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ISSN 1413-389X Temas em Psicologia – 2012, Vol.

20, no 2, 355 – 368


DOI: 10.9788/TP2012.2-06

Afetividade nas práticas pedagógicas

Sérgio Antônio da Silva Leite


Universidade Estadual de Campinas – Campinas, SP, Brasil

Resumo
O presente texto analisa o papel da afetividade nas práticas pedagógicas desenvolvidas por
professores em sala de aula. Tendo como suporte as ideias de Vygotsky e Wallon, assume-se, como
pressuposto, que as relações que se estabelecem entre o sujeito, o objeto de conhecimento e o agente
mediador também são profundamente marcadas pela dimensão afetiva, uma vez que produzem
impactos subjetivos no sujeito. Tais impactos podem gerar movimentos de aproximação ou de
distanciamento entre o sujeito e o referido objeto de conhecimento; essas relações podem ser
estudadas na situação de sala de aula. Neste sentido, pretende-se identificar e analisar algumas
decisões pedagógicas planejadas e desenvolvidas por professores e seus impactos afetivos nas
relações que se estabelecem entre o aluno e os conteúdos escolares. Dados acumulados de pesquisas
permitem identificar que as decisões que promovem o sucesso na aprendizagem aumentam as chances
de se estabelecer uma relação afetiva positiva entre o aluno e os conteúdos escolares – aqui designada
como uma relação de aproximação afetiva.
Palavras-chave: Aprendizagem, Afetividade, Práticas pedagógicas, Mediação do professor.

Affection in teaching practices

Abstract
This paper discusses the role of affectivity in pedagogical practices developed by teachers in the
classroom. With the theoretical support of Vygotsky and Wallon ideas, it is assumed that the
relations established between the subject, the object of knowledge and the mediator are also deeply
influenced by the affective dimension, since they produce impacts on subjective subject. Such impacts
can generate approximation or separation movements between the subject and the object of such
knowledge; these relations can be observed in the classroom situation. We aim to identify and analyze
some pedagogical decisions planned and developed by teachers and their impacts on affective
relations that are established between the student and the school contents. Research data permit to
identify the teacher decisions that promote success in learning, increasing the chances of establishing
a positive affective relation between the student and the school contents - here designated as a relation
of affective approach.
Keywords: Learning, Affection, Teaching practices, Teacher mediation.

Afectividad en las prácticas pedagógicas

Resumen
El presente texto analiza el papel de la afectividad en las prácticas pedagógicas desarrolladas por
profesores en el salón de clase. Con el respaldo de las ideas de Vygotsky y Wallon, se supone que las
relaciones que se establecen entre el sujeto, el objeto de conocimiento y el mediador también están
profundamente influenciadas por la dimensión afectiva, ya que producen impactos en la subjetividad
del sujeto. Estos impactos pueden generar movimientos de acercamiento o de alejamiento entre el
sujeto y el objeto de conocimiento; estas relaciones pueden ser estudiadas en el salón de clase.
Nuestro objetivo es identificar y analizar algunas decisiones pedagógicas planificadas y desarrolladas
_____________________________________
Endereço para correspondência: Rua Cayowáa, 1553, apt. 10. Bairro Sumaré, São Paulo/SP, Brasil. CEP:
01258-011. E-mail: sasleite@uol.com.br. Telefones: +55 11 3673-0759 / +55 11 9932-4673.
Artigo aceito durante a gestão do editor Gerson Tomanari.
356 Leite, S. A. da S.

por los docentes y su impacto en la relación afectiva que se establece entre el alumno y los contenidos
escolares. Datos acumulados de investigación permiten identificar las decisiones que promueven el
éxito en el aprendizaje y aumentan las posibilidades de establecer una relación afectiva positiva entre
el estudiante y el contenido de la escuela - designada aquí como una relación de acercamiento
afectivo.
Palabras clave: Aprendizaje, Afectividad, Prácticas pedagógicas, Mediación del profesor.

Introdução: caracterização do entre o sujeito/aluno e os objetos/conteúdos


problema escolares.
Pretende-se, também, discutir algumas
A afetividade e suas implicações com o decisões pedagógicas que os professores
ensino tem sido um tema crescentemente assumem quando planejam ou desenvolvem
abordado no ambiente acadêmico, nas últimas seus cursos, a partir de dados acumulados por
duas décadas. Obviamente, as emoções e os diversas pesquisas coordenadas pelo autor,
afetos sempre foram objetos das grandes teorias indicando os possíveis impactos afetivos nos
psicológicas, porém muito mais como alunos.
preocupação teórica do que como objeto de
produção de pesquisas científicas. Razão-emoção: concepções
Como ilustração, em nosso meio, nos anos dualistas x concepções monistas
70 do século passado, Engelman (1978)
Um dos desafios teóricos que se
realizou uma ampla revisão das variações
colocaram, quando começamos a estudar a
semânticas das palavras e conceitos
dimensão afetiva, foi entender as razões pelas
relacionados com as emoções, sentimentos,
quais este conceito permaneceu historicamente
estados de ânimo, afetos e estados afetivos.
periférico nas relações de ensino e
Seus estudos mostram que os autores, até então,
aprendizagem, embora sua importância não
embora reconhecessem a necessidade de
tenha sido negada pelas tradicionais teorias
estabelecer distinções entre os diversos
psicológicas. Julgamos que este fato está, ao
conceitos, na realidade, refletiam grandes
menos parcialmente, vinculado ao predomínio
discordâncias sobre tais diferenciações.
secular da chamada concepção dualista,
No entanto, podemos reafirmar que, em segundo a qual o homem é entendido como um
nosso meio, nas últimas duas décadas, observa- ser cindido entre razão e emoção, cujas raízes
se que o tema da afetividade passou a ter uma vêm desde a Antiguidade, fortalecendo-se com
presença crescente na agenda de pesquisa de a tradicional dualidade cartesiana entre corpo e
vários estudiosos da área educacional, com alma, na Modernidade: os afetos, como parte da
destaque para autores vinculados à Psicologia dimensão anímica, não poderiam ser objetos de
(Almeida, 1997, 1999; Dantas, 1992; Mahoney, estudos científicos.
1993; Oliveira, 1992; Pinheiro, 1995; Arantes Entender que o homem é um ser cindido
& Aquino, 2003; Vasconcelos, 2004; Leite, entre razão e emoção é assumir que o homem é
2006; Ribeiro & Jutras, 2006; Franco, 2009; um ser que ora pensa, ora sente, não havendo
Amado, Freire, Carvalho & André, 2009; vínculos ou relações determinantes entre essas
Ribeiro, 2010). duas dimensões. Além disso, enfrenta-se o
Neste texto, pretende-se discutir a problema típico de todo o pensamento dualista:
dimensão afetiva nas práticas pedagógicas supõe-se que o homem apresenta uma
desenvolvidas em sala de aula. Assume-se que dimensão que não é passível de uma
a mediação pedagógica também é de natureza abordagem científica; o que significa assumir,
afetiva e, dependendo da forma como é como pressuposto, que a ciência nunca poderá
desenvolvida, produz impactos afetivos, explicar o fenômeno humano por completo.
positivos ou negativos, na relação que se Além disso, no caso da dualidade razão x
estabelece entre os alunos e os diversos emoção, durante séculos o pensamento
conteúdos escolares desenvolvidos. Tais dominante, além de assumir o dualismo, elegeu
impactos são caracterizados por movimentos a razão como a dimensão superior, que melhor
afetivos de aproximação ou de afastamento caracteriza o homem, chegando a situar a
Afetividade nas práticas pedagógicas 357

