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A história a seguir é a experimentação de uma aventura fantástica com elementos

do Folclore Nacional. Ademais, escreve-la me trouxe sentimentos nostálgicos da infância

e de minhas idas ao pantanal do extremo norte de Mato Grosso do Sul.

Em João das Quantas, sintetizo personas que conheci durante este período:

carvoeiros, quilombolas, tropeiros, caminhoneiros e pescadores. Os dias a beira dos

"corgos", as histórias da mata para educar as crianças arteiras, os almoços fartos e rodas

de viola permanecem em minha memória.

NOTA IMPORTANTE: optei por transcrever literalmente as falas populares das

personagens, mesmo que gramaticalmente possam ser consideradas “incorretas”. Espero

que tenha ficado orgânico para a leitura.

Aproveite e não se acanhe em dar sua opinião, visse? :)

Boa Leitura!

Willa Costa, autor.

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Conheça meu projeto de Fantasia "A Sagulhaza: O Deserto Vermelho":

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CAPELOBO

João das Quantas abriu seu último corote e o sorveu até a metade num gole só. O

veneno lícito queimou sua garganta e arrancou uma praga qualquer do homem, fazendo-

o esquecer a dor. Ao seu lado, o corpo do tinhoso estava aberto com as tripas pra fora,

deixando a clareira miasmar merda e sangue.

Ele jogou um pouco da cachaça na ferida da perna onde o demônio o rasgara.

Aquilo era ruim: se ele não encontrasse o patriarca dos Capelobos da região em breve,

logo estaria tão feio quanto o defunto ao seu lado. Pelos cresceriam por seu corpo e sua

cara ficaria chupada como a de um tamanduá em toda noite de lua.

João se recostou num Ypê e cortou o jeans velho com um canivete. O corte feito

pelas garras do capelobo eram superficiais, mas seria uma adição e tanto para sua coleção

de cicatrizes. Por entre as sombras, alguém zombou:

- Há, há, há, há! Vô me livrar de vossemecê logo, logo, preto véio.

- Cala-te boca, tinhoso! - João retrucou - Ocê armou pra riba d'eu, carniça!

Os olhos vermelhos do Pererê se destacaram no breu adiante. Ele se moveu pela

vegetação como se fosse fumaça e se formou na frente dele, chupando dedo. A carapuça

que todos costumam retratar, nada mais era que o prolongamento rugoso da sua cabeça.

Era um tentáculo manchado de vermelho que se destacava na sua pele carvão. Os braços

eram secos, desproporcionais para o corpo diminuto. O único membro inferior era bem

mais longo, terminando num pé com quatro falanges afiadas, sendo duas delas invertidas

para dar sustento ao corpo feito um papagaio. Ao contrário do que se costuma ver dos

pererês nos livros, esse era o próprio cão encarnado!


- Não tenho estima por vossemecê, preto véio. Num se faça de perdido.

- Diacho! - João resmungou enquanto puxava uma garrafa que trazia atrelada ao

corpo por uma corda - Ocê para de me encher os pacovás ou eu balanço essa garrafa até

ocê se borrar todo, visse?

O sorriso do pererê esmaeceu e ele se foi com a bruma.

João guardou a garrafa e se levantou com dificuldade. Agarrando o corpo peludo

do capelobo pelas pernas, arrastou-o pela mata numa marcha pesada. A cada passo dado

o defunto ficava mais leve, pois a carcaça se desprendia e revelava um corpo humano por

baixo. João praguejou e aumentou o passo.

Alguns paroquianos de Vila Nova ficaram horrorizados ao ver o corpo do pároco

naquele estado. O rosto ainda tinha as feições de tamanduá, o que por si só corroborava

com a história de João, evitando qualquer desavença.

- Minha Nossinhora! – exaltou-se Joaquim, latifundiário da região que havia

contratado o caçador - Então o tinhoso era o padre Zé!

- Era. - João confirmou com um sinal da cruz - Mas não devia de ser o único não,

visse? Acertei o parceiro dele nas ventas, mas não consegui dar cabo dele.

As pessoas da vila começaram a sair de suas casas, curiosos pela estranha cena na

frente da capela. João coçou a nuca preocupado.

- Seu Joaquim, é mió seus jagunços levarem o corpo do padre Zé pra longe. Alguns

podem criar desafeto.


- Claro, Jão. Claro. - Ele concordou dando um sinal para seus peões - Venha até

em casa. Tem uma refeição a sua espera e você pode cuidar dessa perna, venha.

- Se o sinhô não se incomoda, eu queria ver os aposentos do homem de Deus, aí.

Há de ter algo para encontrar o parceiro peludo dele.

Joaquim hesitou, olhando novamente para o corpo semidecomposto em pelos e

carne do padre Zé.

- Ará! Quanto mais cedo nos livrarmos desta praga, mió.


JERIVÁ

João sabia que tinha se metido num esquema pra lá de profano com aqueles

ribeirinhos. Há diferença, bem sabia, de um matuto qualquer transformado em capelobo,

dum sujeito esclarecido, como fora o agora finado padre Zé. Contudo, ele não fora o

primeiro sacerdote a sofrer tal fim por suas mãos calejadas. Mas Deus e padim Padre Ciço

o remia de qualquer punição divina desses sacrilégios.

João adentrou com cuidado no pequeno cômodo do padre capelobo - um

puxadinho de pau à pique no quintal da capelinha. Dentro, nada que valesse muito: uma

cama de solteiro, um colchão de mola mofado, um penico de plástico, um roupeiro de

madeira roído por cupim e uma mesa de metalon, daquelas que qualquer boteco

vagabundo tem, sabe? Em riba dela estavam um pente recheado de tufos de cabelo, um

copo com um barbeador descartável enferrujado, escova de dentes e um tubo de pasta de

juá. Mas uma coisa chamou a atenção de João: um jerivá seco, famoso coquinho ou baba-

de-boi. A tomá-lo na mão, notou uma careta sorridente entalhada.

- O povo tá alvoroçado lá fora - Joaquim diz de repente, surpreendendo o preto -

Desculpe, Jão. Não queria assustar ocê. Noite desgracenta, essa!

- Como todas as outras, sinhô. - João falou, guardando o jerivá no bolso – Ocê

sabe me dizer desde quando o padre Zé tava por aqui?

- Rapaz, ocê me pegou de jeito agora, visse? Eu grilei as terras na marcha do oeste

e, se bem me alembro, devia de ser o Zé a estar por aqui já. Demorou uma boa década até

eu me debandar de vez pra cá com a falecida.


- Ará, faz tempo demais então! O sinhô disse que os sumiços vêm acontecendo

desde março?

- Sim, sim. Logo depois das festanças da páscoa do nosso senhor. Ou talvez

durante a quaresma. – Joaquim diz indo até o roupeiro - Teve umas cabeças de boi que

encontramos descarnadas na época, mas achamos que fossem ladrões de gado. Nunca que

iríamos desconfiar de um homem santo, um capelão. Ele batizou minhas crias, pode isso?

Êta mundo virado! O que vai ser da gente, Jão?

- Seu Joaquim, vou ser verdadeiro com o sinhô. A desgraceira que rondeia a vila

é das bravas e se não for resolvida até a última lua, vai ficar ruim pra todo mundo, visse?

- Fale isso não, hômi! - Joaquim se exalta, fazendo o sinal da cruz - Pra tudo há

um jeito e, com fé em nossinhora, vamô acabá com a raça desses fióte de cruz credo.

- Amém, sinhô. Amém.

- Bem, melhor ocê cuidar dessa perna. Tá sujando o chão todo!

- Perna? - João disse confuso para então notar as manchas de sangue no chão e

verificar o curativo, que permanecia bem amarrado e contido.

Aquilo não era bom. Só então João notou um certo futum no ar, como suor

misturado com pó de solda.

- O padre Zé deve de ter um jeans bão aqui – Joaquim continua, abrindo o roupeiro

- Acho que ele não tem mais uso, não é mesmo?


- Espera aí, Seu Joaquim! Num abre isso não!

Mas era tarde demais. Antes do homem puxar a porta do roupeiro, uma sombra

marrom a despedaçou de dentro para fora. Sangue tingiu as paredes de pau a pique

enquanto a cabeça de Seu Joaquim caia nos braços desarmados de João. O capelobo

emitiu um guincho agudo antes de se lançar pra riba do preto. O tinhoso trazia um

ferimento no rosto chupado de tamanduá. Era o parceiro do padre Zé, que João ferira há

pouco na mata.

Sem muita escolha, João se jogou pela porta, soltando a cabeça de Joaquim no

processo. Alguns jagunços ouviram a confusão, desacreditados da cena mais medonha do

cordel de suas vidas. O capelobo atravessou a parede de barro como se fosse papel e se

ergueu nas patas traseiras. Abrindo os braços desproporcionais, tentou enredar João num

abraço. O matuto rolou sobre o próprio corpo, desviando do diabo enquanto alcançava a

garrafa do perêrê.

- Anda logo, pedaço de carvão! - João gritou, sacudindo a garrafa - Aparece, verme

desgracen... eita diacho!

