Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Em João das Quantas, sintetizo personas que conheci durante este período:
"corgos", as histórias da mata para educar as crianças arteiras, os almoços fartos e rodas
Boa Leitura!
Facebook: https://facebook.com/costawilla
Instagram: https://instagram.com/willaoficial
Twitter: https://twitter.com/willaoficial
http://instagram.com/ghiskran
CAPELOBO
João das Quantas abriu seu último corote e o sorveu até a metade num gole só. O
veneno lícito queimou sua garganta e arrancou uma praga qualquer do homem, fazendo-
o esquecer a dor. Ao seu lado, o corpo do tinhoso estava aberto com as tripas pra fora,
Aquilo era ruim: se ele não encontrasse o patriarca dos Capelobos da região em breve,
logo estaria tão feio quanto o defunto ao seu lado. Pelos cresceriam por seu corpo e sua
João se recostou num Ypê e cortou o jeans velho com um canivete. O corte feito
pelas garras do capelobo eram superficiais, mas seria uma adição e tanto para sua coleção
- Há, há, há, há! Vô me livrar de vossemecê logo, logo, preto véio.
- Cala-te boca, tinhoso! - João retrucou - Ocê armou pra riba d'eu, carniça!
vegetação como se fosse fumaça e se formou na frente dele, chupando dedo. A carapuça
que todos costumam retratar, nada mais era que o prolongamento rugoso da sua cabeça.
Era um tentáculo manchado de vermelho que se destacava na sua pele carvão. Os braços
eram secos, desproporcionais para o corpo diminuto. O único membro inferior era bem
mais longo, terminando num pé com quatro falanges afiadas, sendo duas delas invertidas
para dar sustento ao corpo feito um papagaio. Ao contrário do que se costuma ver dos
- Diacho! - João resmungou enquanto puxava uma garrafa que trazia atrelada ao
corpo por uma corda - Ocê para de me encher os pacovás ou eu balanço essa garrafa até
do capelobo pelas pernas, arrastou-o pela mata numa marcha pesada. A cada passo dado
o defunto ficava mais leve, pois a carcaça se desprendia e revelava um corpo humano por
naquele estado. O rosto ainda tinha as feições de tamanduá, o que por si só corroborava
- Era. - João confirmou com um sinal da cruz - Mas não devia de ser o único não,
visse? Acertei o parceiro dele nas ventas, mas não consegui dar cabo dele.
As pessoas da vila começaram a sair de suas casas, curiosos pela estranha cena na
- Seu Joaquim, é mió seus jagunços levarem o corpo do padre Zé pra longe. Alguns
em casa. Tem uma refeição a sua espera e você pode cuidar dessa perna, venha.
João sabia que tinha se metido num esquema pra lá de profano com aqueles
dum sujeito esclarecido, como fora o agora finado padre Zé. Contudo, ele não fora o
primeiro sacerdote a sofrer tal fim por suas mãos calejadas. Mas Deus e padim Padre Ciço
puxadinho de pau à pique no quintal da capelinha. Dentro, nada que valesse muito: uma
madeira roído por cupim e uma mesa de metalon, daquelas que qualquer boteco
vagabundo tem, sabe? Em riba dela estavam um pente recheado de tufos de cabelo, um
juá. Mas uma coisa chamou a atenção de João: um jerivá seco, famoso coquinho ou baba-
- Como todas as outras, sinhô. - João falou, guardando o jerivá no bolso – Ocê
- Rapaz, ocê me pegou de jeito agora, visse? Eu grilei as terras na marcha do oeste
e, se bem me alembro, devia de ser o Zé a estar por aqui já. Demorou uma boa década até
desde março?
- Sim, sim. Logo depois das festanças da páscoa do nosso senhor. Ou talvez
durante a quaresma. – Joaquim diz indo até o roupeiro - Teve umas cabeças de boi que
encontramos descarnadas na época, mas achamos que fossem ladrões de gado. Nunca que
iríamos desconfiar de um homem santo, um capelão. Ele batizou minhas crias, pode isso?
- Seu Joaquim, vou ser verdadeiro com o sinhô. A desgraceira que rondeia a vila
é das bravas e se não for resolvida até a última lua, vai ficar ruim pra todo mundo, visse?
- Fale isso não, hômi! - Joaquim se exalta, fazendo o sinal da cruz - Pra tudo há
um jeito e, com fé em nossinhora, vamô acabá com a raça desses fióte de cruz credo.
- Perna? - João disse confuso para então notar as manchas de sangue no chão e
Aquilo não era bom. Só então João notou um certo futum no ar, como suor
- O padre Zé deve de ter um jeans bão aqui – Joaquim continua, abrindo o roupeiro
Mas era tarde demais. Antes do homem puxar a porta do roupeiro, uma sombra
marrom a despedaçou de dentro para fora. Sangue tingiu as paredes de pau a pique
enquanto a cabeça de Seu Joaquim caia nos braços desarmados de João. O capelobo
emitiu um guincho agudo antes de se lançar pra riba do preto. O tinhoso trazia um
ferimento no rosto chupado de tamanduá. Era o parceiro do padre Zé, que João ferira há
pouco na mata.
Sem muita escolha, João se jogou pela porta, soltando a cabeça de Joaquim no
cordel de suas vidas. O capelobo atravessou a parede de barro como se fosse papel e se
ergueu nas patas traseiras. Abrindo os braços desproporcionais, tentou enredar João num
abraço. O matuto rolou sobre o próprio corpo, desviando do diabo enquanto alcançava a
garrafa do perêrê.
- Anda logo, pedaço de carvão! - João gritou, sacudindo a garrafa - Aparece, verme
sorte, João empreitou um galope no mesmo instante que o chumbo grosso dos jagunços
começara a chover contra a peste. O capelobo foi atingido nas costelas e urrou
agudamente antes de investir contra a elite. Porém, hesitou ao notar os primeiros raios de
sol que desenhavam o relevo. Percebendo a desvantagem, a praga se apoiou nos membros
dianteiros e zuniu como um trovão para dentro da mata. Só então João pode se recompor.
João tomou o café sem esfriar e queimou o beiço, derrubando um pouco na camisa
limpa. Dona Nelza, criada da casa do recém falecido Seu Joaquim, foi rápida em lhe trazer
- Ará! Agradecido.
- Sua noite deve ter sido dura, seu Jão. Se preocupe não – ela respondeu, passando
veias injetadas, como se o sono a evitasse e seu rosto descascava nas extremidades,
queimado do sol.
