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INSTITUTO TEOLÓGICO SÃO PAULO – ITESP

INSTITUTO SÃO PAULO DE ESTUDOS SUPERIORES - ISPES

Carlos Antônio Silva Maia

À BEIRA DOS RIOS DA BABILÔNIA

Trabalho de aproveitamento da
disciplina de Salmos, do curso
Bacharelado de Teologia do Instituto
São Paulo de Estudos Superiores,
sob a orientação da Professora Maria
Antônia Marques

SÃO PAULO, 17 de novembro de 2020


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1. INTRODUÇÃO

Existe uma riqueza literária presente na Escritura muitas vezes ignorada por parte
daqueles que a leem. Gêneros, formas, fontes históricas, sentimentos, narrativas de diversos
modos, mitos, entre tantas características que podem passar desapercebidos sem um olhar
cauteloso, analítico e crítico. O livro dos Salmos não escapa desta variada fonte de riquezas
espirituais, religiosas e humanas. Compilando uma série de poemas e orações, espontâneas ou
metricamente planejados, por volta do século III a.C., o livro dos Salmos faz parte da grande
literatura sapiencial judaica. Recitado pelas inúmeras gerações, chegou até os cristãos que têm
grande afinidade com este livro, alcançando o mundo literário com suas nuances espirituais e
humanas. Ademais, carregam consigo não os fatos históricos do povo de Israel, mas a carga de
sentimentos, intenções, lamentos e orações que estes possivelmente tenham vivido – seja
individualmente ou comunitariamente como povo.
Neste sentido, respeitando a identidade literária de cada salmo, nosso trabalho tem como
objetivo principal a análise do salmo 137(136). Para tanto, primeiramente devemos entrar em
contato com o próprio texto, o qual será extraído da Tradução Ecumênica da Bíblia – TEB. Ao
mesmo tempo que, apesar de não estar aqui transcrito, é feita comparações com o texto da
Septuaginta em hebraico. Num segundo passo, a fim de uma busca pelo contexto histórico, a
partir das características que tem o presente salmo, traçaremos possibilidades de contextualização
– o que consideraremos pós exílico. Para então, no terceiro passo podermos caracterizar este
contexto histórico: passando pela experiência do exílio e do pós-exílio. Na quarta parte é que,
baseados nas características elencadas do possível período histórico de composição, iremos
analisar cada versículo, tentando identificar as características e comentar o significado poético
das expressões. Por fim, como forma de conclusão, atualizaremos o Salmo 137, à luz de todo este
processo anterior, com a poesia A dor da distância.

2. SALMO 137 (136)

1
À beira dos rios da Babilônia,
ali ficávamos sentados, desfeitos em prantos,
pensando em Sião.
2
Nos salgueiros da vizinhança
havíamos pendurado as nossas cítaras.
2

3
Ali, os conquistadores nos pediram canções,
e os nossos raptores, melodias alegres:
“Cantai para nós algum canto de Sião”.

4
Como cantar um canto do Senhor
em terra estrangeira?
5
Se eu te esquecer, Jerusalém,
que a minha direita esqueça...!
6
Que a minha língua se me cole ao céu da boca
se eu não pensar em ti,
se eu não preferir Jerusalém
a qualquer outra alegria.

7
Senhor, pensa nos filhos de Edom,
que diziam no dia de Jerusalém:
“Arrasai, arrasai até os fundamentos!”

8
Filha da Babilônia, prometida para a destruição,
feliz aquele que te tratar
como tu nos trataste!
Feliz aquele que pegar tuas criancinhas de peito
E arremessa-las contra a rocha!

3. UM PEQUENO PERCURSO HISTÓRIO

O salmo 137, como se deve presumir, é parte do grande conjunto de salmos, os quais,
apesar de estarem unidos em um único livro na Sagrada Escritura, apresentam por si só ideias
muito particulares. Isto se deve ao seu estilo literário, cujo escopo é a oração muitas vezes
espontânea, ou por vezes a poesia com determinada finalidade. Portanto, não seguem as mesmas
regras dos outros estilos literários presentes na Escritura. A literatura sálmica está presente para
além do Livro de Salmos, preenchendo os grandes momentos expressivos da escritura com seu
estilo profundo e artístico ao louvar, suplicar, lamentar, celebrar, contar as maravilhas e vitórias,
entre outras motivações.
Nesta parte de nosso trabalho iremos fazer uma leitura com a tentativa de traçar
hipóteses com relação ao seu contexto. Assim é que vamos primeiramente buscar indícios, no
texto, que nos mostrem uma certa possibilidade de compararmos com o processo histórico de
3

Israel. Após a explanação das possibilidades, iremos tratar especificamente do contexto ao qual
consideraremos estar inserido.

