança de Brahmaloka [5], além de todas as manifestações nalgum inefável
Nirvana [6], ou onde toda a experiência individual se perde na indis­tinta unidade da
Existência indefinível. E por muitos séculos, um grande exército de brilhantes
testemunhas, santos e mestres, nom­es sagrados para a memória da Índia e
dominantes na imaginação indiana, mantiveram sempre o mesmo testemunho e
acrescentaram sempre o mesmo sublime e distante apelo - renúncia como o único
caminho para o conhecimento, a aceitação da vida física seria o ato do ignorante, a
cessação dos nascimentos como o uso correto do nasci­mento humano, o chamado ao
Espírito, o recuo em relação à Matéria.

Para uma era isenta de simpatia para com o espírito ascético — e através de todo o
resto do mundo, a hora do Anacoreta (religioso que vive em solidão) parece ter
passado ou está passando ―é fácil atribuir esta grande tendência à falta de energia
vital numa antiga raça esgotada em razão de seu fardo, sua vasta contribuição ao
avanço comum; exausta por sua multifacetada contribuição ao conjunto do esforço
humano e ao humano conhecimento. Mas vimos que isto corresponde a uma verdade
na existência, um estado de realização consciente que se encontra no verdadeiro ápice
de nossas possibilidades. Na prática, também o espírito ascético é um elemento
indispensável da perfeição humana, e não se pode evitar até mesmo a sua afirmação
isolada até que a espécie tenha, por outro lado, liberado seu intelecto e seus hábitos
vitais da sujeição a um sempre insistente animalismo.

Buscamos, na verdade, uma afirmação maior e mais completa. Percebemos, que no


ideal ascético indiano, a grande fórmula Vedân­tica, “Um sem um segundo”, não foi
suficientemente lida à luz daquela outra fórmula igualmente imperativa: “Tudo isso é
o Brahman". A aspiração apaixonada do homem em direção ao Divino não foi
suficientemente relacionada com o movimento descendente do Divino, inclinando-se
para baixo para abraçar eternamente Sua manifestação. Seu significado na Matéria
não foi suficientemente compreendido, como Sua verdade no Espírito. A Realidade
que o Sannyasin (Asceta) busca foi captada em sua plena elevação, mas não, como
dizem os antigos Vedantas, mas não em sua completa extensão e compreensão. Mas,
em nossa afirmação mais completa não devemos minimizar a parte que ocupa o puro
impulso espi­ritual. Vimos em que grande proporção o Materia­lismo serviu aos fins do
Divino; assim, devemos reconhecer os serviços ainda maiores, rendidos pelo
Ascetismo à Vida. Devemos preservar as verdades da Ciência material e suas reais
utilidades na harmonia final, mesmo se muitas ou se todas as formas exis­tentes
tiverem que ser quebradas ou abandonadas. Um escrúpulo ainda maior de correta
conservação deve guiar-nos em nosso trato com o legado - na realidade diminuído ou
depreciado - do passado Ariano.

[1] Versos 2, 7.

[2] Súksma indriya, órgãos sutis, existentes no corpo sutil (súksma deha) e o meio da
visão e experiência sutis (súksma drsti).

[3 ] Os Monistas Vedânticos.

[4] Goloka, o céu dos Vaishnavas, da Beleza e Bem-aventurança eter­nas.

[5] O supremo estado da existencia, consciência e beatitude puras, al­cançável pela


alma sem a completa extinção no Indefinível.

[6] Extinção, não necessariamente de todo o ser, senão do ser tal qual o conhecemos;
extinção do ego, do desejo, e da ação e mentalidade egoísta.

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Capítulo IV
 

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A REALIDADE ONIPRESENTE

“Se O conhecemos como Brahman, o Não-Ser, ele se torna não-existente. Se


conhecemos que Brahman É, então Ele é conhecido como o real na existência.”

Taittiriya Upanishad [1]

Então, posto que admitimos tanto o clamor do Espírito puro manifestando em nós
sua absoluta liberdade, como o clamor da Matéria universal por ser o molde e a
condição de nossa manifestação, devemos encontrar uma verdade que possa
reconciliar  inteiramente estes antagonistas e proceda a ambos sua porção merecida
na Vida e sua merecida justificação no Pensamento, sem privar-lhes de nenhum de
seus direitos, sem negar a soberana verdade da qual mesmo seus erros, mesmo a
exclusividade de seus exageros extraem uma força tão constante. Pois, onde quer que
haja uma afirmação extrema que faça tão poderoso apelo à mente humana, podemos
estar certos de que estamos em presença não de um mero erro, superstição ou
alucinação, mas de um fato soberano, disfarçado, que exige nossa fidelidade e se
vingará se for negado ou excluído. Aqui reside a dificuldade de uma solução
satisfatória e a fonte dessa carência de finalidade que persegue todos os
compromissos entre Espírito e Matéria. Um compromisso é um negócio, uma
transação de interesses entre dois poderes em conflito; não é uma verdadeira
reconciliação. A verdadeira reconciliação procede sempre pela compreensão mútua
que conduz a uma espécie de íntima unidade. Por isso, é através da máxima
unificação possível entre Espírito e Matéria que melhor chegaremos a sua
reconciliável verdade, e assim, a uma base mais forte para uma prática
reconciliatória entre a vida interior do indivíduo e sua existência externa.

Já descobrimos que, na consciência cósmica, há uma ponte de encontro onde a


Matéria se torna real para o Espírito, e o Espírito se torna real para a Matéria. Pois,
na consciência cósmica, Vida e Mente são intermediários e não mais, como na
egoística mentalidade ordinária, agentes de separação, fomentadores de uma querela
artificial entre os princípios positivo e negativo da mesma Realidade incognoscível.
Alcançando a Mente da con­sciência cósmica, iluminada por um conhecimento que
percebe de imediato a verdade da Unidade e a verdade da Multiplicidade e apreende
as fórmulas de sua interação, ela encontra suas próprias discordâncias
imediatamente explicadas e reconciliadas pela divina Harmonia; satisfeita, consente
em converter-se no agente dessa suprema união entre Deus e a Vida, para a qual
tendemos. A Matéria se revela para o pensamento realizador e para os sentidos
sutilizados como figura e corpo do Espírito - o Espírito em sua extensão
autoformadora. O Espírito se revela através dos mesmos agentes de consentimento
que a alma, a verdade, a essência da Matéria. Ambos se admitem e se confessam
mutuamente divinos, reais e essencialmente unos. A Mente e a Vida são reveladas
nessa iluminação como, imediatamente, figuras e instrumentos do supremo Ser
Consciente, através do qual Ele Se estende e Se aloja na forma material, e nessa
forma Se revela a para os Seus múltiplos centros de consciência. A Mente atinge sua
autorrealização quando se converte em puro espelho da Verdade do Ser, que se
expressa a Si mesmo nos símbolos do universo; e a Vida, quando esta
conscientemente empresta suas energias à perfeita autofiguração do Divino em
formas e atividades sempre novas da existência universal.

Na luz desta concepção, podemos perceber a possibilidade de uma vida divina para o
homem no mundo, que irá de imediato justificar a Ciência, revelando um sentido e
uma meta inteligível para a evolução cósmica e terrestre, e irá realizar, pela
transfiguração da alma humana em divina, o grande sonho ideal de todas as religiões
elevadas.

E o que dizer desse silencioso Eu, inativo, puro, autoexistente, autossatisfeito, que se
apresente a nós como a permanente justificação do asceta? Aqui também a harmonia,
e não a oposição irreconciliável, deve ser a verdade iluminadora. O silencioso e ativo
Brahman não são entidades diferentes, opostas e irreconciliáveis, uma negando, a
outra afirmando a ilusão cósmica; eles são dois aspectos do mesmo Brahman, o
positivo e o negativo, e cada um é necessário ao outro. É fora do Silêncio que a
Palavra que cria os mundos sempre atua; pois a Palavra expressa aquilo que está
semiescondido no Silêncio. É a eterna passividade que torna possível a perfeita
liberdade e a onipotência de uma eterna atividade divina em inúmeros sistemas
cósmicos. Pois as derivações dessa atividade obtêm suas energias e seu ilimitável

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poder de variação e harmonia, do imparcial sustentáculo do Ser imutável, de seu


consentimento a esta infinita fecundidade de sua própria dinâmica Natureza.

Também o homem só se torna perfeito quando encontrou dentro de si aquela absoluta


calma e passividade do Brahman, e mantém através dela com a mesma divina
tolerância e a mesma divina beatitude, uma atividade livre e inextinguível. Assim,
aqueles que possuem a Calma dentro de si podem sempre perceber, emanando de seu
silêncio o perene suprimento de energias que trabalham no universo. Por isso, não é,
por assim dizer, a verdade do Silêncio que é, por natureza, a rejeição da atividade
cósmica. A aparente incompatibilidade dos dois estados é um erro da Mente limitada,
que, acostumada a vigorosas oposições de afirmação e negação e passando
repentinamente de um pólo ao outro, é incapaz de conceber uma  consciência
compreensiva, vasta e forte o suficiente para incluir ambos num simultâneo abraço.
O Silêncio não rejeita o mundo, o Sustenta. Ou melhor, ele suporta com igual
imparcialidade à atividade e a retirada da atividade, e aprova também a
reconciliação da qual a alma permanece livre e calma, mesmo quando se entrega a
toda ação.

Mais há ainda a retirada absoluta, há o Não-Ser. Do Não-Ser, diz a antiga Escritura,


surgiu o Ser [2]. Daí este último irá, com certeza mergulhar novamente no Não-Ser.
Se a infinita e indiscriminada Existência permite todas as possibilidades de
discriminação e de múltipla realização, não é verdade que o Não-Ser, ao menos como
estado primário e única realidade constante, nega e rejeita toda possibilidade de um
universo real? O Nihil de certas escolas budistas seria, então, a verdadeira solução
ascética; o Eu, como o Ego, seria apenas uma formação ideativa concebida por uma
ilusória consciência fenomênica.

Mas novamente verificamos que estamos sendo iludidos por palavras, enganados
pelas vigorosas oposições de nossa mentalidade limitada, com sua tendência a confiar
em distinções verbais, como se elas representassem perfeitamente verdades básicas, e
na interpretação de nossas experiências supramentais nos termos dessas intolerantes
distinções. Não-Ser é apenas uma palavra. Quando examinamos o fato que ela
representa, já não estamos mais seguros de que a não-existência absoluta tenha
qualquer chance, assim como o infinito Eu, significar, com esse Nada, algo além do
último termo ao qual podemos reduzir nossa mais pura concepção e nossa mais
abstrata ou sutil experiência de ser real como o conhecemos enquanto neste universo.
Esse Nada, então, é alguma coisa além da concepção positiva. Erigimos uma ficção do
nada com o intuito de ultrapassar, pelo método da exclusão total, tudo o que podemos
conhecer e que conscientemente somos. Na realidade, quando examinamos de perto
ao Nihil de certas filosofias, começamos a perceber que ele é um zero que é Tudo ou
um indefinível Infinito que aparece, à mente, como um vazio, pois a mente só capta
construções finitas, mas ele, de fato, a única Existência verdadeira [3] .

E quando dizemos que do Não-Ser surgiu o Ser, percebemos que estamos falando em
termos de Tempo, sobre algo que está além do Tempo. Pois o que era aquela
portentosa data na história do eterno Nada em que o Ser nasceu dele, ou quando virá
essa data igualmente formidável em que um irreal tudo irá recair no eterno vazio?
Sat e Asat, se ambos têm de ser afirmados, devem conceber-se como obtidos
simultaneamente. Eles permitem um ao outro, mesmo se recusam misturar-se.
Ambos, já que devemos falar em termos de Tempo, são eternos. E quem irá persuadir
o Ser eterno de que ele não existe e que só o eterno Não-Ser eterno?

O puro Ser é a afirmação, pelo Incognoscível, de Si mesmo como base livre de toda
existência cósmica. Damos o nome de Não-Ser a uma afirmação contrária de Sua
liberdade em relação a toda existência cósmica - liberdade, quer dizer, em relação a
todos os termos positivos da existência real nos quais a consciência pode formular-se
no universo, inclusive o mais abstrato e o mais transcendente. Não os nega como real
expressão de Si mesmo, mas nega Sua limitação mediante todo ou qualquer tipo de
expressão. O Não-Ser permite o Ser, bem como o Silêncio permite a Atividade.
Através dessa negação e afirmação simultâneas, que não são mutuamente destrutivas,
mas sim complementares como todos os contrários, uma à outra como todos os
contrários, a simultânea compreensão do auto-Ser como uma realidade e do
Incognoscível, que está além, como a mesma Realidade, torna-se possível para alma
humana desperta. Assim é que foi possível para Buda atingir o estado do Nirvana e
atuar poderosamente no mundo, impessoal em sua consciência interna, em sua ação a
mais poderosa personalidade que sabemos ter vivido e produzido resultados sobre a
Terra.
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Quando ponderamos sobre essas coisas, começamos a perceber quão débeis, em sua
violência auto-afirmativa, e quão confusa, em sua enganosa diferenciação, são as
palavras que usamos. Começamos também a perceber, que as limitações que
impomos ao Brahman surgem de uma estreiteza de experiência da mente individual,
que se concentra em um só aspecto do Incognoscível e age diretamente no sentido de
negar ou denegrir todo o resto. Também tendemos a traduzir demasiado rigidamente
o que concebemos ou sabemos do Absoluto, nos termos de nossa própria e particular
relatividade. Afirmamos o Único e Idêntico discriminando apaixonadamente e
fazendo valer o egoísmo de nossas próprias opiniões e experiências parciais contra as
opiniões e experiências parciais de outros. É mais prudente esperar, aprender, crescer,
e, já que somos obrigados, em atenção à nossa auto-perfeição, a falar destas coisas
que a fala humana não pode expressar, buscar a mais ampla, a mais universal
afirmação possível, e estabelecer com ela a máxima e mais compreensiva harmonia.

Reconhecemos, então, que é possível para a consciência do indivíduo entrar num


estado em que a existência relativa parece dissolver-se e mesmo o Eu parece ser uma
concepção inadequada. É possível tombar num Silêncio além do Silêncio. Mas isto
não é a totalidade de nossa experiência definitiva, nem a simples e totalmente
excludente verdade. Pois descobrimos que este Nirvana, essa auto-extinção, ao mesmo
tempo que concede paz absoluta e liberdade à alma, no seu interior, consiste, na
prática, em uma ação isenta mais efetiva. Essa possibilidade de uma impessoalidade
inteiramente imóvel e de uma Calma vazia o interior, realizando exteriormente o
trabalho das verdades eternas - Amor, Verdade e Retidão - foi talvez a real essência
da doutrina de Buda - essa superioridade com respeito ao ego e à cadeia de trabalhos
pessoais e à identificação com a forma mutável e a idéia, e não o insignificante ideal
do escape à aflição e ao sofrimento do nascimento físico. Em todo caso, como o
homem perfeito combinaria em si o silêncio e a atividade, assim também a alma
completamente consciente voltaria a alcançar a absoluta liberdade do Não-Ser sem
por isso perder seu poder sobre a Existência e o universo. Assim ela reproduziria em
si mesma, perpetuamente, o eterno milagre da divina Existência no universo, porém
indo além dele e até mesmo - como se estivesse - além de si mesma. A experiência
oposta só poderia ser uma concentração da mentalidade do indivíduo sobre a Não-
existência, e o resultado seria um esquecimento a retirada pessoal da atividade
cósmica, ainda e sempre agindo na consciência do Ser Eterno.

Assim, após reconciliar Espírito e Matéria na consciência cósmica, percebemos a


reconciliação, na consciência transcendental, da afirmação final de tudo e de sua
negação. Descobrimos que todas as afirmações são declarações de status ou de
atividade no Incognoscível; todas as negações correspondentes são declarações de Sua
liberdade, a partir desse ou nesse status ou atividade. O Incognoscível é Algo para
nós supremo, maravilhoso e inefável que Se formula continuamente à nossa
consciência e continuamente escapa da formulação que fez. Não faz isso como algum
espírito malicioso ou um caprichoso mago, conduzindo-nos de uma falsidade a uma
falsidade maior, e então, uma negação de todas as cosas, mas sim como o Sábio que
está além de nossa sabedoria, guiando-nos da realidade para uma sempre mais
profunda e mais vasta realidade, até que encontremos a mais profunda e vasta de que
somos capazes. O Brahman é uma realidade onipresente, não a causa onipresente de
ilusões per­sistentes.

Se dessa forma aceitamos uma base positiva para nossa harmonia - e em que outra
harmonia poderia ser fundada?— As diversas formulações conceituais do
Incognoscível, cada uma representando uma verdade além do conceito, devem ser
compreendidas, na medida do possível, em sua relação mútua e em seu efeito sobre a
vida, não em  separado, não exclusivamente, não formuladas para destruir ou
minimizar indevidamente todas as outras afirmações. O Monismo real, o verdadeiro
Adwaita, é aquele que admite todas as coisas como o uno Brahman e não procura
dividir Sua existência em duas entidades incompatíveis, uma eterna Verdade e uma
eterna Falsidade, Brahman e Não-Brahman, Eu e Não-Eu, um Eu real e um irreal
porém perpétua Maya. Se, é verdade que o Eu isolado existe, também deve ser
verdade que tudo é o Eu. E se esse Eu, Deus ou Brahman não é um estado de
desamparo, um poder amarrado, uma personalidade limitada, sendo o Todo
autoconsciente, deve haver alguma boa e inerente razão para a manifestação, e para
descobri-la devemos prosseguir na hipótese de alguma potência, alguma sabedoria,
alguma verdade do ser em tudo que se manifesta. A discórdia e o aparente mal do
mundo devem ser admitidos em sua esfera, mas não aceitos como nossos
conquistadores. O mais profundo instinto da humanidade busca sempre, e

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sabiamente, a sabedoria como a última palavra da manifestação universal, não uma


eterna zombaria e uma ilusão - um secreto e finalmente triunfante bem, não um mal
todo-criador e invencível - uma vitória definitiva e a realização, não o recuo
desapontado da alma frente a sua grande aventura.