emoção como o lado sombrio e nebuloso da moeda, mantendo entre si íntimas relações. Tais
natureza humana, responsável por grande parte questões criaram as condições para o
de suas mazelas: assim, seria função da razão o surgimento da chamada concepção monista
controle/domínio sobre a emoção, ou seja, só sobre a constituição humana.
assim o homem não correria o risco de perder a As concepções dualistas, historicamente,
razão. têm sido contestadas. Somente no século
O domínio hierárquico da razão sobre a passado, com o advento de teorias filosóficas,
emoção é observado nos diferentes períodos sociológicas e psicológicas centradas nos
históricos: na Antiguidade, pela oposição entre determinantes culturais, históricos e sociais do
conhecimento inteligível (passível de uma processo de constituição humana, criaram-se as
abordagem objetiva) e conhecimento sensível bases para uma nova compreensão sobre o
(não científico), sendo os sentimentos próprio homem e, no nosso caso, das relações
considerados não passíveis de um entre razão e emoção. O pensamento humano
conhecimento objetivo pelo seu grau de caminhou, assim, na direção de uma concepção
subjetividade. Na Idade Média, pelo conflito monista, em que afetividade e cognição passam
entre razão e fé, com o predomínio desta sobre a ser interpretadas como dimensões
aquela. Na Modernidade, pelo dualismo indissociáveis e parte do mesmo processo, não
cartesiano, embora tenha ocorrido uma sendo mais possível analisá-los separadamente.
crescente valorização do indivíduo como ser Um dos filósofos cujo pensamento
pensante, portador de uma consciência desempenhou um papel histórico fundamental
individual e de liberdade. Na sequência no processo de superação da concepção dualista
histórica, entendemos que o ápice do foi Baruch de Espinosa3 (Spinoza, 2009; Chauí,
predomínio racionalista ocorreu no final do 2005; Damásio, 2003), que nos chama a
século XIX, com o Positivismo, de Augusto atenção não só pelo conteúdo das suas ideias,
Comte1, ratificando que o conhecimento só é mas, principalmente, pelo momento em que
possível através da razão2. foram elaboradas e divulgadas – em pleno
É inegável a influência secular da século XVII.
concepção dualista nas práticas das instituições Espinosa defendia que o corpo e mente são
educacionais: herdamos uma concepção atributos de uma substância única; assumiu que
segundo a qual o trabalho educacional envolve corpo e alma seguem as mesmas leis,
e deve ser dirigido, essencialmente, para o rompendo, assim, com a hierarquia secular que
desenvolvimento dos aspectos cognitivos, situava a alma como instância superior ao
centrados na razão, sendo que a afetividade não corpo.
deve estar envolvida nesse processo. Neste
Pode-se, assim, ilustrar a radical mudança
sentido, os currículos e programas
relacionada à concepção humana pelo contraste
desenvolvidos, nos diferentes momentos da
entre duas máximas, elaboradas num intervalo
nossa política educacional, centraram-se no
de três séculos e meio: de um lado, a máxima
desenvolvimento da dimensão racional-
cartesiana4 penso, logo existo5, em que a
cognitiva, através do trabalho pedagógico em
razão/pensamento é interpretada como motivo
sala de aula, em detrimento da dimensão
da existência; de outros lado, a máxima recente
afetiva.
do neurofisiólogo Antonio Damásio existo e
Com o desenvolvimento da ciência e da sinto, logo penso (Damásio, 2001), propondo
pesquisa, em quase todas as áreas do uma clara inversão do domínio secular da razão
conhecimento, principalmente a partir do sobre a emoção, anunciando que esta é a base
século XVIII, criam-se as condições para a para a constituição da estrutura cognitiva do ser
construção de um modelo teórico mais humano – posição semelhante também
adequado; esse modelo nos possibilitou assumida por Wallon.
entender que razão e emoção são
indissociáveis, dois lados de uma mesma

1 3
1789-1857. 1632-1677.
2 4
Análise dessas questões podem ser encontradas em Descartes, 1596-1650.
5
Marcondes (2000); Bosch (1998); Figueiredo A obra de Descartes “Discurso do Método” foi
(1992); Giles (1993). publicada em 1637.
358 Leite, S. A. da S.