- A sinhora trabalha a quanto tempo pro seu Joaquim, dona Nelza? – ele a indagou,
- Carece disso não, seu Jão. – agradeceu envergonhada - Pois é, parece que faz um
vidão mesmo.
tinha um choupaninha por essas bandas antes das grilagens. A gente viveu ao lado dos
- Esses bugros que ocês tanto falam são os índios da região, né mesmo?
mesa – São gente boa desde que deixem eles em paz. Muito unidos, muito mesmo. Painho
me levou pra ver uma festa deles um dia, quando eu era guria. Foi a coisa mais linda que
vi na vida.
A mulher cobriu a rosca e refletiu sobre o assunto com uma expressão perdida.
- Oiá, seu Jão. Parece que não. Os coisa ruim estão sempre atentando dessa banda
- Água corrente leva as impurezas com ela, é sabido. – João concorda enquanto
– Acho que o sinhozinho Nico acabou de entra... mas que diacho de cheiro é... ai
minha nossinhora!
João fungou e olhou por cima dos ombros de dona Nelza a tempo de ver o leite no
fogo derramar. A senhora correu para salvar o que podia e esbarrou numa vassoura de
palha que deixara encostada na mesa. O cabo da vassoura, por sua vez, atingiu e virou o
bacião de alumínio com a louça limpa na pia, fazendo alguns pratos e xícaras de porcelana
Uma risada tinhosa subiu da garrafa de João e ele fez questão de chacoalhá-la
antes de se levantar. O Pererê resmungou e o ar na cozinha ficou mais leve, como se uma
entrava, pensando estar diante de uma visagem. Uma versão mais jovem e galante de Seu
- Você deve ser o seu João das Quantas. – cumprimentou-o com firmeza – Tonico
- Ará! Logo se vê, cuspido e escarrado! – João falou com os olhos arregalados –
Eu sinto muitíssimo pelo sinhô seu pai, seu Tonico. Ele me pareceu um homem direito.
postura austera.
- Que diacho de bagunça é essa, dona Nelza? – ele falou então, desviando da
mesa.
Nico colocou as mãos na cintura e balançou a cabeça negativamente enquanto
Nico pareceu despertar e perceber que havia dito coisa demais. Então puxou uma
carteira de couro do bolso e contou um punhado de papel moeda, estendendo o bolo para
João.
- Espero que o senhor faça uma ótima viagem de volta, seu João. Somos muito
agradecidos por ter dado cabo de uma das coisas, mas creio que agora nós possamos
tocar a vida. Mas pode deixar que não irei atrapalhar ocês não, visse?
uma rede na sacola. Prefiro ter as estrelas em riba d'eu, se avexe não.
numa meia velha que trazia no bolso, se despediu de dona Nelza e perambulou por Vila
Nova. Parte do povo estava amontoado em volta da capelinha, onde o corpo do Padre Zé
e de Seu Joaquim eram velados. Cantavam um hino cristão antigo, sem ritmo ou
empolgação. João ainda mancava e recebeu olhares pouco amigáveis dos ribeirinhos em
vigília. Como de costume, ele fez um sinal da cruz ao passar pela capela e se dirigiu ao
rio onde alguns homens pescavam num tablado roído pelo tempo.
- Tarde! – João começou – Como tá o rio por agora? Já puxaram um Jaú?
- Humph! Quem dera, seu Jão. – respondeu o mais velho do grupo de três homens
- É verdade. – o calvo entre ele falou – Tanta desgraça de uma vez só. Se eu fosse
- Ará! Acham que os índios tão metidos nessa obra do cão? – João perguntou
- Eles não são povo de Deus não, seu Jão. Tem noite que dá pra ouvir eles
batucando e gritando que nem uns doidos por lá. – o mais velho fala, fazendo sinal da
João colocou a mão sobre os olhos e forçou o olhar para o outro lado do rio. Ao
longe, notou uma trilha de fumaça que subia vagarosa para as nuvens escassas do céu da
tarde.
- É sim sinhô. – o calvo responde – De vez em quando dá pra ver eles andando
João olhou em volta e notou uma piroga amarrada com um remo curto dentro.
- Ocês me emprestam a embarcação pra fazer uma visita neles? – João pede e vê
o grupo se sobressaltar.
paca praquelas bandas e não percebeu que tinha chegado perto da aldeia. Ele falou que
- Não se avexem não, visse? – João diz enquanto desamarra a piroga – Prometo
- Já que não tem jeito d'ocê mudar de ideia, é melhor levar um presente. – o velho
diz – Acho que eles são chegados numa caninha. Tem uma garrafa sobrando aqui, se ocê
quiser.
João das Quantas deixou o barco ser levado pela correnteza pela maior parte do
caminho. Vez ou outra, endireitava a piroga com o remo para não bater em galhos ou ir
O pererê estava agitado, resmungando dentro da garrafa. João bem sabia o motivo:
o rio não era domínio dele. A Mãe d'Água não gostava de pererês e afogaria qualquer um
que encontrasse.
- Ará, coisa ruim! – João bufou enquanto remava – Ocê trate de ficar quieto e me
obedecer quando eu te chamar. Talvez os bugros te deem tapioca. Não é o que ocê gosta?
- Não quero nada d'ocês não, fiote de chocadeira! Acha que eles não vão sentir
João espiou para o próprio reflexo na água. Era verdade: embora ele tivesse se
barbeado, a barba já havia preenchido o seu rosto sulcado novamente. Ele olhou para o
- Ocê tem que achar o patriarca pra mim. – João falou firme – Ou eu te juro que
- A Mãe d'Água é melhor do que benzer seu coro toda vez que vossemecê se borra,
preto véio!
- Ah, é peste! – o matuto se zanga, pousando o remo e pondo-se de joelhos na
a guinchar e uma bruma negra rodopia dentro do recipiente. Correnteza abaixo, algo
- Seu preto fí duma cadela sarnenta! – o saci praguejou – O Pai do Mato vai tirar
A piroga balançou com força e João pode ver a curta barbatana dorsal do boto que
os rondava. Puxando vários cordões do pescoço, puxou um com uma medalha metálica.
Depois, com um sorriso faceiro, soltou a garrafa, vendo-a boiar com a correnteza.
- Seu sarnento! – urrou o saci – Vossemecê vai arder! Vai arder, fí duma abre
pernas qualquer!
- Ocê deveria parar de resmungar e prometer que não vai mais fazer a zuada que
fez lá com o capelobo, coisa ruim. – o homem esbravejou – Tô com essa tinhagem no
finos e mergulha, desaparecendo nas águas turvas. João deu uma risada contida e olhou
o sol para precisar a hora. Depois, arrebentou o cordão com a medalha que havia separado
e fez uma reza antiga que a senhora sua mãe havia ensinado. Fazendo o sinal da cruz de
Após alguns segundos de silêncio total, algo submergiu correnteza abaixo. Era a
garrafa do pererê. João guardou a medalha de São João Apóstolo e remou até ela.
