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MICHEL SCHOOYANS

OS RUMOS DA BUSCA DE
DEUS SEGUNDO PASCAL

ItaPRENSA UnIVERSITAEIA DO CeARA


MICHELSCHOOYANS
(Do I. B. F., de Sâo Paulo)

Os Rumos da Busca de Deus


Segundo Pascal
(TBSE APRESENTADA AO IV CONGRESSO
NACIONAL DE FlLOSOFIA — FORTALEZA,
NOVBMBRO DE 1962)

Imprensa Universitâria do Cearâ


UNIVERSIDADE DO CEARA
INSTTTUTO BRASILEIRO DE PILOSOFIA
IV CONGRESSO NACIONAL DE FlLOSOFIA

COMPOSTO E IMPRESSO NAS OPICINAS GRAFICAS


DA IMPRENSA UNIVERSITÂRIA 3K> CEARA, À AV.
VlSCONDE DE CATJÎPE, 2932 — FORTALEZA
Pascal nâo considéra o problema de Deus, nem o problema
da religiao em gérai da mesma maneira que um teôlogo de
profissâo. Nâo reflète especulativamente sobre um dado jâ
adquirido. Sua reflexao também nâo é despreocupada, como
muitas vêzes o é a refilexâo filosôfica. Pelo contrario, é sumamente
interessada. Pascal nos faz tomar consciência de um problema
de vida, no quai estamos "embarcados", e nos mostra que nâo
podemos fugir à necessidade de um compromisso pessoal. Os
problemas por êle formulados respeitam à existência humana
enquanto totalidade. Sâo nossos, nâo porque o nosso feitio de
espirito combine com o dêle, mas porque, através de sua expe-
riência, revivemos, reativamos a nossa experiência individuaL
tanto é verdade que bem conheceu a condiçao do homem.
Eis porque nâo devemos admirar se o ponto de partida das
reflexôes parcalianas se encontra no exame da condiçao humana
em tôda a sua complexidade. Enquanto a filosofia escolâstica
começa por abstrair e falar da "natureza", Pascal se inclina sobre
o homem — sobre os homens —, se submete a sua riqueza, cuida
de nâo empobrecer de qualquer modo este dado, e, antes de Ihe
buscar a chave, le nêle um mistério. Ha, entâo, uma diferença
radical de projeto entre Pascal e os filôsofos que o acusavam in-
devidamente de divergências originadas nos fins diversos que êles
se propôem.
Existe além disso uma diferença mais fundamental por ser
de outra ordem. Com efeito, este homem, sobre o quai Pascal
se inclina, é o homem concreto, isto é, entravado no seu caminhar
pelas conseqiiêhcias do pecado original, mas também objeto de
graça preveniente. O filôsofo ignora estas duas noçôes: mais
ainda, seu método lhe impôe esta dupla ignorância, com tôdas as
conseqiiências danosas que ela comporta: orgulho, presunçâo
quanto as nossas possibi'lidades de conhecer, orgulho intelectual.
Conhecendo melhor que os filôsofos o "todo do homem", Pascal
se abercebe da cuidade do ùnico problema que importa, afinal
de contas, e que sô, por conseqiiência, merece nossa atençâo ( 1).