O Grupo do Afeto material gravado, sendo estimulado


verbalmente pelo pesquisador para emitir
Com relação ao nosso trabalho acadêmico, comentários em função dos objetivos da
desde o final dos anos 1990, nos envolvemos pesquisa. Segundo Leite & Colombo (2006),
com a dimensão afetiva na mediação
pedagógica em sala de aula. Nesse período,
os dados primários são os relatos verbais
conseguimos reunir um grupo de orientandos emitidos pelo sujeito na situação de
dos diversos níveis – doutorado, mestrado e observação de suas imagens na tela da TV,
iniciação científica – carinhosamente chamado durante ou após a transmissão, os quais, por
de Grupo do Afeto6, que vem desenvolvendo sua vez, são também gravados para posterior
diversos estudos e pesquisas sobre o tema. análise. ( p. 119)
Deve-se destacar que o nosso
envolvimento com a afetividade se deu a partir O produto dessa análise, geralmente, são
dos estudos que já vínhamos desenvolvendo núcleos temáticos que, no seu conjunto,
sobre Alfabetização Escolar e Letramento. correspondem aos resultados da pesquisa
Especificamente, com o direcionamento do realizada.
foco de nossa atenção para o problema do Com relação ao procedimento de
processo de constituição do sujeito como leitor, autoscopia, o primeiro trabalho no Grupo do
levando-nos ao aprofundamento teórico sobre o Afeto foi o de Tassoni (2000), que identificou e
tema e a propostas de pesquisas que nos analisou a dimensão afetiva, nas relações
possibilitaram um melhor conhecimento do professor-aluno, em classes de pré-escola, com
fenômeno em questão. crianças de seis anos de idade.
Os estudos desenvolvidos no Grupo do
Entrevistas recorrentes, por sua vez, é um
Afeto centraram-se nas chamadas abordagens procedimento de coleta e análise de dados
qualitativas (Ludke & André, 1986; Bogdan &
inspirado nos trabalhos pioneiros de Tunes
Biklen, 1994). Segundo esses autores, a
(1981), Simão (1982) e Goyos (1986). Mais
investigação qualitativa é um termo genérico
recentemente sob nossa orientação acadêmica,
que agrupa diversas estratégias de investigação
podemos citar os trabalhos de Zanelli (1992),
que compartilham as características comuns. Os Guanais (1995), Larocca (1999) e Grotta
dados qualitativos, ainda segundo eles, devem
(2000). Trata-se de uma estratégia que implica
ser ricos em pormenores descritivos, visando
um intenso processo interativo entre o
investigar os fenômenos em toda a sua
pesquisador e o(s) sujeito(s), sendo que este
complexidade e no ambiente natural. Neste
participa da fase inicial do processo de análise
sentido, as estratégias para coleta de dados mais
de dados, que ocorre simultaneamente ao
representativas da pesquisa qualitativa são a
processo de coleta dos dados.
observação participante e a entrevista em
profundidade, frequentemente utilizadas nas Em termos gerais, o procedimento pode
pesquisas etnográficas e nos estudos de caso. ser assim resumido: a) a escolha dos sujeitos
No presente caso, um dos fatores que, que serão entrevistados é intencional, devendo
certamente, muito facilitaram nosso estar claramente especificados o seu perfil, bem
envolvimento com a pesquisa foi a como as estratégias para a escolha; b) na
aproximação com os procedimentos de coleta primeira entrevista, que geralmente é
de dados, denominados de entrevistas individual, após recolocar os objetivos da
recorrentes e autoscopia (Sadalla & Larocca, pesquisa, o pesquisador apresenta uma questão
2004; Leite & Colombo, 2006). básica, relacionada com o eixo central dos
A Autoscopia é um procedimento de objetivos, solicitando que o sujeito verbalize
coleta de dados conhecido como confrontação livremente. Os relatos são gravados, em vídeo
de si na tela: são realizadas sessões de gravação ou áudio, mediante consentimento do sujeito; c)
do comportamento do sujeito (ex: relações em na sequência, a fita da primeira entrevista é
sala de aula) e, após edição da fita, o sujeito é transcrita e o pesquisador inicia a primeira
colocado em uma situação para observar o etapa do processo de análise dos dados:
organizar os conteúdos em núcleos temáticos,
que deverão ser apresentados numa matriz,
6
O Grupo do Afeto é parte integrante do grupo de contendo o título de cada núcleo, suas
pesquisa ALLE- Alfabetização Leitura Escrita, da respectivas definições e o rol dos recortes dos
Faculdade de Educação da Unicamp. fragmentos de fala do sujeito que deram origem
Afetividade nas práticas pedagógicas 359