Pois não podemos supor que a Entidade isolada é compelida por algo fora dela ou
outro que não Ela, porque tal coisa inexiste. Tampouco podemos supor que Ela se
submete contra a vontade a algo parcial, dentro de si, que é hostil a seu Ser inteiro,
negado por Ela e demasiado forte para Ela; pois isto só serviria para criar, em outra
linguagem, a mesma contradição de um Todo e algo diferente do Todo. Mesmo se
afirmamos que o universo só existe porque o Eu em sua absoluta imparcialidade,
tolera todas as coisas sem distinção, encarando com indiferença todas as realidades e
todas as possibilidades, há, no entanto, alguma coisa que quer a manifestação e a
mantém, e por isso só pode ser o Todo. Brahman é indivisível em todas as coisas, e, o
que quer que tenha sido desejado no mundo, foi desejado definitivamente por
Brahman. É apenas nossa consciência relativa, que, alarmada ou frustrada pelos
fenômenos do mal, da ignorância e da dor no cosmos, procura livrar o Brahman da
responsabilidade por Si e por suas obras criando algum princípio oposto, Maya ou
Mara, o mal consciente ou auto-existente princípio do mal. Só existe um Senhor e Eu;
os muitos são apenas Suas representações e derivações.

Se, então, o mundo é um sonho, uma ilusão ou um erro, é um sonho originado e


desejado pelo Eu em sua totalidade, e não apenas originado e desejado, mas
sustentado e perpetuamente acolhido. Além disso, é um sonho existindo na Realidade,
e o material de que é feito é essa Realidade; pois Brahman deve ser o material do
mundo bem como sua base continente. Se o ouro de que o vaso é feito é real, como
podemos pensar que o vaso é uma miragem? Vemos que essas palavras, vaso, sonho,
ilusão, são truques de linguagem, hábitos de nossa consciência relativa; eles
representam certa verdade, até mesmo uma grande verdade, mas eles também a
deturpam. Exatamente como o Não-Ser se transforma na mera nulidade, assim o
Sonho cósmico se transforma em outra coisa que não um mero fantasma ou
alucinação da mente. O Fenômeno não é um fantasma; o Fenômeno é a forma
substancial de uma Verdade.

Começamos, então, com a concepção de uma Realidade onipresente da qual nem o


Não-Ser de um lado, nem o universo do outro, são negações que anulam; eles são ao
invés disso, diferentes estados da Realidade, afirmações de verso e reverso. A mais
elevada experiência desta Realidade no universo mostra que ela não é apenas uma
Existência consciente, mas também uma Inteligência e Forças supremas, e uma Bem-
Aventurança auto-existente. Por isso, estamos certos em supor que, mesmo as
dualidades do universo, quando interpretadas, não como agora, por nossos conceitos
sensórias e parciais, mas por nossa inteligência e experiência liberadas, serão também
resolvidas nesses termos elevados. Enquanto ainda trabalharmos sob a tensão da
dualidade, essa percepção deverá, sem dúvida, basear-se num ato de fé, mas uma fé
que a mais elevada Razão e a mais ampla e mais paciente reflexão não negam, antes
afirmam. Na realidade essa crença é dada à humanidade para apoiá-la em sua
jornada, até que ela chegue à um estágio de desenvolvimento em que a fé se
transformará em conhecimento e a perfeita experiência e a Sabedoria verão suas
obras justificadas.

[1] II, 6.

[2] No começo tudo era o Não-Ser. Foi então que o Ser nasceu. Taittiriya Upanishad,
II, 7.

[3] Outro Upanishad rejeita o nascimento do Ser a partir do Não-Ser como uma
impossibilidade; o Ser, diz ele, só pode nascer do Ser. Mas se tomamos o Não-Ser no
sentido, não de um inexistente Nihil mas de um x que supera a nossa idéia de
experiência da existência, - sentido este aplicável ao Brahman absoluto do Adwaita
bem como ao vazio ou zero dos Budistas—a impossibilidade desaparece, pois Aquilo
pode muito bem ser a fonte do ser, seja por uma conceitual ou formativa Maya, seja
como uma manifestação ou criação a partir de si mesmo.

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Capítulo V

O DESTINO DO INDIVÍDUO

“Pela Ignorância eles passam pela Morte e pelo Conhecimento desfrutam da


Imortalidade... Pelo Não-Nascimento eles passam pela Morte e pelo Nascimento
eles desfrutam da Imortalidade.”

Isha Upanishad [1]

Uma Realidade Onipresente é a verdade de toda a vida e existência, absoluta ou


relativa, animada ou inanimada, inteligente ou não-inteligente; e em todas as suas
infinitamente variadas e constantemente opostas autoexpressões, desde as
contradições mais próximas à nossa experiência ordinária até aquelas remotas
antinomias que se perdem nas bordas do Inefável, a Realidade é uma, e não uma
soma ou concurso. Disso todas as variações partem, nisso todas as variações
consistem e, para isso todas elas retornam. Todas as afirmações são negadas apenas
para levar a uma afirmação mais ampla da mesma Realidade. Todas as antinomias se
confrontam para reconhecer uma Verdade em seus aspectos opostos e abraçar, por
meio do conflito, sua mútua Unidade. Brahman é o Alfa e Ômega. Brahman é o Uno
além do qual não há mais nada existente.

Mas esta unidade é, por natureza, indefinível. Quando procuramos enxergá-la com a
mente, somos compelidos a proceder através de uma infinita série de conceitos e
experiências. E, no entanto, no final, vemo-nos obrigados a negar nossos mais amplos
conceitos,   nossas experiências mais abrangentes, para afirmar que a Realidade
excede todas as definições. Chegamos à fórmula dos Sábios védicos, net   neti: "Ela
não é isto, Ela não é aquilo", não há experiência pela qual possamos delimitá-la, não
há conceito pelo qual, Ela possa ser definida.

Um Incognoscível que nos aparece em muitos estados e atributos do ser, em muitas


formas de consciência, em muitas atividades de energia, isso é o que a Mente pode
dizer, definitivamente, sobre a existência que nós mesmos somos e que vemos em tudo
o que é apresentado aos nossos pensamentos e sentidos. É neles e através desses
estados, essas formas, essas atividades, que temos que abordar e conhecer o
Incognoscível. Mas, se em nossa pressa de chegar a uma Unidade que nossa mente
possa segurar e possuir, se em nossa insistência em confinar o Infinito ao nosso
abraço, identificamos a Realidade com qualquer estado definível do ser embora puro
e eterno, com qualquer atributo particular embora geral e abrangente, com qualquer
formulação fixa de consciência embora vasta em seu escopo, com qualquer energia ou
atividade cuja aplicação seja ilimitada, e excluímos todo o resto, então nossos
pensamentos pecarão contra Sua incognoscibilidade e atingirão, não uma verdadeira
unidade, mas uma divisão do Indivisível.

Tão fortemente era essa verdade percebida nos antigos tempos, que os Videntes
Vedânticos, mesmo após chegar à idéia coroadora, a convincente experiência de
Satchitananda que seria a mais elevada experiência positiva da Realidade, para nossa
consciência, erigiram em suas especulações, ou atingiram em suas percepções, um
Asat, um Não-Ser além, que não é a existência definitiva, a pura consciência, a
infinita bem-aventurança da qual todas as nossas experiências são a expressão ou a
deformação. Se for uma existência, uma consciência, uma bem-aventurança, então
está além da mais alta e mais pura forma positiva dessas coisas que aqui podemos
possuir, e é por isso outra coisa, diferente daquilo que aqui conhecemos por esses
nomes. O budismo, considerado pelos teólogos, um tanto arbitrariamente, uma
doutrina não-Védica porque rejeita a autoridade das Escrituras, retorna, porém, esta
concepção essencialmente vedântica. Apenas a doutrina sintética e positiva dos
Upanishads contemplava Sat e Asat (Ser e Não-Ser) não como opostos destruidores
um do outro, mas como a última antinomia através da qual admiramos o
Incognoscível. E nas transações de nossa consciência positiva, até mesmo a Unidade
tem de levar em conta com a Multiplicidade, pois os Muitos também são Brahman. É
através de Vidiya,  o conhecimento da Unidade, que conhecemos a Deus; sem ele
Avidya,  a consciência relativa e múltipla, é uma noite de escuridão e uma desordem
de Ignorância. Porém, se excluímos o espaço dessa Ignorância, se nos livramos de

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Avidya como se ela fosse algo inexistente e irreal, então o próprio Conhecimento se
torna uma espécie de obscuridade e uma fonte de imperfeição. Tornamo-nos como
homens ofuscados pela luz de tal forma, que não podemos ver o espaço que essa luz
ilumina.

Tal é a doutrina, calma, sábia e clara, dos nossos mais antigos mestres. Eles tinham a
paciência e a força para encontrar e para saber; tinham também a clareza e
humildade para admitir a limitação do nosso conhecimento. Percebiam as fronteiras
que ele tem de passar para ir além de si mesmo. Ele era uma impaciência posterior de
coração e mente, atração veemente por uma bem-aventurança definitiva ou pelo alto
império da pura experiência e uma inteligência aguda, que buscava o Uno para negar
os Muitos, e porque tinha recebido o sopro das alturas, desprezado ou renegado pelo
segredo das profundezas. Mas o olho firme da sabedoria antiga percebeu que, para
conhecer realmente Deus, deve-se conhecê-lo em todo lugar igualmente e sem
distinção, considerando e valorizando, porém não dominado pelas oposições através
das quais Ele brilha.

Poremos de lado, então, as sutis distinções de uma lógica parcial que afirma que,
porque o Uno é a realidade, os Muitos são uma ilusão, e porque o Absoluto é Sat, a
existência una, o relativo é Asat e não-existente. Se nos Muitos perseguimos
insistentemente o Uno, é para retornar com a benção e a revelação do Uno
confirmando-se nos Muitos.

Acautelemo-nos também contra a excessiva importância que a mente atribui a


conclusões particulares, as quais ela chega em suas mais poderosas expansões e
transições. A percepção, que tem a mente espiritualizada, de que o universo é um
sonho irreal não tem valor mais absoluto, para nós, do que a percepção, pela mente
materializada, de que Deus e o Além são uma idéia ilusória. Num caso, a mente,
habituada apenas à evidência dos sentidos e associando a realidade ao fato corpóreo,
está desacostumada a usar outros meios de conhecimento, ou é incapaz de estender a
noção de realidade a uma experiência suprafísica. No outro caso, a mesma mente,
indo além da esmagadora experiência de uma realidade incorpórea, simplesmente
transfere a mesma inabilidade e a mesma conseqüente sensação de sonho ou
alucinação para a experiência dos sentidos. Mas nós percebemos também a verdade
que essas duas concepções desfiguram. É verdade que, neste mun­do de formas, no
qual somos colocados para a nossa autorrealização, nada é inteiramente válido até
que tenha tomado posse de nossa consciência física, e se manifestado nos mais baixos
níveis em harmonia com a sua manifestação nos mais altos cumes. É também verdade
que a forma e a matéria, afirmando-se como uma realidade auto-existente, são uma
ilusão da Ignorância. A forma e a matéria são válidas somente como forma e
substância da manifestação do incorpóreo e imaterial. São, por natureza própria, um
ato da consciência divina, tem como objetivo a representação de um estado do
Espírito.

Em outras palavras, se Brahman entrou na forma e representou Seu ser na


substância material, só pode ser para usufruir da automanifestação nas formas da
consciência relativa e fenomênica. Brahman está neste mundo para representar a Si
mesmo nos valores da Vida. A Vida existe em Brahman para descobrir o Brahman
em si mesma. Por isso, a importância do homem no mundo é que ele permite a ela
esse desenvolvimento de consciência no qual a sua transfiguração através de uma
perfeita autodescoberta se torna possível. Realizar Deus na vida é a humanidade do
homem. Ele começa pela vitalidade animal e suas atividades, mas seu objetivo é uma
existência divina.

Mas no Pensamento como na Vida, a verdadeira regra da autorrealização é uma


compreensão progressiva. Brahman Se expressa em muitas sucessivas formas de
consciência, sucessivas em sua relação, mesmo se forem coexistentes no ser e coesas
  no Tempo, e a Vida, no seu autodesdobrar-se, pode também desenvolver sempre-
novos ramos de seu próprio Ser. No entanto, se, passando de um ao outro domínio,
renunciamos ao que já nos foi dado pela ânsia de nossa próxima realização; se,
alcançando a vida mental, abandonamos ou minimizamos a vida física que é a nossa
base, ou se rejeitamos o mental e o físico, em nossa atração pelo espiritual, não
realizamos a Deus integralmente, nem satisfazemos as condições de Sua
automanifestação. Não nos tornamos perfeitos, mas apenas trocamos o campo de
nossa imperfeição, ou ao menos atingimos uma altitude limitada. Mesmo que
subamos alto, mesmo até o próprio Não-Ser, subimos mal se esquecermos a nossa
base. Não abandoar o ínfimo deixando a si mesmo, mas transfigurá-lo à luz do
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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

supremo que já atingimos, é a verdadeira divindade da natureza. Brahman é integral


e unifica muitos estados de consciência a um mesmo tempo; nós também,
manifestando a natureza de Brahman, devemos tornar-nos integrais e todo-
abragentes.

Além da renúncia à vida física, há outro exagero do impulso ascético que esse ideal,
de uma manifestação integral, corrige. A complexidade da Vida é a relação entre três
formas gerais de consciência: a individual, a universal e a transcendente ou supra-
cósmica. Na distribuição ordinária das atividades vitais, o indivíduo se vê como um
ser separado incluído no universo, e ambos, como dependentes daquilo que
transcende tanto o universo como o indivíduo. É a essa Transcendência que damos
usualmente o nome de Deus, que, assim, torna-se, para nossa concepção, não tanto
supracósmico como extracósmico. A minimização como a degradação tanto do
indivíduo como do Universo são a consequência natural dessa separação: a cessação
tanto do cosmos como do indivíduo pela obtenção da Transcendência seria então a
suprema conclusão lógica.

A visão natural da unidade do Brahman evita essas consequências. Assim como não
precisamos abandonar a vida corporal para alcançar o mental e o espiritual, também
podemos chegar a um ponto-de-vista em que a preservação das atividades individuais
não é mais incompatível com a nossa compreensão da consciência cósmica ou a
obtenção, por nós do transcendental ou supracósmico. Pois o Mundo-Transcendente
abarca o Universo, é uno com ele e não o exclui, assim como o Universo abarca o
indivíduo, é uno com ele e não o exclui. O indivíduo é o centro de toda a consciência
universal; o Universo é uma forma e definição  que é ocupado pela inteira imanência
do Informe e Indefinível.

Esta é sempre a verdadeira relação, velada a nós por nossa ignorância ou nossa
consciência errada das coisas. Quando alcançamos o conhecimento ou a consciência
certa, nada essencial na eterna relação é mudado, mas apenas a visão interna e a
visão externa a partir do centro individual são profundamente modificadas, e,
consequentemente, também o espírito e o efeito de sua atividade. O indivíduo ainda é
necessário para a ação do Transcendente no universo, e essa ação nele não cessa de
ser possível por sua iluminação. Ao contrário, como a manifestação consciente do
Transcendente no indivíduo é o meio pelo qual o coletivo, o universal também se
tornará consciente de si mesmo, a continuação da ação do indivíduo iluminado no
mundo é uma necessidade imperativa do jogo-do-mundo. Se a sua inexorável
remoção através do próprio ato de iluminação for a lei, então o mundo está
condenado a permanecer eternamente o cenário de uma irredimida escuridão, de
morte e sofrimento. E tal mundo só poderá ser um implacável ordálio ou uma ilusão
mecânica.

É assim que a filosofia ascética tende a concebê-lo. Mas a salvação individual pode
não ter real sentido se a existência no cosmos é ela mesma uma ilusão. Na visão
Monística, a alma individual é una com o Supremo e a sensação de desligamento é
uma ignorância, a fuga da sensação de desligamento e a identidade com o Supremo é
a sua salvação. Mas quem, tira proveito dessa fuga? Não o Eu supremo, pois este é
considerado sempre e inaliena­velmente livre, calmo, silencioso e puro. Não o mundo,
pois esse permanece constantemente na escravidão e não é libertado pela fuga de
nenhuma alma individual da Ilusão universal. É a própria alma individual que
realiza seu bem supremo escapando à tristeza e à divisão na paz e a bem-
aventurança. Parece haver, então, algum tipo de realidade da alma individual,
distinta do mundo e do Supremo, até mesmo no caso da liberdade e da iluminação.
Mas para o Ilusionista, a alma individual é uma ilusão e é inexistente, exceto no
inexplicável mistério de Maya. Então, chegamos à idéia da fuga de uma ilusória,
inexistente alma, de uma ilusória, inexistente escravidão, num ilusório, inexistente
mundo, como o supremo bem que essa alma inexistente tem de alcançar! Pois essa é a
última palavra do Conhecimento. “Não há grilhão, não há ninguém libertado,
ninguém tentando ser livre”. Vidya se transforma numa parte do Fenomêno tal qual
Avidya; Maya encontra-nos mesmo em nossa fuga e ri da lógica triunfante que parece
cortar o nó de seu mistério.

Essas coisas, dizem, não podem ser explicadas; são o milagre primeiro e insolúvel.
São, para nós, um fato consumado e têm de ser aceitas. Temos de escapar de uma
confusão através de outra confusão. A alma individual só pode cortar o nó egoico por
um ato de supremo egoísmo, um apego exclusivo à salvação individual que equivale a
uma afirmação absoluta de sua existência separada em Maya. Somos levados a ver as
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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

outras almas como se fossem invenções da nossa mente, e como se sua salvação não
tivesse importância, e a nossa alma, unicamente, como inteiramente real, e a sua
salvação, a única coisa que importa. Eu vejo minha fuga pessoal da escravidão como
algo real enquanto as outras almas, que são igualmente eu mesmo, permanecem
atrás, na escravidão!

Só quando abandonamos todas as antinomias inconciliáveis entre o Eu e o mundo é


que as coisas vão para os seus lugares, por uma lógica menos paradoxal. Devemos
aceitar a multiplicidade de lados da manifestação mesmo quando afirmamos a
unidade do Manifestado. E não é assim, após toda a verdade que nos persegue, onde
quer que lancemos os olhos, a menos que optemos por não ver? Não é assim, após
todo, o mistério perfeitamente natural e simples do Ser Consciente, que ele não é
preso nem por sua unidade nem por sua multiplicidade? Ele é “absoluto”, no sentido
de ser inteiramente livre para incluir e organizar a seu modo todos os possíveis
termos de sua autoexpressão. Não há nenhum grilhão, nenhum liberto, ninguém
tentando ser livre- para sempre, Aquilo é a perfeita liberdade. É tão livre, que não
está preso nem por sua liberdade. Ele pode brincar de ser escravo sem incorrer na
real escravidão. Sua corrente é uma convenção autoimposta; sua limitação dentro do
ego, um dispositivo de transição que ele usa para repetir sua transcendência e sua
universalidade dentro do esquema do Brahman individual.