3.1. À BEIRA DOS RIOS DA BABILÔNIA...

Já desde o primeiro versículo pode parecer evidente a que momento específico da história
de Israel pode remontar este salmo. Ao relatar que, “à beira dos rios da Babilônia” (v. 1)
sentavam-se chorando, não é difícil presumir que este salmo esteja vinculado a grande marca que
deixou o Exílio da Babilônia no povo de Israel, de modo especial aos que foram para lá
deportados. Dito de outro modo: a narrativa que se encontra em 2Rs 23,36 – 25,21 que conta a
triste realidade dos que testemunharam os anos de destruição de Jerusalém por parte da
Babilônia, pode ser uma luz interpretativa para encontrar o chão temático do qual trata o poeta
salmista.
Ao falarmos especificamente dos deportados, nos referimos ao fato de que o salmista
conta como uma situação acontecida em Babilônia e com que, ao chorar, estavam “pensando em
Sião” (v.1). Ademais, pode-se inferir tais conclusões ao encontrar o desejo de vingança com
relação a Edom, povo irmão (cf Gn 31,42; Jr 40,11) com os quais Israel acaba tendo alguns
problemas nacionais e conflitos entre as grandes potências. Outros textos anunciam um certo
desejo de vingança com relação aos edmoitas como é o caso de Ab 11ss, Ez 25,12-14; 35,5-15, Jr
49,7-22, Am 1, 11-12, entre muitos outros textos que podem ser encontrados.
Por outro lado, apesar da aparente evidência de que seja composto em tempos exílicos, o
constante uso do verbo no passado completo deixa questões em aberto com relação ao período de
sua composição. Isto é, se o salmista se refere a um evento no passado, pode-se concluir uma
possível retomada da memória dos sofrimentos vivenciados no Exílio, o que leva a alguns
comentadores a concluírem que a base autoral se encontra não mais no exílio, mas no pós-exílio.
Um deles é Artur Weiser (1994, p. 622):

Este salmo [...] revela o sofrimento e estado de ânimo de pessoas que talvez tenham
presenciado os dias duros da conquista e destruição de Jerusalém em 587 a.C., que
carregam o jugo do cativeiro babilônico e agora, depois do retorno à pátria, com certeza
contemplando a cidade ainda em ruínas, dão vazão em crescendo cada vez mais potente
aos sentimento que dormitam nos corações.

Ou seja, o provável contexto em que foi composto é o pós-exílio. Os sentimentos


resguardados na dura vivência dos dias no exílio, distantes da terra, do templo, da cultura, entre
outros fatores dos quais iremos tratar no seguinte item, ao chegar em Jerusalém e encontrá-la
4

destruída pelos mesmos que os levaram deportados, reascendem memórias, lamentos,


sofrimentos, angústias, desejos de vingança, e sobretudo a grande alegria encontrada em
Jerusalém: “preferir Jerusalém a qualquer alegria” (v.6cd). Tendo isto presente, podemos agora
perpassar, de forma suscinta, o que foi o exílio, suas consequências na vida dos habitantes de
Judá, e de modo especial como acabam digerindo tudo isso no pós-exílio.