aos núcleos; d) com esse material pronto, o constituição do sujeito como leitor; a
pesquisador solicita uma segunda entrevista afetividade nas práticas pedagógicas,
com o sujeito, onde apresenta, inicialmente, as planejadas e desenvolvidas pelos professores
matrizes contendo os núcleos temáticos e em sala de aula. É sobre este último eixo que se
solicita ao sujeito que complemente, altere, relaciona o presente texto.
amplie ou mantenha os núcleos elaborados. Após os primeiros trabalhos de pesquisa
Além disso, o pesquisador deverá apresentar as sobre o tema, focando principalmente as
dúvidas específicas surgidas, bem como outras relações interpessoais em sala de aula, logo
questões elaboradas; e) os dados da segunda percebemos que a dimensão afetiva extrapola
entrevista também deverão ser transcritos e os limites das relações epidérmicas e contatos
incluídos nos núcleos temáticos já existentes, o face a face. Os estudos que orientamos e
que pode ampliar os núcleos temáticos, a partir acompanhamos sobre o professor inesquecível
da matriz inicial; f) outras entrevistas poderão (Falcin, 2003; Tagliaferro, 2003) apontaram, de
ocorrer seguindo o mesmo procedimento acima forma clara, que todas as decisões planejadas e
descrito. Essa etapa de coleta e análise inicial desenvolvidas pelos professores produzem
de dados é encerrada quando sujeito e fortes impactos afetivos nos alunos, mesmo
pesquisador concordarem que o assunto foi quando os docentes não estão fisicamente
adequadamente abordado, não havendo mais presentes na situação, como ocorre nas relações
novas considerações; g) após as entrevistas com face a face. Isto nos levou a ampliar o nosso
todos os sujeitos, inicia-se a segunda etapa de olhar para as práticas/mediações pedagógicas,
análise, agora sob a responsabilidade somente envolvidas especificamente com as condições
do pesquisador, com o cotejamento de todas as de ensino, tentando identificar e analisar a
matrizes individuais. A meta é a construção de repercussões que as mesmas produzem nas
uma matriz final, que deverá abranger o relações que se estabelecem entre os
conjunto de núcleos temáticos com todos os alunos/sujeitos e os respectivos conteúdos
dados considerados relevantes, verbalizados escolares/objetos abordados em sala de aula.
pelos sujeitos, sobre os objetivos da pesquisa. Assim, o foco do nosso olhar sobre a dimensão
Esses serão, portanto, os resultados da afetiva passou a ser, especificamente, os
pesquisa: o conjunto dos núcleos temáticos, processos de ensino e de aprendizagem que
com seus títulos, definições e conteúdos ocorrem na sala de aula.
verbais, os quais deverão ser, posteriormente,
objetos de discussão e interpretação, à luz da
abordagem teórica assumida.
Bases teóricas
Um dos primeiros trabalhos que Este é um tema sobre o qual é fundamental
orientamos, utilizando o procedimento de a construção de um modelo teórico adequado,
entrevistas recorrentes, foi o de Grotta (2000), que possibilite uma compreensão que
que analisou o processo de constituição de ultrapasse o olhar tradicional ou o senso
leitores de quatro sujeitos adultos. comum sobre a relação razão x emoção, como
A partir desses projetos iniciais, as já foi discutido. Um modelo teórico que nos
pesquisas foram desenvolvidas, tendo como ajude a entender que o Homem é um ser único;
objeto as relações que ocorrem em sala de aula. que o dualismo é uma leitura artificial da
Especificamente, a maioria das pesquisas constituição humana, produzido pelo próprio
estudou as mediações pedagógicas planejadas e Homem em função de determinadas condições
desenvolvidas pelos professores. O livro que históricas, políticas e sociais; que o Homem é
organizamos (Leite, 2006) representou um um ser que pensa e sente simultaneamente,
marco importante nesse processo ocorrido no sendo que a emoção está sempre presente na
Grupo do Afeto: foi planejado e escrito relação do Homem com a cultura; que,
visando, principalmente, aos educadores que portanto, razão e emoção são indissociáveis, o
atuam nas redes de ensino e demais professores que aponta para uma concepção
e estudantes, que tenham interesse pelo tema. holística/monista sobre a constituição humana.
Assim, durante esse período, é possível Enfim, este é um tema que exige estudo e o
identificar três grandes eixos que nortearam os exercício da reflexão sobre o mesmo, uma vez
trabalhos desenvolvidos no Grupo do Afeto: a que essas questões frequentemente esbarram e
afetividade nas relações interpessoais colidem com velhas concepções ideológicas, de
professor-aluno-aluno; o processo de natureza liberal, muitas delas ainda fortemente
360 Leite, S. A. da S.

presentes na própria constituição de nossa autor (Wallon, 1971), caberá às manifestações


subjetividade. emocionais, através do seu poder de contágio,
O conjunto de pressupostos teóricos, possibilitar ao recém-nascido sensibilizar as
presente desde o início do trabalho com o pessoas do ambiente para satisfazer suas
Grupo do Afeto, foi sendo gradualmente necessidades e desejos.
solidificado, à medida que novos dados e A afetividade, por sua vez, envolve uma
relações iam sendo analisados a cada pesquisa gama maior de manifestações, englobando as
desenvolvida. Tais pressupostos foram emoções (de origem biológica) e os
estabelecidos a partir de dois grandes teóricos sentimentos (de origem psicológica). Neste
da Psicologia contemporânea: L. S. Vygotsky e sentido, é um processo mais amplo, que
H. Wallon. envolve a emoção, o sentimento e a paixão.
Portanto, no campo da teoria psicológica, Segundo Mahoney (2004),
buscamos respaldo, para ancorar as pesquisas
do Grupo do Afeto, em autores que apresentam, as emoções são identificadas pelo seu lado
em comum, teorias com pressupostos centrados orgânico, empírico e de curta duração; os
na concepção materialista dialética, segundo a sentimentos, mais pelo componente
qual o processo de desenvolvimento humano e, representacional e de maior duração [...] A
portanto, as funções superiores que paixão é encoberta, mais duradoura, mais
caracterizam o homem devem ser explicados intensa, mais focada e com mais autocontrole
sobre o comportamento. (p. 17-18)
pelas relações que o homem mantém com a sua
cultura, no seu ambiente social. Para esses
autores, o objetivo da teoria psicológica é Assim, a afetividade é um conceito mais
explicar os mecanismos pelos quais os amplo, constituindo-se mais tarde no processo
processos naturais/filogenéticos, presentes no de desenvolvimento humano, envolvendo
recém-nascido, se mesclam com os processos vivências e formas de expressão mais
culturais e sociais para produzir as funções complexas, desenvolvendo-se com a
complexas que caracterizam o homem maduro. apropriação, pelo indivíduo, dos processos
Wallon (1968, 1971, 1978) desenvolveu simbólicos da cultura, que vão possibilitar sua
uma teoria sobre o processo de representação. É um conceito que “além de
desenvolvimento humano centrado no processo envolver um componente orgânico, corporal,
de relação entre quatro grandes núcleos motor e plástico, que é a emoção, apresenta
funcionais, determinantes do processo: a também um componente cognitivo,
afetividade, a cognição, o movimento e a representacional, que são os sentimentos e a
pessoa. Para o autor, o processo de paixão” (Dér, 2004, p. 61). Deve-se, no
desenvolvimento, que ocorre através da entanto, relembrar que a complexificação das
contínua interação entre esses núcleos, só pode formas de manifestação afetivas – que alguns
ser explicada pela relação dialética entre os autores caracterizam como cognitivização do
processos biológicos/orgânicos e o ambiente processo de desenvolvimento afetivo – só pode
social – ou seja, o biológico e o social são ser atingida através da mediação cultural, a
indissociáveis, estando dialeticamente sempre partir, portanto, de um ambiente social (Dantas,
relacionados. 1992).
Para Wallon (1968), as emoções são Desta forma, emoção e cognição
manifestações de estados subjetivos, mas com coexistem no indivíduo em todos os momentos,
componentes orgânicos (contrações embora, nas diversas etapas do
musculares, viscerais, etc.). Assim, na teoria desenvolvimento, Wallon defende que há um
walloniana, a emoção é o primeiro e mais forte predomínio alternado entre as duas funções.
vínculo que se estabelece entre o sujeito e as Como lembra Almeida (1999), “a inteligência
pessoas do ambiente, constituindo as não se desenvolve sem afetividade, e vice-
manifestações iniciais de estados subjetivos, versa, pois ambas compõem uma unidade de
com componentes orgânicos. Apresenta três contrários” (p.29).
propriedades: a) contagiosidade – a capacidade Vygotsky (1993, 1998), por sua vez, de
de contaminar o outro; b) plasticidade – a maneira semelhante, assume uma posição
capacidade de refletir sobre o corpo os seus segundo a qual o indivíduo nasce como ser
sinais; c) regressividade – a capacidade de biológico, fruto da história filogenética da
regredir as atividades ao raciocínio. Para o espécie, mas que, através da inserção na
Afetividade nas práticas pedagógicas 361