O Transcendente, o Supracósmico é absoluto e livre em si mesmo, está além do


Tempo e do Espaço e além dos opostos conceituais, finito e infinito. Mas no cosmos ele
usa sua liberdade de autoformação, o seu Maya, para fazer um esquema de si mesmo
nos termos complementares unidade e multiplicidade, e essa múltipla unidade, ele
estabelece nestas três condições: subconsciente, consciente e supraconsciente. Pois, na
realidade, vemos que os Muitos, objetivados na forma em nosso universo material,
começam com uma unidade subconsciente que se expressa abertamente na ação e na
substância cósmicas, mas da qual eles não estão superficialmente conscientes. No
consciente, o ego se torna o ponto superficial do qual a consciência da unidade pode
emergir; mas ele aplica sua percepção da unidade à forma e à ação superficial e,
fracassando em perceber tudo o que atua por trás, fracassa também em perceber que
não é em si mesmo, mas sim uno com os outros. Essa limitação do “Eu” universal na
sensação do ego separado constitui a nossa imperfeita personalidade individualizada.
Mas quando o ego transcende a consciência pessoal, começa a incluir e a ser
superpotencializado por aquilo que é para nós a supraconsciência; ele se torna
consciente da unidade cósmica e entra no Eu Transcendente, que aqui o cosmos
expressa como uma múltipla unidade.

A liberação da alma individual é, por isso, a nota-chave da ação divina definida; é a


primeira necessidade divina e o pivô em torno do qual tudo gira. É o ponto de Luz no
qual a pretensa manifestação completa nos Muitos começa a emergir. Mas a alma
liberada estende sua percepção de unidade tanto horizontal quanto verticalmente.
Sua unidade com o transcendente Uno é incompleta, sem a sua unidade com o
cósmico Muitos. E essa unidade lateral traduz-se por uma multiplicação, uma
reprodução de seu próprio estado liberado em outros pontos, na Multiplicidade. A
alma divina reproduz-se em almas liberadas semelhantes como o animal se reproduz
em corpos semelhantes. Por isso, onde quer que uma única alma seja liberada, há a
tendência a uma extensão e até mesmo a uma explosão da mesma divina
autoconsciência em outras almas individuais dotadas de nossa humanidade terrestre
e ―quem sabe?— talvez estejam além da nossa consciência terrestre. Onde devemos
fixar o limite dessa extensão? Será totalmente lendário o fato de que Buda, ao chegar
ao limiar do Nirvana, do Não-Ser... sua alma deu meia-volta e fez o juramento de
nunca fazer o cruzamento irrevogável enquanto houvesse um único ser sobre a Terra
que não tivesse sido liberado do nó do sofrimento, da escravidão do ego?

Porém nós podemos atingir o mais elevado sem sermos eliminados da extensão
cósmica. Brahman preserva sempre Seus dois termos, o de liberdade dentro e o de
formação fora, o de expressão e o de libertação da expressão. Nós também, sendo
Aquilo, podemos atingir a mesma divina autopossessão. A harmonia das duas
tendências é a condição de toda a vida que pretende ser realmente divina. A liberdade
buscada pela exclusão da coisa excedida leva ao caminho da negação, da recusa
daquilo que Deus aceitou. A atividade buscada pela absorção no ato e na energia leva
a uma afirmação inferior e à negação do mais Elevado. O que Deus combina e
sintetiza, por que o homem insiste em separar-se? Ser perfeito como Ele é perfeito é a
condição para a Sua realização integral.

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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

Em Avidya, a Multiplicidade, encontra-se o nosso caminho, livre da autoexpressão


egoísta e transitória, em que a morte e o sofrimento predominam; através de Vidya
em consenso com Avidya, pelo perfeito senso de unidade, mesmo na Multiplicidade,
desfrutamos inteiramente da imortalidade e da beatitude. Alcançando o Não-Nascido
além de todos os que estão por vir, somos liberados deste nascimento inferior e da
morte; aceitando o Vir-a-ser como Divino, invadimos a mortalidade com a imortal
beatitude e tornamo-nos luminosos centros de sua consciente autoexpressão na
humanidade.

[1] Versos 11, 14.


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Capitulo VI

O HOMEM NO UNIVERSO

A Alma do homem, viajante, vaga neste ciclo do Brahman, imensa, uma


totalidade de vidas, uma totalidade de estados, pensando-se diferente
do Impulsionador da viagem. Aceita por Ele, alcança sua meta da
Imortalidade.

Swëtaswatara Upanishad[1]

A progressiva revelação de uma grande, uma transcendente, uma lumi nosa


Realidade, --com as múltiplas relatividades deste mundo que vemos e esses outros
mundos que não vemos como meio e ma terial, condição e campo--, pareceria então
ser o significado do universo, já que tem significado e objetivo e não se trata de uma
ilusão sem finalidade nem de um acidente fortuito. Pois o mesmo ra ciocínio que nos
permite concluir que o mundo-(existente não é uma enganosa armadilha da Mente,
igualmente justi fica a certeza de que não se trata de uma cega e desvalida massa
auto-existente de separadas existências fenomênicas- aderindo-se e lutando entre si, o
melhor que podem, em sua órbita através da eternidade-, nem de uma auto-criação e
auto-impulsão tremendas de uma ignorante Força sem nenhuma Inteligência secreta
em sua interior sabedora de seu ponto de partida e de sua meta, e guiando seu
processo e seu movimento. Uma existência, totalmente auto-conhecedora e, portanto,
inteiramente dona de si mesma, possui ao ser fenomênico no que está envolta, se
realiza na forma, se desenvolve no indivíduo.

Esse Emergir luminoso é o amanhecer que veneraram os ante passados arianos. Sua
cumprida perfeição é o mais alto escalão de Vishnu penetrando-o-mundo, ao que
aqueles contemplaram como se fosse um olho cuja visão se estendesse nos puríssimos
céus da Mente. Pois existe ainda como todo-reveladora e todo-guiadora Verdade das
coisas, que vela sobre o mundo e atrai ao homem mortal, -(primeiro sem o
conhecimento de sua mente consciente, mediante a marcha geral da Natureza, mas ao
final conscientemente através de um despertar e um auto-engrandecimento
progressivos)-, para sua ascensão divina. A ascensão à Vida divina é a viagem
humana, o Tra­balho dos trabalhos, o Sacrifício aceitável. Só isto é a tarefa real do
homem no mundo e a justificação de sua existência, sem a qual seria unicamente um
inseto arrastando-se entre outros insetos efêmeros sobre uma superfície insignificante
de barro e água que se formou em meio das aterradoras imensidades do universo
físico.

Esta Verdade das coisas que há de emergir das fenomênicas contradições do mundo,
está chamada a ser uma Bem-Aventurança infinita e Existência auto-consciente, a
mesma por toda parte, em todas as coisas, em todos os tempos e mais além do Tempo,
sabedora de sua presença detrás de todos estes fenômenos, por cujas mais intensas
vibrações de atividade ou por cuja grande totalidade, jamais pode expressar-se por
completo, e de nenhum modo resultar limitada pelas mesmas; pois é auto-existente e
para o despertar de seu ser não depende de suas manifestações. Estas a representam
mas não a esgotam; a assinalam, mas não a revelam. Só é revelada a si mesma dentro
de suas formas. A existência consciente involu ída na forma chega, na medida que
evolui, a conhecer-se por intuição, por auto-visão, por auto-experiência. Conhecendo-
se, chega a ser ela mesma no mundo; se conhece a si mesma através do processo de
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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

chegar a ser ela mesma. Dona, dessa maneira, de si mesma interior­mente, concede
também a suas formas e modos o consciente deleite de Satchitananda. Este
afloramento da infinita Bem-Aventurança- Existência-Consciência na mente, na vida
e no corpo, —pois existe independente deles eternamente—, é a transfiguração
ansiada e a utilidade da existência individual. Através do indi víduo se manifesta em
suas relações assim como por si mesma existe em identidade.

O Incognoscível que se conhece como Satchitananda é a afirmação suprema do


Vedanta; contém a todas as demais ou melhor, dependem dele. Esta é a única
experiência verdadeira que permanece quando todas as aparências foram
consideradas negativa mente mediante a eliminação de suas formas e coberturas, ou
positivamente pela redução de seus nomes e formas à verdade permanente que
contêm. Para o cumprimento do objetivo da vida ou para a trascendência da vida, -(e
resultando ser a pureza, a calma e a liberdade do espírito nosso objetivo ou impulso,
alegria e perfeição)-, Satchitananda é o desconhecido, onipresente e in dispensável
termo pelo qual a consciência humana, seja com conhecimento e sentimento, seja com
sensação e ação, está eternamente buscando.

O Universo e o Indivíduo são as duas aparências essenciais nas que o Incognoscível


descende e através das quais há de ser acercado; ainda que outras coletividades
intermediárias nascem só de sua interação. Este descenso da Realidade suprema é,
em sua natureza, um auto-ocultamento; e no descenso existem sucessivos níveis, no
ocultamento, sucessivos véus. Necessaria mente, a revelação toma a forma de uma
ascensão; e necessariamente também a ascensão e a revelação são progressivas. Pois
cada nível sucessivo no descenso do Divino é para o homem uma etapa em ascensão;
cada véu que oculta ao Deus desconhecido se converte para o amante-de-Deus e o
buscador-de-Deus em um instrumento de Sua revelação. Fora do ritmico sonho da
Natureza material, -(incons­ciente da Alma e da Idéia que mantêm as ordenadas
atividades de sua energia inclusive em seu mudo e poderoso transe material-), o
mundo luta dentro do mais veloz, variado e desordenado ritmo da Vida, perdendo-se
nas bordas da auto-consciência. Fora da Vida, luta para cima dentro da Mente na
que a unidade chega a despertar ante si mesma e seu mundo, e nesse despertar o uni
verso consegue a fortaleza requerida para sua obra suprema, consegue a
individualidade auto-consciente. Mas a Mente assume o trabalho de continuá-la, não
de completá-la. É uma trabalhadora de inteligência aguda mas limitada que toma os
confusos materiais oferecidos pela Vida e, havendo-os melhorado, adaptado,
modificado e classificado de acordo a seu poder, os entrega ao supremo Artista de
nossa divina humanidade. Esse Artista mora na supramente; pois a supramente é o
super-homem. Pelo tanto, nosso mundo tem todavia que saltar mais além da Mente
até um princípio superior, um estado superior, um dinamismo superior no que o
universo e o indivíduo tomam conhecimento e possessão disso que ambos são, e em
consequência, restam explicados um ao outro, em mútua harmonia, unificados.

As desordens da vida e da mente cessam ao discernir-se o segredo de uma ordem mais


perfeita que o físico, a matéria sob a vida, e a mente contêm em si mesma o
contrapeso entre um perfeito equilíbrio de tranquilidade e a ação de uma incomen
surável energia, mas não possui o que contêm. Sua paz leva a opaca máscara de uma
obscura inércia, um sonho de inconsciência ou melhor, de uma consciência drogada e
aprisionada. Manejada por uma força que é seu eu real mas cujo sentido não pode
captar nem compartilhar, carece do desperto deleite de suas próprias energias
harmoniosas.

A vida e a mente despertam ao sentido do que anseiam, na forma de uma


ignorância que luta e busca e de un desejo perturbado e desconcertado que são os
primeiros passos até o auto-conhecimento e a auto-realização. Mas então onde está o
reino de sua auto-realização? Chega-lhes pela superação delas mesmas. Mais além da
vida e da mente recobramos conscientemente em sua divina verdade o que o
equilíbrio da Natureza material representou brutamente, uma tranquilidade –(que
não é inércia nem selado transe da cons ciência senão a concentração de uma força
absoluta e de um absoluto auto-conhecimento-, e uma ação de incomensurável
energia)- que é também e ao mesmo tempo, estremecimento de inefável bem-
aventurança por que aqui, todo ato é a expressão, não de um desejo e esforço igno
rante, senão de uma paz e auto-domínio absolutos-. Nessa conquista, nos sa
ignorância se transforma em luz da qual era um reflexo obscurecido ou parcial;
nossos desejos cessam na plenitude e na realização prometidas, as quais, -inclusive em
suas formas materiais mais grosseiras-, eram uma obscura e debilitada aspiração.

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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

O universo e o individuo são necessários um ao outro em sua ascensão. Certamente


sempre existe o um para o outro e mutuamente se aproveitam. O Universo é uma
difusão do divino Todo no Espaço e Tempo infinitos, o indivíduo é sua concentração
dentro dos limites de Espaço e Tempo. O Universo busca na extensão infinita a
totalidade divina que sente que é sem com preendê-la inteiramente; pois na extensão,
a existência conduz a uma soma pluralista de si mesma que não pode ser a
primogenia nem a final unidade, senão só um decimal recorrente sem fim nem prin
cípio. Portanto, cria em si uma concentração auto-consciente do Todo através da qual
pode aspirar. No indivíduo consciente, Prakriti se volta para perceber a Purusha, o
Mundo busca ao Ser-em-si; havendo Deus devindo inteiramente Natureza, a Natu
reza busca progressivamente chegar a ser Deus.

Por outra parte, é por meio do Universo que o indivíduo está impelido a realizar-se.
Aquele é não só seu fundamento, seu meio, seu campo, o material da Obra divina,
senão que, -dado que a concentração da Vida universal que o indivíduo é, tem lugar
dentro de uns limites e não se parece à intensa unidade do Brahman livre de toda
concepção de limite e prazo-, necessariamente deve uni versalizar-se e
impersonalizar-se a fim de manifestar o Todo divino que é sua realidade. Inclusive
reclama-lhe que preserve, -ainda quando se estenda mais na universalidade da
consciência-, um misterioso algo transcendente do qual seu sentido da personalidade
lhe dá uma representação obscura e egoísta. Por outra parte, ele há equivocado sua
meta, o problema que se apresentou-lhe não foi resolvido, a obra divina para a qual
aceitou nascer não há sido feita.

O Universo vem ao indivíduo como Vida, -(um dinamismo cujo segredo total há de
dominar e uma massa de resultados em colisão, um torvelinho de energias potenciais
das que há de liberar alguma ordem suprema e alguma harmonia ainda não
realizada)-. Este é, depois de tudo, o real sentido do progresso do homem. Não é
simplesmente, uma repetição, em termos levemente diferentes, do que já cumpriu a
Natureza física. Nem o ideal da vida humana pode ser simplesmente o animal
repetido em uma escala superior de mentali dade. Do contrário, qualquer sistema ou
ordem que assegurasse um tolerável bem-estar e uma moderada satisfação mental
houvesse estancado nosso progresso. O animal se satisfaz com pouco forçosamente; os
deuses se contentam com seus esplendores. Mas o homem não pode descansar
permanentemente até que alcance algum bem supremo. É o maior dos seres viventes
porque é o mais descontente, porque é ele que mais sente a pressão das limitações. Só
ele; talvez, é capaz de ser tomado pelo divino frenesi de um ideal remoto.

Para o Espírito-Vital, portanto, o indivíduo que centra suas potencialidades é pré-


eminentemente o Homem, o Pu rusha. Trata-se do Filho do Homem que é
supremamente capaz de ser encarnado por Deus. Este Homem é o Manu, o pensador,
o Manomaya Purusha, pessoa mental ou alma na mente dos antigos sábios. Não é um
mero mamífero superior, senão uma alma conceptiva tomando base no corpo animal
na Matéria. Ele é Numen ou nome consciente que aceita e utiliza a forma como um
médium[2] , (meio para uma realização), através do qual a Pessoa pode tratar com a
substância. A vida animal que emerge da Matéria é só o termo inferior de sua
existência. A vida do pensamento, do sentimento, da vo ntade, do impulso consciente,
-(essa que chamamos em sua totalidade Mente, essa que luta por controlar a Matéria
e suas energias vitais e submetê-las à lei de sua própria transformação progressiva)-,
é o termo médio no que o indivíduo toma seu lugar efetivo. Mas existe, igualmente,
um termo supremo do qual a Mente do homem vai em posse, de modo que, depois
haver encontrado pode afirmá-lo em sua existência mental e corporal. Esta afirmação
prática de algo essencialmente superior a seu presente eu é a base da vida divina no
ser humano.

Desperto a um, mais profundo auto-conhecimento que o de sua primeira idéia mental
de si mesmo, o Homem começa a conceber alguma fórmula e a perceber alguma
aparência da coisa que há de afirmar. Mas se lhe apresenta como se equilibrasse-se
entre duas negações de si mesma. Se, mais além de seus atuais dotes, percebe ou é
tocado pelo poder, a luz, a bem-aventurança da infinita existência auto-consciente e
traduz seu pensamento ou sua experiência em termos convenientes a sua
mentalidade, -(Infinito, Onisciência, Onipotência, Imortalidade, Liberdade, Amor,
Beatitude, Deus)-, todavia este sol de sua visão parece brilhar entre uma dupla Noite,
-(obscuridade abaixo e uma maior obscuridade mais além)-. Pois quando luta por
conhecer isso completamente, parece ingressar em algo que nenhum destes termos
nem a soma deles pode representá-lo em sua totalidade. Sua mente, finalmente nega a

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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

Deus por um Além, ou ao menos parece descobrir a Deus que transcende a Si mesmo,
negando-se a sua própria concepção. Aqui também, no mundo, nele mesmo, e a seu
redor, é encontrado sempre pelos opostos de sua afirmação. A morte está sempre com
ele, a limitação investe seu ser e sua experiência, o erro, a inconsciência, a debilidade,
a inércia, a pena, a dor, o mal, são constantes opressores de seu esforço. Aqui também
é conduzido a negar a Deus, ou ao menos o Divino parece negar-se ou ocultar-se em
alguma aparência ou resultado que difere de sua realidade verdadeira e eterna.

E os termos desta negação não são, como essa outra e mais remota negação,
inconcebíveis e, portanto, naturalmente miste riosos, incognoscíveis em sua mente,
senão que parecem ser cognoscíveis, conhecidos, definidos, -e ainda misteriosos-. Não
sabe que são, por que existem, como chegaram a ser. Vê seus processos tal como o
afetam e se lhe apresentam; não pode sondar sua realidade essencial.

Talvez sejam insondáveis, talvez sejam também realmente incog noscíveis em sua
essência? Ou, pode ser, que não tenham realidade essencial, -sejam uma ilusão, Asat,
Não-Ser-. A Negação superior se apresenta-nos às vezes como Nihil, Não-Existência;
esta negação inferior pode ser também, em sua essência, Nihil, não-existência. Mas
assim como já temos rechaçado esta evasão da dificuldade com respeito à negação
superior, de igual maneira a descartamos para este Asat inferior. Negar por completo
sua realidade ou buscar uma fuga dela como mera ilusão desastrosa, é fazer a um
lado o problema e esquivar nosso trabalho. Para a Vida, estas coisas que parecem
negar a Deus, ser os opostos de Satchitananda, são reais, inclusive se são considerados
como temporais. Elas e seus opostos, bem, conhecimento, alegria, prazer, vida, sobre,
força, poder, crescimento, são o material mesmo de suas obras.