3.2. UM PASSO PELO EXÍLIO E O PÓS EXÍLIO DA BABILÔNIA

Ao referirmo-nos a Exílio tratamos dos eventos acontecidos entre os anos de 597 e 586
a.C., quando sob Nabucodonosor, a Babilônia1 invadiu os territórios de Judá, deportando muitos
dos que lá habitavam e deixando muitos mais sem uma estrutura, sem riquezas, com templo e
cidade destruídos. Após o fim do Reino de Israel Norte em 732 e 722 a.C. (cf. 2Rs 15,29; 17, 1-6;
18, 9-12; Os 10,6) com semelhantes deportações realizadas pelos Assírios, passa o mesmo com o
Reino de Israel Sul – Judá – quando a Babilônia lhes subjuga. Isto perdurará até o ano de 539
a.C. com a chegada dos persas, sob Ciro, o qual, após a conquista da Babilônia, concede a
repatriação dos exilados.
Neste aspecto é que nosso trabalho não pretende exaurir as discussões acerca da História
do Antigo Israel, em especial o período exílico e pós exílico, mas, precisamente a partir de
algumas características que foram sendo forjadas na teologia e vivência da fé entre o “Povo
Eleito” – inclusive essa noção de eleição – a fim de uma melhor compreensão das dimensões que
tem o salmo por nós analisado – 137(138). Primeiro nos dedicamos a um pequeno percurso
histórico dos acontecimentos que culminaram nas deportações e destruição da capital de Judá.
Segundo passo será o destaque de algumas características que foram, paulatinamente, sendo
assimiladas pelo povo mais tarde chamado Judeu. Em um terceiro momento, a modo de
conclusão desta etapa, perpassaremos o momento do retorno à “Terra da Promessa”, dando
atenção principalmente as marcantes conclusões que darão origem a uma nova estrutura
socioeconômica-religiosa. E deste modo intentaremos clarificar a compreensão deste salmo em
suas características marcantes.
3.2.1. O Exílio e suas marcas
1
Babilônia é a forma imperial do povo chamado Caldeu, os quais já haviam estado sob o domínio Assírio
anteriormente. Ao aumentar seu domínio não se dedicou em submeter forçosamente às demais nações vizinhas,
recebendo tributos espontâneos por parte daqueles que se apresentavam a eles. Jerusalém e Tiro ficaram
conhecidos como aqueles que tentaram desenvolver-se autonomamente, aproveitando-se da ausência de poder
(LIVERANI, 2014).
5