O bicho investiu violento pra riba dele, desequilibrando-o na braquiária. Com

sorte, João empreitou um galope no mesmo instante que o chumbo grosso dos jagunços

começara a chover contra a peste. O capelobo foi atingido nas costelas e urrou

agudamente antes de investir contra a elite. Porém, hesitou ao notar os primeiros raios de

sol que desenhavam o relevo. Percebendo a desvantagem, a praga se apoiou nos membros

dianteiros e zuniu como um trovão para dentro da mata. Só então João pode se recompor.

Enquanto assistia os jagunços se embrenharem atrás da criatura, ouviu o Pererê zombar:

- Tá ficando véio, preto véio. Não vá perder a cabeça, visse?


PIROGA

João tomou o café sem esfriar e queimou o beiço, derrubando um pouco na camisa

limpa. Dona Nelza, criada da casa do recém falecido Seu Joaquim, foi rápida em lhe trazer

um pano de prato bordado para ele se secar.

- Ará! Agradecido.

- Sua noite deve ter sido dura, seu Jão. Se preocupe não – ela respondeu, passando

os dedos roliços no avental.

João observou o semblante pesado da mulher. Os olhos possuíam bolsões com

veias injetadas, como se o sono a evitasse e seu rosto descascava nas extremidades,

queimado do sol.

- A sinhora trabalha a quanto tempo pro seu Joaquim, dona Nelza? – ele a indagou,

assistindo-a botar uma leiteira no fogo.

- Ah, desde quando ele veio com a falecida Isabel de vez.

- Ará! Tudo isso? O tempo foi generoso com a sua graça.

Aquilo desenhou um sorriso na mulher de meia idade.

- Carece disso não, seu Jão. – agradeceu envergonhada - Pois é, parece que faz um

vidão mesmo.

- Sempre morou por essas bandas, dona?

A mulher colocou um novo pano de prato nos ombros e se apoiou na mesa

enquanto seu olhar divagava.


- Sim, sou da terrinha. Desde antes de Vila Nova ter esse nome. Mainha e painho

tinha um choupaninha por essas bandas antes das grilagens. A gente viveu ao lado dos

bugros por muitos anos.

Bugros. João então se lembrou do jerivá em seu bolso.

- Esses bugros que ocês tanto falam são os índios da região, né mesmo?

- São, sim sinhô. – a mulher concorda, espantando as moscas de uma rosca na

mesa – São gente boa desde que deixem eles em paz. Muito unidos, muito mesmo. Painho

me levou pra ver uma festa deles um dia, quando eu era guria. Foi a coisa mais linda que

vi na vida.

- Sabe se os capelobos estão desgraçando por lá também, dona Nelza? – João

perguntou enquanto assoprava o café.

A mulher cobriu a rosca e refletiu sobre o assunto com uma expressão perdida.

Então diz, coçando a nuca:

- Oiá, seu Jão. Parece que não. Os coisa ruim estão sempre atentando dessa banda

de cá do rio. Dizem que o mal não atravessa a água, num é mesmo?

- Água corrente leva as impurezas com ela, é sabido. – João concorda enquanto

ouvem a porta da casa se abrir através das paredes finas.

– Acho que o sinhozinho Nico acabou de entra... mas que diacho de cheiro é... ai

minha nossinhora!

João fungou e olhou por cima dos ombros de dona Nelza a tempo de ver o leite no

fogo derramar. A senhora correu para salvar o que podia e esbarrou numa vassoura de

palha que deixara encostada na mesa. O cabo da vassoura, por sua vez, atingiu e virou o
bacião de alumínio com a louça limpa na pia, fazendo alguns pratos e xícaras de porcelana

se esmigalharem no chão de cimento queimado.

- Meu Santo Expedito! – a mulher gritou, apressando-se para limpar a bagunça –

Só pode ser o saci, um troço desse!

Uma risada tinhosa subiu da garrafa de João e ele fez questão de chacoalhá-la

antes de se levantar. O Pererê resmungou e o ar na cozinha ficou mais leve, como se uma

anta inteira deixasse o recinto.

Passos apressados alcançaram a cozinha e João se assustou com o vulto que

entrava, pensando estar diante de uma visagem. Uma versão mais jovem e galante de Seu

Joaquim se postou diante dele e estendeu uma mão forte.

- Você deve ser o seu João das Quantas. – cumprimentou-o com firmeza – Tonico

Pereira. Sou o filho mais velho do seu Joaquim.

- Ará! Logo se vê, cuspido e escarrado! – João falou com os olhos arregalados –

Eu sinto muitíssimo pelo sinhô seu pai, seu Tonico. Ele me pareceu um homem direito.

O rapazote baixou os olhos por um breve momento e tomou ar antes de voltar a

postura austera.

- Que diacho de bagunça é essa, dona Nelza? – ele falou então, desviando da

atenção de João – Tá com a mão furada?

- Desculpa, sinhozinho. Tá tudo virado por aqui hoje.

- Os homens conseguiram achar o desgracento? – João perguntou ao se afastar da

mesa.
Nico colocou as mãos na cintura e balançou a cabeça negativamente enquanto

andava de um lado para o outro.

- Não, seu Jão. Perdemos o rastro dele na direção dos bugros.

Nico pareceu despertar e perceber que havia dito coisa demais. Então puxou uma

carteira de couro do bolso e contou um punhado de papel moeda, estendendo o bolo para

João.

- Espero que o senhor faça uma ótima viagem de volta, seu João. Somos muito

agradecidos por ter dado cabo de uma das coisas, mas creio que agora nós possamos

cuidar desse problema sozinhos.

João hesitou, mas apanhou o dinheiro e não contrariou o rapaz.

- Se o sinhô permitir, eu gostaria de ficar um cadinho mais em Vila Nova antes de

tocar a vida. Mas pode deixar que não irei atrapalhar ocês não, visse?

- Bem, a dona Nelza pode arrumar um canto pra você.

- Sem necessidade, sinhô. Sem necessidade. – João chacoalha as mãos – Tô com

uma rede na sacola. Prefiro ter as estrelas em riba d'eu, se avexe não.

O homem suspirou e acenou com a cabeça, retirando-se. João guardou o dinheiro

numa meia velha que trazia no bolso, se despediu de dona Nelza e perambulou por Vila

Nova. Parte do povo estava amontoado em volta da capelinha, onde o corpo do Padre Zé

e de Seu Joaquim eram velados. Cantavam um hino cristão antigo, sem ritmo ou

empolgação. João ainda mancava e recebeu olhares pouco amigáveis dos ribeirinhos em

vigília. Como de costume, ele fez um sinal da cruz ao passar pela capela e se dirigiu ao

rio onde alguns homens pescavam num tablado roído pelo tempo.
- Tarde! – João começou – Como tá o rio por agora? Já puxaram um Jaú?

- Humph! Quem dera, seu Jão. – respondeu o mais velho do grupo de três homens

– Nem um lambarizinho. Os bichos sentem quando o diabo tá perto.

- É verdade. – o calvo entre ele falou – Tanta desgraça de uma vez só. Se eu fosse

o seu Nico, já tinha dado um jeito nos bugros.

- Ará! Acham que os índios tão metidos nessa obra do cão? – João perguntou

enquanto se agachava na margem do rio e jogava água no rosto.

- Eles não são povo de Deus não, seu Jão. Tem noite que dá pra ouvir eles

batucando e gritando que nem uns doidos por lá. – o mais velho fala, fazendo sinal da

cruz – Uma meia dúzia armada daqui dá cabo deles fácil.

João colocou a mão sobre os olhos e forçou o olhar para o outro lado do rio. Ao

longe, notou uma trilha de fumaça que subia vagarosa para as nuvens escassas do céu da

tarde.

- Praquelas bandas que eles vivem? – João apontou.

- É sim sinhô. – o calvo responde – De vez em quando dá pra ver eles andando

pela margem do outro lado.

João olhou em volta e notou uma piroga amarrada com um remo curto dentro.

- Ocês me emprestam a embarcação pra fazer uma visita neles? – João pede e vê

o grupo se sobressaltar.

- Diacho, homem! – o velho fala, cuspindo fumo no rio em seguida – Os bugros

não são afeiçoado a visita não, visse?


- Verdade. – o terceiro homem do grupo concorda – Uma vez o Ciço tava caçando

paca praquelas bandas e não percebeu que tinha chegado perto da aldeia. Ele falou que

saiu vazado pra não ser acertado pelas setas.

- Não se avexem não, visse? – João diz enquanto desamarra a piroga – Prometo

que trago ela de volta inteira.

- Já que não tem jeito d'ocê mudar de ideia, é melhor levar um presente. – o velho

diz – Acho que eles são chegados numa caninha. Tem uma garrafa sobrando aqui, se ocê

quiser.

- Ará! Agradecido. – João falou enquanto puxava a garrafa do Pererê – Mas já

tenho uma da marvada aqui comigo.


BUGROS

João das Quantas deixou o barco ser levado pela correnteza pela maior parte do

caminho. Vez ou outra, endireitava a piroga com o remo para não bater em galhos ou ir

para longe da margem.