Em verdade é provável que sejam o resultado ou melhor os companheiros


inseparáveis, não de uma ilusão, senão de uma relação equivocada, equivocada
porque está fundada em uma falsa visão de para que está o indivíduo no universo e
portanto uma falsa atitude tanto para com Deus como para com a Natureza, para
com ele mesmo e seu entorno. Devido ao que ele chegou a ser está fora da harmonia
tanto com o que o mundo que habita é como com o que ele mesmo devesse ser e o que
vai tornar-se, portanto o homem está sujeito a estas contradições da secreta Verdade
das coisas. Nesse caso não são o castigo por uma queda, senão as condições de um
progresso. São os elementos pri mários do trabalho que há de cumprir, o preço que há
de pagar pela coroa que confia ganhar, o estreito caminho pelo que a Natu reza
escapa da Matéria dentro da consciência; são ao mesmo tempo seu resgate e seu
requisito.

Pois fora destas falsas relações e com sua ajuda há de encontrar-se a verdade. Pela
Ignorância temos de cruzar sobre a morte. Assim, também o Veda fala criticamente
de energias que são como mulheres más no impulso, errantes no caminho, danando a
seu Senhor, que com tudo, ainda que falsas e infelizes, constroem ao fim “esta vasta
Verdade”, a Verdade que é a Bem-aventurança. Seria, então, -(não quando ele tenha
alojado o mal em sua Natureza fora dele mesmo por um ato de cirurgia moral, ou
tenha apartado a vida por um retiro detestável, senão quando ele tenha convertido a
Morte em uma vida mais perfeita, tenha elevado as pequenas coisas da limitação
humana para dentro das grandes coisas da imensidade divina, tenha transformado o
sofrimento em beatitude, convertido o mal em sua própria bondade, traduzido o erro
e a falsidade em sua verdade secreta)-, que o sacrifício será cumprido, a viagem feita
e o Céu e a Terra igualadas dêem-se a mano na alegria do Supremo.

Mas estes contrários como podem passar um ao outro? Mediante que alquimia este
pomo da mortalidade é convertido nesse ouro do Ser divino? É que são contrários em
sua essência? É que não são manifestações de uma só Realidade, idêntica em
substância? Então certamente uma transmutação divina chega a ser concebível.

Temos visto que o Não-Ser mais além bem pode ser uma exis tência inconcebível e
talvez uma inefável Bem-aventurança. Ao menos o Nirvana do Budismo que
formulou um mais luminoso esfor ço do homem por alcançar e descansar nesta
suprema Não-Existên cia, se representa na psicologia dos liberados todavia sobre a
terra como uma impronunciável paz e alegria; seu efeito prático é a extin ção de todo
sofrimento através da desaparição de toda idéia ou sensação egoístas e o mais
próximo que podemos acercar-nos a uma concep ção positiva disso, existe uma
inespressável Beatitude (se pode aplicar-se nome ou denominação alguma a uma paz
tão vazia de conteúdo) na que, inclusive a noção de auto-existência, parece ser
deglutida e desaparecer. Trata-se de um Satchitananda ao que já não nos atrevemos a
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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

aplicar sequer os termos supremos de Sat, de Chit nem de Ananda. Pois todos os
termos são anulados e toda experiência cognitiva é superada.

Por outra parte, temos nos aventurado sugerir que, dado que tudo é uma só
Realidade, esta negação inferior também, esta outra con tradição ou não-existência
de Satchitananda não é outra coisa que Satchitananda mesmo. É capaz de ser
concebido pelo intelecto, percebido na visão, inclusive recebido através das sensações
tão verazmente como o que precisamente parece negar, e assim ocorreria sempre a
nossa experiência consciente se as coisas não fossem falsificadas por algum grande
erro fundamental, alguma possessiva e compulsiva Igno rância, Maya ou Avidya.
Neste sentido haveria que buscar uma solução, talvez não uma satisfatória solução
metafísica para a mente lógica, —pois estamos no campo do incognoscível, do
inefável, e esforçando nossa vista mais além—, senão uma suficiente base de
experiência para a prática da vida divina.

Para fazer isto devemos animar-nos a ir debaixo das claras superfícies das coisas nas
que a mente ama habitar, tentar o vasto o obscuro, penetrar as insondáveis
profundidades da consciência e identificar-nos com estados de ser que não são os
próprios. A lin guagem humana é uma pobre ajuda nessa busca, mas ao menos
podemos encontrar nele alguns símbolos e figuras, retornar com algumas sugestões
apenas expressáveis que ajudarão a iluminar a alma e projetar sobre a mente algum
reflexo do inefável desígnio.

[1] [1] I, 6.

[2] [2] “Médium”, pode traduzir-se por “meio”, mas o autor utiliza “means” para
referir-se a algo que é utilizado como meio para outra coisa. E “middle” para algo
que está em meio.

--------------------------------------------------------------------O---------------------------------------------------------------Capitulo VII

O EGO E AS DUALIDADES

A alma, assentada na mesmo árvore da Natureza, está absorta e


desenganada porque não é o Senhor, mas quando vê e está em união
com esse outro eu e grandiosidade suas que é o Senhor, seu pesar
desaparece dela.

Swetaswatara Upanishad[1]

Se tudo é em verdade Satchitananda, (Existência-Consciência-Bem-aventurança ),


a morte, o sofrimento, o mal, a limitação só podem ser as criações, positivas no efeito
prático, negativas em essência, de uma deformante consciência, caída, do total e
unificador conhecimento de si, em um erro de divisão e experiência parcial. Esta é a
queda do homem tipificada na poética parábola do Gênese hebreu. Essa queda é seu
desvio da plena e pura aceitação de Deus e de si mesmo, ou melhor, de Deus em si
mesmo, para uma divisora consciência separativa que traz consigo todo o séquito de
dualidades, vida e morte, bem e mal, alegria e dor, integridade e carência, o fruto de
um ser humano dividido e enganado por sua natureza. Este é o fruto da árvore da
consciência separativa do bem e do mal que comeram Adão e Eva, Purusha e
Prakriti, a alma tentada pela Natureza. A rendição chega mediante a recuperação da
Unidade universal no individual, e do elemento espiritual na consciência humana. Só
então a alma pode permitir-se na Natureza que participe do fruto da árvore da vida,
da árvore do conhecimento e que seja como o Divino e viva para sempre em sua
imortalidade restituída. Pois só então pode cumprir-se a finalidade de seu descenso na
consciência material, quando o conhecimento do bem e mal, alegria e sofrimento,
vida e morte se tenham cumprido através da recuperação, pela alma humana, de um
conhecimento superior que reconcilie e identifique estes opostos no universal e
transforme suas divisões na imagem da Unidade divina.

Para Satchitananda, -que se estende em todas as coisas em sua mais vasta


generalidade e imparcial universalidade-, a morte, o sofrimento e a limitação só
podem ser, como muito, termos inversos, sombrias-formas de seus luminosos opostos.
Tal como sentimos estas coisas, são signos de uma discórdia. Formulam separação
onde deveria haver unidade, incompreensão donde deveria haver compreensão, uma
tentativa de chegar a independentes harmonias onde deveria haver uma auto-

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adaptação do todo orquestal. A totalidade absoluta, -inclusive se só estivesse em um


esquema das vibrações universais, inclusive se só fosse uma totalidade da consciência
física sem possuir tudo o que está em movimento mais além e detrás-, deve ser até
esse ponto uma reversão em prol da harmonia e uma reconciliação de chocantes
opostos. Por outra parte, o Satchitananda transcendente das formas do universo já
não podem aplicar-se justamente os termos duais mesmos, inclusive assim entendidos.
A transcendência transfigura; não reconcilia, senão que melhor transmuta os opostos
em algo que os sobrepassa eliminando suas oposições.

Ao princípio, no entanto, devemos trabalhar para relacionar o indivíduo outra vez


com a harmonia da totalidade. É necessário para nós, -do contrário o problema não
tem solução-, compreender que os termos com que nossa atual consciência interpreta
os valores do universo, -ainda que praticamente justificados aos fins da experência e o
progresso humanos-, não são os únicos termos pelos que é possível interpretá-los e
não podem ser as fórmulas completas, corretas e últimas. Precisamente assim como
pode haver órgãos sensoriais ou formas de capacidade sensorial que vejam o mundo
físico de modo distinto e ainda melhor, pois o fariam mais integralmente, que nossos
órgãos sensoriais e nossas capacidades sensitivas, de igual maneira pode haver outras
perspectivas mentais e supramentais do universo que sobrepassem a nossa. Existem
estados da cons ciência nos que a Morte é só uma mudança em Vida imortal, a dor
um violento refluxo das águas do deleite universal, a limitação um vazio do Infinito
sobre si mesmo, o mal um rodeio do bem entorno de sua própria perfeição; e isto não
só em uma abstrata concepção, senão também na visão real e na expe riência
constante e substancial. Atingir a estes estados da consciência pode ser, para o
indivíduo, um dos mais importantes e indispensáveis passos de seu progresso até a
auto-perfeição.

Certamente, os valores práticos que nos brindam nossos sentidos e nosso dualístico
sentido-mente podem manter-se em seu campo e aceitar-se como modelo da vida-
experiência ordinária até que esteja pronta uma harmonia maior na que possam
ingressar e transfor mar-se sem perder el domínio das realidades que representam.
Aumentar as faculdades-sensórias sem ter em conta o conhecimento que brindariam
os antigos valores sensoriais a sua correta interpretação desde o novo ponto de vista,
poderia conduzir à sérias desordens e incapacidades e não adequar-se à vida prática
nem ao uso ordenado e disciplinado da razão. Igualmente, um alargamento de nossa
consciência mental, fora da experiência das dualidades próprias do ego, dentro de
uma não-regulada unidade com alguma forma de consciência total, poderia
facilmente produzir confusão e incapacidade para a vida ativa da humanidade na
ordem estabelecida das relatividades do mundo. Esta, sem dúvida, é a raiz do
mandato imposto no Gita ao homem que tem o conhecimento, não para perturbar a
vida-base nem o pensamento-base dos ignorantes; pois, impulsionados por seu
exemplo, mas incapazes de compreender o princípio de sua ação, perderiam seu
próprio sistema de valores sem chegar a um fundamento superior.

Tal desordem e incapacidade pode aceitar-se pessoalmente, e assim o fazem muitas


grandes almas, como uma passagem temporal ou como o preço que se há de pagar
para o ingresso em uma existência mais ampla. Mas a correta meta do progresso
humano deve ser sempre uma reinterpretação efetiva e sintética, pela que a lei dessa
mais ampla existência, possa representar-se em uma nova ordem de verdades e em
uma mais justa e pujante obra das faculdades sobre a vida-material do universo.
Para os sentidos o sol marcha em torno à terra; isso foi para eles o centro da
existência e as propostas da vida estão dispostas sobre a base desta concepção
errônea. A verdade é o oposto mesmo dessa concepção, mas seu descobrimento
houvesse sido de escassa utilidade se não existisse uma ciência que converte a nova
concepção no centro de um conhecimento racional e ordenado preferindo seus
corretos valores às percepções dos sentidos. De igual maneira, para a consciência
mental, Deus se espalha em torno ao ego pessoal e todas Suas obras e caminhos são
traídos ante o juízo de nossas egoístas sensações, emoções e concepções, e ali lhes dão
valores e interpretações que, ainda que constituem uma perversão e inversão da
verdade das coisas, com tudo são úteis e praticamente suficientes em um certo
desenvolvimento da vida e progresso humanos. São uma tosca sistematização prática
de nossa experiência das coisas, válida na medida que moramos em uma certa ordem
de idéias e atividades. Mas não representam o último e supremo estado da vida e
conhecimento humanos. "O caminho é a Verdade e não a falsidade.” A verdade não é
que Deus se espalha em torno ao ego como centro da existência e possa ser julgado
pelo ego e seu critério das dualidades, senão que o Divino é em si mesmo o centro e

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que a experiência do indivíduo só encontra sua própria verdade quando esta é


conhecida nos termos do universal e o transcendente. Não obstante, substituir esta
concepção pela egoísta sem uma adequada base de conhecimento pode conduzir à
substitução de novas mas todavia falsas e arbitrárias idéias em lu gar das velhas, e
produzir um violento desconcerto em vez da estabelecida desordem de valores
corretos. Essa desordem marca sobretudo o início de novas filosofias e religiões, e dá
começo a revoluções úteis. Mas a verdadeira meta só se alcança quando podemos
agrupar em torno à correta concepção central um conhecimento racional e efetivo no
que a vida egoísta redescobrirá todos seus valores transformados e corregidos. Então
possuiremos essa nova ordem de verdades que nos possibilitará substituir uma mais
divina vida pela existência que agora levamos e efetivizar um mais divino e pujante
uso de nossas faculdades na vida-material do universo.

Essa vida e poder novos do humano integral, devem necessariamente repousar sobre
uma realização das grandes verdades que traduza dentro de nosso modo de conceber
as coisas a natureza da existência divina. Isto deve suceder através de uma renúncia
do ego a seu falso ponto de permanência e a suas falsas certezas, através de seu
ingresso em uma relação e harmonia corretas com as totalidades das que forma parte
e com as transcendências das que é um descenso, e através de sua perfeita auto-
abertura a uma verdade e a uma lei que excedem suas próprias convenções, uma
verdade que será sua realização e uma lei que será sua liberação. Sua meta deve ser a
abolição daqueles valores que são criações da visão egoísta das coisas; seu cume deve
ser a transcendência da limitação, da ignorância, da morte, do sofrimento e do mal.

A transcendência, a abolição não são possíveis aqui na terra e em nossa vida humana
se os termos dessa vida estão necessariamente ligados a nossa atual valorização
egoísta. Se a vida é em sua natureza, um fenômeno individual e não a representação
de uma existência universal e o hálito de uma poderosa Vida-Espírito; se as
dualidades que são a resposta do indivíduo a seus contatos não são meramente uma
resposta senão a essência e condição de todo o vivente; se a limitação é a inalienável
natureza da substância com a que estão formados nossa mente e corpo; se a
desintegração na morte é a primeira e última condição de toda vida, seu fim e seu
princípio; se o prazer e a dor são a inseparável matéria dual de toda sensação; se a
alegria e o pesar são a luz e sombra necessárias de toda emoção; se a verdade e o erro
são os dois pólos entre os quais todo conhecimiento deve espargir eternamente, então
a transcendência é só acessível mediante o abandono da vida humana em um Nirvana
além de toda existência ou mediante a conquista de outro mundo, um céu constituído
de modo muito diferente ao deste universo material.

Não é muito fácil para a cotidiana mente do homem, sempre apegada a suas
associações passadas e presentes, conceber uma existência todavia humana, mas que
radicalmente tenha modificado aquelas circunstâncias que previamente
considerávamos imóveis. Com respeito a nossa possível evolução superior estamos em
grande medida na posição do Macaco original da teoria darwiniana. Haveria sido
impossível a esse Macaco, -que levava sua arbórea vida instintiva nos bosques pri
mitivos-, conceber que um dia haveria sobre a terra um animal que utilizaria uma
nova faculdade chamada Razão sobre os materiais de sua existência interna e
externa, que dominaria mediante esse poder seus instintos e hábitos, transformaria as
circunstâncias de sua vida física, construiria casas de pedra, manipularia as forças da
Natureza, navegaria os mares, voaria pelos ares, desenvolveria códigos de conduta,
evoluiria métodos conscientes para seu desenvolvimento mental e espiritual. E se essa
concepção houvesse sido possível para a mente simiesca, todavia houvesse-lhe sido
difícil imaginar que por qualquer progresso da Natureza ou prolongado esforço da
Vontade e a tendência, ele mesmo poderia evoluir até esse animal. O homem, devido a
que adquiriu razão e mais ainda porque satisfez seu poder imaginativo e intuitivo, é
capaz de conceber uma existência superior à sua própria e inclusive ver sua elevação
pessoal mais além de seu estado atual dentro dessa existência. Sua idéia do estado
supremo é um absoluto de tudo quanto é positivo, para seus próprios conceitos e
desejável, para sua própria aspiração instintiva, o Conhecimento sem sua negativa
sombra de erro; a Bem-aventurança sem sua negação de experimentar sofrimento; o
Poder sem sua constante negação pela incapacidade; a pureza e a plenitude do ser
sem o sentido oposto do defeito e a limitação. É assim como concebe seus deuses;
assim é como construiu seus céus. Mas não é assim como sua razão concebe uma
terra possível e uma humanidade possível. Seu sonho de Deus e Céu é em realidade
um sonho de sua própria perfeição; mas descobre igual dificuldade em aceitar sua
realização prática aqui em ordem a seu fim último, tal como o Macaco ancestral se

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lhe demandasse que acreditasse em si mesmo como o Homem futuro. Sua imaginação,
suas aspirações religiosas podem sustentar esse fim diante ele; mas quando sua razão
se faz valer, rejeitando a imaginação e a intuição transcendente, qualifica isso como
uma brilhante superstição contraria aos fatos sólidos do universo material. Isso se
converte então unicamente em sua inspirada visão do impossível. Tudo quanto é
possível é um condicionado, limitado e precário conhecimento, felicidade, poder e
bondade.

Ainda no princípio da razão mesma existe a afirmação de uma Transcendência; pois


o total objetivo e essência da razão é a busca do Conhecimento, a busca, vale dizer, da
Verdade mediante a eliminação do erro. Seu critério, seu objetivo, não é o de passar
de um erro maior a um menor, sino que consiste em uma positiva, pré-existente
Verdade à qual, através das dualidades do correto conhecimento e do equivocado
conhecimento, podemos mover-nos progressivamente. Se nossa razão não tem a
mesma certeza instintiva com respeito às outras aspirações da humanidade, é porque
falta-lhe a mesma essencial iluminação inerente a sua própria atividade positiva.
Podemos precisa mente conceber uma realização positiva ou absoluta da felicidade
porque o coração igualmente pertence esse instinto para a felicidade, tem sua própria
forma de certeza, é capaz de fé, e porque nossas mentes podem prever a eliminação
do insatisfeito desejo que é a causa aparente do sofrimento. Mas como con ceberemos
a eliminação da dor desde nossa sensação nervosa ou da morte desde a vida do
corpo? Inclusive a rejeição da dor é um instinto soberano das sensações, a rejeição da
morte é um dominante reclame inerente à essência de nossa vitalidade. Mas estas
coisas apresentam-se diante nossa razão como aspirações instintivas, não como
potencialidades realizáveis.