Por volta do ano 605 a.C. o Oriente Médio vê ascender ao poder Babilônico
Nabucodonosor como Rei daquele povo. Sua política expansionista não tardou para chegar ao
território de Judá. Logo em 597 a.C. acontece o primeiro cerco em Jerusalém, devido o rechaço
da parte do Rei Joaquin ao não querer pagar os impostos ao grande Império (cf. 2Rs 24,1-16).
Este cerco culminou na primeira deportação da parte mais rica de Judá, incluindo o Rei, filho de
Joaquim, anteriormente assassinado –anteriormente já havia pagado tributos ao Império
Babilônico, mas decidiu rebelar-se o que lhe garantiu o fim – o que levou o seu filho à sucessão.
Ao realizar tais obras sobre Judá, Nabucodonosor deixa como administrador do território, agora
vassalo, o rei Sedecias – tio de Joaquin –, cuja frustrada tentativa de suspensão dos pagamentos
ao Império levou a um segundo desastre: em 587 a.C. Jerusalém novamente é cercada e um ano
depois destruída. Assim é que no ano de 586 a.C. a capital do Antigo Israel foi totalmente
destruída, seus muros e o templo. Um novo grupo, juntamente com o rei Sedecias, foi deportado
para Babilônia como é possível visualizar em 2Rs 25,11. Vale ressaltar que em ambas as
deportações foram levados os habitantes de Jerusalém, permanecendo no território nacional os
moradores do interior e mais pobres. E mais: o território de Judá foi dividido uma parte para a
província babilônica da Samaria e o que restava – parte sul – foi entregue a Edom, os quais foram
apoio apoio aberto à Babilônia com relação à destruição de Jerusalém.
Ademais, no ano 582 a.C. uma terceira deportação foi realizada, quando Godolias –
antigo prefeito do palácio de Sedecias –, então governador do território vassalo, conspirou contra
o Império Babilônico (cf. Jr 52, 28-30). Sobre este processo estratégico de dominação do Império
da Babilônia comenta Ildo Bohn Gass (2004, p. 12): “a intenção fundamental dessa estratégia de
dominação era eliminar qualquer tentativa de resistência, suprimindo a identidade nacional do
povo”. Isto é, de modo estratégico, a Babilônia se dedica a exilar em seu país todos aqueles que
podem de certa forma ameaçar resistência contra o poder imperial: rei e sua família, nobres,
proprietários de terra, artesãos especializados, chefes militares e sacerdotes. Neste mesmo
seguimento destaca Mario Liverani (2014, p. 243): “As duas estratégias imperiais tinham,
portanto, em comum, objetivos de adquirir mão-de-obra especializada e de arrasar a classe
dirigente local [...]”. Ou seja, os motivos centrais das deportações era minar a classe dirigente, ao
passo que conseguem mão-de-obra barata por meio do aprisionamento de guerra.
Portanto, após esta experiência cai por terra todo aquele ideal nacional monárquico
anteriormente construído: se antes haviam reis davídicos, agora o soberano não passa de
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prisioneiro de guerra. O poder político e religioso, agora pertence aos dominadores babilônicos.
A Lei do estado que havia se tornado Lei de Deus, a qual deviam obedecer, esta submissão agora
é para com os estrangeiros opressores. Aquele estado nacional anteriormente formado, agora não
passa de mais uma etnia dispersa no meio cultural do grande Império dominador. A antiga
promessa de uma terra que iria pertencer ao povo de Israel cai por terra, pois claro que a terra
pertence aos dominadores babilônicos, apesar de que as profecias inspiravam esperança. A
capital com palácio e templo já não existe e estava em ruinas: muros derrubados, palácios
queimados, templo incendiado, altar demolido. Não há oferta com culto central a YHWH. E
assim Judá ficou num caos quase que total: sem dirigentes e a população dizimada pela guerra,
fome, pestes, carestia e emigração (LIVERANI, 2014).
Assim pode-se traçar algumas características dos exilados: como acenamos, os
deportados eram compostos pela elite de Jerusalém. Exceto ao Rei e sua corte que ficaram como
reféns junto aos poderosos da Babilônia, os demais tornaram-se agricultores, donos de terras. Lá
podiam cultivar seus costumes, apesar de não estar na terra santa. Começa a valorização do culto
à Lei como substituição dos sacrifícios. O sábado e a circuncisão ganham destaque para a
diferenciação étnico-religiosa com os demais. Assistiu-se então a decadência paulatina
especialmente cultural que seguiu ao colapso destrutivo (LIVERANI, 2014). Desta forma
podemos perceber o que significou para Israel este exílio, deixando marcas que doravante lhes