cultura, constituir-se-á como um ser sócio- que desempenha um papel ativo nos processos
histórico. Ou seja, o ser humano nasce com as de interação vivenciados.
chamadas funções elementares, de natureza Com relação à afetividade, Vygotsky
biológica. Cabe à teoria psicológica explicar (1993) denuncia a divisão histórica entre os
como tais funções, a partir da inserção cultural, afetos e a cognição, apontando-a como um dos
vão se constituir nas chamadas funções grandes problemas da Psicologia na sua época,
superiores, que caracterizam o ser humano. ao mesmo tempo em que critica as abordagens
Oliveira (1993) resume as ideias basilares orgânicas. Para o autor, as emoções deslocam-
da teoria vygotskyana: a) as funções se do plano individual, inicialmente biológico,
psicológicas superiores têm suporte biológico, para um plano de função superior e simbólico,
pois são produtos da atividade cerebral; o de significações e sentidos, constituídos na/pela
cérebro, assumido como a base biológica do cultura. Nesse processo, internalizam-se os
funcionamento psicológico, é entendido como significados e sentidos, atribuídos pela cultura e
um sistema aberto e de grande plasticidade, o pelo indivíduo aos objetos e funções culturais, a
que permite as imensas possibilidades de partir das experiências vivenciadas, sendo
realização humana e a enorme capacidade de crucial o papel do outro, como agente mediador
adaptação do homem; b) o funcionamento entre o sujeito e os objetos culturais. Assim,
psicológico fundamenta-se nas relações sociais para o autor, “as emoções isolam-se cada vez
concretas entre o indivíduo e o mundo exterior, mais do reino dos instintos e se deslocam para
as quais se desenvolvem num processo um plano totalmente novo.” (Vygotsky, 1998,
histórico; assim, as funções superiores p. 94)
constituem-se na/pela cultura; c) a relação Comparando-se as posições de Wallon e
homem-mundo é sempre mediada por sistemas Vygotsky sobre a afetividade, percebe-se que
simbólicos, o que coloca o conceito de os autores apresentam pontos comuns com
mediação como central na teoria. Dentre os relação aos aspectos essenciais do fenômeno
sistemas simbólicos, a fala é considerada em pauta: a) ambos assumem uma concepção
fundamental para a construção das funções desenvolvimentista sobre as manifestações
superiores, sendo internalizada nos anos iniciais emocionais: inicialmente orgânicas, vão
do processo de desenvolvimento, passando a ganhando complexidade na medida em que o
funcionar como um instrumento do indivíduo desenvolve-se na cultura, passando a
pensamento. atuar no universo simbólico, ampliando-se e
O desenvolvimento humano pode ser complexificando-se suas formas de
entendido como um processo de apropriação manifestação; b) assumem, pois, o caráter
dos elementos e processos culturais, ocorrendo social da afetividade; c) assumem que a relação
no sentido do externo (relações interpessoais) entre a afetividade e inteligência é fundante
para o interno (relações intrapessoais), mediado para o processo do desenvolvimento humano.
pela ação do outro (pessoas físicas ou agentes Na sequência, apresentamos uma síntese
culturais). A aprendizagem desempenha, das ideias que embasaram todo o trabalho de
portanto, um papel crucial na medida em que pesquisa desenvolvido pelos membros do
possibilita o processo de desenvolvimento. Grupo do Afeto:
É inegável o impacto dessas concepções a) a produção do conhecimento é um
no pensamento pedagógico. De um lado, aponta processo que ocorre a partir da relação que se
que o processo de mediação pedagógica é estabelece entre o sujeito e o objeto. Nessa
fundamental na relação que se estabelece entre relação, o sujeito tem uma participação
o sujeito/aluno e o objeto de essencialmente ativa, ou seja, as relações com
conhecimento/conteúdos escolares, lembrando os diversos objetos possibilitam ao sujeito a
que, em sala de aula, o professor é o principal elaboração de ideias, hipóteses, relações,
agente mediador, embora não o único. De outro análises, sínteses, etc. Tais processos, na
lado, sugere que a mediação pedagógica ocorre escola, correspondem às relações que se
através de práticas e situações concretas, o que estabelecem entre o aluno e os diversos
significa que as mesmas podem ser planejadas conteúdos abordados;
de forma a aumentar as chances da b) toda relação sujeito-objeto é sempre
aprendizagem com sucesso pelo aluno. Este, mediada por agentes culturais, que podem ser
por sua vez, é entendido por Vygotsky (1998) pessoas físicas ou produtos culturais, como no
como um sujeito interativo, ou seja, um sujeito caso de um texto produzido por alguém, que
362 Leite, S. A. da S.