O pererê estava agitado, resmungando dentro da garrafa. João bem sabia o motivo:

o rio não era domínio dele. A Mãe d'Água não gostava de pererês e afogaria qualquer um

que encontrasse.

- Diacho de intrometido vossemecê é, Jão ninguém! – ele reclamava – Tomara

que volte todo furado, preto desgracento.

- Ará, coisa ruim! – João bufou enquanto remava – Ocê trate de ficar quieto e me

obedecer quando eu te chamar. Talvez os bugros te deem tapioca. Não é o que ocê gosta?

- Não quero nada d'ocês não, fiote de chocadeira! Acha que eles não vão sentir

esse futum de capelobo? Seu coro já tá todo desgrenhado, imundícia.

João espiou para o próprio reflexo na água. Era verdade: embora ele tivesse se

barbeado, a barba já havia preenchido o seu rosto sulcado novamente. Ele olhou para o

oeste e viu a lua branca se fundindo com o céu azul.

- Ocê tem que achar o patriarca pra mim. – João falou firme – Ou eu te juro que

te ofereço pra Mãe d’Água antes d’eu virar o tinhoso de vez!

- A Mãe d'Água é melhor do que benzer seu coro toda vez que vossemecê se borra,

preto véio!
- Ah, é peste! – o matuto se zanga, pousando o remo e pondo-se de joelhos na

piroga – Bora vê então, fi duma rapariga!

João desatrela a garrafa do corpo e a pendura próximo da água. O pererê começa

a guinchar e uma bruma negra rodopia dentro do recipiente. Correnteza abaixo, algo

grande se agita na água.

- Ará! – João ri ao notar a massa avermelhada se aproximar – Parece que a Iara

mandou um boto pra acaba com sua raça, desgracento!

- Seu preto fí duma cadela sarnenta! – o saci praguejou – O Pai do Mato vai tirar

seu coro sujo!

A piroga balançou com força e João pode ver a curta barbatana dorsal do boto que

os rondava. Puxando vários cordões do pescoço, puxou um com uma medalha metálica.

Depois, com um sorriso faceiro, soltou a garrafa, vendo-a boiar com a correnteza.

- Seu sarnento! – urrou o saci – Vossemecê vai arder! Vai arder, fí duma abre

pernas qualquer!

- Ocê deveria parar de resmungar e prometer que não vai mais fazer a zuada que

fez lá com o capelobo, coisa ruim. – o homem esbravejou – Tô com essa tinhagem no

coro por sua culpa, visse?

- Vossemecê que apodreça esperando, enrustido! Fí duma... Ah!

Surgindo na superfície com violência, o boto abocanha a garrafa com os dentes

finos e mergulha, desaparecendo nas águas turvas. João deu uma risada contida e olhou

o sol para precisar a hora. Depois, arrebentou o cordão com a medalha que havia separado
e fez uma reza antiga que a senhora sua mãe havia ensinado. Fazendo o sinal da cruz de

São Mateus na fronte, mergulhou a medalha no rio e esperou.

Após alguns segundos de silêncio total, algo submergiu correnteza abaixo. Era a

garrafa do pererê. João guardou a medalha de São João Apóstolo e remou até ela.

- Ará! Gostou de visitar a Mãe d'água, peste? – João gargalhou, puxando a garrafa

vazia do rio – Isso deve te dar bons modos agora, visse?

O pererê permaneceu em silêncio o resto da travessia, deixando João sozinho com

os sons dos pássaros e do vento que açoitava o mangue.

Ao fazer a curva no rio, ele avistou homens com a pele tingida de vermelho numa

clareira onde várias embarcações rasas se amontoavam. Remando em direção deles,

percebeu uma movimentação agitada na margem. Sem aviso, uma flecha fincou em sua

piroga, desequilibrando-o um pouco. Mais índios se amontoaram na margem com arcos

e lanças nas mãos enquanto gritavam em seu próprio dialeto. João ergueu o remo e acenou

para eles, mostrando que não estava armado. Em resposta, os bugros começaram a

saraivada.

Sem escolha, João mergulhou, assistindo as setas dos bugros zunirem sem força

em torno dele. Ele avançou, mantendo a respiração presa o tanto quanto pode e submergiu

margem abaixo, próximo ao mangue. A beira era lamacenta e dificultou sua saída da água.

Alguém começou o puxar pelo blusão sem delicadeza para o leito enquanto um grupo de

bugros o cercava aos berros. João não entendia nem uma palavra, mas percebeu que não

devia ser algo bom. Os índios o ameaçavam com as azagaias enquanto o colocavam em

pé. Ele ergueu os braços em rendição e um dos captores começou a bater com as mãos
em torno de sua cintura. Em certo momento, deu com a garrafa do pererê e a tomou nas

mãos, largando-a instintivamente quando notou a cruz na rolha.

O bugro balbuciou mais coisas incompreensíveis, apontando para os

companheiros. Eles começaram a enxotar João em direção da mata e, após uma breve

caminhada entre árvores rasteiras, deram numa clareia onde mulheres, homens e crianças

se dividiam em tarefas habituais como tecer cestos e sovar farinha. Uma grande oca de

palha ocupava a maior parte do descampado, rodeado por outras quatro menores. Quando

notaram a aproximação do grupo com o preto, deixaram os afazeres para rodeá-los. Os

mais velhos mantinham distância. As crianças, mais ousadas, correram curiosas a frente

de João, tocando-o. Ele notou que todos possuíam pinturas corporais em uma vibrante

coloração vermelha. A maioria usava calções curtos e opacos da civilização e as mulheres

cobriam os seios com colares de sementes.

Saindo da grande oca, um ancião de calção verde e com o cabelo escorrido e

endurecido por uma pasta vermelha – provavelmente a mesma que dava pigmento a pele;

se aproximou. Uma longa agulha de madeira atravessava seu nariz horizontalmente e em

sua mão estava um bastão com palha, que vez ou outra o homem usava para espantar os

mosquitos que o incomodavam.

- Matintape're. – o velho diz num voz desgastada, fazendo o resto da aldeia ficar

em silêncio – O preto carrega o diabo na garrafa. Muito perigoso.

- Ará! Pode deixar que a cruz que o prende tá bem reforçada, visse? – João diz

acanhado – Queria bater uma prosa com o sinhô, sobre a desgracença que acontece em

Vila Nova.
- É castigo. – o pajé diz ao se aproximar de João – Os brancos não respeitam

Anhangá do mangue. Anhangá não respeita os brancos.

Anhangá. Aquele que protege as matas.

- Então foram ocês que mandaram os capelobos pra riba deles? – João questiona,

vendo que os bugros se amontoavam para perto dele.

O pajé deixou os lábios se separarem e um sorriso banguela brotou. Ele falou na

própria língua para um grupo de homens que se apressaram em deixar o recinto.

- Já fomos bororo. – recomeça o pajé – Já fomos xavante inté. Hoje somos bugros,

como os brancos nos chamam. Mas capelobo, não somos não, preto. A vingança é de

Anhangá!

Dizendo isso, o pajé se afasta para oca enquanto o grupo de homens que havia

saído retornava com um corpo nu nos braços. Eles deixam o defunto aos pés de João,

prontamente reconhece a ferida no olho e no flanco onde os jagunços o acertaram. Era o

capelobo que matara o Seu Joaquim.

- Outro branco. – o pajé aponta para o corpo – Como o do homem de fé d'ocês,

que também era um.

João não pode negar. O sujeito aos seus pés era claramente de Vila Nova.

- Anhangá não vai parar, preto. – o pajé continuou – Tomaram de Anhangá e agora

Anhangá quer de volta.


PERERÊ

- Minha Nossa Senhora! Mas é o Bentinho! – uma senhora gritou.

E aos poucos o povo de Vila Nova se amontoou em volta do corpo nu que João

das Quantas trouxera dos bugros. Os furos de bala não deixavam dúvidas de que era o

capelobo que decapitara Seu Joaquim.

- Mas não pode ser o Bentinho! – Seu Nico espumava pra cima de João – O homem

era de fé. Nunca se meteu com nada errado por aqui!

- Óia, - começou o matuto – fé por fé, o Padre Zé também estaria vivo. Esse aí é

o capelobo que fartava.

Seu Nico ficou visivelmente irritado com a postura do preto. Ele perambulou de

um lado para o outro com os olhos estatelados. Parecia procurar uma saída para a

confusão. O povo pareceu absorver o semblante do homem.

- Então os bugros tão metido nisso mesmo. – um pescador falou da turba – Eles

armaram praga pro nosso povo!

- É verdade! – diziam uns.

- Temos que dar cabo deles! – variavam outros.

João balançou a cabeça fervorosamente, levantando as mãos.

- Os índios não parecem estar metido nisso não, visse? – João gritou para vencer

as vozes – Esse sinhô aqui faleceu do chumbo d'ocês. E tanto ele, como o padre Zé eram

dessa comunidade. A origem da praga tá por essas bandas!


- Tá virado pro lado dos índios, preto? – um velho gritou.