- Ará! Gostou de visitar a Mãe d'água, peste? – João gargalhou, puxando a garrafa
Ao fazer a curva no rio, ele avistou homens com a pele tingida de vermelho numa
percebeu uma movimentação agitada na margem. Sem aviso, uma flecha fincou em sua
e lanças nas mãos enquanto gritavam em seu próprio dialeto. João ergueu o remo e acenou
para eles, mostrando que não estava armado. Em resposta, os bugros começaram a
saraivada.
Sem escolha, João mergulhou, assistindo as setas dos bugros zunirem sem força
em torno dele. Ele avançou, mantendo a respiração presa o tanto quanto pode e submergiu
margem abaixo, próximo ao mangue. A beira era lamacenta e dificultou sua saída da água.
Alguém começou o puxar pelo blusão sem delicadeza para o leito enquanto um grupo de
bugros o cercava aos berros. João não entendia nem uma palavra, mas percebeu que não
devia ser algo bom. Os índios o ameaçavam com as azagaias enquanto o colocavam em
pé. Ele ergueu os braços em rendição e um dos captores começou a bater com as mãos
em torno de sua cintura. Em certo momento, deu com a garrafa do pererê e a tomou nas
companheiros. Eles começaram a enxotar João em direção da mata e, após uma breve
caminhada entre árvores rasteiras, deram numa clareia onde mulheres, homens e crianças
se dividiam em tarefas habituais como tecer cestos e sovar farinha. Uma grande oca de
palha ocupava a maior parte do descampado, rodeado por outras quatro menores. Quando
mais velhos mantinham distância. As crianças, mais ousadas, correram curiosas a frente
de João, tocando-o. Ele notou que todos possuíam pinturas corporais em uma vibrante
endurecido por uma pasta vermelha – provavelmente a mesma que dava pigmento a pele;
sua mão estava um bastão com palha, que vez ou outra o homem usava para espantar os
- Matintape're. – o velho diz num voz desgastada, fazendo o resto da aldeia ficar
- Ará! Pode deixar que a cruz que o prende tá bem reforçada, visse? – João diz
acanhado – Queria bater uma prosa com o sinhô, sobre a desgracença que acontece em
Vila Nova.
- É castigo. – o pajé diz ao se aproximar de João – Os brancos não respeitam
- Então foram ocês que mandaram os capelobos pra riba deles? – João questiona,
- Já fomos bororo. – recomeça o pajé – Já fomos xavante inté. Hoje somos bugros,
como os brancos nos chamam. Mas capelobo, não somos não, preto. A vingança é de
Anhangá!
Dizendo isso, o pajé se afasta para oca enquanto o grupo de homens que havia
saído retornava com um corpo nu nos braços. Eles deixam o defunto aos pés de João,
João não pode negar. O sujeito aos seus pés era claramente de Vila Nova.
- Anhangá não vai parar, preto. – o pajé continuou – Tomaram de Anhangá e agora
E aos poucos o povo de Vila Nova se amontoou em volta do corpo nu que João
das Quantas trouxera dos bugros. Os furos de bala não deixavam dúvidas de que era o
- Mas não pode ser o Bentinho! – Seu Nico espumava pra cima de João – O homem
- Óia, - começou o matuto – fé por fé, o Padre Zé também estaria vivo. Esse aí é
Seu Nico ficou visivelmente irritado com a postura do preto. Ele perambulou de
um lado para o outro com os olhos estatelados. Parecia procurar uma saída para a
- Então os bugros tão metido nisso mesmo. – um pescador falou da turba – Eles
- Os índios não parecem estar metido nisso não, visse? – João gritou para vencer
as vozes – Esse sinhô aqui faleceu do chumbo d'ocês. E tanto ele, como o padre Zé eram
- Foi ocê que atiçou as pragas, bruxo desgracento! – acusou uma mulher.
outro. No calor da discussão, um homem puxou uma peixeira para João, que por sua vez,
sacou a própria e riscou o chão, levantando poeira. Antes que todos entrassem numa ginga
sangrenta, uma bala foi disparada. A maioria da turba dispersou aos berros. João deu dois
passos ligeiros para trás para seu Nico, que rondava o alvoroço com a arma fumegante
- Pode para com isso! Pode parar! – ele gritou enquanto o povo se calava – Vocês
não sentem vergonha não? Hum? Ará, égua! Meu pai e o padre ainda estão sendo velados
na capela e temos mais um desgracento pra ensacar. Querem ter mais um, hein?
desculparam e um grupo se organizou para levar o corpo de Bentinho pra sua viúva, afim
de tratarem do enterro.
- Ocê me desculpa, seu Nico. – João começou – Não queria ter causado essa
- Olha, seu Jão. – o homem diz com a voz firme e os olhos injetados – É melhor o
senhor ensacar suas coisas e sumir de Vila Nova. Sei que meu pai tinha estima por suas
crendices e valentias, mas o que vai se suceder agora é coisa do nosso povo.
- Eu entendo, seu Nico. – João falou com pesar – Eu só peço que o sinhô bote a
- Já te disse, seu Jão! – ele pontua enquanto balança um dedo em riste pro alto –
Não se meta mais nos problemas de Vila Nova ou vai dar ruim pra você!
João das Quantas assistiu o homem partir, notando que dois jagunços o
interceptam no caminho. Daquela distância, o matuto não tinha ouvidos para o que os três
confabulavam, mas viu seu Nico se exaltar e rumar para a residência do falecido pai.
- Ará! Resolveu aparecer, coisa ruim? – João desdenha – Deixe o homem em paz,
adentrarem a casa. As palavras do pajé não saiam da sua cabeça. Ele precisava descobrir
- Ará! Vá logo, desgracento. Vá! – João permitiu, fazendo o sinal da cruz – Mas
se tu fizeres traquinagem com ele, eu não te salvo do boto dessa vez não, visse?
Uma lufada de ar passou por entre as pernas de João e correu em direção a casa,
levantando folhas secas e terra em espiral pelo caminho. Algumas roupas que estavam
- Eita, esse tempo seco! – um dos jagunços tossiu ao se sentar – Tá tudo virado
mesmo.
- Dona Nelza – Nico a chama – Eu vou ter que tratar duns assuntos com o Jorge e
o Anastor agora. Eu deixei o corpo de papai sozinho com o povo. Faz favor de ir lá fazer
sala.
- Sim, sinhozinho. – ela concorda, tirando o avental e indo para a porta – Acabei
porta.
Dona Nelza sai da casa e anda vagarosamente em direção à capela. Nico a observa
pela janela e fecha a cortina quando a vê bem afastada. Quando passou pela cadeira onde
- Ave, seu Nico! – o homem resmunga ao sentir a nuca arder – Precisava disso,
homem?