transformará profundamente. Assim é que vamos ao seguinte passo: pós-exílio.
3.2.2. O Pós Exílio e suas marcas
Passando-se alguns anos do cativeiro, a Babilônia no ano de 556 a.C. testemunhou a
ascensão de Nabônides ao poder, colocando a deusa Sin – Lua – no lugar de Marduc – Sol –
como divindade mais importante do império. Essas trocas constantes de divindade levaram ao
povo lá exilado a experimentar a opção fundamental pelo monoteísmo, rejeitando imagens e o
culto a deuses diferentes à YHWH – único Senhor. Enfim, neste horizonte, começa a surgir uma
nova potência no Oriente Médio: Ciro, Rei da Pérsia, que foi soberano entre os anos de 555 a 529
a.C. Seu projeto de libertação das outras potências lhe garantiu o domínio dos medos em 549 a.C.
e sobre a Lídia a partir de 547 a.C. Por suposto, não tardou em chegar à Babilônia: em 539 a.C.
entrou triunfante na capital do Império e logo foi devolvendo a liberdade aos povos lá exilados
para que cultuassem seus deuses (cf. Esd 5,14). Especialmente para nosso tema, o povo de Israel
também experimentou de forma benéfica ao olhar para Ciro como “ungido de YHWH” (cf. Is
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44,28; 45,1; 48,14). Um ano depois, em 538 a.C. puderam retornar à Jerusalém, como o atesta o
livro de Esdras 1, 1-11. Muitos retornaram à “Cidade Santa”, mas outros preferiram permanecer
na Babilônia, já que haviam lançado raízes naquele lugar.
Tendo isto presente podemos visualizar a contente alegria da libertação e o retorno à sua
terra. Mas aqueles que retornam à Jerusalém não são mais os mesmo que partiram para a
Babilônia uns 50 anos antes. Como acima comentamos, no tempo do exílio não foram todos os
habitantes de Judá para a Babilônia, restringindo o grupo aos habitantes de Jerusalém,
especialmente os mais ricos. Logo, muitos mais foram o que ficaram. No entanto, um consolo
levado juntamente com os exilados é que, com a destruição do templo e da capital, YHWH os
acompanhou para o exílio. Neste sentido, podemos perceber na literatura de Ezequiel 33, 23ss,
quando profere duras sentenças aos remanescentes de Judá – Deus não está com os que ficaram
em Judá, mas com os exilados. Assim é que os deportados começam a reconhecer-se como “o
verdadeiro Israel”, diferenciando-se dos que lá permaneceram. Inclusive isso será fonte de
inúmeros conflitos com os habitantes da Samaria.
Ademais, podemos destacar algumas realidades do pós-exílio: não havia mais um rei
para Israel, pertencendo o poder aos persas e aos religiosos sacerdotes judeus. A lei começa a
ganhar uma enorme força, juntamente com a centralização do poder sacerdotal – contanto que a
lei persa fosse seguida ao mesmo tempo. Com relação ao conflito com a Samaria: a Judéia
pertencia à mesma província da Samaria, mais tarde divididos com as construções dos Templos:
Garizim e Jerusalém. A reconstrução foi paulatina e animada pela atividade profética como
Zacarias e Ageu. Aos poucos o templo será revalorizado e centralizado novamente com os cultos.
No entanto, como pode-se atestar nos livros de Esdras e Neemias, o processo de reconstrução de
Jerusalém e de seus muros, foi acompanhado intrinsecamente com uma restauração da religião. A
lei ganha força absoluta, o sacerdote recebe poder político, o sábado passa a ser supervalorizado,
os casamentos com estrangeiras já não é permitido, leis de pureza tornam-se centrais. Tudo isso
para manter a pureza da “raça eleita”.
Enfim, são inúmeras as características que podemos ressaltar e trazer ao debate neste
contexto do Exílio e do Pós Exílio. No entanto, restringimo-nos a um pequeno passo histórico
para percebermos agora de modo mais claro o que está presente no salmo por nós analisado – 137
(138). Deixe-se claro que não pretendemos esgotar a rica e vasta situação Histórica do processo
transformativo do Exílio e do Pós Exílio. Assim é que queremos destacar alguns elementos chave
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para nosso próximo passo: a) o exílio como fator doloroso ao povo deportado; b) a alegria fora de
Jerusalém como contraditório; c) a experiência da humilhação, apesar da consciência de que
YHWH lhes acompanhava; d) verdadeiro culto e louvor é realizado em Jerusalém – cidade santa
do Senhor e por ele eleita; e) assombro diante do retorno e mistura de sentimentos – dor e alegria,
exaltação e lamentação – diante da cidade destruída. Desta forma, portanto, podemos avançar a
uma análise mais acurada de cada versículo do salmo 137, dando atenção ao que pode estar sendo
vivenciado pelo poeta salmista.