- Foi ocê que atiçou as pragas, bruxo desgracento! – acusou uma mulher.

E a bravata estava feita. João gritava de um lado e o povo ensandecido gritava do

outro. No calor da discussão, um homem puxou uma peixeira para João, que por sua vez,

sacou a própria e riscou o chão, levantando poeira. Antes que todos entrassem numa ginga

sangrenta, uma bala foi disparada. A maioria da turba dispersou aos berros. João deu dois

passos ligeiros para trás para seu Nico, que rondava o alvoroço com a arma fumegante

apontada pra cima, passar.

- Pode para com isso! Pode parar! – ele gritou enquanto o povo se calava – Vocês

não sentem vergonha não? Hum? Ará, égua! Meu pai e o padre ainda estão sendo velados

na capela e temos mais um desgracento pra ensacar. Querem ter mais um, hein?

As palavras de Nico surtiram efeito nos ribeirinhos. Cabisbaixos, eles se

desculparam e um grupo se organizou para levar o corpo de Bentinho pra sua viúva, afim

de tratarem do enterro.

- Ocê me desculpa, seu Nico. – João começou – Não queria ter causado essa

sangria desatada não, visse?

- Olha, seu Jão. – o homem diz com a voz firme e os olhos injetados – É melhor o

senhor ensacar suas coisas e sumir de Vila Nova. Sei que meu pai tinha estima por suas

crendices e valentias, mas o que vai se suceder agora é coisa do nosso povo.

- Eu entendo, seu Nico. – João falou com pesar – Eu só peço que o sinhô bote a

mão no coração e não faça nenhuma besteira no calor do momento.


Nico soltou um suspiro cansado, girou sobre os calcanhares e partiu em passo

largos na direção da capela.

- Já te disse, seu Jão! – ele pontua enquanto balança um dedo em riste pro alto –

Não se meta mais nos problemas de Vila Nova ou vai dar ruim pra você!

João das Quantas assistiu o homem partir, notando que dois jagunços o

interceptam no caminho. Daquela distância, o matuto não tinha ouvidos para o que os três

confabulavam, mas viu seu Nico se exaltar e rumar para a residência do falecido pai.

- Esse branco – uma voz acanhada sussurrou da garrafa – O desgracento tem um

cheiro da mata. Um cheiro sagrado. Ele não parece sagrado.

- Ará! Resolveu aparecer, coisa ruim? – João desdenha – Deixe o homem em paz,

visse? A vida dele tá pra lá de virada.

- Vossemecê precisa é de um fundo de garrafa na cara, preto véio. Me deixa ir

atrás dele e vou mostra pra vossemecê.

João voltou os olhos para o homem a tempo de ver ele e os companheiros

adentrarem a casa. As palavras do pajé não saiam da sua cabeça. Ele precisava descobrir

o mistério em volta da praga logo.

- Ará! Vá logo, desgracento. Vá! – João permitiu, fazendo o sinal da cruz – Mas

se tu fizeres traquinagem com ele, eu não te salvo do boto dessa vez não, visse?

Uma lufada de ar passou por entre as pernas de João e correu em direção a casa,

levantando folhas secas e terra em espiral pelo caminho. Algumas roupas que estavam

estendidas ali voaram, enquanto os cavalos ficavam alvoroçados. Notando o vendaval,


Dona Nelza foi rápida em fechar as janelas e a porta. Porém, uma nuvem de poeira

conseguiu entrar na sala, fazendo a mulher soltar uma praga.

- Eita, esse tempo seco! – um dos jagunços tossiu ao se sentar – Tá tudo virado

mesmo.

- Tá mesmo, Jorge. – o companheiro dele concordou, batendo o chapéu no joelho

– E sabemos bem o motivo.

Seu Nico lançou um olhar inquisitivo no homem e pigarreou. O sujeito então se

deu conta da presença de Dona Nelza e se calou, desconfortável.

- Dona Nelza – Nico a chama – Eu vou ter que tratar duns assuntos com o Jorge e

o Anastor agora. Eu deixei o corpo de papai sozinho com o povo. Faz favor de ir lá fazer

sala.

- Sim, sinhozinho. – ela concorda, tirando o avental e indo para a porta – Acabei

de passar café. Está na mesa da cozinha.

- Não se preocupe, dona Nelza. Eu sirvo os convidados. – Nico fala ao abrir a

porta.

Dona Nelza sai da casa e anda vagarosamente em direção à capela. Nico a observa

pela janela e fecha a cortina quando a vê bem afastada. Quando passou pela cadeira onde

Anastor estava, deu um tapa ríspido na nuca do homem que se sobressaltou.

- Ave, seu Nico! – o homem resmunga ao sentir a nuca arder – Precisava disso,

homem?
- Tá querendo dar com a língua nos dentes logo agora, seu filho de chocadeira? –

Nico diz entredentes – Quer que todo mundo da Vila saiba da jazida?

- Relaxa, patrãozinho. – Jorge interveem – Deixa que eu controlo a língua dessa

peste.

Nico começa a andar de um lado para o outro na sala, esfregando as têmporas com

preocupação. Ele encara a mesa de centro onde havia um retrato de seu finado pai e

congela ao notar um sorriso negro refletido na moldura.

- Tudo bem, seu Nico? – Jorge pergunta desconfiado – Parece que o sinhô viu um

fantasma.

Os olhos de Nico continuaram vidrados no retrato em busca do sorriso tinhoso que

vira a pouco, mas só viu a si mesmo refletido. Avançando um passo, virou a moldura com

a face para mesa.

- Talvez, Jorge. Talvez. – ele responde um pouco mais sereno – Como anda a

extração?

Anastor levanta as sobrancelhas, enchendo as bochechas de ar com estafa.

- Atrasada, sinhozinho. – ele diz, soltando o ar – Esses dois últimos dias tão

arrastados por conta dos ataques.

- E os peões tão cabreiros desde que aqueles dois sumiram semana passada. –

Jorge completa – Tão com medo das estórias sobre o lugar.

- Eu não pago pelas superstições deles! – Nico devolve sem paciência – Os bugros

deram mais problemas?


- Não, sinhô. – Anastor responde otimista – Eles parecem mais assustados do que

a gente. Assim que o senhor velar o senhor seu pai, acho que a produção deve render.

Olha só!

O homem puxa algo do fundo do bolso da camisa e coloca em cima da mesa. O

Pererê rodopia por entre os objetos da estante para ver melhor o troço brilhante. Quando

ele bota os olhos na pedra, deixa um sorriso brotar no canto de sua boca rasgada e

desaparece na bruma.

- Agora é a hora dos peixes graúdos! – Jorge comemora – Sem os capelobo, deve

de ser mais fácil.

- Acho bom mesmo, Jorge. – Nico fala enquanto encara o diamante bruto ao lado

do quadro do pai – Acho bom.


ANHANGÁ

- Ará! – João bufa enquanto enxuga o suor da face – Diamante por essas bandas?

Anhangá deve tá possesso.

- Ferir a terra sem permissão do sinhô dela dá nisso, preto véio. – o pererê sussurra

– Anhangá não vai parar até que se vingue de quem desrespeito ele.

João das Quantas bem sabia disso. Anhangás costumam ser imprevisíveis.

Dificilmente se manifestavam, utilizando outros sortilégios para alcançarem seus

objetivos. Mesmo que todos os capelobos de Vila Nova fossem derrubados, a entidade

continuaria até que a origem do desrespeito fosse erradicada.

- Seu Jão. – uma voz trêmula o chamou. Era dona Nelza.- Posso ter um cadinho

com o sinhô?

- Ará! Claro dona Nelza. – ele diz, guardando a garrafa do pererê debaixo do

blusão.

A mulher se aproxima com insegurança e lhe estende uma mão fechada. João

estranha, mas toma o que quer que fosse que ela lhe oferecia. Quando o pega, nota que

era um outro caroço de jerivá entalhado, dessa vez com a imagem de uma anta.

- Ará, o que é isso dona Nelza? – ele pergunta confuso – Outro brinquedo dos

bugros? Pode ficar tranquila que eu acho que eles não tão metidos nisso não, visse?

- Não é isso não, seu Jão. – a mulher se encolhe, segurando a barra da saia de godê

– O seu Nico e os homê dele profanaram terra sagrada. A mata tá cobrando da gente.

João olha em volta para se certificar que ninguém estava por perto para ouvir.
- É sobre os diamantes, dona Nelza? – ele sussurra.

A mulher concorda amuada.

- Eles tão derrubando a mata, fazendo um buraco em solo sagrado – ela continua

– Esses jerivás são de lá. Os bugros chamam ela de pão de Anhangá. O sinhozinho Nico

tá agindo estranho, seu Jão. Alguém tem que parar essa loucura antes que o pior aconteça.

- Ará! – João suspirou, secando a nuca. Quando puxou a mão de volta, notou que

um tufo de cabelo se soltara como um prenúncio. – Onde fica os coqueiros, dona Nelza?

- Mas ocê vai sozinho, seu Jão? É perigoso por demais. Seu Nico tem gente armada

lá.