- Tá querendo dar com a língua nos dentes logo agora, seu filho de chocadeira? –
Nico diz entredentes – Quer que todo mundo da Vila saiba da jazida?
peste.
Nico começa a andar de um lado para o outro na sala, esfregando as têmporas com
preocupação. Ele encara a mesa de centro onde havia um retrato de seu finado pai e
- Tudo bem, seu Nico? – Jorge pergunta desconfiado – Parece que o sinhô viu um
fantasma.
vira a pouco, mas só viu a si mesmo refletido. Avançando um passo, virou a moldura com
- Talvez, Jorge. Talvez. – ele responde um pouco mais sereno – Como anda a
extração?
- Atrasada, sinhozinho. – ele diz, soltando o ar – Esses dois últimos dias tão
- E os peões tão cabreiros desde que aqueles dois sumiram semana passada. –
- Eu não pago pelas superstições deles! – Nico devolve sem paciência – Os bugros
a gente. Assim que o senhor velar o senhor seu pai, acho que a produção deve render.
Olha só!
Pererê rodopia por entre os objetos da estante para ver melhor o troço brilhante. Quando
ele bota os olhos na pedra, deixa um sorriso brotar no canto de sua boca rasgada e
desaparece na bruma.
- Agora é a hora dos peixes graúdos! – Jorge comemora – Sem os capelobo, deve
- Acho bom mesmo, Jorge. – Nico fala enquanto encara o diamante bruto ao lado
- Ará! – João bufa enquanto enxuga o suor da face – Diamante por essas bandas?
- Ferir a terra sem permissão do sinhô dela dá nisso, preto véio. – o pererê sussurra
– Anhangá não vai parar até que se vingue de quem desrespeito ele.
João das Quantas bem sabia disso. Anhangás costumam ser imprevisíveis.
objetivos. Mesmo que todos os capelobos de Vila Nova fossem derrubados, a entidade
- Seu Jão. – uma voz trêmula o chamou. Era dona Nelza.- Posso ter um cadinho
com o sinhô?
- Ará! Claro dona Nelza. – ele diz, guardando a garrafa do pererê debaixo do
blusão.
A mulher se aproxima com insegurança e lhe estende uma mão fechada. João
estranha, mas toma o que quer que fosse que ela lhe oferecia. Quando o pega, nota que
era um outro caroço de jerivá entalhado, dessa vez com a imagem de uma anta.
- Ará, o que é isso dona Nelza? – ele pergunta confuso – Outro brinquedo dos
bugros? Pode ficar tranquila que eu acho que eles não tão metidos nisso não, visse?
- Não é isso não, seu Jão. – a mulher se encolhe, segurando a barra da saia de godê
– O seu Nico e os homê dele profanaram terra sagrada. A mata tá cobrando da gente.
João olha em volta para se certificar que ninguém estava por perto para ouvir.
- É sobre os diamantes, dona Nelza? – ele sussurra.
- Eles tão derrubando a mata, fazendo um buraco em solo sagrado – ela continua
– Esses jerivás são de lá. Os bugros chamam ela de pão de Anhangá. O sinhozinho Nico
tá agindo estranho, seu Jão. Alguém tem que parar essa loucura antes que o pior aconteça.
- Ará! – João suspirou, secando a nuca. Quando puxou a mão de volta, notou que
um tufo de cabelo se soltara como um prenúncio. – Onde fica os coqueiros, dona Nelza?
- Mas ocê vai sozinho, seu Jão? É perigoso por demais. Seu Nico tem gente armada
lá.
- Não se preocupe, dona Nelza. – ele a tranquiliza – Eu dou meus pulos, visse?
A mulher espia em volta e aponta para o rio, na direção da aldeia dos bugros.
- Ocê tem que descer o rio até depois da aldeia. – ela começou – Onde o rio se
divide, vai ter um charco escondido com um monte de régias, vai ser fácil procê achar.
Aí, deve te ter uma trilha ainda. É só seguir que vai dar nos coqueiros.
sacrilégio que acontecia na terra de Anhangá. Foi quando algo estalou na sua cachola.
- Ará, dona Nelza – ele começou – Eu aprecio sua graça, por isso não me leve a
mocidade, fui casada com um bugro. Era uma época diferente. Ele fazia a ponte entre a
Vila e a aldeia. Seu Joaquim descobriu a jazida nos coqueiros, mas ele era um homem
temeroso e meu esposo o convenceu a deixar a terra em paz. A tuberculose veio e pegou
o meu guri novo depois disso. Um tempo depois, foi a vez do meu esposo. Desde então o
metido nisso?
- Era sim sinhô. – ela confirma – Padre Zé tinha vindo de uma vila no nortão, onde
os mineiros acabaram com tudo. Pelo menos, foi o que ele nos contou. O sinhô tá bem,
Era verdade. Sem notar, João começara a suar. Seria uma noite inquieta, mas não
viraria capelobo ainda, bem sabia. Ele tinha que encontrar o patriarca das criaturas e
- Ocê volta pra casa e se tranca bem, visse? – João a alertou – Vou aproveitar o
- Que nosso Santo Expedito e a Mãe da Terra te protejam, seu Jão. – a mulher
caixões. Como era esperado, toda Vila Nova fora para a cerimônia, dado o seu peso
religioso.
Remou por cerca de um quarto de hora antes de dar ignição. Uma nuvem escura estourou
apanhou um farolete para ver melhor a margem alagada. Após alguns minutos, encontrou
as régias como dona Nelza havia lhe dito. Por segurança, desligou o motor e remou charco
adentro, sendo ocultado pela braquiária que estava parcialmente submersa. Quando a
popa atingiu o areião, João pulou para o mato, soltando a ancora de ferro fundido. Para
um homem experiente como ele, fora fácil encontrar a trilha. Porém, preferiu evita-la.
breu a distância. Notou uma roda com mais ou menos seis peões em volta duma panela
fumegante. Pelo cheiro, era arroz carreteiro com carne de sol. Aproveitando-se da
distração dos homens, rodeou o acampamento até onde alguns coqueiros jaziam
picaretas e inchadas estavam espalhadas pela área, além de tripés com peneiras e tambores
jeito que vossemecê tá ficando cabeludo, daria cabo dessas pestes fácil.
- Vai o quê, preto veio? – o saci avançou ligeiro com a bruma e se formou a um
longo assovio saiu dele enquanto o coqueiral balançava com o vento forte. Um dos tripés
Foi quando sentiu algo pesado cair contra sua nuca feito uma saca de algodão. Sua
visão ficou turva com o impacto que viera da coronha dum peão, que agora se projetava
acima dele, gritando algo que chegava abafado aos seus ouvidos. Logo, mais homens
Rendido, uma sensação febril tomou conta do matuto. Algo queimava no seu
umbigo e se espalhava por seu corpo, estalando seus ossos e contraindo seus músculos.