CONCEPÇAO PASCALIANA DO HOMEM


"Que quimera é, entâo, o homem? Que novidade, que mons-
tro, que caos, que alvo de contradiçôes, que prodigio! Juiz de
tôdas as coisas, miserâvel verme da terra; depositârio da ver-
dade, cloaca de incerteza e de êrro, glôria e escôria do universo.
"Quem desfarâ essa confusâo? A natureza confunde os pir-
rônicos, e arazâo confunde os dogmaticos. Que vos tornareis, pois,
ô homens, que procurais a vossa verdadeira condiçao pela vossa
razâo natural? Nâo podeis evitar uma dessas seitas, nem subsistir
com nenhuma.
"Conhecei, pois, soberbo, que paradoxo sois para vos mesmo.
Humilhai-vos, razâo impotente; calai-vos, natureza decaida;
aprendei que o homem ultrapassa infinitamente o homem, e ouvi
do vosso Senhor a vossa condiçao verdadeira, que ignorais.
Escutai a Deus.
"Pois, enfim, se o homem nunca se tivesse corrompido.
gozaria com segurança, em sua inocência, tanto da verdade como
da felicidade. E se o homem sô tivesse sido corrompido, nâo teria
qualquer idéia da verdade, nem da béatitude. Mas, infelizes, e
mais do que se nâo houvesse grandeza em nossa condiçao, temos
uma idéia da fdlicidade, e nâo podemos alcançâ-la; percebemos
uma imagem da verdade, e sô logramos a mentira: somos inca-
pazes de ignorar, em absoluto, e de saber com certeza, de tal
maneira é manifesto que estivemos num grau de perfeiçâo donde
infelizmente decaimos." (434).
(1) Faremos apêlo, sobretudo, aos Pensamentos. O texto utiliza-
do é o da ediçâo BRUNSCHVICC minor, de fâcil acesso. As citaçoes
dos pensamentos sâo seguidas do numéro nessa ediçâo. Para os
outros textos, foi indicada a pagina da ediçâo citada. Recorremos
à traduçâo dos Pensamentos de Sérgio MILLIET, Sao Paulo, 1957,
modificando-a ou corrigindo-a varias vêzes.
Para Pascal, educado num clima de teologia jansenista, o pe
cado original viciou a natureza humana no mais intimo do seu
ser. Para êle, nâo sô ficamos privados da graça mas também dos
dons preternaturais consecutivos. Além do mais, precisava Jan-
sênio, visto serem estes dons constitutivos da natureza, a privaçâo
dêles a corrompia radicalmente.
Pascal atribui ao pecado original e as suas consequências um
lugar central, na sua descriçâo do homem. Vê nêle, sem dûvida,
uma maneira ao mesmo tempo correta e cômoda de exprimir, e
mais tarde de explicar, tudo o que nossa natureza tem de inferior.
Mas, este conhecimento do pecado original nos é inacessivel pelas
vias da razâo, chega a chocâ-la, e entretanto, para projetar algu-
ma luz sobre o "monstro incompreensivel" que nos somos, é
preciso afirmâ-lo, admiti-lo.
Porque "do contrario, que se dira que é o homem? Todo o
seu estado dépende dêsse ponto imperceptivel. E como se teria
apercebido disso pela razâo, de vez que é uma coisa contra a
razâo, e que sua razâo, em vez de descobri-lo por seus caminhos,
afasta-se quando se Ihe apresenta?" (445) O que nos dispôe a
admitir esta culpa original, é o reconhecimento de nossos limites
e de nossas misérias, sem que no entanto essa culpa cesse de ser
objeto de fé.
Compreendemos assim porque Pascal nâo pôde satisfazer-se
com soluçôes parciais propostas pellos deistas. As consequências
do pecado original, manifestadas incessantemente à consciência
refletida, exigem uma soluçâo prôpriamente religiosa.
Por aqui jâ vemos esboçar-se a condiçao a priori funda-
mental a que, segundo Pascal, a verdadeira religiâo deverâ obe-
decer. É preciso que ela conheça bem o homem (cf. 433), e
plenamente Ihe satisfaça à medida em que Ihe justificar o estado
atual e as aspiraçôes, manifestarâ a sua verdade. Dai, tender a se
encontrar dois movimentos complementares na apologia pasca-
liana. De um lado, oscilando entre os sentidos e o pensamento,
lançado num mundo, que o esmaga, mas do quall chega a penetrar
alguns segredos, momento de uma histôria que o fêz e para cuja
construçâo, pôr sua vez, também contribui, o homem se interroga
com angustia acêrca do seu misterio. Por outro lado, baseando-se
naquilo de que se sente privado, é levado a formular as condi-