E a mesma lei há de se manter em tudo. O erro da razão prática é uma excessiva


sujeição ao fato aparente ao que pode sen tir imediatamente como real e uma
insuficiente coragem para desenvolver fatos mais profundos, desde sua
potencialidade até sua lógica conclusão. O que hoje é, constitui a realização de uma
potencialidade anterior; a potencialidade atual é um vislumbre e promessa da
realização futura. E aqui a potencialidade existe; pois o domínio dos fenômenos de
pende de um conhecimento de suas causas e processos e se conhecemos as causas do
error, do pesar, da dor, da morte, podemos esforçar-nos com alguma esperança até
sua eliminação. Pois o conhecimento é poder e domínio.

De fato, perseguimos como ideal, tão longe como podemos, a eliminação de todos
estes fenômenos negativos ou adversos. Buscamos constantemente minimizar a causa
do erro, da dor e do sofrimento. A ciência, a medida que aumenta seu conhecimento,
sonha com regular o nascimiento e com prolongar indefinidamente a vida, ou mais
ainda, com alcançar a inteira conquista da muerte. Mas devido a que visamos só as
causas externas e secundárias, só podemos pensar em suprimi-las até uma distância e
não em eliminar as raízes reais disso contra o que lutamos. E dessa maneira estamos
limitados porque trabalhamos até percepções secun dárias e não até o conhecimento-
raiz, porque conhecemos os processos das coisas mas não sua essência. Assim
chegamos a uma mais poderosa manipu lação das circunstâncias, e não ao controle
essencial. Pois se pudéramos apreender a natureza essencial e a causa essencial do
erro, do sofrimento e da morte, poderíamos esperar chegar a um domínio sobre eles
que não seria relativo senão completo. Poderíamos esperar inclusive, eliminá-los por
completo e justificar o instinto dominante de nossa natureza mediante a conquista
desse bem, bem-aventurança, conhecimento e imortalidade absolutos que nossas
intuições percebem como o último e verdadeiro estado do ser humano.

O antigo Vedanta apresenta-nos essa solução na concepção e experiência do Deus


Brahman como o único fato universal e essencial, e na natureza de Brahman como
Satchitananda.

Nesta visão, a essência de toda vida é o movimento de uma existência universal e


imortal; a essência de toda sensação e emoção é o desfrute de um deleite universal e
auto-existente no ser; a essência de todo pensamento e percepção é a radiação de uma
verdade universal e oni-penetrante; la essência de toda atividade é a progressão de
um bem universal e auto-atuante.

Mas o desfrute e o movimento se corporizam em uma multiplicidade de formas, uma


variação de tendências, um intercâmbio de energias. A multiplicidade permite a
interferência de um fator determinativo e temporariamente deformativo, o ego
individual; e a natureza do ego é uma auto-limitação da consciência me diante uma
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voluntária ignorância do resto de seu desfrute e sua exclusiva absorção em uma só


forma, uma só combinação de tendências, um só campo do movimento de energias. O
ego é o fator que determina as reações do erro, do pesar, da dor, do mal, da morte;
pois dá valor a estes movimentos que, de outro modo, seriam representados em sua
correta relação com uma só Existência, Bem-aventurança, Verdade e Bem. Ao
recuperar a relação correta podemos eliminar as reações Ego-determinadas,
reduzindo-as eventualmente a seus verdadeiros valores; e esta recuperação pode
efetuar-se mediante a correta participação do indivíduo na consciência da totalidade
e na consciência do transcendente que a totalidade representa.

No último Vedanta se deslineou e chegou a fijar-se a idéia de que o ego limitado é,


não só a causa das dualidades, senão a condição essencial para a existência do
universo. Ao desembarazar-nos da ignorância do ego e suas limitações resultantes,
eliminamos certamente as dualidades, mas junto com elas eliminamos nossa
existência no movimento cósmico. Dessa maneira retornaríamos à essencialmente má
e ilusória natureza da existência humana e à incapacidade de todo esforço em posse
da perfeição da vida do mundo. Quanto podemos buscar aqui é um bem relativo
ligado sempre a seu oposto. Mas se nos aderimos à maior e profunda idéia de que o
Ego é só uma representação intermediária de algo além de Si mesmo, escapamos
desta consequência e somos capazes de aplicar o Vedanta à realização da vida e não
só a escapar desta. A causa e condição essenciais da existência universal é o Senhor,
Ishwara ou Purusha, manifestando e habitando formas individuais e universais. O
Ego limitado é só um fenômeno intermediário de consciência necessário para uma
certa linha de desenvolvimento. Seguindo esta linha, o indivíduo pode chegar ao que
está mais além dele mesmo, àquele que ele representa, e pode ainda continuar
representando, não já como um escuro e limitado Ego, senão como um centro do
Divino e da consciência universal abarcando, utilizando e transformando em
harmonia com a Divindade todas as determinações individuais.

Então temos a manifestação do divino Ser Consciente na totalidade da Natureza física


como fundamento da existência humana no universo material. Temos o emergir desse
Ser Consciente em uma involutiva e inevitavelmente evolutiva Vida, Mente e
Supramente como a condição de nossas atividades; pois é esta evolução a que
capacitou ao homem aparecer na Matéria e é esta evolução a que o capacitará
progressivamente para manifestar a Deus no corpo, - a Encarnação Universal -.
Temos em uma formação egoísta o fator intermediário e decisivo que permite ao Uno
emergir como o consciente da Unidade nos Muitos (Múltiplo), fora dessa
indeterminada totalidade geral, obscura e sem forma, que chamamos o
subconsciente, —hrdya samudra, o oceânico coração das coisas do Rig Veda. Temos
as dualidades de vida e morte, alegria e pesar, prazer e dor, verdade e erro, bem e mal
como as primeiras formações da consciência egoísta, o resultado natural e inevitável
de sua tentativa de realizar a unidade em uma construção artificial de si mesma,
excludente da verdade, bem, vida e deleite totais do ser no universo. Temos a
dissolução desta construção egoísta mediante a auto-abertura do indivíduo até o
universo e Deus como meio dessa suprema realização na que a vida egoísta é só um
prelúdio, assim como a vida animal foi só um prelúdio da humana. Temos a
realização do Todo no indivíduo mediante a transformação do ego limitado em um
centro consciente da unidade e liberdade divinas, como o termo ou conquista, ao que
chega a quem o realiza. E temos o fluir da Existência, Verdade, Bem e Deleite
infinitos e absolutos do ser sobre os Muitos, no mundo, como o resultado divino até o
qual se espalham os ciclos de nossa evolução. Esse é o supremo nascimento que a
maternal Natureza guarda em seu seio; daquele, luta por ser liberada.

[1] IV, 7 --------------------------------------------------------------------O---------------------------------------------------------------

Capítulo VIII

OS MÉTODOS DO CONHECIMENTO VEDÂNTICO

Este Eu secreto de todos os seres não é aparente, senão que é visto


por meio da razão suprema, a sutil, por aqueles que têm a visão sutil.

Katha Upanishad[1]

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Mas qual é, então, o trabalho deste Satchitananda no mundo e mediante que processo
das coisas são as relações entre aquele e o ego que o figura, primeiro formadas, e
depois levadas a sua consumação? Pois dessas relações e do processo que sigam
depende a filosofia e prática totais de uma vida divina para o homem.

Chegamos à concepção e ao conhecimento de uma existência divina por superação da


evidência dos sentidos e penetrando além das paredes da mente física. Na medida em
que nos confinamos no sentido-evidência e na consciência física, nada podemos
conceber e nada podemos conhecer salvo o mundo material e seus fenômenos. Mas
certas faculdades em nós capacitam a nossa mentalidade para chegar a concepções
que podemos certamente deduzir, -por racionalização ou por variação imaginativa-,
dos fatos do mundo físico tal como os vemos, mas que não se acham creditadas por
nenhum dado puramente físico nem experiência física alguma. O primeiro destes
instrumentos é a razão pura.

A razão humana tem uma dupla ação, mista ou dependente e pura ou soberana. A
razão aceita uma ação mista quando se limita ao círculo de nossa experiência sensível,
admite sua lei como verdade final e se preocupa somente do estudo do fenômeno, vale
dizer, das aparências das coisas em suas relações, processos e utilidades. Esta ação
racional é incapaz de conhecer o que é, só conhece o que aparenta ser, carece de
medida com a que poder sondar as profundidades do ser, só pode explorar o campo
do acontecer. A razão por outra parte, afirma sua ação pura, quando aceita nossas
experiências sensíveis como ponto de partida mas recusa estar limi tada por elas; olha
detrás das mesmas, julga, trabalha com sua própria lei e luta por alcançar conceitos
gerais e inalteráveis que se aderem, não às aparências das coisas, senão ao que está
detrás de suas aparências. Pode alcançar seu resultado mediante apreciação direta
passando de imediato da aparência ao que está detrás dela e nesse caso, o conceito ao
que se elevou pode parecer resultado da experiência sensória e dependente dela ainda
que em realidade se trate de uma percepção da razão atuando com sua própria lei.
Mas as percepções da razão pura podem também —e esta é sua mais característica
ação— usar a experiência da que partem como mera recusa e deixá-la muito atrás
antes de chegar a seu resultado, tão distante que o resultado pode parecer o contrário
direto do que nossa experiência sensória deseja ditar-nos. Este movimento é legítimo
e indispensável, devido, não só a que nossa experiência normal unicamente cobre uma
pequena parte do fato universal, senão a que também, dentro dos limites de seu
próprio campo, usa instrumentos que são defeituosos e nos dão falsos pesos e
medidas. Nossa experiência normal deve ser superada, mantida a distância, e sua
insistência negada a menos se temos de alcançar mais adequadas concepções da
verdade das coisas. Corrigir os erros do Sentido-mente mediante o uso da razão é um
dos mais valiosos poderes desenvolvidos pelo homem e a causa principal de sua
superioridade entre os seres terrestres.

O completo uso da razão pura nos leva finalmente do conhecimento físico ao


metafísico. Mas os conceitos do conhecimento metafísico não satisfazem em si mesmos
plenamente a demanda de nosso ser integral. Em verdade, são inteiramente
satisfatórios para a razão pura, porque são a substância mesma de nossa existência.
Mas nossa natureza vê as coisas sempre através de dois olhos, pois os vê duplamente,
como idéia e como acontecido, e portanto, todo conceito é incompleto para nós, e para
uma parte de nossa natureza, quase irreal até que sucede uma experiência. Mas as
verdades que estão agora em questão, são de uma ordem não sujeita a nossa
experiência normal. Estão, em sua natureza, "muito além da percepção dos sentidos
mais apreensíveis pela percepção da razão”. Portanto, é necessária alguma outra
faculdade da experiência pela que possa ser conquistada a demanda de nossa
natureza e isto só pode chegar, dado que estamos tratando com o suprafísico,
mediante uma extensão da experiência psicológica.

Em certo sentido, toda nossa experiência é psicológica, dado que inclusive o que
recebemos mediante os sentidos carece de significado e valor para nós até que é
traduzido nos termos do sentido-mente, o Manas da terminologia filosófica hindu.
Manas, dizem nossos filósofos, é o sexto sentido. Mas nós inclusive podemos dizer que
é o único sentido e que os outros, vista, ouvido, tato, olfato, gosto são meramente
especializações do sentido-mente, o qual, ainda que normalmente usa os órgãos-
sensórios como base de sua experiência, ainda os supera e é capaz de uma experiência
direta ajustada a sua própria ação inerente. O sentido-mente, como resultado da
experiência psicológica, - igualmente que as cognições da razão-, é capaz no homem
de uma dupla ação, mista ou dependente e pura ou soberana. Sua ação mista tem

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lugar comumente quando a mente busca chegar a ser consciente do mundo externo,
do objeto; a ação pura, quando busca chegar ao conhecimento de si mesmo, do
sujeito. Na primeira atividade, é dependente dos sentidos, e forma suas percepções de
acordo com suas evidências; na última, atua em si mesma e é consciente das coisas
diretamente por uma sorte de identidade com elas. Dessa maneira somos conscientes
de nossas emoções; somos conscientes da ira, -como agudamente se disse-, porque
chegamos a ser a ira. Assim somos conscientes de nossa própria existência, e aqui, a
natureza da experiência como conhecimento por identidade, se torna aparente. Em
realidade, toda experiência é, em sua natureza secreta, conhecimento por identidade;
mas seu verdadeiro caráter nos é ocultado pois temos nos separado do resto do
mundo por exclusão, por distinção de nós mesmos como sujeito e todo o demais como
objeto, e nos vemos compelidos a desenvolver processos e órgãos pelos que novamente
possamos entrar em comunicação com tudo quanto temos excluído. Temos de
substituir o conhecimento direto através da identidade consciente por um
conhecimento indireto que parece ser causado por contato físico e simpatia mental.
Esta limitação é uma criação fundamental do ego e uma mostra da maneira em que
há procedido em tudo, partindo de uma falsidade original e cobrindo a correta
verdade das coisas com falsidades contingentes que para nós chegam a ser as
verdades práticas da relação com o mundo exterior.

Desta natureza do conhecimento mental e sensório, -tal como atualmente está


organizado em nós-, se segue que não há necessidade inevitável em nossas limitações
existentes. São o resultado de uma evolução na que a mente se acostumou a depender
de cer tos funcionamentos fisiológicos e de suas reações como seus meios normais
para entrar em relação com o universo material. Portanto, ainda que a regra é que
quando buscamos chegar a ser conscientes do mundo externo, temos de obrar assim,
indiretamente através dos órgãos-sensórios, e podemos experimentar só, tanto parte
da verdade acerca das coisas e dos homens como os sentidos nos transmitam, com
tudo esta regra é meramente a regularidade de um hábito dominante. É possível para
a mente, -e seria natural para ela, se pudera ser persuadida a liberar-se de seu
consentimento ao domínio da matéria-, tomar conhecimento direto dos objetos de
sensação sem o auxílio dos órgãos-sensórios. Isto é o que sucede em experimentos
hipnóticos e fenômenos psicológicos afins. Por que nossa consciência em vigília está
determinada e limitada pelo equilíbrio entre a mente e a matéria elaborada pela vida
em sua evolução, este conhecimento direto é comumente impossível em nosso
ordinário estado de vigília e portanto há de causar-se lançando a mente em vigília
dentro de um estado de sono que libere a mente verdadeira ou subliminal. A mente é
então capaz de afirmar seu verdadeiro carácter como o todo-suficiente e único
sentido, e livre para aplicar aos objetos da sensação, sua ação pura e soberana em
lugar da mista e dependente. Não é esta extensão da faculdade realmente impossível,
senão só mais difícil em nosso estado de vigília, —tal e como é sabido por todo aquele
que há sido capaz de ir o bastante longe em certos caminhos de experimentação
psicológica.

A ação soberana do Sentido-mente pode empregar-se para desenvolver outros


sentidos além dos cinco que ordinariamente usamos. Por exemplo, é possível
desenvolver o poder de apreciar com exatidão, sem meios físicos, o peso de um objeto
que suste ntamos em nossas mão. Aqui a sensação de contato e pressão se utiliza
meramente como ponto de partida, assim como os dados do sentido-experiência são
usados pela pura razão, mas não é em realidade o sentido do tato o que dá a medida
do peso à mente; descobre o valor correto através de sua própria percepção
independente e usa o tato só em ordem a entrar em relação com o objeto. E assim
como com a pura razão, e de igual maneira com o sentido-mente, o sentido-
experiência pode usar-se como mero primeiro ponto desde o que se acede a um
conhecimento que nada tem que ver com os órgãos-sensórios e contudo contradiz
suas evidências; tão pouco está a extensão da faculdade limitada só a exterioridades e
superfícies. É possível, uma vez que tenhamos entrado por qualquer dos sentidos em
relação com um objeto externo, aplicar de igual modo o Manas para chegar a ser
consciente dos conteúdos do objeto, por exemplo, receber ou perceber os pensamentos
ou sentimentos de outros sem ajuda de suas manifestações orais, gestos, ações ou
expressões faciais, e inclusive em contradição com estes dados sempre parciais e
contudo enganosos. Finalmente, mediante a utilização dos sentidos interiores, —vale
dizer, dos sentido-poderes, em si mesmos, em sua atividade puramente mental ou sutil
como diferenciada da física que é só uma eleição, aos fins da vida externa, de sua ação
total e geral—, podemos ser capazes de tomar conhecimento de sentido-experiências,
de aparências e imagens de coisas distintas das que pertencem à organização de nosso

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entorno material. Todas estas extensões da faculdade, -ainda que recebidas com
vacilação e incredulidade pela mente física, porque são anormais para o esquema
habitual de nossa vida e experiência ordinárias, difíceis de colocar em ação, ainda
mais difíceis de sistematizar, assim como de ser capaz de fazer delas um conjunto
ordenado e útil de instrumentos-, devem contudo admitir-se dado que são o invariável
resultado de qualquer intento de ampliar o campo de nossa consciência
superficialmente ativa, seja já mediante algum tipo de não-ensinado esforço e casual
efeito desordenado ou seja mediante uma prática científica e bem regulada.

Nenhuma, dessas extensões, no entanto, conduz ao objetivo que temos em mente, a


experiência psicológica dessas verdades que estão “além da percepção pelo sentido
mas apreensíveis me diante às percepções da razão”, buddhigrá-hyam atíndriyam[2].
Elas nos dão só um mais vasto campo de fenômenos, e meios mais efetivos para a
observação dos fenômenos. A verdade das coisas sempre escapa além do sensório. No
entanto existe uma saudável regra inerente à constituição mesma da existência
universal no sentido de que donde existam verdades acessíveis me diante a razão,
deve existir, em algum lugar do organismo possuidor dessa razão, um meio de
alcançá-las ou de verificá-las mediante a experiência. O único meio que temos
deixado em nossa men talidade é uma extensão dessa forma de conhecimento por
identidade que nos dá o conhecimiento de nossa própria existência. Em realidade, o
conhecimento do conteúdo de nosso eu está baseado sobre um auto-conhecimento
mais ou menos consciente, mais ou menos presente em nossa concepção. Ou para
colocar isto dentro de uma fórmula mais genérica, o conhecimento do conteúdo está
contido no conhecimento do continente. Se então podemos estender nossa faculdade
do auto-conhecimento mental ao conheci mento do Ser-em-si que está além e fora de
nós, o Atmam ou Brahman dos Upanishads, podemos chegar a ser possuidores, na
experiência, das verdades que formam o conteúdo do Atman ou Brahman no
universo. É sobre esta possibilidade que baseou-se o Vedanta hindu. Buscou, através
do conhecimento do Ser-em-sí, o conhecimento do universo.