Em meio a crise, foi tomado pelos braços e arrastado para o meio do acampamento. Sua
cabeça latejava tombada para trás, enquanto imagens da mata rodopiavam atrás de si, sem
forma definida. Por dedução, reconhecera os coqueiros. O padrão dos caules destacava-
se naquele torpor sensorial. Talvez por isso, fora fácil perceber a sombra que se
caiu mole, assistindo a sombra atacar. Clarões de bala cruzaram o ar com um cheiro
férreo, seguido de gritos e engasgos. Aos poucos a escuridão se fechou ao seu redor.
Sonhou com sua mainha, embalando-o sob a luz do luar enquanto cantava um cordel.
João se levantou, inspirando o ar para dentro dos pulmões o mais forte que pode.
Caiu novamente na esteira de folhas, zonzo pela lucidez repentina. Enquanto seu coração
aromática que escapava por uma abertura no cume. Raios do crepúsculo solar
que suas roupas haviam sido retiradas e que uma pasta com cheiro forte cobria suas
narinas.
Começou a escarrar a pasta até que o último resquício de catarro seco fosse
expelido com sangue. Terminado o serviço sujo, ouviu um som de palha seca agitada no
ar. O pajé espantava os mosquitos de forma austera, como da última vez que o encontrara.
João limpou o suor e a sujeira que estava pregada ao nariz com a mão nua e
percebeu que a barba havia crescido além do esperado, passando de dois dedos de
comprimento no queixo.
- Mais de meio dia, preto. Logo a noite chega. – o pajé respondeu, parando de
espantar os mosquitos – Tugurére encontrou ocê na terra de Anhangá. Ocê, preto, deu
João se sentou com algum esforço e viu que além do rosto, havia crescido pelos
- Ocê não se lembra? – o pajé falou com ar de deboche – Anhangá o usou como lança,
necessariamente nesta ordem. Em meio a toda aquela confusão, de uma coisa ele tinha
certeza: não fora ele a dar cabo dos peões. Afinal, a praga em seu corpo ainda não atingira
o ápice. Talvez fosse o patriarca dos capelobos ou um dos peões desaparecidos que o
Ah, o pererê!
lugar algum.
- Seu Matintape're não tava com ocê não, preto. – o pajé disse ao notar o
- Ará! – João suspirou – Se aquela peste escapa, vai infernizar meio mundo de
O pajé aponta para um cordão esticado onde a roupa de João balançava limpa. O
Ao contrário do dia anterior, João notou que todos pareciam ter abolido as parcas
peças de roupa da civilização que usavam. Todos os homens usavam estojos penianos e
as mulheres saias trançadas por elas mesmas. Eles estavam pintados com os mesmos
- Festança?! Não, preto. – o pajé gargalha, tossindo – Nosso povo tá preparado pra
- Acho bão desistir da ideia, pajé. Os brancos têm chumbo grosso e tão pistola da
vida, visse?
também.
- Óia, seu pajé. – João falou com a mão no ombro do ancião – Eu sei que parece
que foi eu que fiz aquela desgracença com os brancos lá, mas não foi não, visse? Ainda
tá longe d'eu virar capelobo. Só faz duas noites desde que a praga me atacou.
poucos os bugros o rodearam e entoaram algo na língua mãe deles, deixando o pobre
idade - Os brancos vão fazer chover o chumbo deles em nossas crianças. Veja, preto, veja!
Veja nossas crias. Veja e escolha. Anhangá e sua justiça. Ou os brancos e sua cobiça.
João se livrou das mãos do homem e se afastou intimidado pela procissão que o
cercava. A passos largos, ele debandou para a mata, empurrando quem ficasse em seu
caminho. Passou por um casal de crianças, um pouco maiores do que aquelas de colo. O
menino chorava com o nariz escorrendo enquanto a menina passava terra na barriga.
nascera, de seus pais e avó. Os tiros daquela noite voltaram a preencher seus ouvidos,
como tambores vindo dos sete infernos. Ele bem conhecia a ganância dos brancos por
qualquer bolita reluzente. Sabia que, mesmo que essas crianças fossem empaladas, os
cabeças da cidade grande iam mandar papéis amarelados para abafar o grito delas.
João rosnou, sentindo suas presas ficarem afiadas e a cartilagem do seu nariz
botina, que o fez pisar em falso. Ele se agarrou em um pé de ypê próximo e afundou as
unhas em seu tronco, talhando o tecido até a pele. Seu coração parou subitamente e tudo
voltou ao devido lugar no mesmo instante, causando uma dor aguda em seus nervos. Um
longo zunido cortou sua audição e aos poucos os sons da mata começaram a ressurgir.
transformação. João arrancou as botinas e continuou seu caminho até a beira do rio. O sol
começara a se pôr no horizonte e ele teria que remar até Vila Nova para impedir os
Seu nariz, ainda sensível com a recente recaída, capturou o cheiro forte e pungente
acompanhado pelo grito de guerra dos bugros, que aos poucos foram substituidos por
gritos de horror. Sem perder mais tempo, João correu em direção da aldeia.
A confusão era geral. A grande oca da aldeia ardia com uma coroa de chamas que
beijava a vegetação próxima. Homens armados com espingardas atiravam a esmo nos
bugros desprotegidos, que por sua vez atiravam azagaias, setas e pedras contra o chumbo.
ainda estavam de pé. Espiou na direção dos atacantes e reconheceu Seu Nico no centro
deles, atirando sem piedade contra um jovem bugro de não mais do que catorze anos. O
menino, com muita bravura, conseguiu lançar sua azagaia antes do chumbo espalhar seus
miolos por terra. A arma descreveu uma parábola certeira, cravando no ombro do atirador.
Tonico deixou a arma cair, gritando enquanto os jagunços ao seu lado o afastavam do
perigo.
João então alcançou uma azagaia dum corpo próximo e correu contra os brancos
forma temerária. Contudo, Nico, que era arrastado pelos braços, percebeu as intenções do
Choveu bala contra João, que teve que mudar de estratégia para sobreviver.
buraco fumegante entre os olhos. Quando avistou o grupo dos brancos novamente, ergueu
a azagaia e correu para tomar impulso. João sempre teve uma mira primorosa e nunca
havia errado um cateto daquela distância. O coração de Seu Nico estava no papo.
Quando apoiou o pé para lançar a arma, sentiu uma dor aguda quebrar sua postura,
seu agressor e reconheceu Anastor, que mais do que depressa, acertou-lhe outro tiro acima
do joelho de apoio.