çÔes da verdadeira religiâo. Assim, estarâ apto a empreender
um exame histôrico, visando procurar, no tempo e no espaço,
manifestaçoes eventuais da religiâo desejada.
Importa, portanto, conhecer bem a nossa natureza para po-
dermos ulteriormente reconhecer o libertador: "A verdadeira
natureza do homem, seu verdadeiro bem e a verdadeira virtude,
e a verdadeira religiâo, sâo coisas cujo conhecimento é insepa-
râvel." (442) E o que explica o êrro dos filôsofos é, de inicio,
todos êles desprezarem o fato do pecado original: "Nenhuma
religiâo, a nâo ser a nossa, ensinou que o homem nasce no pecado,
nenhuma seita filosôfica o afirmou: portanto, nenhuma disse a
verdade." (606)
O universo, bem como a histôria, participam dessa queda
original. "Infinitamente distante da compreensâo dos extremos,
o fim das coisas e o seu principio ficam-ilhe invencivelmente
ocultos, num segrêdo impenetravel, é igualmente incapaz de
perceber o nada de onde é tirado, e o infinito no quai esta imer-
so." (72) Quanto ao tempo, nâo Ihe descobre o sentido senâo na
pessoa de "Jésus Cristo, que os dois Testamentos contemplam: o
Antigo, em expectativa, o Nôvo, como o modêlo, ambos como
centro." (740)
Como conseqiiência dêsse estado de queda, o homem tornou-se
prêsa das potências enganosas. É, desde entâo, incapaz de buscar
o verdadeiro bem, porque, em vez de dominâ-las, a razâo se dobra
sob o jugo das paixôes. A concupiscência o tiraniza (460), o
costume o dispensarâ de julgar (252), o divertimento Ihe desviarâ
o espirito das preocupaçôes mais fundamentais. (171) Essa
queda atinge mesmo a vontade (412), corrompida a ponto de
nâo ser capaz de desejar o bem; sua regra é a fantasia: "A ver
dade é um dos principais ôrgâos da crença; nâo que ela forme
a crença, mas por serem as coisas verdadeiras ou falsas, segundo
o lado pelo quai as consideramos. A vontade, que se compraz mais
em uma que em outra, desvia o espirito da ponderaçâo das
qualidades que nâo Ihe agrada ver; e assim, o espirito, de mâos
dadas com a vontade, detém-se em contemplar o lado que Ihe
agrada, e assim, julga segundo o quai ai vê." (99)
e
Tôdas essas fraquezas éhcontfam-se reunidas no eu\ é anali-
sando-o que Pascal descobre a nossa miséria e a nossa solidâo.
Alias, ao fim de sua apologia, é este eu purificado, transfigurado
que Pascal prétende submeter a Deus. Entrementes, "o eu tem
duas qualidades: é injustOvem si, enquanto se faz centro de tudo;
é incômodo aos outros, enquanto quer escravizâ-los. " (455)
Assim, considerado sob êsse ângulo, o eu é o conjunto de tôdas
as nossas miserias. (cf. 100)
Pascal nâo se detém todavia num quadro tâo escuro da nos
sa natureza. Algumas vêzes, o tomam como pessimista. Parece
porém que quis explorar no homem tôdas as possibilidades que
conservara depois do pecado original. No dominio do conheci-
mento, por exemplo, Pascal concedia um lugar de relêvo à razâo
natural. Alimentava grande confiança nos recursos da razâo.
Nâo tinha, por certo, a ingenuidade de alguns homens do Renas-
cimento, manifestando uma confiança tâo puéril quanto cega no
poder da razâo. Mas depois de ter criticado, e reconhecido os
dominios onde ela tem légitima jurisdiçâo, apela para ela, nâo
sômente nos seus trabalhos cientificos mas também na edificaçâo
da apologia.
Que ha nisso de espantar? Mesmo depois do pecado, con-
servamos um capital de preço inestimâvel: o pensamento. "Pen-
samento faz a grandeza do homem." (346) Sem dûvida, o
pensamento esta sujeito a muitos tropeços; malgrado a grandeza
de sua natureza, participa da nossa queda. "Nâo é necessârio o
ruido de um canhâo para Ihe impedir o pensamento; basta o
ruido de um catavento ou de uma roldana." (366) "O pensa
mento é, pois, coisa admirâvel e incomparâvel por natureza.
Fora preciso que tivesse estranhos defeitos para ser desprezivell,.
Mas tem defeitos tais, que nada é mais ridiculo. Quâo grande é
por natureza! Quâo baixo por seus defeitos!" (365)
Chegamos, assim, ao exame do valor do pensamento no seu
exercicio por excelência: o conhecimento.