possibilita o contato entre o sujeito e um Deve-se ressaltar que, nesse processo, o


determinado objeto/assunto. Além disso, pode- oposto também pode ser verdadeiro ˗ aliás, um
se assumir que a maneira como o processo de processo muito conhecido e intensamente
mediação ocorrerá é um dos principais estudado, identificado na literatura como o
determinantes da qualidade da relação que vai fenômeno do fracasso escolar. Tal conceito é
se estabelecer entre o sujeito e o respectivo frequentemente analisado em termos dos
objeto. Na escola, o principal agente mediador índices de repetência e evasão escolares.
entre o sujeito (aluno) e o objeto (conteúdo Entretanto, do ponto de vista afetivo,
escolar) é, sem dúvida, o professor, na medida corresponde a processos de mediação
em que todas as práticas pedagógicas pedagógica, cujo produto final geralmente é
dependem de seu planejamento e da forma marcado por uma relação afetiva negativa – de
concreta como são desenvolvidas; afastamento – entre o sujeito e o objeto em
c) as relações que se estabelecem entre foco.
sujeito-objeto-mediador também são Neste sentido, uma das tarefas da pesquisa
marcadamente afetivas. Ou seja, tais relações é descrever e analisar as práticas pedagógicas
não envolvem somente as esferas desenvolvidas em sala de aula (incluindo os
cognitivas/intelectuais, mas, simultaneamente, processos de mediação que ocorrem fora desse
provocam repercussões internas e subjetivas ambiente físico específico) que favorecem,
nos sujeitos, de natureza basicamente afetiva; principalmente, o estabelecimento de relações
de aproximação entre o sujeito/aluno e o
d) finalmente, como consequência objeto/conteúdos escolares. Isto porque o
inevitável dos pressupostos acima expostos, conceito de mediação pedagógica não se refere
assume-se que a qualidade da mediação a ideias metafóricas, mas a relações
desenvolvida é um dos principais determinantes concretamente estabelecidas e vivenciadas, em
da relação que vai se estabelecer entre o sujeito sala de aula, que podem ser acessadas pelo
e o objeto de conhecimento, envolvendo, olhar do pesquisador, através, obviamente, de
simultaneamente, as dimensões cognitiva e metodologias adequadas às características dos
afetiva. Em outras palavras, o tipo de relação fenômenos estudados.
afetiva que vai se estabelecer entre o aluno e Da mesma forma, entendemos também ser
um determinado conteúdo escolar – relação que tarefa da pesquisa identificar as relações
pode variar entre fortes movimentos de pedagógicas que produzem as situações de
aproximação ou de afastamento, ou seja, afastamento entre sujeito-objeto, caracterizadas
relações de amor ou de ódio, nos seus extremos por impactos afetivamente negativos nos
– vai depender, em grande medida, da alunos.
concretude das práticas de mediação
pedagógica planejadas e desenvolvidas em sala
de aula, pelos agentes mediadores, o que nos Afetividade nas decisões
leva a ratificar que as práticas de mediação pedagógicas
pedagógica também são marcadamente O conjunto dos dados produzidos pelas
afetivas. pesquisas desenvolvidas no Grupo do Afeto
O conjunto de dados que temos reunido, (Leite & Tassoni, 2002, 2007; Leite &
através dos projetos desenvolvidos no Grupo do Tagliaferro, 2005; Leite, 2006; Leite & Falcin,
Afeto, permite-nos supor que, quando a 2006; Leite & Kager, 2009) nos permitiu
mediação pedagógica possibilita ao aluno identificar algumas das decisões assumidas por
apropriar-se com sucesso do objeto – o que um professor, ao planejar e desenvolver o seu
chamamos de aprendizagem com sucesso, a curso, seja no ensino fundamental, médio ou
qual é percebida pelo aluno – aumentam as superior. Não estamos nos referindo à
possibilidades de se estabelecer um vínculo determinada metodologia de ensino, mas
afetivo positivo – de aproximação – entre o reconhecemos que, independente da orientação
aluno e o objeto/conteúdo desenvolvido. teórica assumida pelo docente, em toda
Portanto, a aproximação positiva entre o aluno situação de ensino planejada, o professor deve
e os conteúdos estudados depende, em grande assumir algumas decisões que, no seu
parte, da consciência que o mesmo desenvolve desenvolvimento prático, terão inevitáveis
sobre o sucesso do seu processo de consequências afetivas na relação que se
aprendizagem. estabelecerá entre o aluno e os conteúdos
Afetividade nas práticas pedagógicas 363