4. ANÁLISE LITERÁRIA

Desde o início nos dedicamos em conjecturar uma possível contextualização do salmo


por nós analisado. Destaca-se o termo “conjecturar” porque de fato o é: os salmos, por serem de
uma variedade enorme e de uma espontaneidade vasta, podem não ser tão fáceis de classificações
como outros textos da Escritura. No entanto, no presente trabalho esforçamo-nos em demonstrar,
de forma simples, que este salmo está presente em um determinado contexto: escrito no pós-
exílio com memórias do exílio da Babilônia.
Agora, pois, tendo isto presente, nos resta um outro passo a ser dado para o avanço
dentro do processo de compreensão do Salmo 137(136): análise literária. É notável que no início
do item anterior nos dedicamos a pequenas análises de características de alguns versículos que
nos pudessem dar pistas do possível chão temático e contextual do texto. Contudo, neste item
nosso objetivo é, a partir de cada versículo conseguir encontrar pequenas nuances do texto
poético, dando destaque a suas características, agora aclarados pela contextualização
anteriormente explanada.
De um modo geral podemos dividi-lo da seguinte maneira: v. 1-3 introdução ao salmo
por meio da memória do exílio e ao que eram obrigados a experimentar; v. 4-6 exaltação de
Jerusalém como verdadeiro lugar de louvor e exultação em YHWH; v. 7-9 manifestação do ódio
vingativo contra os inimigos opressores e colaboradores. Com base nesta divisão, iremos neste
momento nos dedicar à análise dos versículos do salmo.
4.1. QUANDO CHORÁVAMOS COM SAUDADES DE SIÃO (v. 1-3)
Neste primeiro conjunto de versículos podemos afirmar que o salmista introduz seu
memorial de lamentação: passando pelas lágrimas derramadas à beira dos rios babilônicos, com
seus instrumentos musicais abandonados, sob a zombaria de seus opressores. Diante da cidade
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destruída, os retornados do Exílio fazem memória dolorosa dos dias no cativeiro babilônico. O
que seus olhos contemplam, diante de Jerusalém destruída lhe trazem à mente as escórias
passadas. Junto à saudade que tinham de Jerusalém, sentiam-se distantes de Deus e de seu
templo. Além do mais não podiam sofrer sozinhos em sua dor, tendo de suportar seus opressores
pedindo a alegria dos tempos de gozo e louvação na “Santa Cidade”.
O primeiro versículo introduz a memória com um paralelismo climático, começando
pelo lugar onde sentavam-se: “à beira dos rios da Babilônia”; ampliando com o modo e o
sentimento que isto faziam: “ficávamos sentados, desfeitos em prantos”; juntamente ainda com o
pensamento que lhes conduzia em tamanha dor: “pensando em Sião”. O salmista deixa explicito
seu conflitivo sentimento de saudades de sua terra onde Deus habitou e fez sua casa no templo.
Lá foi onde eles viram todo o sonho nacional cair por terra como bem lamenta no livro das
Lamentações (cf. 3, 48-51); o pranto é sinal de profunda dor e saudades de Sião e de sua
destruição.
No seguinte versículo há a presença de um outro paralelismo também climático ao
complementar a ideia inicial de que o que haviam pendurado nas árvores próximas eram as
cítaras. Ora, diante do escárnio opressor dos dominadores, não há motivos para a mesma alegria
que se encontrava lá em Jerusalém. Aquele cântico alegre e jubiloso que lá entoavam agora já não
ressoa em seus lábios, nem é possível tocá-los. Assim é que o terceiro versículo é colocado como
ápice do sofrimento: seus algozes opressores lhes exigiam aquele cântico alegre de Sião. Deste
modo pode-se perceber um paralelismo antitético entre os versículos 1 (este complementado pelo
2) e 3. Enquanto o primeiro anuncia o sofrimento da saudade que sentiam os exilados,
complementado pelo segundo, o terceiro mostra a exigência da alegria: “cantai para nós algum
canto de Sião”, era-lhes pedido. No amalgama sentimental de saudades, sofrimento e dor,
agravava-se com a exigência de alegria em meio as lamentações.
4.2. JERUSALÉM SEJA MINHA GRANDE ALEGRIA (v. 4-6)
Tendo então introduzido a memória de sua dor à beira dos rios da Babilônia, somado ao
escárnio opressor, estes versículos que seguem desenvolvem a indignação sobre tamanha
impertinência por parte daqueles que lhes pedem um cântico de louvor de Jerusalém. Assim é que
se questiona sobre essa possibilidade, declarando que nunca passe por ele mesmo a alternativa de
esquecer-se de Jerusalém. E mais: que nem possa tocar ou cantar, caso não seja Jerusalém sua
alegria.
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O versículo quatro é um questionamento colocado como um paralelo antitético com os