- Não se preocupe, dona Nelza. – ele a tranquiliza – Eu dou meus pulos, visse?

A mulher espia em volta e aponta para o rio, na direção da aldeia dos bugros.

- Ocê tem que descer o rio até depois da aldeia. – ela começou – Onde o rio se

divide, vai ter um charco escondido com um monte de régias, vai ser fácil procê achar.

Aí, deve te ter uma trilha ainda. É só seguir que vai dar nos coqueiros.

João ouviu atentamente as instruções da mulher e matutou algo para impedir o

sacrilégio que acontecia na terra de Anhangá. Foi quando algo estalou na sua cachola.

- Ará, dona Nelza – ele começou – Eu aprecio sua graça, por isso não me leve a

mal não, visse? Mas como ocê sabe disso tudo?

A mulher secou a garganta e se aproximou ainda mais de João.


- Eu tô nessas bandas desde guria, como já contei. – ela o faz lembrar – Na

mocidade, fui casada com um bugro. Era uma época diferente. Ele fazia a ponte entre a

Vila e a aldeia. Seu Joaquim descobriu a jazida nos coqueiros, mas ele era um homem

temeroso e meu esposo o convenceu a deixar a terra em paz. A tuberculose veio e pegou

o meu guri novo depois disso. Um tempo depois, foi a vez do meu esposo. Desde então o

seu Joaquim cuidou d'eu.

- Ará! – João exclamou, processando a informação – E o padre Zé também era

metido nisso?

- Era sim sinhô. – ela confirma – Padre Zé tinha vindo de uma vila no nortão, onde

os mineiros acabaram com tudo. Pelo menos, foi o que ele nos contou. O sinhô tá bem,

seu Jão? Parece que tá ardendo em febre.

Era verdade. Sem notar, João começara a suar. Seria uma noite inquieta, mas não

viraria capelobo ainda, bem sabia. Ele tinha que encontrar o patriarca das criaturas e

estava convencido de que o encontraria na terra sagrada de Anhangá.

- Ocê volta pra casa e se tranca bem, visse? – João a alertou – Vou aproveitar o

povo ocupado com o enterro e sair de fininho.

- Que nosso Santo Expedito e a Mãe da Terra te protejam, seu Jão. – a mulher

desejou – Não se esqueça de pedir permissão pro dono da mata, visse?

- Ará! – João sorriu – Eu nunca esqueço, dona Nelza.


Era perto das quatro da tarde quando o povo começou a jogar terra em cima dos

caixões. Como era esperado, toda Vila Nova fora para a cerimônia, dado o seu peso

religioso.

João aproveitou a situação e desamarrou um barco de motor dois tempos no porto.

Remou por cerca de um quarto de hora antes de dar ignição. Uma nuvem escura estourou

no ar, fedendo a gasolina quando a hélice impulsionou a embarcação de alumínio

arrebitado rio abaixo.

O sol já estava se pondo quando o rio se bifurcou. João diminuiu a velocidade e

apanhou um farolete para ver melhor a margem alagada. Após alguns minutos, encontrou

as régias como dona Nelza havia lhe dito. Por segurança, desligou o motor e remou charco

adentro, sendo ocultado pela braquiária que estava parcialmente submersa. Quando a

popa atingiu o areião, João pulou para o mato, soltando a ancora de ferro fundido. Para

um homem experiente como ele, fora fácil encontrar a trilha. Porém, preferiu evita-la.

Já estava escuro quando alcançou os coqueiros. Luzes de lampião quebravam o

breu a distância. Notou uma roda com mais ou menos seis peões em volta duma panela

fumegante. Pelo cheiro, era arroz carreteiro com carne de sol. Aproveitando-se da

distração dos homens, rodeou o acampamento até onde alguns coqueiros jaziam

derrubados. Montantes de terra vermelha se amontoavam próximo a uma pedreira. Várias

picaretas e inchadas estavam espalhadas pela área, além de tripés com peneiras e tambores

de ferro com água.

- Vossemecê parece um verme rastejando, preto véio. – o pererê diz ao se

materializar na sua frente encostado num coqueiro.


- Ará, seu coisa ruim! – João grunhiu o mais baixo que pode enquanto se escondia

– Faz favor de virar bruma, seu peste!

- Vossemecê tá preocupado? – o ser devolveu com cinismo – Ará, preto véio! Do

jeito que vossemecê tá ficando cabeludo, daria cabo dessas pestes fácil.

- Num é hora disso, miserável! Volta já pra garrafa ou eu vou...

- Vai o quê, preto veio? – o saci avançou ligeiro com a bruma e se formou a um

palmo do rosto de Jão – Me jogar pro boto?

João tremeu ao ver o tinhoso se transformar num rodamoinho de repente. Um

longo assovio saiu dele enquanto o coqueiral balançava com o vento forte. Um dos tripés

com peneira tombou em sua direção, fazendo se esquivar para a clareira.

- Ará, miséria! – João bufou.

Foi quando sentiu algo pesado cair contra sua nuca feito uma saca de algodão. Sua

visão ficou turva com o impacto que viera da coronha dum peão, que agora se projetava

acima dele, gritando algo que chegava abafado aos seus ouvidos. Logo, mais homens

estavam a sua volta como borrões claros contra a noite escura.

Rendido, uma sensação febril tomou conta do matuto. Algo queimava no seu

umbigo e se espalhava por seu corpo, estalando seus ossos e contraindo seus músculos.

Em meio a crise, foi tomado pelos braços e arrastado para o meio do acampamento. Sua

cabeça latejava tombada para trás, enquanto imagens da mata rodopiavam atrás de si, sem

forma definida. Por dedução, reconhecera os coqueiros. O padrão dos caules destacava-

se naquele torpor sensorial. Talvez por isso, fora fácil perceber a sombra que se

avolumava entre os troncos.


Era grande e clara, com exceção de duas chamas paralelas que piscavam

lentamente. Um guincho reverberou na mata, fazendo os peões o soltarem de supetão. Ele

caiu mole, assistindo a sombra atacar. Clarões de bala cruzaram o ar com um cheiro

férreo, seguido de gritos e engasgos. Aos poucos a escuridão se fechou ao seu redor.

Sonhou com sua mainha, embalando-o sob a luz do luar enquanto cantava um cordel.

Naquele instante, estava em paz em meio a tormenta.


COBIÇA BRANCA

João se levantou, inspirando o ar para dentro dos pulmões o mais forte que pode.

Caiu novamente na esteira de folhas, zonzo pela lucidez repentina. Enquanto seu coração

desacelerava, absorveu o ambiente. O teto cônico de palha estava preenchido de fumaça

aromática que escapava por uma abertura no cume. Raios do crepúsculo solar

atravessavam as fibras, criando lanternas naturais na penumbra. Tateando o corpo, notou

que suas roupas haviam sido retiradas e que uma pasta com cheiro forte cobria suas

narinas.

Começou a escarrar a pasta até que o último resquício de catarro seco fosse

expelido com sangue. Terminado o serviço sujo, ouviu um som de palha seca agitada no

ar. O pajé espantava os mosquitos de forma austera, como da última vez que o encontrara.

Seu rosto estava imóvel, como se esculpido em jerivá.

João limpou o suor e a sujeira que estava pregada ao nariz com a mão nua e

percebeu que a barba havia crescido além do esperado, passando de dois dedos de

comprimento no queixo.

- Ará! – ele disse com a garganta seca – Eu tô variado a quanto tempo?

- Mais de meio dia, preto. Logo a noite chega. – o pajé respondeu, parando de

espantar os mosquitos – Tugurére encontrou ocê na terra de Anhangá. Ocê, preto, deu

cabo daqueles que feriram a terra.

João se sentou com algum esforço e viu que além do rosto, havia crescido pelos

por todo o seu corpo.


- Meu padim Padre Ciço! – se exaltou ao notar as unhas grandes que se quebravam

na ponta do s dedos – Os peão... eles foram...

- Ocê não se lembra? – o pajé falou com ar de deboche – Anhangá o usou como lança,

preto. Aqueles que feriram a Terra de Anhangá receberam a justiça dele.

O matuto esfregou as têmporas e tentou se lembrar de qualquer coisa da noite

anterior. Só lembrava da sombra de olhos amarelos, gritos, tiros e sangue, não

necessariamente nesta ordem. Em meio a toda aquela confusão, de uma coisa ele tinha

certeza: não fora ele a dar cabo dos peões. Afinal, a praga em seu corpo ainda não atingira

o ápice. Talvez fosse o patriarca dos capelobos ou um dos peões desaparecidos que o

pererê havia lhe contado.

Ah, o pererê!

João se sobressaltou a procura da garrafa do tinhoso, mas não a encontrou em

lugar algum.

- Seu Matintape're não tava com ocê não, preto. – o pajé disse ao notar o

desconforto do homem – Deve ter ficado na Terra de Anhangá.

- Ará! – João suspirou – Se aquela peste escapa, vai infernizar meio mundo de

gente. O que ocês fizeram com minhas roupas?