O método do conhecimento pascaliano se carâcteriza por


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um esfôrço constante de submissâo ao real em tôda sua cohcrë-
çâo. Nisto, a marcha do pensamento de Pascal difere sensivel-
mente da marcha do pensamento de Descartes. Mais prêso que
este à experiência, Pascal nâo hésita em abraçar a infinita com-
plexidade do real, para Ihe conformar o seu método. Estes fatos
uma vez reunidos, é preciso integrâ-los e nêles 1er uma mensa-
gem que nos concerne, por serem indicios, sinais, pontos de
partida de induçôes esclarecedoras. Eis porque poucos homens fi-
zeram, tanto quanto Pascal, o elogio da razâo. "A razâo nos
obriga muito mais imperiosamente que um amo, porque desobe-
decendo a um, somos infelizes, e à outra, tolos." ( 345 ) Nos do-
minios das ciências matemâticas, f isicas e histôricas, Pascal atribui
à razâo um lugar de honra. Nunca pode desligar-se desta ten-
dência racionalizante, que Ihe vinha de sua formaçâo sobretudo
cientifica. É verdade que, na sua apologia, as ciências nâo deviam
ter mais que um papel secundârio, mas a histôria parecia dever
ocupar nela um lugar central na descoberta do Cristo encarnado.
Entretanto, Pascal recusava à razâo uma exclusividade pre-
tensiosa; êle a confina nos limites de seu império. "Pois para vos
falar francamente da geometria, escreve a Fermât em 1660, eu a
considero o mais alto exercicio do espirito; mas ao mesmo tempo,
a considero tâo inûtil que faço pouca diferença entre um homem
que é apenas um geômetra e um hâbil artesâo." (Br., p. 229). A
razâo, com efeito, esta nâo sômente à mercê de muitos obstâculos,
mas ainda, — e em sua prôpria ordem —, é insuficiente. Ela
prôpria redama um instrumento de conhecimento mais flexivel,
capaz de melhor desposar os matizes do real: tal sera o papel
do coraçâo.
O momento em que a razâo révéla tôda a sua fraqueza, é
quando recorremos a ela para buscar luzes sobre o nosso mis-
tério. Nesta perspectiva, Pascal chega a receber dos pirrônicos
acûsaçôes humilhantes para esta faculdade. Faz-se conivente com
Epicteto e Montaigne para a escarnecer. Inserida em nossa natureza
decaida, ela participa de nossos limites, nâo se pode fiar nela,
pois "é dôcil a todos sentidos " (274); é o joguête das paixôes:
"guerra interna do homem entre a razâo e as paixôes." (412)
"A corrupçâo da razâo se manifesta por tâo diversos e estrava-
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gantes costumes. Foi preciso a vinda da verdade para que ô
homem deixasse de viver em si mesmo." (440) "Deve-se começar
por ai (pela imaginaçâo) o capitulo das potências enganadoras.
O homem nâo passa de um sujeito cheio de erros, natural e
inapagâvel sem a graça. Nada Ihe mostra a verdade. Tudo o en-
gana; estes dois principios de verdade, a razâo e os sentidos,
além de faltarem cada um à sinceridade, enganam-se recipro-
camente, um ao outro." (83)
Devemos dizer entâo que a razâo perde aqui tôda a sua
utilidade? Séria demasiado afirmâ-lo. Mas os conhecimentos aos
quais ela nos conduz nâo sâo suficientes. Os filôsofos tentaram
demonstrar racionalmente a existência da aima. Resultado?
Pascal nunca se satisfez com soluçôes a que, um século antes,
Pomponazzi e outros atacaram, resolutamente. No entanto, o
problema é de tal importância que dêle dépende tôda a conduta
da nossa vida: "Importa a tôda a vida saber se a aima é mortal
ou imortal." (218; cf. 194)
Sâo as tentativas da razâo mais felizes quando se trata de
provar a existência de Deus? Em certo sentido, sim. Pascal nunca,
com efeito, opôs-se frontallmente as provas filosôficas da existên
cia de Deus, pelo menos enquanto filosôficas. Chegaram até a
distinguir nûcleos de demonstraçâo, o primeiro pela prova agos-
tiniana das verdades eternas (232, 556), o segundo pela con-
tingência. (469). Mas nâo deixa de ser verdade que essas provas