específicos de ensino, como já abordamos no Entretanto, deve-se relembrar que a


item anterior. relação inversa também pode ser verdadeira:
um ensino burocrático, com objetivos cuja
É possível identificar algumas dessas
relevância não é compreendida pelos alunos,
decisões e seus possíveis impactos. Evitando
pode colaborar para o movimento de
uma posição reducionista, ao reconhecer que,
afastamento na relação que vai se estabelecer
certamente, há outros fatores que compõem o entre o sujeito e o objeto. Obviamente, isso se
processo de mediação pedagógica, pretendemos
relaciona com o projeto pedagógico da escola,
analisar cinco reconhecidas decisões,
incluindo os objetivos específicos de cada área
identificadas, como já explicado, a partir dos
curricular; tal projeto ser fruto da reflexão
dados acumulados pelas pesquisas do Grupo do
coletiva do corpo docente da escola, processo
Afeto. São elas: a) a escolha dos objetivos de
em que a relevância dos objetivos e conteúdos
ensino; b) a decisão sobre o início do processo
de ensino deve ser objeto de contínua discussão
de ensino; c) a organização dos conteúdos de
e avaliação.
ensino; d) a escolha dos procedimentos e
atividades de ensino; e) a escolha dos b) A decisão sobre o início do processo de
procedimentos de avaliação do ensino. ensino
Segue-se uma síntese de cada uma dessas Os dados das pesquisas realizadas pelo
decisões apontadas: Grupo do Afeto, disponíveis sobre este tema,
sugerem que iniciar o ensino a partir do que o
a) A escolha dos objetivos de ensino
aluno já sabe sobre os conteúdos envolvidos
A escolha dos objetivos de ensino é uma aumenta as possibilidades de sucesso do
decisão que sempre reflete valores, crenças e processo de aprendizagem do próprio aluno.
concepções por parte de quem os escolhe ou Como vimos, tal sucesso tem inegáveis
seleciona, seja um grupo de educadores, sejam implicações afetivas envolvidas.
uma instância de um órgão público, seja um
A relação inversa também pode ocorrer,
professor isoladamente.
sendo frequentemente observada nas escolas:
A dimensão afetiva relacionada aos quando o professor decide iniciar seu programa
objetivos de ensino refere-se à relevância dos de ensino muito além do conhecimento atual do
mesmos, reconhecida por uma determinada aluno, cria uma situação em que aumentam as
população ou por um sujeito. O problema se chances do insucesso ocorrer logo no início do
coloca quando o aluno não identifica a processo de ensino-aprendizagem; deterioram-
relevância dos objetivos propostos, seja para se, assim, prematuramente, as possibilidades de
sua vida, seja para a sociedade em que vive, se estabelecer uma relação afetivamente
seja para o seu futuro profissional. Neste positiva entre o aluno e os conteúdos.
sentido, grande parte dos objetivos de ensino da
Este problema da ausência de
escola tradicional tem sido apontada como
conhecimento prévio, necessário para que o
irrelevante, do ponto de vista do aluno, o que,
aluno inicie a aprendizagem a partir do ponto
certamente, colabora com a construção de uma
definido pelo professor, tem sido
escola divorciada da realidade. Isto não
tradicionalmente apontado por outros autores.
significa que o ensino deve ser basicamente
Como exemplo, Ausubel (1968) já defendia
pragmático, mas pode-se assumir que o que dentre os fatores que influenciam a
conhecimento atualmente acumulado nas
aprendizagem, um dos mais relevantes
diversas áreas pode possibilitar aos indivíduos
relaciona-se ao conhecimento prévio do aluno.
melhores condições para o exercício da
cidadania e inserção social numa perspectiva A principal implicação pedagógica desta
crítica e transformadora. É importante, pois, decisão sugere que o início do ensino deve ser
que a escola selecione objetivos e conteúdos definido somente após o professor realizar uma
nesta perspectiva e que os alunos reconheçam a breve avaliação diagnóstica sobre os conteúdos
relevância dos mesmos, propostos em cada julgados como essenciais, para que o aluno
disciplina ou área curricular; isto aumenta as tenha as condições para iniciar o ensino a partir
possibilidades de que se estabeleçam vínculos de um ponto determinado. Com isso,
afetivos positivos entre os alunos e os objetivos diminuem-se as chances de um fracasso
abordados. prematuro do aluno – e as consequentes
364 Leite, S. A. da S.

relações afetivas negativas na relação que se relação afetiva de aproximação entre o aluno e
estabelece com o objeto. os conteúdos envolvidos.
c) A organização dos conteúdos de ensino Por outro lado, a escolha dos
procedimentos e atividades de ensino apresenta
Quando os conteúdos de um curso são inúmeros desafios que podem transformar tais
organizados de forma aleatória, não se escolhas em verdadeiras condições de fracasso
respeitando a lógica da organização do para o aluno: é o caso, por exemplo, da escolha
conhecimento da área, dificulta-se o processo inadequada de uma atividade, tendo em vista o
de apropriação dos referidos conteúdos pelo objetivo proposto. É comum a ocorrência de
aluno. É o caso das situações em que o atividades de ensino não relacionadas com os
professor não analisa adequadamente os objetivos específicos esperados; tal fato é
objetivos de ensino e não identifica os reforçado quando as atividades de avaliação
conteúdos envolvidos, bem como a maneira utilizadas são radicalmente diferentes das
como, por exemplo, os conceitos e princípios atividades de ensino utilizadas pelo professor.
de uma determinada área se relacionam. Alguns Ou, ainda, o desenvolvimento de uma atividade
dados das pesquisas realizadas sugerem que a totalmente desmotivadora, mesmo quando se
ausência de uma organização lógica dos apresentam objetivos relevantes. Geralmente,
conteúdos de um determinado curso pode os jovens demonstram grande sensibilidade
aumentar as possibilidades de fracasso do para identificar uma atividade de ensino como
aluno, colaborando com a prevista deterioração adequada ou não, em função dos objetivos
das relações afetivas entre o aluno e o objeto propostos.
em pauta. Organizar os conteúdos de forma
adequada, portanto, parece estar relacionado Além desses problemas, uma atividade de
com o fato de o professor respeitar a ensino pode ser inadequada por algum
organização epistemológica da respectiva área problema na sua organização interna: pode
de ensino; ou seja, como o professor não ensina ocorrer a ausência de instruções claras, ou
todo o conteúdo de uma só vez e como o aluno ocorrência de intervenções inadequadas por
também não aprende dessa forma, é necessário parte do professor, falta de correção com
organizar esse conteúdo, sequenciando-o e relação ao desempenho do aluno, ou mesmo
delimitando-o em cada etapa do ensino. É ausência de atividade relevante prevista para o
possível que as dificuldades de análise dos aluno realizar. Quando tais problemas são
objetivos ˗ geralmente por desconhecimento frequentes ou adquirem uma grande proporção,
dos professores ˗ expliquem parcialmente o a atividade escolar pode se tornar uma prática
frequente uso do livro didático como extremamente indesejável e desmotivadora para
instrumento principal de ensino dos cursos. No o aluno, produzindo, geralmente, efeitos
entanto, outros fatores também podem estar desastrosos e, obviamente, deteriorando, às
relacionados com esse fato. vezes por completo, as possíveis relações
afetivas entre o aluno e os conteúdos
d) A escolha dos procedimentos e atividades de abordados. Além disto, são frequentes os casos
ensino de afastamento afetivo que podem ocorrer entre
A escolha das atividades de ensino está o aluno e todo o ambiente escolar.
ligada às relações que, efetivamente, vão Finalmente, deve-se destacar que nas
ocorrer na sala de aula – se o professor vai atividades de ensino concentra-se,
ministrar aula expositiva e como, se vai dar concretamente, grande parte da carga afetiva da
trabalho em grupo, propor leitura de texto, sala de aula, através das relações interpessoais
realizar pesquisa de campo, etc. São, pois, as entre professores e alunos: olhares, posturas,
relações observáveis, geralmente com efeitos conteúdos verbais, contatos, proximidade, tom
imediatos identificados na própria situação, que de voz, formas de acolhimento, instruções,
devem ser adequadas aos objetivos propostos. correções, etc. constituem aspectos da trama de
Neste sentido, é inegável a implicação da relações interpessoais que implicam em um
dimensão afetiva em cada atividade planejada e enorme poder de impacto afetivo no aluno,
desenvolvida. Atividades bem escolhidas e positivo ou negativo, dependendo da forma
adequadamente desenvolvidas, sem dúvida, como essas interações são vivenciadas. Daí a
aumentam as chances do aprendizado com relevância dessas decisões: afinal, elas se
sucesso por parte do aluno e a consequente referem às formas concretas como as relações
Afetividade nas práticas pedagógicas 365