O pajé aponta para um cordão esticado onde a roupa de João balançava limpa. O

matuto se levantou com alguma dificuldade e se vestiu apressadamente, sentido a cabeça


pesar. Quando abotoou o blusão, deixou a oca e vagou pela aldeia na companhia do velho

ao pôr-do-sol. A medida que caminhavam, os bugros se amontoavam para encarar o preto.

Ao contrário do dia anterior, João notou que todos pareciam ter abolido as parcas

peças de roupa da civilização que usavam. Todos os homens usavam estojos penianos e

as mulheres saias trançadas por elas mesmas. Eles estavam pintados com os mesmos

símbolos, como se um ritual fosse acontecer.

- Ará! Vai assusceder alguma festança?

- Festança?! Não, preto. – o pajé gargalha, tossindo – Nosso povo tá preparado pra

tomar a Terra de Anhangá de volta.

João parou e analisou os homens com suas azagaias e arcos primitivos.

- Acho bão desistir da ideia, pajé. Os brancos têm chumbo grosso e tão pistola da

vida, visse?

- Anhangá tá do nosso lado, preto. – ele respondeu tranquilamente – Ocê tá aqui

também.

- Óia, seu pajé. – João falou com a mão no ombro do ancião – Eu sei que parece

que foi eu que fiz aquela desgracença com os brancos lá, mas não foi não, visse? Ainda

tá longe d'eu virar capelobo. Só faz duas noites desde que a praga me atacou.

O pajé acolheu a mão calejada do homem, dando-lhe um tapa fraternal. Aos

poucos os bugros o rodearam e entoaram algo na língua mãe deles, deixando o pobre

preto sem reação.


- Anhangá tá com os bugros. – o pajé falou o mais alto e firme que pode devido à

idade - Os brancos vão fazer chover o chumbo deles em nossas crianças. Veja, preto, veja!

Veja nossas crias. Veja e escolha. Anhangá e sua justiça. Ou os brancos e sua cobiça.

João se livrou das mãos do homem e se afastou intimidado pela procissão que o

cercava. A passos largos, ele debandou para a mata, empurrando quem ficasse em seu

caminho. Passou por um casal de crianças, um pouco maiores do que aquelas de colo. O

menino chorava com o nariz escorrendo enquanto a menina passava terra na barriga.

Vê-las trouxe um mal agouro a espinhela de João. Se lembrou do quilombo onde

nascera, de seus pais e avó. Os tiros daquela noite voltaram a preencher seus ouvidos,

como tambores vindo dos sete infernos. Ele bem conhecia a ganância dos brancos por

qualquer bolita reluzente. Sabia que, mesmo que essas crianças fossem empaladas, os

cabeças da cidade grande iam mandar papéis amarelados para abafar o grito delas.

João rosnou, sentindo suas presas ficarem afiadas e a cartilagem do seu nariz

estalar. Por um segundo, o osso de seu calcanhar se alongou, apertando o pé dentro da

botina, que o fez pisar em falso. Ele se agarrou em um pé de ypê próximo e afundou as

unhas em seu tronco, talhando o tecido até a pele. Seu coração parou subitamente e tudo

voltou ao devido lugar no mesmo instante, causando uma dor aguda em seus nervos. Um

longo zunido cortou sua audição e aos poucos os sons da mata começaram a ressurgir.

- Ará! Tá acontecendo. - pensou ao se apoiar sobre o joelho.

As memórias da mocidade, carregadas de ódio e traumas, poderiam adiantar a

transformação. João arrancou as botinas e continuou seu caminho até a beira do rio. O sol

começara a se pôr no horizonte e ele teria que remar até Vila Nova para impedir os

brancos de fazer alguma besteira.


Mal deu dois passos, parou.

Seu nariz, ainda sensível com a recente recaída, capturou o cheiro forte e pungente

de fumaça. Um som distante e uniforme de madeira ardendo ganhou volume enquanto

quatis, cotias, macacos e pássaros debandavam em algazarra. Um tiro ecoou

acompanhado pelo grito de guerra dos bugros, que aos poucos foram substituidos por

gritos de horror. Sem perder mais tempo, João correu em direção da aldeia.

A confusão era geral. A grande oca da aldeia ardia com uma coroa de chamas que

beijava a vegetação próxima. Homens armados com espingardas atiravam a esmo nos

bugros desprotegidos, que por sua vez atiravam azagaias, setas e pedras contra o chumbo.

João se esgueirou em meio à confusão, protegendo-se entre as construções que

ainda estavam de pé. Espiou na direção dos atacantes e reconheceu Seu Nico no centro

deles, atirando sem piedade contra um jovem bugro de não mais do que catorze anos. O

menino, com muita bravura, conseguiu lançar sua azagaia antes do chumbo espalhar seus

miolos por terra. A arma descreveu uma parábola certeira, cravando no ombro do atirador.

Tonico deixou a arma cair, gritando enquanto os jagunços ao seu lado o afastavam do

perigo.

João então alcançou uma azagaia dum corpo próximo e correu contra os brancos

em meio a fumaça espessa. Confusos, os jagunços hesitaram ao vê-lo se aproximar de

forma temerária. Contudo, Nico, que era arrastado pelos braços, percebeu as intenções do

preto e gritou para darem cabo dele.

Choveu bala contra João, que teve que mudar de estratégia para sobreviver.

Rodeando a oca em chamas, desviou do corpo desfalecido do pajé. O velho ostentava um

buraco fumegante entre os olhos. Quando avistou o grupo dos brancos novamente, ergueu
a azagaia e correu para tomar impulso. João sempre teve uma mira primorosa e nunca

havia errado um cateto daquela distância. O coração de Seu Nico estava no papo.

Quando apoiou o pé para lançar a arma, sentiu uma dor aguda quebrar sua postura,

varando-o no ombro de lançamento. Afobado em acertar o desgracento, não notou o

branco que o flanqueava, recebendo um tiro praticamente a queima-roupa. João encarou

seu agressor e reconheceu Anastor, que mais do que depressa, acertou-lhe outro tiro acima

do joelho de apoio.

O preto foi ao chão de maduro com os sentidos variando. A visão ficou inebriada,

seja pelos ferimentos ou pela fumaça no ar. A lua brilhava opaca e nova por detrás daquela

cortina sufocante de cinzas, chamando-o com sua voz prateada. Porém, o rosto de Anastor

a eclipsou com a arma em riste, pronta para dar cabo de sua existência. O sorriso

zombeteiro do jagunço acompanhou o ferrolho tensionado e João esperou pelo gosto

ferroso.

AAAARRRRRRRRRRRRRRGH!!!!!!!!!!!

Uma lufada de ar atingiu Anastor, rasgando-o do pescoço ao quadril. As tripas do

homem se derramaram pesadas em cima de João, cheirando a merda. Antes que Anastor

percebesse a ferida, uma nova lufada de ar o arremessou para longe do preto, deixando

um braço decepado para trás.

João se aprumou, livrando-se do montante do intestino do jagunço e viu uma

sombra marrom abrir Anastor ao meio com garras potentes. O capelobo guinchou e

arremessou os pedaços do branco para o alto ao mesmo tempo que notava João. A besta

fera bateu as patas dianteiras no chão em desafio, espumando sangue e saliva espessa pela

bocarra alongada.
Avançou vagarosamente de forma ameaçadora em sua direção. João tateou o chão

ao redor em busca do ferro de Anastor. Desviou os olhos do capelobo para acelerar a

busca e encontrou a arma dois passos adiante, ainda presa ao braço decepado do branco.

Movendo apenas os olhos de volta para o capelobo, percebeu que o bicho se preparava

para o bote, flexionando as patas. Era agora ou nunca.

João se lançou contra a arma no mesmo instante em que a criatura investiu. Porém,

o preto calculou mal a distância, caindo a um palmo da coronha. Na mesma hora, sentiu

o capelobo cair pesado ao seu lado. Rolou para se proteger a tempo de ver a criatura rasgar

outro jagunço que espreitava até eles. Era a lacuna que João precisava para alcançar a

arma.

Colocou-se em pé com o tinhoso na mira. O capelobo se ergueu nas patas traseiras

e o encarou por cima dos ombros peludos, emitindo um ganir raivoso. João puxou o

gatilho e aguardou o embate. Porém, o capelobo saltou em direção da aldeia, onde os

bugros resistiam aos brancos remanescentes.

O preto respirou aliviado e notou que outro capelobo protegia os indígenas,

retalhando qualquer branco que ficasse em seu caminho. Aquilo era incomum, João sabia.

Talvez o pajé tivesse razão e Anhangá os protegessem. Com certo trabalho, improvisou

um torniquete em volta da perna baleada e pôs a espingarda a tiracolo enquanto mancava

na direção em que Nico fora levado.

Em direção a mina clandestina.

Em direção a Terra de Anhangá.


PATRIARCA

João sentia a bala alojada em sua perna e cada passo parecia pesar uma boiada. A

do ombro, por sorte, saiu pelo outro lado e pouco sangrava.

O breu tomava conta da trilha, deixando para trás o clarão da aldeia em chamas.