deviam ocupar um lugar apenas secundârio na apologia: parece
que elas deveriam ter ocupado um lugar modesto no seio de um
conjunto mais vasto. Isoladas, correm o risco de nâo convencer.
"As provas metafisicas de Deus tâo afastadas andam do racio-
cinio dos homens, e sâo tâo implicadas, que impressionam pouco;
e mesmo que servisse a alguns, sô serviria durante o instante que
vêem esta demonstraçâo; mas uma hora depois jâ temem de se
terem enganado." (543 ) Demais disso, quâo pouco numerosos sâo
aquêles a quem estas provas sâo acessiveis! Quantos obstâculos
a vencer no decurso do caminho, a começar pelo fato jâ reve-
lado, de que«a vontade orientarà a crença conforme a face das
coisas ante a quai se detiver: "... Os homens em gérai sâo
quase sempre levados a crer, nâo peila prova, mas pelo que
Ihes apraz. Este modo de procéder é baixo, indigno e estranho:
também todo mundo o desaprova. Cada quai faz profissâo de
crer emesmo de amar apenas aquilo de que sabe ser merecedor. .
Tal aima imperiosa, que se gabava de agir tâo-sômente pela
razâo, segue, por escolha vergonhosa e temerâna, aquilo que
uma vontade corrompida deseja, qualquer que se,a a resistencia
que o espirito demasiado esclarecido Ihe possa opor. {Art.
de persuader, Br., p. 185 e 187)
O RECURSO À RAZAO NA APOLOGIA
Arazâo intervém, pois, nâo sômente na histôria, mas também,
como acabamos de ver, nas provas filosôficas da aima ede Deus.
A razâo dispôe nosso espirito, em certa medida, para receber
a verdade. "Hâ très modos de crer: o da razâo, o do costume, e
o da inspiraçâo. A religiâo catôlica, a ûnica que tem a razao,
nâo admite como seus filhos os que crêem sem inspiraçâo; nao
que ela exclua arazâo eocostume, pelo contrario; mas devemos
abrir oespirito as provas. conformarmo-nos com elas pelo costu-
me; mas oferecermo-nos, pelas humilhaçôes, as inspiraçoes,
ùnicas apoderem causar um verdadeiro e salutar efeito: Ne
evacueter crux Cbristi." (245) Pascal é ainda mais exphcito
quanto ao papel que atribui à razâo, quando se réfère, numa
carta aSra. Perrier, auma conversa que tivera com o Sr. Rebours.
"Disse-lhe em seguida que eu pensava se podia, segundo os pro-
prios principios do senso comum, demonstrar muitas coisas, que
os adversârios dizem serem-lhe contrarias, e que o raciocinio
bem <onduzido levava a crer, ainda que seja preciso crer sem a
aiuda da razâo." (Br., p. 48) Na sua apologia, Pascal continuara
fiel a esta proposiçâo e nâo hesitarà, ao apresentar-se a ocasiao,
em recorrer a esta razâo infeliz e caduca: a aposta (233) e um
exemplo disto.
Resta uma questâo adecidir. Sem presumir o papel da razâo
no seio do ato de fé, até onde a razâo, forte e fraca a um tempo,
nos conduzirâ? Ela corre o risco de nos deter, falsamente satis-
feitos na busca do verdadeiro bem, pois que é vitima de duas
grandes limitaçôes: a extrînseca, que Ihe vem das paixôes, e a
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intrinseca, que Ihe nasce da sua prôpria natureza. Éis porque é
capital na apologia que a razâo procéda à sua prôpria critica.
Ela deve cingir o campo de suas possibilidades e mostrar por ai
sua incapacidade para resolver, e mesmo para formular adequa-
damente os problemas de nossa vida: ela nâo os compreende.
Deixa-nos a braços com as nossas contradiçôes e misérias. Seu
deus, concepçâo de nosso espirito, nâo é nosso Deus, o para o
quai clama nosso coraçâo. O maior serviço a que ela pode pre-
tender é levar-nos, precisamente, a reconhecer, nâo sua inutili-
dade, mas sua insuficiência. Segundo o dito famoso de Ollé-
-Laprune, "a razâo, em tôda parte indispensâvel, nâo basta em
nenhuma." Ao têrmo desta critica, a razâo terâ reconhecido a sua
prôpria humildade: "O ûltimo passo da razâo é reconhecer que
hâ uma infinidade de coisas que a ultrapassam; manifesta-se
como fraca, se nâo chega a reconhecê-lo. Pois se as coisas naturais
a ultrapassam, que se dira das sobrenaturais?" (267)