três versículos anteriores. Sua indignação é que – tudo bem sofrer de saudades, já que isso não
podem evitar – absurda zombaria era-lhes imposta por parte daqueles que lhes pediam alegria
neste momento de profunda dor. Em outras palavras, aos exilados pior que a saudade era serem
interpelados pelos opressores a entoarem um louvor a YHWH – o escarnecimento, assim, não
atingia somente ao estrangeiro em terras babilônicas, mas alcançava a Deus mesmo, sua
Santidade e Soberania, a quem não se louva em qualquer lugar e hora. Neste aspecto, os
versículos que seguem (5-6) realizam um paralelismo climático a partir do versículo anterior – 4.
A indignação diante da zombaria amplia-se aos extremos de louvor à cidade Santa que jamais
deverá ser esquecida.
No versículo cinco chegamos ao centro essencial do salmo: a exclamação feita pelo
poeta é a declaração fundamental que sustenta toda a mescla de sentimentos presentes em todo o
poema: sua saudade da terra, a dor diante do escarnio opressor e o desejo de vingança. Isto tudo
procede de uma só exclamação: “Se eu te esquecer, Jerusalém, que a minha direita esqueça...!”
(v. 5). Em outras palavras, a exclamação declara enfaticamente que, em caso de esquecimento da
“Cidade Eleita”, o próprio louvor seja esquecido por completo. A repetição do verbo “esquecer”
demonstra um paralelismo sinonímico afirmando que esquecer Jerusalém é o mesmo que perder a
capacidade de tocar o seu louvor – “direita” pode ser considerada como a mão que toca a cítara
que fora pendurada nos salgueiros; outros tradutores ainda traduzem como “seque” a mão. Em
suma, é que a mão já não saberá tocar os louvores – esquecerá sua capacidade de exaltar a
YHWH em Jerusalém.
Assim é que, neste seguimento, o versículo seis realiza um paralelismo sinonímico com
o versículo antecessor: ele se dedica a desenvolver as consequências do esquecimento de
Jerusalém – fora da qual não deverá existir outra alegria. Ao mesmo tempo que em seu interior
realiza um paralelismo, primeiramente parabólico, ao usar a imagem da língua que cola ao céu da
boca. Tentar cantar os louvores de Jerusalém a YHWH em terra estrangeira seria uma traição aos
antepassados gloriosos da Cidade Santa. Colar a língua no céu da boca – palato – é não conseguir
entoar tal exultação e louvor de Jerusalém. Por isso a necessidade de, apesar de estar em
sofrimento e dor, Jerusalém deve ser a constante no pensamento do exilado. E mais: a língua
colará no palato, caso outra alegria se anteponha à Jerusalém. Isto parece retomar a profecia de
Jeremias: “Em marcha, sobreviventes da espada Não vos detenhais! De longe lembrai-vos do
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Senhor, a lembrança de Jerusalém suba à vossa memória” (51,50). Diante, então, da necessidade
da constante memória, e da grande alegria que deve conduzir os exilados à Jerusalém, mesmo em
meio a saudade e a dor, surge o sentimento de vingança com aqueles que os levaram a viver tal
cativeiro.

4.3. FELIZ QUEM RETRIBUIR A VOCÊ (v. 7-9)


É impossível ocultar neste salmo, como também o é em outros, o forte sentimento de
vingança com relação aos povos que, de forma cruel, fizeram Israel passar pelo que passou. No
item 3 de nosso trabalho nos dedicamos a explanar, de forma simples e objetiva, as características
históricas do Exílio da Babilônia para o povo de Judá. Ainda neste ponto, relatamos o auxílio que
Edom deu ao Império Babilônico. Isto gerou um forte ressentimento aos exilados de Judá com
relação a este povo. O versículo sete expressa o sentimento para com o povo de Edom. Estando
diante das ruínas de Jerusalém – muros e templos pelo chão – os repatriados não medem palavras
para expressar seu ódio para com os seus conquistadores opressores. Neste versículo, o salmista
pede que YHWH se lembre de Edom que apoiava ao Império dominador a realizar tais
atrocidades nas terras de Judá. Isto abre espaço para os seguintes versículos que ampliam o
desejo de vingança – consideramos então um paralelismo climático entre o versículo 7 e os dois
seguintes (8-9).
Neste sentido é que o versículo oito irá chamar Edom de “filha da Babilônia”,
declarando-a prometida à destruição e feliz quem a subjugar como o fora feito ao povo de Judá.
Isto pode ser lido na profecia do Segundo Isaias (Is 47) – em forma poética –, quando anuncia a
salvação para Israel, ao passo que entrevê a derrota da Babilônia. Assim é que o desejo se estende
ao extermínio completo do Império opressor, chegando a desejar o fim inclusive de seus bebês,
esmagados na rocha. Por outro lado, vale salientar que o desejo de vingança não é
necessariamente pessoal por parte daquele que compõe e reza este salmo, mas expressão de uma
confiança no total poder do Deus agora compreendido como Rei universal, Poderoso Criador,
Guerreiro Valente, enfim, novas concepções de Deus surgidas no exílio e no pós-exílio. Se
YHWH foi atingido em sua santidade por meio dos escárnios ele não se calará diante de tal
atrocidade, por isso estas consequentes conclusões chega o salmista ao fim de seu lamento.
Perpassando por esta leitura de cada versículo que realizamos, podemos partir para o
seguinte item de nosso trabalho. Nele iremos, de forma poética, atualizar este salmo para os
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tempos hodiernos. Com a composição A dor da distância, expressaremos a oração a partir deste
salmo que lamenta as dores e saudades da terra que vai além do simples posicionamento
geográfico, alcançando uma terra existencial que cada um vive. Portanto, com atenção, nos
deteremos, agora, ao poema A dor da distância.