Mas sempre a experiência mental e os conceitos da razão foi sustentado por esta, para
ser, inclusive no mais alto, um reflexo das identificações mentais e não a suprema
identidade auto-exis tente. Temos de ir mais além da mente e a razão. A razão ativa
de nossa consciência em vigília é só uma mediadora entre o Todo subconsciente do
que provimos em nossa evolução ascendente e o Todo supraconsciente até o que
estamos impulsionados por essa evolução. O subconsciente e o supraconsciente são
dois diferentes formulações do mesmo Todo. A palavra mestra do subconsciente é
Vida, a palavra mestra do supraconsciente é Luz. O subconsciente, o conhecimento
ou consciência está envolvido na ação, pois a ação é a essência da Vida. No
supraconsciente a ação reingressa na Luz e envolvido no conhecimento pois este está
contido em uma consciência suprema. O conhecimento intuitivo é aquele que é
comum a ambos, e a base do conhecimento intuitivo é a identidade consciente ou
efetiva entre aquilo que conhece e aquilo que é conhecido; é aquele estado da auto-
existência comum no que conhecedor e conhecido são um através do conhecimento.
Mas no subconsciente a intuição se manifesta na ação, na efetividade, e o
conhecimento ou identidade consciente está inteiramente ou mais ou menos oculto na
ação. No supraconsciente, pelo contrário, -sendo a Luz a lei e o princípio-, a intuição
se manifesta em sua verdadeira natureza como conhecimento emergindo da
identidade consciente, e a efetividade da ação é, melhor dizendo, o acompanhamento
ou necessária consequência e já não uma máscara como o fato primário. Entre estes
dois estados a razão e a mente atuam como intermediárias que capacitam o ser para
liberar o conhecimento fora de seu aprisionamento dentro do ato e prepará-lo para
reassumir sua essencial primazia. Quando o auto-conhecimento da mente se aplica,
tanto ao continente como ao contido, ao próprio-eu e ao outro-eu, exalta-se na
luminosa identidade auto-manifesta, a razão também se converte na forma do
intuitivo[3] conhecimento auto-luminoso. Este é o supremo estado possível de nosso
conhecimento quando a mente se realiza no supramental.

Tal é o esquema do conhecimento humano sobre o qual as conclusões do Vedanta


mais antigo foram construídas. Desenvolver os resultados a que chegaram sobre esta
base os sábios antigos não é meu objetivo, mas é necessário passar brevemente em
revisão por algumas de suas conclusões principais, tão longe como elas afetem ao
problema da Vida divina com o que só nós, estamos no presente concentrados. Pois é
naquelas idéias que encontraremos a melhor base prévia disso que buscamos agora
reconstruir e ainda que, como passa com todo conhecimento, a velha expressão seja
substituída até certo ponto pela nova expressão para satisfazer a uma mentalidade

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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

posterior e a velha luz tenha que emergir na nova luz como a aurora sucede à aurora,
ainda é com o velho tesouro como nosso capital inicial ou contanto do mesmo como
podemos recuperar, que mais vantajosamente continuaremos acumulando os
benefícios maiores em nosso novo comércio com o sempre-imutável e sempre-mutável
Infinito.

Sat Brahman, Existência pura, indefinível, infinita, absoluta, é o último conceito ao


que eleva-se a análise Vedântica em seu critério do universo, a fundamental
Realidade que a experiência Vedântica descobre detrás de todo o movimento e
formação que constituem a realidade aparente. É óbvio que quando propomos esta
concepção, vamos por inteiro além do que nossa consciência ordinária, nossa
experiência normal contêm ou representa. Os sentidos e o sentido-mente nada sabem
acerca de alguma existência pura ou absoluta. Tudo o que nos refere dela nosso
sentido-experiência é forma e movimento. As formas existem, mas com uma
existência que não é pura, senão sempre mista, combinada, agregada, relativa.
Quando nos internamos em nós mesmos, podemos desfazer-nos da forma precisa mas
não do movimento, da mudança. A idéia da Matéria no Espaço, a idéia da mudança
no Tempo parecem ser a condição da existência. Certamente podemos dizer, se nos
agrada, que isto é existência e que a idéia de existência em si mesma corresponde a
uma realidade não descobrível. Ao mais, no fenômeno do auto-conhecimento ou
detrás dele, às vezes captamos um vislumbre de algo imóvel e imutável, algo que
percebemos vagamente ou imaginamos que somos, além de toda vida e morte, além
de toda mudança, formação e ação. Aqui está a única porta em nós que às vezes se
abre o esplendor de uma verdade além e, antes que se feche outra vez, deixa que um
raio nos toque, uma luminosa intimação que, se temos força e firmeza, podemos
manter em nossa fé e convertê-la em um ponto de partida para outro despertar da
consciência, diferente do sentido-mente, para o despertar da Intuição.

Pois se examinamos com cuidado, descobriremos que a Intuição é nossa primeira


mestra. A Intuição sempre está velada detrás de nossas operações mentais. A Intuição
traz ao homem aquelas brilhantes mensagens do Desconhecido que são o princípio de
seu conhecimento superior. A razão só ingressa depois para ver que proveito pode
sacar da brilhante colheita. A Intuição nos dá a idéia de algo detrás e mais além de
tudo o que conhecemos e que parece ser o que o homem sempre persegue em
contradição com sua razão inferior e toda sua experiência normal, e o impulsiona a
formular essa percepção sem forma nas mais positivas idéias das eras, Imortalidade,
Céu e o resto de idéias pelas que trabalhamos para expressá-las na mente. Pois a
Intuição é tão forte como a Natureza mesma, de cuja alma surgiu, e não se preocupa
pelas contradições da razão ou as negações da experiência. Sabe que é porque é,
porque ela mesma é disso e há vindo disso, e não o submeterá ao juízo do que
meramente chega a acontecer e parecer (o meramente transitório e aparente). O que
a Intuição nos diz não é tanto Existência senão o Existente, pois opera desde esse
único ponto de luz em nós que lhe dá sua vantagem, que às vezes abriu a porta de
nosso próprio auto-conhecimento. O antigo Veda captou esta mensagem da Intuição e
o formulou nas três grandes declarações dos Upanishads: “Eu sou Ele”, “Tu és Isso,
¡oh Swetaketu”, “Tudo isto é o Brahman; este Ser é o Brahman”.

Pois a Intuição, pela natureza mesma de sua ação no homem, trabalhando como o faz
desde detrás do véu, ativa principalmente em suas partes menos iluminadas, menos
articuladas, e servida diante do véu, na exígua luz que é nossa consciência em vigília,
só por instrumentos que são incapazes de assimilar plenamente suas mensagens, é
incapaz de brindar-nos a verdade naquela forma ordenada e articulada que nos sa
natureza exige. Antes que possa efetuar algum tipo de integração do conhecimento
direto em nós, teria que organizar-se em nosso ser superficial e tomar possessão ali da
parte diretiva. Mas em nosso ser superficial não está a Intuição, está a Razão, a qual
está organizada e nos ajuda a ordenar nossas percepções, pensamentos e ações.
Portanto a idade do conhecimento intuitivo representado pelo mais jovem
pensamento Vedântico dos Upanishads, teve de ceder seu lugar à idade do
conhecimento racional; a Escritura inspirada cedeu lugar à filosofia metafísica, tal
como depois a filosofia metafísica cedeu seu lugar à Ciência experimental. O
pensamento intuitivo, que é um mensageiro do supraconsciente e pelo tanto nossa
suprema faculdade, foi suplantado pela pura razão que é uma forma de suplente e
pertence às alturas médias de nosso ser; a pura razão, por sua vez, foi suplantada,
durante um tempo, pela ação mista da razão que vive em nossas dobras e suaves
elevações e não pode em sua visão exceder o horizonte da experiência que a mente
física e os sentidos, -ou aqueles auxílios que possamos inventar para eles-, possam

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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

aportar-nos. E este processo que parece ser um descenso, é em realidade um círculo


de progresso. Pois em cada caso a faculdade inferior é compelida a absorver tanto
como possa assimilar do que a superior já havia dado, e tentar reestabelecê-lo
mediante seus próprios métodos. Mediante dito intento alarga-se em sua perspectiva
e eventualmente chega a uma mais flexível e ampla auto-acomodação às faculdades
superiores. Sem esta sucessão e intento de assimilação separada, nos veríamos
obrigados a permanecer sob o domínio exclusivo de uma parte de nossa natureza,
enquanto o resto ficaria deprimido ou indevidamente submetido, ou separado em seu
campo e, portanto, pobre enquanto a seu desenvolvimento. Com esta sucessão e
separada tentativa o equilíbrio é ajustado; uma mais completa harmonia de nossas
partes de conhecimento se prepara.

Vemos esta sucessão nos Upanishads e nas filosofias hindustânicas subsequentes. Os


sábios do Veda e do Vedanta confiaram por inteiro na intuição e na experiência
espiritual. É por erro que às vezes os eruditos falam de grandes debates ou discussões
no Upanishad. Donde exista a aparência de uma controvérsia, não é por discussão,
por dialética nem pelo uso do raciocínio lógico do que procede, senão por comparação
de intuições e experiências nas que a menos luminosa cede seu lugar à mais luminosa,
a mais estreita, mais defeituosa ou menos essencial à mais compreensiva, mais
perfeita, mais essencial. A pergunta formulada por um sábio a outro é: "Que sabes
tu?" não: "Que pensas tu?" nem "A que conclusão chegou teu raciocínio?". Em
nenhum lugar dos Upanishads descobrimos coluna alguma de raciocínio lógico
chamado em apoio das verdades do Vedanta. A intuição, parece haver sustentado os
sábios, só deve ser corrigida por uma mais perfeita intuição; o raciocínio lógico não
pode ser seu juiz.

E contudo, a razão humana exige seu próprio método de satisfação. Portanto, quando
começou a idade da especulação racionalista, os filósofos da Índia, respeitosos da
herança do passado, adotaram uma dupla atitude até a Verdade que buscavam.
Reconheceram no Sruti, os primevos resultados da Intuição, ou como preferiram
chamá-lo, da inspirada Revelação, uma autoridade superior à Razão. Mas ao mesmo
tempo partiram desde a Razão e comprovaram os resultados que esta lhes deu,
sustentando como válidas só aquelas conclusões que eram apoiadas pela suprema
autoridade. Desse modo evitaram, até certo ponto, o acossador pecado da metafísica,
a tendência a batalhar entre nuvens devido a que se trata com palavras como se
fossem fatos imperativos em lugar de símbolos que sempre serão cuidadosamente
examinados e devolvidos constantemente ao sentido do que representam. Suas
especulações tenderam ao princípio a acercar ao centro à mais elevada e profunda
experiência, e procederam com o consentimento unido das duas grandes autoridades,
Razão e Intuição. Não obstante, a tendência natural da Razão de fazer valer sua
própria supremacia triunfou, em efeito, sobre a teoria de sua subordinação. Daí o
surgimento de conflitantes escolas, cada qual fundada na teoria do Veda, utilizando
seus textos como arma contra as demais. Pois o supremo Conhecimento intuitivo vê
as coisas em sua totalidade, em sua grandeza e detalhes só lados da totalidade
indivisível; sua tendência se orienta até a imediata síntese e a unidade do
conhecimento. A Razão, pelo contrário, procede mediante análise e divisão, e
acumula seus feitos para formar um todo; mas nesse conteúdo assim formado existem
opostos, anomalias, lógicas incompatíveis, e a tendência natural da Razão consiste em
afirmar alguns e negar outros que estejam em conflito com suas escolhidas conclusões
de modo que possa formar um sistema impecavelmente lógico. A unidade do primeiro
conhecimento intuitivo se quebrou dessa maneira e o engenho dos lógicos sempre foi
capaz de descobrir artifícios, métodos de interpretação, modelos de valor variável,
pelos que os textos inconvenientes da Escritura puderam ser anulados na prática,
adquirindo uma inteira liberdade para sua especulação metafísica.

Não obstante, as principais concepções do mais remanescente Vedanta


permaneceram em parte nos diversos sistemas filosóficos e, de tanto em tanto,
fizeram-se esforços por recombiná-las dentro de alguma imagem da antiga
universalidade e unidade do pensamento intuitivo. E detrás do pensamento de tudo,
diversamente apresentado, sobreviveu como a concepção fundamental, Purusha,
Atman o Sat Brahman, o puro Existente dos Upanishads, muitas vezes racionalizado
dentro de uma idéia ou estado psicológico, mas todavía por tando algo de seu antigo
carregamento de inexpressável realidade. Qual seja a relação do movimento do devir
-que é o que chamamos o mundo-, com esta Unidade absoluta, e como o ego – seja já
causa ou consequência do movimento-, pode retornar a esse verdadeiro Ser-em-si,

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Divinidade ou Realidade declarada pelo Vedanta, estas foram as questões


especulativas e práticas que sempre ocuparam o pensamento da Índia.

[1] III; 12.

[2] Gita, VI, 21.

[3] Uso a palavra "intuitivo" na falta de uma melhor. Em verdade, é um substituto


inadequado para o que se expressa. O mesmo há de dizir-se da palavra “consciência”
e muitas outras que, por nossa pobreza verbal, nos vemos obrigados a estender
ilegitimamente em seu significado. A palavra inglesa é “intuitional”. (Não se pode
usar “intuicional”).
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Capítulo IX

O PURO EXISTENTE

Um indivisível que é existência pura.

Chhandogya Upanishad[1]

Quando retiramos nosso olhar fixo de suas preocupações egoístas com limitados e
breves interesses, e contemplamos o mundo com desapaixonados e curiosos olhos que
só buscam a Verdade, nosso primeiro resultado é a percepção de uma ilimitada
energia de existência infinita, de infinito movimento[2] , de infinita atividade
difundindo-se no Espaço sem limites, no Tempo eterno; uma existência que supera
infinitamente nosso ego ou qualquer ego de qualquer colectividade de egos, em cujo
equilíbrio os grandiosos produtos de eones não são senão o pó de um momento e em
cuja incalculável soma as inumeráveis miríades só contam como um insignificante
enxame. Instintivamente atuamos, sentimos e tecemos nossos pensamentos vitais
como se este estupendo movimento do mundo trabalhasse à nossa volta, como se
fossemos o centro, e para nosso beneficio, para nossa ajuda ou para nosso dano, ou
como se a justificação de nossos laços egoístas, emoções, idéias, modelos, foram seu
próprio negócio quando em realidade, são nossa própria preocupação principal.
Quando começamos a ver, percebemos que existe para si mesma, não para nós, que
tem seus próprios objetivos gigantescos, sua própria idéia complexa e ilimitada, seu
próprio vasto desejo ou deleite, que busca realizar, suas próprias normas imensas e
formi­dáveis, e olha nossa insignificância com uma sorte de indulgente e irônico
sorriso. Com tudo não passemos ao outro extremo e formemos uma idéia demasiado
positiva de nossa insignificância. Isso também seria um ato de ignorância e fechar
nossos olhos aos grandes feitos do universo.

Pois este ilimitado Movimento não nos considera sem importância para ele. A Ciência
nos revela quão minucioso é o cuidado, quão sagaz é o mecanismo, quão intensa é a
absorção com que se entrega tanto à mais ínfima de suas obras como à máxima. Esta
poderosa energia é uma mãe igual e imparcial, saman Brahma, no grande termo do
Gita, e sua intensidade e força de movimento é a mesma na formação e elevação de
um sistema de sóis que na organização da vida de um formigueiro. É a ilusão do
tamanho, da quantidade, a que induz-nos a considerar a um como grande, ao outro
como pequeno. Se pelo contrário tomamos em consideração não a massa da
quantidade senão a força da qualidade, diremos que a formiga é maior que o sistema
solar que habita e que o homem é maior que toda a Natureza inanimada reunida.
Mas isto outra vez é a ilusão da qualidade. Quando olhamos detrás e examinamos só
a intensidade do movimento, do qual a qualidade e a quantidade são aspectos,
compreendemos que este Brahman mora igualmente em todas as existências.
Igualmente participando de tudo em seu ser, e nos sentimos tentados a dizer, por igual
distribuído a todos em sua energia. Mas isto também é uma ilusão de quantidade. O
Brahman mora em todos, indivisível, mas como se estivesse dividido e distribuído. Se
olhamos outra vez com uma observadora percepção não dominada por conceitos
intelectuais, senão informada pela intuição e que culmine no conhecimento por
identidade, veremos que nossa consciência mental é diferente da consciência desta
Energia infinita, a qual é indivisível e dá, não uma parte igual de si mesma, senão seu
ser íntegro em um só e mesmo tempo ao sistema solar e ao formigueiro. Para o
Brahman não há todo e partes, senão que cada coisa é tudo em si e se beneficia pelo
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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

todo do Brahman. A qualidade e a quantidade diferem, o ser é igual. A forma,


maneira e resultado da força da ação variam infinitamente, mas a energia eterna,
primária e infinita, é a mesma em tudo. A potência da fortaleza que faz o homem
forte não é nem um piscar maior que a potência da debilidade que faz o débil. A
energia gasta é tão grande na repressão como na expressão, na negação como na
afirmação, no silêncio como no som.

Portanto, o primeiro cálculo que temos de agregar é esse, entre este Movimento
infinito, esta energia da existência que é o mundo e nós mesmos. Atualmente levamos
uma conta falsa. Somos infinitamente importantes para o Todo, mas para nós o Todo
é insignificante; só nós somos importantes para nós mesmos. Este é o signo da
ignorância original que é a raiz do ego, que só pode pensar em si mesmo como centro,
como se ele fosse o Todo, e do que não é ele mesmo só aceita aquilo que mentalmente
está disposto a admitir, aquilo ao que se vê forçado a reconhecer pelas mudanças
extremas do entorno. Inclusive quando começa a filosofar, não afirma que o mundo
só existe em e por sua consciência? Seu próprio estado de consciência ou seus modelos
mentais são para ele a prova da realidade; tudo o que esteja fora de sua órbita ou
ponto de vista se torna falso ou inexistente. Esta auto-suficiência mental do homem
cria um sistema de falso cômputo que nos impede extrair o valor correto e pleno da
vida. Existe um sentido no que estas pretensões da mente e o ego humanos repousam
sobre uma verdade mas esta verdade só emerge quando a mente aprendeu sua
ignorância e o ego se submeteu ao Todo e perdido nele sua separada auto-afirmação.
Reconhecer que nós, -ou melhor, os resultados e aparências que chamamos nós
mesmos-, somos só um movimento parcial deste Movimento infinito e que é esse
infinito o que temos de conhecer, ser conscientemente e realizar fielmente, é o começo
da vida verdadeira. Reconhecer que em nossos verdadeiros seres somos um com o
movimento total e não menores nem subordinados é o outro lado da conta, e sua
expressão na maneira de nosso ser, pensamento, emoção e ação é necessária para a
culminação de um verdadeiro ou divino viver.