O PAPEL DO CORAÇAO

Pascal faz intervir o coraçâo ao mesmo tempo, antes e depois


do exercicio da razâo. É do coraçâo que nascem os primeiros
principios de tôda verdade: "conhecemos a verdade, nâo sômente
pela razâo, mas ainda pelo coraçâo, é dêste ûltimo modo que
conhecemos os primeiros principios." (282)
A sequência dêste pensamento mostra claramente que Pascal!
mantém sua confiança em nossas faculdades cognitivas, malgrado
a fraqueza da razâo: "Sabemos que nâo sonhamos; por maior
que seja a nossa* impotência em provâ-lo racionalmente, essa
impotência mostra-nos apenas a fraqueza da nossa razâo, mas
nâo a incerteza de todos os nossos conhecimentos, como (os
pirrônicos) o pretendem. Pois o conhecimento dos primeiros
principios, como o do espaço, do tempo, do movimento, dos
numéros, é tâo firme como qualquer a que chegam os nossos
raciocinios. E é nesse conhecimento do coraçâo e do instinto que
a razâo deve âpoiar-se, baseando-se nêles todo o seu discur-
so." (282)
Sem o coraçâo a razâo nâo teria pois objeto para o seu
h

tt*?r-
exercicio. A razâo em nenhum iugar comanda como rainha. Mas
o coraçâo nâo se opoe apenas à razâo; opôe-se igualmente à
experiência. "Coraçâo, instintos, principios" (281) vâo de par,
andam juntos e se distinguem da experiência: "Duas coisas ins-
truem o homem sobre a sua natureza: o instinto e a experiên
cia." (396)
A noçâo pascaliana de coraçâo se aparenta pois com o
intellectus dos antigos. Como este, evoca um conhecimento ime-
diato da existência de sêres superiores, apreendidos parcialmente
ou nâo na sua natureza. O conhecimento pelo coraçâo pode pois
dispensar o recurso ao raciocinio discursive "É tâo inûtil e tâo
ridiculo a razâo buscar no coraçâo provas de seus primeiros
principios, para consentir nêles, como o séria o coraçâo reclamar
da razâo um sentimento de tôdas as proposiçoes que ela de-
monstra, para assentir em recebê-las." (282; cf. 284, 287 etc.)
Mas para Pascal o coraçâo nâo evoca apenas o intellectus
dos antigos. Pascal nâo concebe o verdadeiro conhecimento sem
amor. Para êle, o coraçâo é a raiz comum do conhecimento e do
amor. "O coraçâo tem sua ordem, o espirito tem a sua que é por
principio e demonstraçâo; o coraçâo tem outra. Nâo provamos
que devemos ser amados expondo por ordem as causas do amor:
séria ridiculo." (283) "O coraçâo tem razôes que a razâo des-
conhece; sabemo-lo por mil coisas. Digo que o coraçâo ama o
ser universal naturalmente, e a si mesmo naturalmente, conforme
ao que se aplique." (277) Pascal recorre assim ao conceito
biblico de "conhecimento", inseparâvel do conceito de amor. O
acolhimento, a simpatia, e nâo apenas a inteligêneia; o coraçâo,
e nâo apenas a razâo: tais sâo as vias por onde o homem descobre
e atinge as verdades superiores e fundamentais.
Eis porque o coraçâo é capaz de apreender Deus sem recurso
as demonstraçôes, por uma sorte de evidência imediata. "Os que
vemos serem cristâos sem o conhecimento das profecias e das
provas êsses nâo deixam de julgâ-las tâo bem quanto os outros,
dotados dêsse conhecimento. Julgam pelo coraçâo, assim como
os outros julgam pelo espirito. Ê o prôprio Deus que os inclina
a crer; e assim estâo muito eficazmente persuadidos." (287;
cf. 28)

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Assim, malgrado o lento da sua razâo, o homem conservou
a capacidade de conhecer, um como resto de sua dignidade pri-
mitiva, isto é, anterior ao pecado original. O coraçâo é a parte
do homem onde conserva a saudade da felicidade perdida, mas
é também nêle onde se enraiza a esperança de um redentor.

CORAÇÂO E RAZAO

A razâo e o coraçâo nos mantêm num estado de perpétua in-


satisfaçâo, impedindo-nos o desespêro: "Instinto. Razâo. — Te-
mos uma impotência em provar, invencivel a todo dogmatismo.
Temos uma idéia da verdade, invencivel a todo o pirronismo."
( 395 ) Dai o evidenciarem o coraçâo e a razâo os limites de nossa
natureza, isto é, nossa miséria, cujo conhecimento prôprio é
fonte de grandeza. "Essas misérias mesmas provam tôdas a sua
grandeza. Sâo misérias de grande senhor, misérias de um rei
deposto." (398) "A grandeza do homem é grande em conhe-
cer-se miserâvdl... Por isso é ser miserâvel conhecer-se mise-
râvel, mas é ser grande, conhecer-se miserâvel." (397)
Reconhecidas nossa miséria e nossa aspiraçâo à felicidade,
é pelo coraçâo que a chamaremos a salvaçâo. Nesta altura o
coraçâo formularâ uma como hipôtese de indagaçao, isto é, as
condiçôes a priori de uma soluçâo. Mais que numa preparaçâo
psicolôgica, ira ao encontro da apologética histôrica e a ela pre-
disporâ porque, quando Pascal diz que "é o coraçâo que sente
Deus, e nâo razâo" (278), devemos entender por isso um pres
sentiment© de Deus, e nâo um conhecimento fundado, pelo menos,
no piano estritamente natural. Nesse contexto, o coraçâo, bem
como a razâo, nâo oferece motivos suficientes para nos funda-
mentar a crença e açâo. Mas, diferentemente da razâo, na quai
haure o consentimento, o coraçâo é aberto, desfecha numa ordem
que o ukrapassa. (cf. 238) Nesse nivel, hâ, portanto, lugar
para um retôrno critico da razâo sobre os conhecimentos adqui-
ridos pelo coraçâo.
Vemos por ai que sentido o coraçâo ultrapassa a razâo. É
a faculdade do mistério, e isto significa que nos dâ acesso a
uma ordem superior, no caso, a da graça. Nisso o coraçâo sobre-
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puja eminentemente a razâo: abre-se para claridades em uni
mundo onde, no entanto, nâo pénétra a nâo ser pela graça.