O preto foi ao chão de maduro com os sentidos variando. A visão ficou inebriada,
seja pelos ferimentos ou pela fumaça no ar. A lua brilhava opaca e nova por detrás daquela
cortina sufocante de cinzas, chamando-o com sua voz prateada. Porém, o rosto de Anastor
a eclipsou com a arma em riste, pronta para dar cabo de sua existência. O sorriso
ferroso.
AAAARRRRRRRRRRRRRRGH!!!!!!!!!!!
homem se derramaram pesadas em cima de João, cheirando a merda. Antes que Anastor
percebesse a ferida, uma nova lufada de ar o arremessou para longe do preto, deixando
sombra marrom abrir Anastor ao meio com garras potentes. O capelobo guinchou e
arremessou os pedaços do branco para o alto ao mesmo tempo que notava João. A besta
fera bateu as patas dianteiras no chão em desafio, espumando sangue e saliva espessa pela
bocarra alongada.
Avançou vagarosamente de forma ameaçadora em sua direção. João tateou o chão
busca e encontrou a arma dois passos adiante, ainda presa ao braço decepado do branco.
Movendo apenas os olhos de volta para o capelobo, percebeu que o bicho se preparava
João se lançou contra a arma no mesmo instante em que a criatura investiu. Porém,
o preto calculou mal a distância, caindo a um palmo da coronha. Na mesma hora, sentiu
o capelobo cair pesado ao seu lado. Rolou para se proteger a tempo de ver a criatura rasgar
outro jagunço que espreitava até eles. Era a lacuna que João precisava para alcançar a
arma.
e o encarou por cima dos ombros peludos, emitindo um ganir raivoso. João puxou o
retalhando qualquer branco que ficasse em seu caminho. Aquilo era incomum, João sabia.
Talvez o pajé tivesse razão e Anhangá os protegessem. Com certo trabalho, improvisou
João sentia a bala alojada em sua perna e cada passo parecia pesar uma boiada. A
O breu tomava conta da trilha, deixando para trás o clarão da aldeia em chamas.
Estranhamente, seus olhos se adaptaram a nova condição, talvez até melhor do que fora
antes. A lua nova acima dele parecia o sol do meio dia, reforçando seu corpo para ser o
receptáculo do capelobo.
João tinha pouco menos de dois dias para encontrar o bendito ou então seria
capelobo para sempre. Quando se está nesta vida de caçador, isso se torna ruim para os
negócios. Ele poderia esconder bem a maldição, isolando-se na mata nas noites perigosas.
Mas a maioria das visagens que perseguia preferiam a escuridão, onde a fé do povo se
Enquanto seguia o rastro dos brancos, João pôs-se a matutar. O primeiro capelobo
que deu cabo fora o Padre Zé. O segundo era o tal Bentinho, que matara Seu Joaquim.
Ambos de Vila Nova. Os outros dois que estavam ajudando os bugros, possivelmente
fossem os peões desaparecidos de Seu Nico. A única relação com os indígenas, era o tal
do Anhangá.
Os índios insistiam que fora Anhangá a criar os capelobos, como arautos da justiça
contra a cobiça branca. Os ribeirinhos insistiam que os bugros tinham relação direta com
num arbusto. Tiros foram disparados enquanto algo animalesco guinchava. Ambos
pareciam vir do garimpo clandestino do coqueiral. João amarrou ainda mais forte o
primeira vítima presa entre os galhos de uma árvore pata de vaca, rasgado de fora a fora.
retalharam o pobre coitado. Órgãos pendiam expostos, pulsando com os últimos de vida.
Receoso, continuou até dar no garimpo em frangalhos. Pouca coisa estava inteira.
Um pequeno lampião jazia tombado, fornecendo mais um foco de iluminação para João.
Foi impossível para ele não se recordar da chacina de seu quilombo: corpos
desmembrados, sangue e toda aquela aura de terror que pairava junto ao sereno da noite.
Limpando o suor da testa, tomou a espingarda nas mãos tremulas e avançou entre a
carnificina. Mesmo para João, que era um homem vivido e já tinha acostumado o
estômago praquele tipo de cena, fora uma experiência difícil. A maldição do capelobo
aguçara todo seu corpo, dando-lhe uma nova experiência sensorial a algo tão corriqueiro
na vida de caçador. O miasma de morte era insuportável. Este era o ônus. O bônus, fora
outro odor lhe pareceu muito familiar. Um cheiro caseiro, aconchegante e de tempero.
Quebrando a tensão, um guincho agudo ecoou do meio dos pés de jerivá como um
pisar em falso e cair sobre a perna boa. Não restavam dúvidas para o preto: o patriarca
Ele percebeu que era inútil se esconder da criatura e mancou diretamente para o
centro garimpo. Uma sombra imensa espreitava por entre os coqueiros, com olhos
amarelos que deixavam um rastro desfocado no ar. O preto engoliu em seco e levantou a
espingarda devagar. O patriarca espreitava com um rosnado zangado e aos poucos deixou
a escuridão. João contemplou seu corpanzil grisalho e corcunda, muito maior e mais
O dedo do preto escorregou para o gatilho, sedento pela liberdade de seu corpo.
Mas o destino sabia ser cruel e o foi. Quando o cão da arma dançou para a bala, uma
sombra marrom investiu suas garras contra João. O cheiro de pólvora preencheu o ar
enquanto a bala rugia para o alto, desviada pelo ataque da cria da besta velha.
João rolou poeira a dentro, sentido seu peito vazar. Antes que pudesse se levantar,
outro capelobo saltou sobre ele, cravando suas garras potentes em seus ombros. O preto
gritou, mas engoliu o escândalo quando o peito doeu. Como em resposta ao seu repentino
silêncio, o patriarca guinchou para as duas crias que se afastaram, deixando-o se retorcer
impotente no chão.
João abraçou o tórax e se curvou com dificuldade. Terrificado, viu algumas de
suas costelas a mostra e tentou conter o sangramento de sua clavícula. A espingarda jazia
partida ao seu lado e fora a grande responsável por não ter sido partido ao meio no ataque
surpresa.
Ainda lhe restava sua peixeira na cintura, mas de que adiantava? Era o fim.
A lua surgiu acima deles, clareando ainda mais o garimpo. Os dois capelobos
estavam a sua frente, flanqueando um corpo nú e humano que não estava ali antes: O
Era baixo, rechonchudo e suas genitais tinham pelos espessos. A cabeleira grisalha
caia pesada sobre os ombros até os seios grandes e flácidos. A figura avançou, jogando
algo que trazia nos braços em cima de João. O preto ergueu uma mão para se defender,
fazendo o objeto pesado rolar para frente do seu corpo. A cabeça de Nico o encarou, tal
- O que está feito, está feito Seu Jão! Anhangá purgou o mal da terra dele e me
deu novos filhos. – ela disse, apontando para os capelobos que observavam ansiosos a
costumo ser bem teimoso e ocê foi até capaz de matar o seu Nico, de quem criou a vida
inteira.