face a face são vividas e percebidas em sala de relação dialética existente entre esses dois
aula. processos – ensino e aprendizagem são
processos interdependentes. Desta forma,
e) A escolha dos procedimentos de avaliação
somente quando os dados da avaliação são
do ensino
utilizados a favor do aluno, garante-se uma das
Uma das unanimidades observadas nos principais condições para que se estabeleça
dados acumulados pelas nossas pesquisas é que uma relação afetivamente positiva entre o
a avaliação tradicional tem sido apontada como sujeito e o objeto. Isto só ocorre, portanto,
um dos principais fatores responsáveis pelo quando os resultados da avaliação são
fracasso do processo de ensino e aprendizagem, utilizados, por exemplo, para a revisão das
ou seja, pelo distanciamento afetivo entre o condições de ensino ou subsidiem estratégias
sujeito/aluno e o objeto/conteúdo. A avaliação que possibilitem que os alunos apropriem-se
parece tornar-se desastrosa quando seus adequadamente dos conteúdos desenvolvidos.
resultados são utilizados contra o aluno e, Deve-se destacar que tais alternativas
obviamente, quando tal relação é identificada também implicam no trabalho coletivo
pelo aluno. Esta é a lógica do processo de desenvolvido pelos docentes na instituição, ou
avaliação tradicional, que tem como objetivo, seja, a política de avaliação de ensino não pode
basicamente, o ranqueamento dos alunos, ser um tema puramente individual, a ser
identificando os melhores e os piores. Como decidida pelo docente isoladamente, mas exige
todo seu fundamento está centrado na diretrizes comuns, discutidas e assumidas por
concepção de homem derivada da ideologia toda a instituição.
liberal, base do sistema capitalista, pressupõe-
se que as diferenças nas capacidades humanas
são inatas, distribuídas gaucianamente7 entre os Uma palavra final
homens. A partir do exposto, é possível defender
Nesta perspectiva, ensino e aprendizagem que a afetividade está presente em todas as
são entendidos como processos independentes: decisões assumidas pelo professor em sala de
ensino é tarefa do professor, aprendizagem é aula, produzindo continuamente impactos
obrigação do aluno – e se esta não ocorre positivos ou negativos na subjetividade dos
adequadamente, certamente é por algum fator alunos. Trata-se, pois, de um fator fundante nas
relacionado intrinsecamente com o aluno. Leite relações que se estabelecem entre os alunos e
& Kager (2009) apontam os efeitos os conteúdos escolares. A qualidade da
devastadores que o processo de avaliação mediação pedagógica, portanto, é um dos
tradicional pode produzir nas relações entre principais determinantes da qualidade dos
sujeito-objeto. vínculos que se estabelecerão entre os
Por outro lado, qualquer alternativa que se sujeitos/alunos e os objetos/conteúdos
coloque implica em profundas mudanças nas escolares.
concepções de ensino e aprendizagem – Com isto, não estamos defendendo uma
mudanças inclusive de natureza ideológica, proposta pedagógica específica, mas
envolvendo visão de homem, de mundo, de assumimos que não é mais possível que se
sociedade, de relações interpessoais, e, planejem as condições de ensino sem que se
obviamente, de ensino e aprendizagem. considerem os possíveis impactos afetivos que,
Luckesi (1984) propõe o conceito de inevitavelmente, essas condições produzem nos
avaliação diagnóstica, reconhecendo que, alunos. Numa perspectiva educacional, isto
numa sociedade democrática, os resultados do aponta para um ambiente escolar absolutamente
processo de avaliação devem sempre ser comprometido com o sucesso do processo de
utilizados a favor do processo de aprendizagem aprendizado do aluno, o que só poderá se
do aluno, na medida em que altera a lógica de concretizar através de um projeto pedagógico
todo o processo tradicional: se a aprendizagem assumido e desenvolvido pelo coletivo dos
não ocorre adequadamente, o que pode ser professores, com esse compromisso
detectado pela avaliação, então, deve-se rever previamente assumido: a aprendizagem do
as condições de ensino, resgatando-se, assim, a aluno.
É possível, a partir dessas ideias, visualizar
7
De acordo com a curva de distribuição estatística a construção de uma escola efetivamente
de Gauss. democrática, que possibilite aos alunos
366 Leite, S. A. da S.

apropriarem-se com sucesso do conhecimento Engelman, A. (1978). Os Estados Subjetivos:


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