O AUTÔMATO

Antes de Pascal, Montaigne, entre outros, jâ havia apontado


a importância do costume na crença. Mas Pascal evitarâ o ceti-
cismo e o relativismo de seu antecessor negando ao costume um
papel primordial no reconhecimento da verdadeira religiâo. Por
si sô, o costume é insuficiente, e o libertino nâo deixa de fazê-lo
notar: "Diga-se o que quiser. É mister admitir que a religiâo
cristâ tem algo de espantoso." "É porque nasceste nela", dir-se-ia.
"Longe disso; eu revolto-me contra isso, por essa mesma razâo,
com receio de essa prevençâo me subornar; mas embora nela
tenha nascido, nâo deixo de pensar assim." (615)
Pascal! nâo se esquece por isso de invocar o costume. Nâo
que este dispense de recorrer à razâo ou ao coraçâo. Mas Pascal
havia notado que estavamos condicionados, numa certa medida,
pelo nosso meio e por nossos prôprios hâbitos. "Somos automatos
tanto quanto espirito... Quando nâo acreditamos a nâo ser pela
força da convicçâo, e quando o autômato inclinando-se a acredi-
tar o contrario, isso nâo é suficiente. É por isso necessârio fazer
com que as nossas duas partes acreditem: o espirito, pelas razôes,
que basta haver visto uma vez na vida; e o autômato, pelo cos
tume, e nâo Ihe permitindo se incline em sentido contrario. In
clina cor meum, Deus" (252)

. O costume tem, pois, duplo papel: confirma as razôes des-


cobertas pelo espirito, mas predispôe também o autômato a ren-
der-se as razôes do espirito: — "Nâo demoraria em abandonar
os prazeres —dizem —se tivesse fé". Eeu vos digo: "Nâo demo-
rarieis em ter fé se houvésseis abandonado os prazeres." (240)
Donde, o conselho ao libertino: — "Esforçai-vos, pois, nâo para
vos convencerdes pela argumentaçâo das provas de Deus, mas
pelo amortecimento das vossas paixôes... Segui a maneira por
onde êles (os que foram ligados como vos) começaram: fazendo
como se tivessem fé, tomando âgua benta, mandando celebrar
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missas, etc... mesmo naturalmente isso vos farâ crer e vos
tornarâ simples." (233; cf. 246 s.)
Podemos, pois, pensar que Pascal, ao falar da Igreja, teria
indicado a importância de um corpo social capaz de convidar à
crença, por sua simples presença na histôria.