Dona Nelza deu um tapa no ar e se agachou ao lado dele. Embora tivesse se
revelado como o "patriarca", ainda exalava a presença da governanta que o serviu tão
gentilmente.
- Ará, homem! – ela ri dando tapas no joelho dele – O meu índio véio era um doce!
Sempre me ajudava nas noites difíceis. Não, não Seu Jão. Anhangá me escolheu, muito
tempo atrás quando eu era guria. Foi quando fugi de casa pra ir ver sozinha a festança na
- Com botos nessas águas? – João sorriu a encarando – Ocê devia de ser arretada
quando moça.
- Mainha dizia que nasci abençoada por Santo Expedito! Que saí do bucho dela
- Ará! Para de blasfemar contra o céu, rapariga! – João se zanga, cuspindo no rosto
Dona Nelza limpou a saliva do rosto com calma e o agarrou pelo pescoço. João
tentou se desvencilhar, mas a mulher o ergueu como se ele pesasse menos do que um
papel de pitar, jogando-o contra os escombros de uma tenda. O preto sentiu suas feridas
- Desculpa, seu Jão. – Dona Nelza continuou e voltou-se para os capelobos – Mas
ocê tem razão. Não foi santo nenhum que me deu essa missão não. No dia que fugi, passei
as feridas. Por algum motivo, seus sentidos voltaram a ficar aguçados quando a luz da lua
irradiou diretamente nele. Foi quando pode ouvir uma voz zombeteira em seu ouvido.
- Mainha e painho rezaram pro Pai do Mato cuidar d'eu, mas quem atendeu foi
Anhangá. – ela continuou enquanto acariciava um capelobo. João aproveitou tal distração
para se arrastar até a garrafa - Ele veio até mim como um tamanduá branco, quando eu
desfalecia de fome e sede. Parecia um anjo de luz! Ele estendeu sua língua na minha
- Ará! – João gemeu ao esticar os dedos para a garrafa – Esse é o Anhangá mais
desgracento que conheci então! Ocê deve ter encontrado foi o próprio coisa ruim!
- Anhangá me deu vida pra proteger a terra dele, preto véio. Gente que cobiça, que
destrói sem sua permissão e tinhosos como esse daí – ela aponta para a cabeça de Nico –
Ocê há de ver também, seu Jão. Anhangá também vai usar ocê pra proteger a terra dele.
- Dona Nelza! – João falou mais forte, alcançando o pererê – Agradecido, viu!
- Acho bom a gente já ter acertado nossas desavenças, seu travesso! – João gritou
- He, he, he, he... – a voz do pererê sibilou no terreno – Vossemecê vai me dever,
preto véio!
João sorriu, mas sua alegria durou pouco. Um dos capelobos venceu o vendaval
do pererê e caiu ferozmente sobre ele. Tentou se protegeu como pode com as solas dos
pés, mantendo a criatura longe de si. Entretanto, não foi suficiente para se afastar do
preparou para fatiá-lo. O preto gritou com força ao empurrá-lo com as pernas. Sentiu seu
sangue esvair no movimento, mas antes de se render, notou um objeto metálico girando
desequilibrando-o um pouco para a direita. Não fora o suficiente para derrubá-lo, mas o
colocou no rumo da picareta arremessada pelo pererê. A ponta afiada cravou nas costas
do cara de tamanduá, que soltou um último guincho antes de cair pesado sobre João.
A risada tinhosa do Saci ecoou mais uma vez e o vendaval cessou, fazendo os
destroços caírem. João se livrou do corpo sem vida do capelobo e notou que o outro estava
empalado por uma haste de bambu que os peões usavam como tripé das peneiras.
- É isso, preto véio! – o saci falou, formando-se na frente dele – A mainha é toda
de vossemecê!
REMATE
nova era inconstante entre as nuvens e fumaça que subia da aldeia, mas causava reações
da matriarca estava logo a frente. Mesmo naquele estado, precisava continuar. Que opção
tinha? Sabia que se caísse ali, não acordaria tão cedo. Era tudo ou nada agora.
Quando tentou prosseguir, sentiu seus calcanhares mudarem de forma como mais
cedo. Os braços e o maxilar se alongaram num estalo e seus pelos se eriçaram por todo o
corpo. Sua mente devaneou enquanto recebia informações ampliadas pelos seus novos
sentidos. Por um instante, viu o mundo de uma forma diferente. Os cheiros eram massas
visíveis e cada som fazia o ar vibrar. Ele deu socos na própria cabeça para a lucidez voltar.
- He, he, he! – o pererê gargalhou – Vossemecê tá mais vistoso inté, preto véio!
- Ará! – João resmungou, sentindo os dentes maiores na boca – Ocê caça um jeito
O saci soltou mais uma gargalhada e João voltou a tombar. Tremendo, sentou-se
- Então esse é o fim pra vossemecê, preto véio? – o saci falou se materializando
entre a mata.
João tentou rebater, mas a tosse rubra voltou. O pererê saltou para perto e cheirou
- Me alforrie, preto véio. – ele falou carrancudo – Se vossemecê perecer aqui, vai
João das Quantas encarou o pequeno ser e deixou um sorriso cansado brotar em
- Ará! Depois do trabalhão que deu pra pegar ocê? Não sinhô.
- Ará, cão sarnento! – João gritou – Eu não vou morrer aqui não, visse?
alforrie! Me alforrie!
- Se eu morrer, pior pra ocê, num é? – João riu – Melhor me benzer logo, tinhoso!
Essa garrafa de pinga num vai melhorá com tempo não, visse?
- Maldito seja vossemecê, João das Quantas! – o saci gritou, fazendo o vendaval
aumentar.
- Faz logo, desgracento! Faz logo antes que eu mesmo dou cabo de minha graça
Surgindo na frente do preto, o pererê traga um dedo ossudo e sua pele escura fica
incandescente entre os sulcos. Com um silvo, ele assopra uma fumaça densa no peito de
João, que o queima de forma dolorosa ao entrar em contato com sangue. Enquanto
preenche a mata e num instante o vendaval cessa. O saci se recolhe para sua garrafa,
maldizendo o nome de João com mais raiva do que antes. João olha para o peito e percebe
- Viu só, tinhoso? - João se levanta, apoiando-se numa árvore - Não custou nada
pra ocê.
rio.
dos grilos e dos répteis pareceu cessar quando ele se aproximou, como se sentissem a aura
amaldiçoada de seu corpo. Fora isso, suas feridas exalavam um cheiro pungente de
A cada instante que passava, sua mente enfraquecia prestes a abraçar seus instintos
grisalha. Foi quando notou a presença da mulher na outra margem do charco, encarando-
o.