5. A DOR DA DISTÂNCIA

Distante da terra, distante da fé


Só me restava a esperança e ficar de pé.
Quando nos dias de escuridão,
tudo parecia na contramão,
Exigiam-me alegria, no meio da solidão.

Como alegrar-se no meio da dor?


Como assim exultar no Senhor?
Assim lhes pergunto, pois queriam alegria:
mas como corresponder, se nenhum motivo havia?
Eu distante da terra, distante da fé,
Só me restava a esperança e ficar de pé.

Não vou ocultar o que sentia:


As vezes tomava-me a raiva que havia:
“parem de isso pedir-me!” – eu repetia.
Não posso assim alegrar-me,
Não veem o motivo maior a faltar-me?

Distante da terra, distante da fé,


Como poderei permanecer de pé?
Só Aquele que sabe de onde vim
É capaz de suscitar tamanha esperança
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e dar-me a graça de não arredar o pé.


Mesmo distante da terra, distante da fé
continuo esperando com segurança
que outros dias mais virão
e estarei na terra, de pé na fé.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A distância que gerou a dor e a saudade no povo de Judá exilado na Babilônia,
experiência que provavelmente viveram os exilados de Israel na Assíria, ultrapassa as distâncias
matemáticas e políticas da geografia. A distância é muito mais existencial: a terra não é lugar
somente físico-geográfico. É lugar de crescimento, bases sociais e afetivas, raízes ancestrais e
familiares, idioma e religião. Enfim, uma vasta gama de categorias que envolvem o lugar de
nascimento que gera nos indivíduos um sentimento de pertença. Isto, forçosamente retirado, pode
gerar crises que excedem a própria geografia e a distância calculável matematicamente – este
caso é o dos imigrantes. Além deles, a distância e sua dor podem ser experimentados inclusive
por quem não se distancia geograficamente falando. Inúmeros são os que se distanciam, por
exemplo, de seus sonhos, para de acordo com uma cultura ou desejo que os circundam e os
forçam a viver algo diferente de si mesmo. Sem falar naqueles que vivem distantes de si mesmos
para alcançar metas que não lhe pertencem, mas que lhe é exigido no mercado de trabalho, na
academia, nas escolas, entre outros lugares. A angustia da distancia é mais presente do que
podemos imaginar. Além disso tudo, o pior não é estar distante, mas ser forçado a uma falsa
alegria e realização nesta angustiosa distância. Assim, missão dos que conhecem esta experiencia
é ajudar aos que sofrem tamanha dificuldade a libertarem-se e experimentarem um retorno feliz e
realizador a si mesmo.

7. REFERÊNCIAS

BÍBLIA TEB: notas integrais e tradução ecumênica. Tradução A. J. M. de Abreu, et al. 3ª ed.
São Paulo: Loyola, 2020

BÍBLIA PASTORAL. São Paulo: Paulus, 2020


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DEEUTSCHE BIBELGESELLSCHAFT. Biblia Hebraica: Stuttgartensia. Biblia-Druck


Stuttgart, 1990

GASS, Ildo Bohn (org.). Uma introdução à Bíblia: exílio babilônico e dominação persa. Vol. 5.
2ª Ed. São Paulo: Paulus, 2004

LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: História dantiga de Israel. Tradução de Orlando
Soares Moreira. 2ª ed. São Paulo: Paulus; Loyola, 2014

NOGUEZ, Armando. O contexto histórico-cultural dos Salmos – Uma introdução religiosa


sociocultural aos Salmos. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis, 2003,
vol. 2, n.45, p.208-221

SILVA, Valmor da. Os Salmos como literatura. Revista de Interpretação Bíblica Latino-
Americana. Petrópolis, 2003, vol.2, n.45, p.193-207

WEISER, Artur. Salmos: grande comentário bíblico. Tradução de Edwino A. Royer, João
Rezende Costa; Revisão Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 1994

ZENGER, Erich. Introdução ao Antigo testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 306-321

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