A F É

A razâo, o coraçâo, o costume, bem puderam esclarecer um


tanto o enigma do nosso destino: êsses esclarecimentos tornar-se-
-iam fontes de obscuridade se a graça preveniente nâo os infor
masse. Sem a graça, qualquer apologética esta de antemâo des-
tinada ao malôgro. (Cf. Art de persuader, Br., p. 185)
Pascal prétende, assim, salientar a gratuidade absoluta da
graça. "A fé é um dom de Deus; nâo acrediteis que a considera-
mos um dom do raciocinio. As outras religiôes nâo o ensinam
acêrca de sua fé, sômente recorrem ao raciocinio para atingi-la,
e contudo nâo a alcançam." (279) Êsse dom gratuito Deus o da
a quem o procura: "Aquêles que procuram Deus de todo o cora
çâo, que nâo têm outro desejo senâo o de possui-lo, ... que se
•consolem, eu 'Ihes anuncio uma feliz noticia: hâ um libertador
para êles, eu o mostrarei, eu Ihes revelarei, que hâ um Deus para
êles; nâo o farei ver aos outros." (692) O objetivo das reflexôes
sobre a nossa miséria é, justamente, despertar-nos a justa atitude
de humildade, sem a quai a graça nâo se pode manifestar em
nos. "É verdade, ao mesmo tempo, que êle se esconde àqueles
que o procuram, porque os homens sâo, ao mesmo tempo, in-
dignos de Deus e capazes de Deus; indignos por sua corrupçao,
e capazes.pela primitiva natureza." (557)
A humildade assim compreendida é por isso a condiçao para
o homem escapar ao desespêro: "Jésus Cristo é um homem do
quai nos aproximamos sem orgulho, e diante do quai nos abai-
xamos sem desespêro." (528) "O homem nâo é digno de Deus,
mas nâo é incapaz de tornar-se digno dêle. É indigno de Deus
unir-se ao homem miserâvel, mas nâo é indigno de Deus tirâ-lo
de sua miséria." (510)
Eis porque, em relaçâo à graça? todos os homens sâo iguais,
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sâbios e humMdes, iluminados e populares. "As outras religiôes
como as pagâs, sâo mais populares porque se exteriorizam; nâo
sâo para as pessoas iluminadas. Uma religiâo puramente in-
telectual séria mais adequada aos iluminados; contudo nâo séria
para o povo. Sômente a religiâo cristâ é adequada a todos, com
posta como é de exterior e de interior. Eleva o povo para o in-
terior, e abate os soberbos para o exterior, nâo sendo perfeita
sem ambos, pois é preciso que o povo entenda o espirito da
letra, e que os iluminados submetam o espirito à letra." (251)
"Aquilo que os homens, por suas maiores luzes, puderam conhe-
cer, essa religiâo lh'o ensinava aos filhos." (444) De fato, a
ordem da caridade (cf. 793) que nos é aberta pela graça, nâo
tem nenhuma medida comum com a ordem natural: "Nâo vos
espanteis se verdes pessoas simples crerem sem raciocinar. Deus
Ihes dâ o amor a Êle e o ôdio a si mesmas. Inclina-llhes o coraçâo
a crerem. Nunca se crerâ com uma crença util e de fé se Deus
a tanto nâo inclina o coraçâo; e crer-se-â desde que Êle o incline.
Ê o que bem sabia Davi quando dizia: Inclina cor meum, Deus,
in... (284) "Estes sâbios do mundo encerram os contrârios num
mesmo sujeito; pois que um atribuia a grandeza à natureza, e o
outro a fraqueza a essa mesma natureza, o que nâo podia*
subsistir; ao passo que a fé nos ensina a situâ-los em sujeitos
diferentes: tudo o que hâ de fraco cabe à natureza, tudo o que
hâ de poderoso, à graça. Eis a uniâo admirâvel e nova que sô
Deus podia ensinar, e que sô Êle podia fazer, e que nâo é senâo
uma imagem e um efeito da uniâo inefâvel de duas naturezas
na pessoa ûnica de um Homem-Deus." (Entretien avec M. de
Saci sur Êpictète et Montaigne, Br., p. 160)
A natureza corrompida, com suas paixôes e sua concupiscên-
cia, nâo encontrarâ, pois, satisfaçao senâo pela graça. O coraçâo,
em particular, sente que a ordem natural deve ser transcendida.
"Apesar da visâo de tôdas as misérias que nos tocam, que nos
cingem pela garganta, temos um instinto que nâo podemos re-
primir, que nos éleva." (411)
É exclusivamente na religiâo, para a quai convergem suas
aspiraçoes, que o homem encontrarâ uma respoSta satisfatôria aos
problemas suscitados pela sua situaçâo no universo, petlo seu
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fim ûltimo. De um modo mais preciso, esta soluçâo, dependente
ùnicamente da iniciativa de Deus, nos sera transmitida por Jésus
Cristo, mediador anunciado pelos profetas, autorizado pelos mi-
lagres, vindo, antes de tudo, para restituir e perfazer em nos o
estado de graça originaria.

Imediatamente apôs a Renascença, Pascal formulou e pre-


cisou noçôes clâssicas quanto ao seu fundo. Deu à problemâtica
tradicional da vida da fé uma expressâo original e extremamente
aguda. Pode ser que tenha insistido mais do que dévia sobre a
posiçâo de Jansênio, mas parece-nos que é uma questâo de
acento. Apôs o laborioso declinio da escolâstica, êle foi um dos
primeiros a repor o problema do ato de fé em têrmos estrita-
mente humanos e mesmo humanistas, que jâ nâo dependiam de
uma idade que nâo se admirara jamais de ser cristâ.

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