Para retirar da conta temos de conhecer o que é este Todo, esta energia infinita e
onipotente. E aqui chegamos a uma nova complicação. Pois nos afirma-o a pura
razão e parece também que o Vedanta, que, assim como somos subordinados e um
aspecto deste Movimento, de igual maneira o movimento é subordinado e um aspecto
de algo distinto a si mesmo, de uma grande atemporalidade, de Estabilidade
inespacial, sthanu, que é imutável, inestinguível e inesgotável, que não atua ainda que
contenha toda esta ação, não energia, senão pura existência. Aqueles que só vêem este
mundo-energia podem certamente declarar que tal coisa não existe; nossa idéia de
uma eterna estabilidade, uma pura existência imutável é uma ficcão de nossas
concepções intelectuales que partem desde uma falsa idéia do estável, pois não há que
seja estável; tudo é movimento e nossa concepção do estável é só um artifício de nossa
consciência mental pela que asseguremos um ponto de apoio para tratar
praticamente com o movimento. É fácil demonstrar que isto é certo no movimento
mesmo. Nada há ali que seja estável. Tudo o que parece ser estacionário é só um bloco
de movimento, uma formulação de energia que trabalha, afetando de tal modo nossa
consciência que parece estar quieta, do mesmo modo como o planeta parece-nos estar
quieto; algo assim como um trem no qual viajamos que parece estar parado em meio
de uma paisagem fugaz. Mas é igualmente verdade que subjacente a este movimento,
sustentando-o, não há nada que seja imóvel e imutável? É verdade que a existência só
consiste na ação da energia? Ou melhor, que a energia é um resultado da Existência?

Vemos ao mesmo tempo que se essa Existência é como a Energia, deve ser infinita.
Nem a razão, nem a experiência, nem a intuição, nem a imaginação, nos atestam a
possibilidade de um termo final. Todo fim e princípio pressupõe algo além do fim ou
do princípio. Um fim absoluto, um princípio absoluto, é não só uma contradição de
termos, senão uma contradição da essência das coisas, uma violência, uma ficção. O
infinito se impõe sobre as aparências do finito por sua inestinguível auto-existência.

Mas isto é infinito com respeito a Tempo e Espaço, uma duração eterna, uma
extensão interminável. A Razão pura vai mais além e, olhando o Tempo e o Espaço
sob sua incólume e austera Luz própria, assinala que estas duas são categorias de
nossa consciência, condições sob as quais organizamos nossa percepção do fenômeno.
Quando olhamos a existência em si mesma, o Tempo e o Espaço desaparecem. Se
existe alguma extensão, não é espacial senão psicológica; e então é fácil ver que esta
extensão e esta duração só são símbolos que representam à mente algo não traduzível
em termos intelectuais, uma eternidade que parece-nos o mesmo sempre-novo

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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

momento todo-reunidor, um infinito que parece-nos o todo-penetrante ponto todo-


reunidor sem magnitude. E este conflito de termos tão violento, ainda que
minuciosamente expressivo de algo que percebemos, demonstra que a mente e a
linguagem transpassaram além, seus naturais limites e lutam por expressar uma
Realidade na que suas próprias convenções e necessárias oposições desaparecem em
uma identidade inefável.

Mas esta é uma observação certa? Não pode ser que o Tempo e o Espaço desse modo
desapareçam meramente porque a existência que estamos contemplando é uma ficção
do intelecto, um fantástico Nihil criado pela linguagem, que nós trabalhamos por
erigir em realidade conceitual? Contemplamos outra vez essa Existência-em-si-
mesma e dizemos: Não. Há algo detrás do fenômeno não só infinito senão indefinível.
Podemos dizer que no Absoluto não há nenhum fenômeno, nenhum da totalidade dos
fenômenos. Inclusive se reduzimos todos os fenômenos a um só fenômeno
fundamental, universal e irreduzível do movimento ou da energia, obtemos
unicamente um fenômeno indefinível, não o Absoluto. A concepção mesma de
movimento leva consigo a potencialidade de repouso e se dilata como atividade de
alguma existência; a idéia mesma da energia em ação leva consigo a idéia da energia
abastecendo-se da ação; e uma absoluta energia que não está em ação é existência
simples e puramente Absoluta. Temos só estas duas alternativas: uma pura existência
indefinível ou uma indefinível energia em ação e, se só a última é verdade, sem
nenhuma causa ou base estável, então a energia é um resultado e um fenômeno
gerados pela ação, o movimento que só é. Então não temos Existência, ou temos o
Nihil dos budistas com a existência como só um atributo de um fenômeno eterno, da
Ação, do Karma, do Movimento. Isto, -(afirma a pura razão: deixa insatisfeitas
minhas percepções, contradiz minha visão fundamental, e portanto não pode ser).
Pois nos leva a um último escalão pondo um abrupto final de uma ascensão que deixa
toda a escada sem apoio, suspendida no Vazio.

Se esta Existência indefinível, infinita, atemporal, inespacial É, necessariamente um


absoluto puro. Não pode ser resumida em nenhuma quantidade nem quantidades,
não pode estar composta de nenhuma qualidade ou combinação de qualidades. Não é
um agregado de formas nem um substratum formal de formas. Se todas as formas,
quantidades, qualidades fossem desaparecer, Esta permaneceria. A Existência sem
quantidade, sem qualidade, sem forma é não só concebível, senão também a única
coisa que podemos conceber detrás destes fenômenos. Necessariamente, quando
dizemos que É sem elas, significamos que as excede, que É algo no que passam de
uma maneira que é como se cessasse de ser o que chamamos forma, qualidade,
quantidade, e a partir da Qual, elas emergem como forma, qualidade, quantidade no
movimento. Elas não terminam dentro de uma forma, uma quantidade, uma
qualidade que seria a base de tudo mais, —pois não há tal coisa—, senão dentro de
algo que não pode definir-se com nenhum destes termos. Desse modo todas as coisas
que observamos, são condições e aparências do movimento, e ocorrem dentro Disso,
desde o que chegaram e ali, Nisso, seguem existindo, chegando a ser “algo” que já não
poderia descrever-se com os termos que são apropriados para elas no movimento.
Portanto, dizemos que a pura existência é um Absoluto e em si mesmo incognocível
por parte de nosso pensamento ainda que possamos regressar ao mesmo em uma
suprema identidade que transcenda os termos do conhecimento. O movimento, a
manifestação, pelo contrário, é o campo do relativo e ainda mediante a definição
mesma do relativo todas as coisas no movimento contêm o Absoluto, são contidas no
Absoluto e são o Absoluto. A relação dos fenômenos da Natureza com o éter
fundamental -que está contido neles, os constitui, os contêm e, contudo, é tão
diferente deles que, entrando nele, eles cessam de ser o que agora são-, é a ilustração
dada pelo Vedanta como o que mais aproximadamente representa esta identidade na
diferença entre o Absoluto e o relativo.

Necessariamente, quando falamos de coisas que passam dentro do que provieram,


estamos usando a linguagem de nossa consciência temporal e devemos precaver-nos
contra suas ilusões. O emergir do movimento desde o Imutável é um fenômeno eterno
e só se deve a que não podemos concebê-lo nesse sem-início, sem-fim, sempre-novo
momento que é a eternidade do Sem-Tempo, que nossas noções e percepções são
obrigadas a situá-lo em uma eternidade temporal, de duração sucessiva, à que se
fixam as idéias de um sempre recorrente princípio, meio e fim.

Mas tudo isto, pode dizer-se, é só válido na medida que aceitemos os conceitos da
razão pura e permaneçamos sujeitos a ela. Mas os conceitos da razão não têm força

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13/01/2022 18:26 - A VIDA DIVINA (SRI AUROBINDO) -- Capítulo I a X

obrigatória. Devemos julgar a existência não pelo que mentalmente concebemos,


senão pelo que vemos que existe. E a forma mais pura e livre de intuição da existência
tal como é, não nos mostra nada, salvo movimento. Duas coisas somente existem:
movimento no Espaço, movimento no Tempo; o primeiro objetivo, o último subjetivo.
A extensão é real; a duração é real; Espaço e Tempo são reais. Ainda que possamos
olhar detrás da extensão no Espaço, -(e percebê-lo como um fenômeno psicológico,
como uma tentativa da mente para tornar manipulável a existência, distribuindo o
indivisível todo em um Espaço conceitual)-, ainda não podemos ir detrás do
movimento da sucessão e mudança do Tempo. Pois essa é a matéria mesma de nossa
consciência. Nós somos e o mundo é um movimento que continuamente progride e
aumenta pela inclusão de todas as sucessões do passado em um presente que se
representa diante de nós como o princípio de todas as sucessões do futuro, -um
princípio, um presente que sempre nos ilude por que não é, pois pereceu antes de
nascer-. O que é, é a eterna, indivisível sucessão do Tempo, levando em sua corrente
um progressivo movimento da consciência também indivisível[3] . A duração, pois -o
movimento eternamente sucessivo e o câmbio no Tempo-, é o único absoluto. O devir
é o único ser.

Em realidade, esta oposição da introspecção intuitiva real do ser com as ficções


conceituais da pura Razão é uma falácia. Se em verdade a intuição nesta matéria se
opusesse realmente à inteligência, não poderíamos com confiança sustentar um
raciocínio meramente conceitual contra a fundamental introspecção intuitiva. Mas
esta apelação à experiência intuitiva é incompleta. É só válida na medida em que
prossegue e erra ao deter-se de repente cortando a experiência integral. Na medida
em que a intuição estabelece-se só sobre o que nos acontece, nos vemos como uma
progressão contínua de movimento e câmbio da consciência a eterna sucessão do
Tempo. Somos o rio, a chama da ilustração budista. Mas existe uma experiência
suprema e uma intuição suprema pela que olhamos por detrás de nosso eu superficial
e descobrimos que este devir, mutação, sucessão, são só um modo de nosso ser e que
em nós existe aquilo que não está de nenhum modo envolvido no devir. Não só
podemos ter a intuição disto que é estável e eterno em nós; não só podemos
vislumbrá-lo na experiência detrás do véu dos continuamente fugazes
acontecimentos, senão que também podemos voltar a Isso e voltar Nisso inteiramente
efetuando desse modo um câmbio íntegro em nossa vida externa, e em nossa atitude, e
em nossa ação sobre o movimento do mundo. E esta estabilidade, na que podemos
viver dessa maneira, é precisamente a que já nos deu a Razão pura, ainda que pode
chegar-se a ela sem raciocinar para nada, sem saber previamente que é, -é pura
existência, eterna, infinita, indefinível, não afetada pela sucessão do Tempo, não
envolta na extensão do Espaço, mais além da forma, da quantidade, da qualidade-,
Ser-em-si único e absoluto.

Então o puro existente é um fato e não um mero con ceito; é a realidade fundamental.
Mas, apressemo-nos a acrescentar, o movimento, a energia, o devir, são também m
fato, também uma realidade. A intuição suprema e sua correspondente experiência
podem corrigir esta outra realidade, podem ir mais além, podem suspendê-la mas não
aboli-la. Portanto, temos dois fatos fundamentais da existência pura e do mundo-
existência, um fato do Ser, um fato do Devir. É fácil negar um ou outro; reconhecer os
fatos da consciência e averiguar sua relação é a sabedoria verdadeira e proveitosa.

A estabilidade e o movimento, devemos recordá-lo, são nossas representações


psicológicas do Absoluto, tal como são unidade e multiplicidade. O Absoluto está
além da estabilidade e do movimento pois está além da unidade e a multiplicidade.
Mas funda seu eterno equilíbrio no uno e no estável, e gira entorno de si mesmo,
infinitamente, inconcebivelmente, pleno de segurança no móvel e múltiplo. O mundo-
existência é a dança estática de Shiva que multiplica o corpo do Deus
inumeravelmente diante a visão: deixa essa branca existência precisamente onde
estava e como era, sempre é e sempre será; seu único objeto absoluto é a alegria de
bailar.

Mas como não podemos descrever nem pensar no Absoluto em si mesmo, além da
estabilidade e do movimento, além da unidade e da multiplicidade, não é assunto
nosso— devemos aceitar o fato duplo, admitir a ambos, a Shiva e a Kali[4] , e
procurar saber o que é este imedível Movimento no Tempo e o Espaço, com respeito a
essa pura Existência, atemporal e inespacial, única e estável, à que são inaplicáveis a
medida e a ausência-de-medida. Temos visto o que a Razão pura, a intuição e a

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experiência têm que dizer acerca da Existência pura, acerca de Sat; o que têm a dizer
acerca da Força, acerca do Movimento, acerca de Shakti?

E o primeiro que temos que perguntar-nos é se essa Força é simplesmente força,


simplesmente una ininteligente energia do movimento ou se a consciência que parece
emergir fora, neste mundo material no que vivemos, não é meramente um de seus
resultados fenomênicos senão sua própria natureza verdadeira e secreta. Em termos
Vedânticos, a Força é simplesmente Prakriti, somente um movimento de ação e
processo, ou Prakriti é realmente o poder de Chit, em sua força natural de auto-
consciência criativa? Tudo o demais gira em torno a este problema essencial.

[1] VI, 2, 1.

[2] Este movimento, esta energia desenvolvendo-se continuamente, é o trabalho


incansável de Shakti, da Mãe, o Poder atuante, a Força criadora, a energia ativa que
se baseia em um imutável Sat-Brahman.

[3] Indivisível na totalidade do movimento. Cada momento do Tem po ou da


Consciência pode considerar-se como separado de seu predecessor e sucessor; cada
ação sucessiva da Energia como um novo quantum ou no­va criação; mas isto não
anula a continuidade sem a qual não haveria duração do Tempo nem coerência da
consciência. Os passos do homem, quando caminha ou corre ou salta, são separados,
mas há algo que agrupa os passos e faz contínuo o movimento.

[4] Shiva e Kali na tradição hindu são esposos, o autor considera aqui sua relação,
similar à de Purusha e Prakriti, Shiva seria o passivo absoluto um e estável e Kali sua
ativa e móvel energia operante; o autor dá um passo mais e cita seguidamente o
termo superior Sat-Shakti.

--------------------------------------------------------------------O---------------------------------------------------------------

Capitulo X

A FORÇA CONSCIENTE

Contemplaram a auto-força do Ser Divino escondido no fundo por seu


próprio modo consciente de trabalhar.

Swetaswatara Upanishad[1]

Este é quem está desperto nos que dormem.

Katha Upanishad[2]

Toda a existência fenomênica se resolve em Força, em movimento de energia que


assume formas mais ou menos materiais, mais ou menos densas ou sutis de auto-
apresentação a sua própria experiência. Nas antigas imagens, -quando o pensamento
humano tentou fazer inteligível e real, esta origem e lei do ser-, esta infinita existência
de Força foi representada como um mar, inicialmente sossegado e, portanto, livre de
formas; mas a primeira perturbação, a primeira iniciação de movimento fez
necessária a criação de formas e é a semente do universo.

Matéria é a apresentação de força que é mais facilmente inteligível para nossa


inteligência, -moldada esta como o está por contatos com a Matéria-, recebendo a
informação de uma mente envolta em um cérebro material. O estado elemental da
Força material é, segundo a visão dos antigos físicos indianos, um estado de pura
extensão material no Espaço cuja peculiar propriedade é vibração que tipifica-nos
pelo fenômeno do som. Mas a vibração neste estado do éter não é suficiente para criar
formas. Deve primeiro existir alguma obstrução no fluir do oceano da Força, alguma
contração e expansão, alguma interação de vibrações, algum afetar de força sobre
força como para criar um princípio de relações fixas e efeitos mútuos. A Força
material modificando seu primeiro estado etéreo assume um segundo, chamado na
antiga linguagem, aéreo, cuja propriedade especial é o contato entre força e força,
contato que é a base de todas as relações manterias. Todavia não temos formas reais
senão tão só forças variáveis. Necessita-se um princípio sustentador. Este
proporciona-o uma terceira auto-modificação da Força primitiva cujo princípio de
luz, eletricidade, fogo e calor é para nós a manifestação característica. Ainda então,
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po demos ter formas de força que preservam seu caráter próprio e ação peculiar, mas
não formas estáveis da Matéria. Um quarto estado caracterizado pela difusão e por
um primeiro entorno de atrações e repulsões permanentes, denominado
pintorescamente água ou estado líquido, e um quinto estado de coesão, chamado terra
ou estado sólido, completam os elementos necessários.

Todas as formas da Matéria que conhecemos, todas as coisas físicas até as mais
sutis, estão conformadas mediante a combinação destes cinco elementos. Deles
também depende toda nossa experiência sensível; pois por recepção da vibração vem
o sentido do olfato; por contato com coisas num mundo de vibrações da Força, o
sentido do tato; pela ação da luz nas formas idealizadas, delineadas, sustentadas pela
força da luz e o fogo e o calor, o sentido da vista; pelo quarto elemento, o sentido do
gosto; pelo quinto, o sentido do olfato. Tudo é essen­cialmente resposta aos contatos
vibratórios entre força e força. Deste modo os antigos pensadores construíram uma
ponte sobre o abismo entre a Força pura e suas modificações finais, e satisfizeram a
dificuldade que impede à ordinária mente humana compreender como todas estas
formas que são, para seus sentidos tão reais, sólidas e duráveis, podem ser em
verdade somente fenômenos temporários, e uma coisa como a energia pura, -
inexistente, intangível e quase incrível para os sentidos-, pode ser a única realidade
cósmica permanente.

O problema da consciência não está resolvido com esta teoria, pois não explica
como o contato de vibrações da Força há de fazer surgir as sensações conscientes. Os
Sankhyas ou pensadores analíticos colocaram, portanto, detrás destes cinco
elementos, dois princípios que chamaram Mahat e Ahankara, princípios que são
realmente imateriales; pois o primeiro não é senão o vasto princípio cósmico da Força
e el outro o princípio divisional do Ego-formação. Não obstante, estes dois princípios
igualmente que o princípio da inteligência, se tornam ativos na consciência não em
virtude da Força mesma, senão em virtude de uma inativa Consciente-Alma ou
almas, nas que suas atividades se refletem e, mediante o reflexo, assumem a matiz da
consciência.

Tal é a explicação das coisas oferecida pela escola de filosofia da Índia que mais se
aproxima às modernas idéias materialistas e que levou a idéia de uma mecânica ou
inconsciente Força na Natureza tão longe como foi possível para a seriamente
reflexiva mente indiana. Quaisquer que sejam seus defeitos, sua principal idéia foi tão
indiscutível que veio a ser geralmente aceitada. No entanto, o fenômeno da
consciência pode explicar-se, - seja já a Natureza um impulso inerte ou um princípio
consciente-, certamente como Força; o princípio das coisas é um formativo
movimento de energias, todas as formas nascem do encontro e mútua adaptação entre
forças sem forma, toda sensação e ação é uma resposta de algo em forma de Força
aos contatos de outras formas de Força. Este é o mundo tal como o experimentamos e
desde esta experiência devemos sempre partir.