Estranhamente, seus olhos se adaptaram a nova condição, talvez até melhor do que fora

antes. A lua nova acima dele parecia o sol do meio dia, reforçando seu corpo para ser o

receptáculo do capelobo.

E nem sinal do patriarca.

João tinha pouco menos de dois dias para encontrar o bendito ou então seria

capelobo para sempre. Quando se está nesta vida de caçador, isso se torna ruim para os

negócios. Ele poderia esconder bem a maldição, isolando-se na mata nas noites perigosas.

Mas a maioria das visagens que perseguia preferiam a escuridão, onde a fé do povo se

aliava ao medo. Não tinha jeito: o patriarca precisava morrer.

Mas onde o diabo estava?

Enquanto seguia o rastro dos brancos, João pôs-se a matutar. O primeiro capelobo

que deu cabo fora o Padre Zé. O segundo era o tal Bentinho, que matara Seu Joaquim.

Ambos de Vila Nova. Os outros dois que estavam ajudando os bugros, possivelmente

fossem os peões desaparecidos de Seu Nico. A única relação com os indígenas, era o tal

do Anhangá.

Os índios insistiam que fora Anhangá a criar os capelobos, como arautos da justiça

contra a cobiça branca. Os ribeirinhos insistiam que os bugros tinham relação direta com

os ataques. Era um caminho bifurcado e pouco desmatado para ele desbravar.


Um grito de agonia irrompeu mata a dentro, fazendo o preto se esgueirar as presas

num arbusto. Tiros foram disparados enquanto algo animalesco guinchava. Ambos

pareciam vir do garimpo clandestino do coqueiral. João amarrou ainda mais forte o

torniquete e se apressou em direção a algazarra. Não muito tempo depois, encontrou a

primeira vítima presa entre os galhos de uma árvore pata de vaca, rasgado de fora a fora.

O preto se aproximou do corpo mutilado, reconhecendo-o outro dos jagunços de

Nico. As marcas de garras eram desproporcionais e irregulares – mais mastigaram do que

retalharam o pobre coitado. Órgãos pendiam expostos, pulsando com os últimos de vida.

- Ará! – disse a si mesmo – O tinhoso tá perto.

Receoso, continuou até dar no garimpo em frangalhos. Pouca coisa estava inteira.

Um pequeno lampião jazia tombado, fornecendo mais um foco de iluminação para João.

Era uma visão do inferno.

Foi impossível para ele não se recordar da chacina de seu quilombo: corpos

desmembrados, sangue e toda aquela aura de terror que pairava junto ao sereno da noite.

Limpando o suor da testa, tomou a espingarda nas mãos tremulas e avançou entre a

carnificina. Mesmo para João, que era um homem vivido e já tinha acostumado o

estômago praquele tipo de cena, fora uma experiência difícil. A maldição do capelobo

aguçara todo seu corpo, dando-lhe uma nova experiência sensorial a algo tão corriqueiro

na vida de caçador. O miasma de morte era insuportável. Este era o ônus. O bônus, fora

notar um capelobo por perto, mesmo que não o visse de fato.


O cheiro da besta era uma mistura de sangue, suor e mato. Por algum motivo,

outro odor lhe pareceu muito familiar. Um cheiro caseiro, aconchegante e de tempero.

Quebrando a tensão, um guincho agudo ecoou do meio dos pés de jerivá como um

lamento. João se sobressaltou e a dor de seus ferimentos se intensificaram, fazendo-o

pisar em falso e cair sobre a perna boa. Não restavam dúvidas para o preto: o patriarca

dos capelobos estava adiante!

Ele percebeu que era inútil se esconder da criatura e mancou diretamente para o

centro garimpo. Uma sombra imensa espreitava por entre os coqueiros, com olhos

amarelos que deixavam um rastro desfocado no ar. O preto engoliu em seco e levantou a

espingarda devagar. O patriarca espreitava com um rosnado zangado e aos poucos deixou

a escuridão. João contemplou seu corpanzil grisalho e corcunda, muito maior e mais

desnutrido do que o restante da alcateia.

Um tiro bem dado e acabou-se! Era o fim de sua maldição.

O dedo do preto escorregou para o gatilho, sedento pela liberdade de seu corpo.

Mas o destino sabia ser cruel e o foi. Quando o cão da arma dançou para a bala, uma

sombra marrom investiu suas garras contra João. O cheiro de pólvora preencheu o ar

enquanto a bala rugia para o alto, desviada pelo ataque da cria da besta velha.

João rolou poeira a dentro, sentido seu peito vazar. Antes que pudesse se levantar,

outro capelobo saltou sobre ele, cravando suas garras potentes em seus ombros. O preto

gritou, mas engoliu o escândalo quando o peito doeu. Como em resposta ao seu repentino

silêncio, o patriarca guinchou para as duas crias que se afastaram, deixando-o se retorcer

impotente no chão.
João abraçou o tórax e se curvou com dificuldade. Terrificado, viu algumas de

suas costelas a mostra e tentou conter o sangramento de sua clavícula. A espingarda jazia

partida ao seu lado e fora a grande responsável por não ter sido partido ao meio no ataque

surpresa.

Ainda lhe restava sua peixeira na cintura, mas de que adiantava? Era o fim.

A lua surgiu acima deles, clareando ainda mais o garimpo. Os dois capelobos

estavam a sua frente, flanqueando um corpo nú e humano que não estava ali antes: O

patriarca havia retornado a sua forma terrena.

Era baixo, rechonchudo e suas genitais tinham pelos espessos. A cabeleira grisalha

caia pesada sobre os ombros até os seios grandes e flácidos. A figura avançou, jogando

algo que trazia nos braços em cima de João. O preto ergueu uma mão para se defender,

fazendo o objeto pesado rolar para frente do seu corpo. A cabeça de Nico o encarou, tal

qual a de Seu Joaquim na primeira noite de caçada em Vila Nova.

- Ará! – João tossiu sangue – Então era ocê, Dona Nelza!

A mulher gargalhou de forma amável e se aproximou do preto.

- O que está feito, está feito Seu Jão! Anhangá purgou o mal da terra dele e me

deu novos filhos. – ela disse, apontando para os capelobos que observavam ansiosos a

matriarca – Ocê também há de entrar pra família em breve.

- Ará! Agradecido, senhora. Mas num sô de comer formiga não, visse? Eu

costumo ser bem teimoso e ocê foi até capaz de matar o seu Nico, de quem criou a vida

inteira.
Dona Nelza deu um tapa no ar e se agachou ao lado dele. Embora tivesse se

revelado como o "patriarca", ainda exalava a presença da governanta que o serviu tão

gentilmente.

- O s-seu... marido – João começou – Ele que amaldiçoou ocê, foi?

- Ará, homem! – ela ri dando tapas no joelho dele – O meu índio véio era um doce!

Sempre me ajudava nas noites difíceis. Não, não Seu Jão. Anhangá me escolheu, muito

tempo atrás quando eu era guria. Foi quando fugi de casa pra ir ver sozinha a festança na

aldeia dos bugros.

- Com botos nessas águas? – João sorriu a encarando – Ocê devia de ser arretada

quando moça.

- Mainha dizia que nasci abençoada por Santo Expedito! Que saí do bucho dela

empelicada, quá! Ela devia de estar certa.

- Ará! Para de blasfemar contra o céu, rapariga! – João se zanga, cuspindo no rosto

da matriarca – Desde quando os santos são como os da sua laia, desgracenta?

Dona Nelza limpou a saliva do rosto com calma e o agarrou pelo pescoço. João

tentou se desvencilhar, mas a mulher o ergueu como se ele pesasse menos do que um

papel de pitar, jogando-o contra os escombros de uma tenda. O preto sentiu suas feridas

se abrirem e por pouco não perdeu a consciência.

- Desculpa, seu Jão. – Dona Nelza continuou e voltou-se para os capelobos – Mas

ocê tem razão. Não foi santo nenhum que me deu essa missão não. No dia que fugi, passei

debaixo dum cipozal e me perdi na mata por uma quinzena da quaresma.


João rolou pelos restos de tábua, lona e ferramentas do garimpo tentando proteger

as feridas. Por algum motivo, seus sentidos voltaram a ficar aguçados quando a luz da lua

irradiou diretamente nele. Foi quando pode ouvir uma voz zombeteira em seu ouvido.

"Vossemecê tá lascado, preto véio!"

Refletindo a lua, soterrado por algumas panelas ariadas, lá estava a danada da

garrafa com uma cruz na rolha.

- Mainha e painho rezaram pro Pai do Mato cuidar d'eu, mas quem atendeu foi

Anhangá. – ela continuou enquanto acariciava um capelobo. João aproveitou tal distração

para se arrastar até a garrafa - Ele veio até mim como um tamanduá branco, quando eu

desfalecia de fome e sede. Parecia um anjo de luz! Ele estendeu sua língua na minha

bochecha, tão quentinha! E acordei no corguinho perto de casa.

- Ará! – João gemeu ao esticar os dedos para a garrafa – Esse é o Anhangá mais

desgracento que conheci então! Ocê deve ter encontrado foi o próprio coisa ruim!