Dona Nelza soluçava com lágrimas e catarro pela face. Acima do peito esquerdo
havia um ferimento, possivelmente causado pelo pererê no garimpo. João alcançou sua
- Já tá parecendo uma cria minha, seu Jão! – ela falou, limpando o nariz – Acha
que pode compensar os filhos que me tirou, desgracento? Quem sabe me dar mais alguns?
- Ocê não tem jeito mesmo, né Dona Nelza? Ocê e eles são crias do cão, isso sim!
avistar o topo grisalho da cabeça dela, que expandiu a medida que começava a guinchar.
Com um salto potente, a matriarca atravessou o charco em sua forma bestial. O preto se
em perigo, mas tirou proveito de sua nova anatomia. Num movimento desajeitado, saltou
por cima de Nelza e rolou charco a dentro. A água absorveu o impacto, mas o preto sentiu
Porém, antes que pudesse tomar impulso para o fundo, João sentiu algo pressionar sua
das árvores, ferindo seu corpo nos galhos retorcidos. Enquanto caia, a garrafa do pererê
- Ará! – João bufou, levantando-se as presas em busca da garrafa – Ocê não vai
- Vossemecê abusou demais da minha boa vontade, preto véio! Morre duma vez,
desgracento!
- Ocê quer ficar trancado pra sempre, tinhoso? – João volta barganhar, colocando
- Que seja, desgracento! – o saci responde – A rolha um dia se desfaz. Meu sangue
na tampa vai secar e sumir e eu num vô mais ter vossemecê pra me estorvar!
Ao resmungar isso, uma ideia brotou em sua mente. Porém, antes que o plano
amadurecesse, a matriarca urrou por entre as árvores. Ele mancou o mais rápido que pode
Quando parou para tomar fôlego, usou a lua para se localizar. O charco era uma
evidência de que o rio não estava tão longe dali. Assim que determinou onde leste e oeste
estavam, aumentou a marcha. Nesse espaço de tempo, o corpo da matriarca caiu pesado
João não teve tempo nem para se virar e encarar o inimigo. As garras de Dona
Nelza mastigaram suas costas com velocidade. O golpe fez o corpo do preto ser projetado
para frente, deixando um rastro de sangue no ar. Ele rolou pelo chão duro e logo começou
a se afogar.
O golpe potente o jogara no rio: exatamente onde ele queria estar. Entretanto, mal
podia se colocar de pé depois do dano recebido. Quando por fim emergiu, encontrou Dona
Nelza em sua forma humana na margem. A garrafa do Pererê boiava presa a João e ele
- Acabou, seu Jão! – ela falou com os olhos injetados – Essa terra não precisa mais
- Ará, Dona Nelza! – ele falou, recuando para o fundo – Mas é bom pagar pelas
outras crias da senhora que dei cabo, visse? A crise tá braba e cobro por cabeça.
A mulher fechou ainda mais o cenho e seu corpo se retorceu. Enquanto sua
corcunda se elevava e era preenchida com pelos grisalhos, sua fuça se alongava. Os braços
e pernas redistribuíam ossos com sons secos e um cheiro ocre impregnou a noite.
- Ocê vai pagar, preto desgracento! – ela avançou com sua pele caindo pelo
GRRRRRRRRRRRRRRRRRR!!!
A matriarca saltou para dar cabo da vida de João sem dó, nem piedade. O preto
percebeu um rebojo próximo a ele a tempo e puxou a garrafa do Pererê enquanto erguia
a medalha de São João Apóstolo. A capeloba o enredou num encontrão, levando-o para
o fundo enquanto cravava suas garras nas ancas dele. O preto gritou, fazendo água entrar
em seus pulmões e soube naquele instante que estava prestes a ser retalhado.
Mas algo a impediu de completar o arco de ataque.
João segurou a medalha com mais força e viu dois pares de braços com
dos pulmões. Cansado, deitou-se de costas e encarou a lua nova acima dele. Não pode
evitar um sorriso. Com algum esforço se sentou e pôs-se a encarar o rebojo que descia
Ou não.
Inesperadamente, algo o puxou pelo pé de volta para a água sem dar tempo de
reação. Afogando-se, deu de cara com a face humana de Dona Nelza, desesperada em
busca de ar enquanto as duas criaturas hominídeas com cara de boto a arrastavam para as
profundezas. Ele tentou alcançar a medalha de São João Apóstolo, mas a mulher se
agarrava aos seus braços, impedindo-o. Um dos botos avançou contra ele e o agarrou pela
fora da água num instante. O corpo do preto caiu pesado em terra firme, tirando todo o ar
de seu peito e ferindo ainda mais suas costas. Contorcendo-se de dor, afastou-se da
margem, ouvindo os gritos engasgados de Dona Nelza que emergia e submergia puxada
-Ah, Dona Nelza! – João pensou assim que a matriarca afundou de vez - O rio não
é a Terra de Anhangá.
João apagou assim que Nelza foi levada pelos botos. Mas em seus últimos
segundos de lucidez, pensou ter visto um tamanduá branco se aproximar dele na beira do
rio. Ele transmitia uma aura de paz e o abraçava com suas garras afiadas. Entretanto, era
João sonhou com eles, de volta ao quilombo. Estavam sentados em volta de uma
mesa de aroeira para um grande banquete junto à comunidade. O cheiro de feijoada era
real e certeiro. Suas andanças desde aquela época, eram distantes e inexistentes.
Acordou, balançando.
temporal se formaria. Sentiu a garrafa do pererê ao seu lado e apalpou seu corpo com
receio. Suas feridas tinham cicatrizado, mas ainda trajava a roupa puída da lida. Talvez
fosse efeito do seu tempo como capelobo. Talvez tenha sido Anhangá. Mas João decidiu
não se importar com isso por agora. O importante era saber onde estava.
Ele se ergueu e sentiu a piroga balançar a deriva. Quando olhou para a margem,
viu os bugros que sobraram reunidos e armados com arcos e azagaias. Não pareciam estar
felizes. E como poderiam? Ele havia exterminado a alcateia de Vila Nova, que
acreditavam ser uma dádiva de Anhangá. Era um milagre terem o deixado vivo.
- Vossemecê sobreviveu de novo, preto véio. – a voz do saci falou em seu ouvido.
- Graças a meu Padim Padre Ciço! – João o exalta, fazendo sinal da cruz – Ará!
O saci bufou e João das Quantas sorriu ao ver botos brincando em volta da
embarcação. Seus olhos fitaram o horizonte e se lembrou duma cobra ardente tocando o
terror num povoado rio abaixo, não muito longe dali. Talvez fosse apenas fogo fátuo ou
alguém com picaretagem. De toda forma, era o único caminho que podia seguir.
[...]