A análise física da Matéria por parte da Ciência moderna chegou à mesma conclusão
geral, ainda que perdurem umas poucas dúvidas últimas. A intuição e a experiência
confirmam esta concordância de Ciência e Filosofia. A razão pura acha nela a
satisfação de suas próprias concepções essenciais. Pois inclusive na visão do mundo
como essencialmente um ato da consciência, um ato está implícito, e no ato o
movimento de Força, o desdobramento de Energia. Isto também, -quando
examinamos desde dentro nossa própria experiência-, prova ser a naturaleza funda
mental do mundo. Todas nossas atividades são o jogo da tripla força das antigas
filosofias, conhecimento-fuerza, desejo -força, ação-força, e todas elas provam ser
realmente três co rrentes de um só Poder original e idêntico, Adya Shakti. Inclusive
nossos estados de repouso são somente um estado de igualdade ou de equilíbrio do
despertar de seu movimento.

Ao admitir-se o Movimento de Força como a natureza total do Cosmos, surgem duas


questões. Em primeiro lugar, como chegou este movimento a ter lugar no seio da
existência? Se supomos que não só é eterno senão também a essência mesma de toda a
existência, não surge a questão. Mas nos temos negado a aceitar esta teoria. Somos
conscientes de uma existência que não está compelida pelo movimento. Então, como
este movimento, alheio a seu repouso eterno, chega a tomar lugar nela? Por qual
causa? Por qual possibilidade? Por qual misterioso impulso?

A resposta mais aceita pela antiga mente da Índia foi a de que a Força é inerente à
Existência. Shiva e Kali, Brahman e Shakti são um e não dois separáveis. A Força
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inerente à existência pode estar em repouso ou em movimento, mas quando está em


repouso, existe no entanto e não é suprimida, diminuída nem de nenhum modo
essencialmente alterada. Esta resposta é tão inteiramente racional e de acordo com a
natureza das coisas que não necessitamos titubear para aceitá-la. Pois é impossível,
devido ao contraditório da razão, supor que a Força é uma coisa alheia à única e
infinita existência, e entrou nela desde fora ou era não-existente e surgiu nela em
algum ponto do Tempo. Inclusive a teoria ilusionista deve admitir que Maya, o poder
de auto- ilusão de Brahman, é potencialmente eterna no Ser eterno e então a única
questão é sua manifestação ou não-manifes tação. O Sankhya também afirma a
eterna coexistência de Prakriti e Purusha, Natureza e Alma-Consciente, e os
alternativos estados de repouso ou equilíbrio de Prakriti e de movimento ou
perturbação do equilíbrio.

Mas dado que dessa maneira a Força é inerente à existência e que constitui a
natureza da Força ter esta dupla ou alternativa potencialidade de repouso e
movimento, vale dizer, de auto-concentração em Força e de auto-difusão em Força,
não surge a questão a respeito de como do movimento, sua possibilidade, impulso
iniciador ou causa impulsora. Pois então podemos conceber facilmente que esta
potencialidade deve traduzir-se como um ritmo alternativo de repouso e movimento
sucedendo-se um ao outro no Tempo ou como uma eterna auto-concentração da
Força na existência imutável com um superficial despertar de movimento, cambio e
formação como a ascensão e queda das ondas na su­perfície do oceano. E este
despertar superficial pode ser coexistente com a auto-concentração e em si mesmo
também eterno, -falamos necessariamente com imagens inadequadas-, ou pode
começar e terminar no Tempo e resumir-se por uma sorte de ritmo constante; então
não é eterno na continuidade senão eterno na recorrência.

Eliminado dessa maneira o problema do como, se apresenta a questão do porquê. Por


que deveria esta possibilidade de um despertar de movimento da Força transladar-se
a tudo? Por que a Força da existência não deveria permanecer eternamente
concentrada em si mesma, infinita, livre de toda variação e formação? Esta questão
tão pouco se suscita se damos por encerrado que a Existência é não-consciente e que a
consciência é só um desenvolvimento da energia material que equivocadamente
supomos que é imaterial. Pois então podemos dizer simplesmente que este ritmo é a
natureza da Força na existência e absolutamente não há razão de buscar um porquê,
uma causa, um motivo inicial ou um propósito final para o que, em sua natureza, é
eternamente auto-existente. Não podemos apresentar essa questão à auto-existência
eterna e perguntar-lhe por que existe ou como veio à existência; nem se o podemos
suscitar auto-força da existência com sua natureza inerente de impulso do
movimento. Então, tudo quanto podemos perguntar se refere a sua maneira de auto-
manifestação, seus princípios de movimento e formação, seu processo de evolução.
Ambas, Existência e Força são inertes, -inerte estado e inerte impulso-, inconscientes
e ininteligentes ambas, ali não pode haver propósito algum nem meta final em
evolução, nem causa original ou intenção alguma.

Mas o problema se suscita se supomos ou descobrirmos que a Existência é o Ser


consciente. Podemos certamente supor um Ser consciente que está sujeito a sua
natureza de Força, compelido por ela e sem opção com respeito a se manifestar-se-a
no universo ou ficará sem manifestar. Tal é o Deus cósmico dos Tântricos e dos
Mayavadins que está sujeito à Shakti ou Maya, Purusha envolvido em Maya ou
controlado por Shakti. Mas é óbvio que tal Deus não é a suprema Existência infinita
com a que temos partido. É somente uma formulação do Brahman no cosmos
realizada pelo Brahman mesmo, que é logicamente anterior à Shakti ou Maya, e a
leva de regresso a seu ser transcendental quando cessa em suas obras. Em uma
existência conscientes que é absoluta, independente de suas formações, não
determinada por suas obras, devemos supor uma liberdade inerente a manifestar ou
não manifestar a potencialidade do movimento. Um Brahman compelido por Prakriti
não é Brahman, senão um Infinito inerte com um conteúdo ativo nele mais poderoso
que o continente, um consciente reunidor da Força, de quem sua Força é dona. Se
dizemos que está compelido por si como Força, por sua própria natureza, não nos
livramos da contradição, não evadimos nosso primeiro postulado. Temos que
regressar a uma Existência que é em realidade nada mais que Força, Força em
repouso ou em movimento, Força absoluta talvez, mas não Ser absoluto.

É preciso então examinar interiormente a relação entre Força e Consciência. Mas que
queremos dizer com o último termo? Comumente significamos com ele nossa óbvia

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idéia primária de uma consciência mental em vigília tal como se a possuísse o ser
humano durante a maior parte de sua existência corporal, quando não está dormido,
aturdido ou de algum outro modo privado de seus físicos e superficiais métodos de
sensação. Neste sentido está suficientemente claro que a consciência é a exceção e não
a regra na ordem do universo material. Nós mesmos não sempre a possuímos. Mas
esta vulgar e superficial idéia da natureza da consciência, ainda que todavia
impregna nossos pensamentos e associações ordiná rios, deve agora desaparecer
definitivamente do pensar filosófico. Pois sabemos que em nós há algo que é
consciente quando dormimos, quando estamos aturdidos ou drogados ou
desvanecidos, em todos os estados aparentemente inconscientes de nosso ser físico.
Não só isso, senão que agora podemos estar seguros que os antigos pensadores
estavam certos quando declaravam que, inclusive em nosso estado de vigília, o que
chamamos então nossa consciência é só uma reduzida seleção de nosso inteiro ser
consciente. É uma superfície, mas não a totalidade de nossa mentalidade. Detrás dela,
mais vasta que ela, há uma mente subliminal ou subconsciente que é a maior parte de
nós mesmos, e contêm cumes e profundidades que nenhum, homem há medido nem
sondado todavia. Este conhecimento nos brinda um ponto de partida para a
verdadeira ciência da Força e suas obras; nos livra definidamente de estar
circunscritos pelo material e da ilusão do óbvio.

O Materialismo insiste certamente em que, qualquer que seja a extensão da


consciência, é um fenômeno material inseparável de nossos órgãos físicos, e não sua
usuária senão seu resultado. Este apresentar ortodoxo, no entanto, já não pode
sustentar-se contra a maré do conhecimento em expansão. Suas explicações se tornam
cada vez mais e mais inadequadas e forçadas. Cada vez se faz mais claro que não só a
capacidade de nossa consciência total supera de longe à de nossos órgãos, os sentidos,
os nervos, o cérebro, senão que inclusive para nosso pensamento e consciência
ordinários estes órgãos são unicamente seus instrumentos habituais e não seus
geradores. A consciência usa o cérebro ao qual seus esforços ascendentes produziram,
o cérebro não produziu nem usa a consciência. Além disto, há casos anormais que
vêm a provar que nossos órgãos não são instrumentos inteiramente indispensáveis, -
que os batimentos cardíacos não são absolutamente necessários para a vida,
igualmente que a respiração, como tão pouco ou são as organizadas células cerebrais,
para o pensamento-. Nosso organismo físico é tão nulo para causar ou explicar o
pensamento e a consciência como a construção de uma máquina para causar a
explicar o poder motor do vapor ou a eletricidade. A força é anterior, não o
instrumento físico.

Disto se seguem consequências lógicas importantes. Em primeiro lugar, po­demos


perguntar-nos se, -dado que inclusive a consciência mental existe donde vemos
inanimação e inércia-, não é possível que também nos objetos materiais esteja
presente uma subconscientemente universal, ainda que incapaz de atuar ou
comunicar-se a suas superfícies por falta de órgãos. É o estado material um vazio de
consciência, ou não é, melhor dizendo, só um sonho da consciência, -ainda que, desde
o ponto de vista da evolução, um sonho original e não intermediário? E mediante o
sonho, o exemplo humano nos ensina que significamos não uma suspensão da
consciência, senão sua concentração interior, afastada da consciente resposta física
aos impactos das coisas externas. E não corresponde isto a toda existência que ainda
não há desenvolvido meios de comunicação externa com o externo mundo físico? Não
há uma Alma-Consciente, um Purusha que está desperto para sempre, inclusive em
tudo o que dorme?

Vamos mais adiante. Quando falamos de mente subconsciente, expressamos com a


frase uma coisa que não difere da outra mentalidade externa, mas que só atua sob a
superfície, desconhecida para o homem em vigília, no mesmo sentido que se estivesse
submergida à maior profundidade e com maior alcance. Mas os fenômenos do eu
subliminal excedem com folga os limites de qualquer definição. Inclui uma ação não
só imensamente superior em capacidade, senão também de uma classe bastante
diferente do que conhecemos como mentalidade de nosso eu em vigília. Temos,
portanto, dereito a supor que em nós há um supraconsciente igualmente que um
subconsciente, um rincão de faculdades conscientes e, por conseguinte, uma
organização da consciência que se eleva sobre esse extrato psicológico ao que damos o
nome de mentalidade. E dado que o eu subliminal em nós se eleva na
supraconsciência por cima da mentalidade, É possível que também possa não
submergir-se na subconciência debaixo da mentalidade? Não há em nós e no mundo
formas de consciência que sejam submentais, às que podemos dar o nome de

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consciência vital e física? Em caso afirmativo, devemos também supor na planta e no


metal uma força à que podemos dar o nome de consciência ainda que não seja a
mentalidade humana ou animal para a qual temos preservado até agora o monopólio
dessa descrição.

Isto não só é provável senão que, se consideramos as coisas des­apaixonadamente, é


certo. Em nós mesmos existe essa consciência vital que atua nas células do corpo e nas
funções vitais automáticas de modo que vivemos através de movimentos plenos de
propósito e obedecemos atrações e repulsões às que nossa mente é estranha. Nos
animais, esta consciência vital é inclusive um fator mais importante. Nas plantas é
intuitivamente evidente. As buscas e contrações da planta, seu prazer e dor, seu sono
e vigília, e toda essa estranha vida cuja verdade trouxe à luz um científico da India,
com métodos rigorosamente científicos, são todos mo vimentos da consciência mas,
pelo que até agora conhecemos, não da mentalidade. Existe então uma submental,
uma vital consciência, que tem precisamente as mesmas reações iniciais que a mental,
mas é diferente na constituição de sua auto-experiência, assim como o que é
supraconsciente é, na constituição de sua auto-experiência, diferente do ser mental.

O alcance do que podemos chamar consciência cessa na planta, nisso no que


reconhecemos a existência de uma vida subanimal? Em caso afirmativo, devemos
então supor que existe uma força de vida e consciência originalmente alheia à
Matéria que, contudo, entrou dentro dela, e ocupado a Matéria —talvez proveniente
de outro mundo [3] . De que outra parte pôde provir? Os antigos pensadores
acreditavam na existência destes outros mundos, que talvez sustentem a vida e a
consciência no nosso ou inclusive a provocam por sua pressão, mas não a criam
mediante sua entrada nele mesmo. Nada pode evoluir da Matéria que já não esteja
contido ali.

Mas não há razão para supor que a gama da vida e a consciência fala e se detém
no que nos parece puramente mate rial. O desenvolvimento da investigação e do
pensamento recente parece apontar a uma sorte de obscuro princípio de vida e talvez
uma sorte de consciência inerte ou suspendida no metal e na terra e em outras formas
“ina nimadas”, ou ao menos a matéria prima do que em nós chega a ser consciência
pode estar ali. Ainda quando só na planta podemos obscuramente reconhecer e
conceber a coisa que chamei consciência vital, a consciência da Matéria, da forma
inerte, resulta certamente difícil para nós entendê-lo ou imaginá-lo, e o que achamos
difícil de entender ou imaginar consideramo-nos com dereito a negá-lo. Não obstante,
quando um há seguido a tanta profundidade à consciência, resulta inacreditável que
possa existir este súbito abismo na Natureza. O pensamento tem dereito a supor uma
unidade onde essa unidade está confessada por todas as outras classes de fenômenos e
em uma só classe unicamente, não negada, senão meramente mais oculta que as
demais. E se supomos que a unidade se acha interrompida, então alcançamos à
existência da consciência em todas as formas da Força que trabalha no mundo. Ainda
que não houvesse consciente ou supraconsciente Purusha morando em todas as
formas, contudo existe naquelas formas uma força consciente do ser da qual inclusive
suas outras partes aberta ou inertemente participam.

Necessariamente, com esse critério, a palavra consciência muda de significado. Já não


é sinônimo de mentalidade senão que indica uma auto-consciente força da existência
da que a mentalidade é termo médio; debaixo da mentalidade se funde nos
movimientos vitais e materiais que para nós são subconscientes; acima, se eleva no
supramental que para nós é o supraconsciente. Mas em tudo está a única e mesma
coisa organizando-se diferente mente. Esta é, uma vez mais, a concepção indiana de
Chit que, como energia, cria os mundos. Essencialmente, chegamos a essa unidade
que a ciência materialista percebe desde o outro extremo quando assevera que a
Mente não pode ser outra força que a Matéria, mas deve ser meramente
desenvolvimento e resultado da energia material. O pensamento indiano, em sua
máxima profundidade, afirma, por outra parte, que Mente e Matéria são, melhor
dizendo, diferentes graus da mesma energia, diferentes organizações de uma Força
cons­ciente da Existência.

Mas que dereito temos a dar, é claro, que a consciência seja a descrição justa para
esta Força? Pois a consciência implica algum tipo de inteligência, intencionalidade,
auto-conhecimento, inclusive ainda que não tomem as formas habituais para nossa
mentalidade. Inclusive desde este ponto de vista tudo apoia muito mais que contradiz
a idéia de uma universal Força consciente. Vemos, por exemplo, no animal, operações
de uma intencionalidade per feita e de um conhecimento exato, cientificamente minu
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cioso, que estão muito além das capacidades da mentalidade animal e que o homem
mesmo só pode adquirir mediante uma prolongada educação e ainda então as usa
com muito menor rapidez e segurança. Estamos facultados a ver neste fato geral a
prova de uma Força consciente que trabalha no animal e no inseto que é mais
inteligente, mais intencionada, mais conhecedora de seu propósito, suas finalidades,
seus meios e suas condições, que a suprema mentalidade manifestada em qualquer
forma individual sobre a terra. E nas operações da Natureza inanimada achamos a
mesma característica plena de uma suprema inteligência oculta, “oculta nas
modalidades de suas próprias obras”.

O único argumento contra uma fonte consciente e inteligente para esta intencionada
obra, este trabalho da inteligência, da seleção, da adaptação e a busca, é esse grande
elemento das operações da Natureza ao que damos o nome de desperdício. Mas
obviamente esta é uma objeção baseada nas limitações de nosso humano intelecto que
busca impor sua particular racio nalidade, bastante boa para os limitados fins
humanos, nas operações gerais do Mundo-Força. Vemos só parte do propósito da
Natureza e tudo o que não serve a essa parte o chamamos desperdício. Inclusive nossa
própria ação humana está cheia de um aparente desperdício, tão evidente desde o
ponto de vista individual que contudo, podemos estar seguros, serve bastante bem
para o grande e final propósito das coisas. Essa parte de sua intenção que podemos
detectar, a Natureza consegue fazê-la seguramente bastante apesar de seu aparente
desperdício, talvez realmente em virtude desse aparente desperdício. Bem podemos
confiar nela no resto que ainda não detectamos.

Para o resto é impossível ignorar o caminho do propósito do jogo, a direção da


aparente tendência cega, a segura chegada eventual ou imediata ao objetivo buscado,
que caracterizam as operações do Mundo-Força no animal, na planta, nas coisas
inanimadas. Na medida em que a Matéria foi o Alfa e o Ômega para a mente
científica, a repugnância a admitir à inteligência como a mãe da inteligência foi un
honesto escrúpulo. Mas agora isto não é mais que um gasto paradoxo para afirmar o
emergir da consciência humana, a inteligência e o domínio de uma ininteli gente e
cegamente condutora inconsciência na que não existiram previamente nem forma
nem substância delas. A consciência do homem não pode ser nada mais que uma
forma da consciência da Natureza. Está ali em outras envoltas formas debaixo da
Mente, emerge na Mente, ascenderá ainda a formas superiores além da Mente. Pois a
Força que constrói os mundos é uma Força consciente, a Existência que se manifesta
neles é o Ser consciente e um emergir perfeito de suas potencialidades na forma é o
único objeto que racionalmente podemos conceber para sua manifestação deste
mundo das formas.

[1] I, 3.

[2] V, 8.

[3] É agora corrente a curiosa especulação de que a Vida ingressou na terra não
proveniente de outro mundo, senão de outro planeta. Para o pensa dor isso nada
explicaria. A questão essencial é como a Vida entra na Matéria e não como entra na
matéria desde um particular planeta.

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