- Anhangá me deu vida pra proteger a terra dele, preto véio. Gente que cobiça, que

destrói sem sua permissão e tinhosos como esse daí – ela aponta para a cabeça de Nico –

Ocê há de ver também, seu Jão. Anhangá também vai usar ocê pra proteger a terra dele.

- Dona Nelza! – João falou mais forte, alcançando o pererê – Agradecido, viu!

Mais eu até aprecio um tinhoso ou outro.


Sem perder tempo, João puxou a rolha da garrafa e um breu tomou conta do

garimpo. Os olhos vermelhos do pererê rodopiaram, levantando folhas, poeira e destroços

do garimpo com ele.

- Acho bom a gente já ter acertado nossas desavenças, seu travesso! – João gritou

para vencer a repentina tormenta.

- He, he, he, he... – a voz do pererê sibilou no terreno – Vossemecê vai me dever,

preto véio!

João sorriu, mas sua alegria durou pouco. Um dos capelobos venceu o vendaval

do pererê e caiu ferozmente sobre ele. Tentou se protegeu como pode com as solas dos

pés, mantendo a criatura longe de si. Entretanto, não foi suficiente para se afastar do

embalo das garras do tinhoso, que lamberam de raspão o seu pescoço.

O corte fora superficial, mas logo viria um derradeiro. Urrando, a besta se

preparou para fatiá-lo. O preto gritou com força ao empurrá-lo com as pernas. Sentiu seu

sangue esvair no movimento, mas antes de se render, notou um objeto metálico girando

em sua direção com o vendaval.

No último segundo, reuniu forças e calçou o pé no quadril do capelobo,

desequilibrando-o um pouco para a direita. Não fora o suficiente para derrubá-lo, mas o

colocou no rumo da picareta arremessada pelo pererê. A ponta afiada cravou nas costas

do cara de tamanduá, que soltou um último guincho antes de cair pesado sobre João.
A risada tinhosa do Saci ecoou mais uma vez e o vendaval cessou, fazendo os

destroços caírem. João se livrou do corpo sem vida do capelobo e notou que o outro estava

empalado por uma haste de bambu que os peões usavam como tripé das peneiras.

- É isso, preto véio! – o saci falou, formando-se na frente dele – A mainha é toda

de vossemecê!
REMATE

Um guincho longo e ruidoso preencheu a mata. João tampou a garrafa do pererê

e o tinhoso se foi com a bruma. Apressando-se, mancou na direção do lamento. A lua

nova era inconstante entre as nuvens e fumaça que subia da aldeia, mas causava reações

estranhas em seu corpo moído.

João tombou, agarrando-se numa árvore e tossindo um sangue espesso. O lamento

da matriarca estava logo a frente. Mesmo naquele estado, precisava continuar. Que opção

tinha? Sabia que se caísse ali, não acordaria tão cedo. Era tudo ou nada agora.

Quando tentou prosseguir, sentiu seus calcanhares mudarem de forma como mais

cedo. Os braços e o maxilar se alongaram num estalo e seus pelos se eriçaram por todo o

corpo. Sua mente devaneou enquanto recebia informações ampliadas pelos seus novos

sentidos. Por um instante, viu o mundo de uma forma diferente. Os cheiros eram massas

visíveis e cada som fazia o ar vibrar. Ele deu socos na própria cabeça para a lucidez voltar.

Conseguiu, mas o corpo permaneceu naquele estado intermediário.

- He, he, he! – o pererê gargalhou – Vossemecê tá mais vistoso inté, preto véio!

- Ará! – João resmungou, sentindo os dentes maiores na boca – Ocê caça um jeito

de não me encher os pacovás agora, visse?

O saci soltou mais uma gargalhada e João voltou a tombar. Tremendo, sentou-se

respirando com dificuldade.

- Então esse é o fim pra vossemecê, preto véio? – o saci falou se materializando

entre a mata.
João tentou rebater, mas a tosse rubra voltou. O pererê saltou para perto e cheirou

as feridas do homem, retorcendo o cenho.

- Vai ficar me fungando agora, tinhoso? – João o afastou. O saci se transformou

em bruma e ressurgiu adiante.

- Me alforrie, preto véio. – ele falou carrancudo – Se vossemecê perecer aqui, vai

me deixar enfurnado nesse vidro pra sempre. Desfaça a cruz!

João das Quantas encarou o pequeno ser e deixou um sorriso cansado brotar em

sua face suja.

- Ará! Depois do trabalhão que deu pra pegar ocê? Não sinhô.

O saci gritou se desfazendo e refazendo num vendaval. João gargalhou, sentindo

as costelas expostas perfurarem a carne.

- Vossemecê prometeu! – a voz do saci ecoou raivosa – Vossemecê me deve!

- Ará, cão sarnento! – João gritou – Eu não vou morrer aqui não, visse?

- Vossemecê já tá morto, preto véio! Vossemecê já tá com o pé na danação! Me

alforrie! Me alforrie!

- Se eu morrer, pior pra ocê, num é? – João riu – Melhor me benzer logo, tinhoso!

Essa garrafa de pinga num vai melhorá com tempo não, visse?
- Maldito seja vossemecê, João das Quantas! – o saci gritou, fazendo o vendaval

aumentar.

- Faz logo, desgracento! Faz logo antes que eu mesmo dou cabo de minha graça

só pra ver ocê se danar!

Surgindo na frente do preto, o pererê traga um dedo ossudo e sua pele escura fica

incandescente entre os sulcos. Com um silvo, ele assopra uma fumaça densa no peito de

João, que o queima de forma dolorosa ao entrar em contato com sangue. Enquanto

labaredas cauterizam suas feridas, estancando a hemorragia, o cheiro de carne queimada

preenche a mata e num instante o vendaval cessa. O saci se recolhe para sua garrafa,

maldizendo o nome de João com mais raiva do que antes. João olha para o peito e percebe

que a ferida fora fechada num rodamoinho de carne defumada.

- Viu só, tinhoso? - João se levanta, apoiando-se numa árvore - Não custou nada

pra ocê.

Ele se colocou em pé nos calcanhares alongados e percorreu a trilha em busca da

matriarca. Embora a capeloba tenha parado de guinchar, a nova condição de João o

auxiliou no rastreio, identificando o cheiro da mulher até um pequeno charco próximo ao

rio.

Altas braquiárias rodeavam o alagado, escondendo sapos, rãs e cobras. A sinfonia

dos grilos e dos répteis pareceu cessar quando ele se aproximou, como se sentissem a aura

amaldiçoada de seu corpo. Fora isso, suas feridas exalavam um cheiro pungente de

churrasco e certamente denunciava sua posição para a matriarca.


A lua nova refletia nas águas lodosas e ele se sentiu perigosamente atraído pra ela.

A cada instante que passava, sua mente enfraquecia prestes a abraçar seus instintos

primais. A imagem do astro tremulava de maneira distorcida, como a de uma besta

grisalha. Foi quando notou a presença da mulher na outra margem do charco, encarando-

o.

Dona Nelza soluçava com lágrimas e catarro pela face. Acima do peito esquerdo

havia um ferimento, possivelmente causado pelo pererê no garimpo. João alcançou sua

peixeira na cintura e aguardou.

- Já tá parecendo uma cria minha, seu Jão! – ela falou, limpando o nariz – Acha

que pode compensar os filhos que me tirou, desgracento? Quem sabe me dar mais alguns?

- Ocê não tem jeito mesmo, né Dona Nelza? Ocê e eles são crias do cão, isso sim!

A expressão da mulher mudou e ela se encolheu no capim. João ainda conseguia

avistar o topo grisalho da cabeça dela, que expandiu a medida que começava a guinchar.

Com um salto potente, a matriarca atravessou o charco em sua forma bestial. O preto se

esquivou como pode do ataque ousado, atolando o pé no lodo.

Sem perder tempo, a capeloba investiu em um abraço de tamanduá. João se viu

em perigo, mas tirou proveito de sua nova anatomia. Num movimento desajeitado, saltou

por cima de Nelza e rolou charco a dentro. A água absorveu o impacto, mas o preto sentiu

a recente crosta de seus ferimentos se romper.

A matriarca ganiu e marchou em sua direção, obrigando o homem a mergulhar.

Porém, antes que pudesse tomar impulso para o fundo, João sentiu algo pressionar sua

cabeça e o puxar violentamente para a superfície. A capeloba o agarrara pelos cabelos


com uma força sobre-humana, lançando-o em direção da mata. João atravessou a copa

das árvores, ferindo seu corpo nos galhos retorcidos. Enquanto caia, a garrafa do pererê

escapou do seu corpo. Também não via a peixeira em lugar algum.

- Ará! – João bufou, levantando-se as presas em busca da garrafa – Ocê não vai

ajudar mais não, ô coisa ruim?

- Vossemecê abusou demais da minha boa vontade, preto véio! Morre duma vez,

desgracento!

- Ocê quer ficar trancado pra sempre, tinhoso? – João volta barganhar, colocando

a garrafa de volta no corpo.

- Que seja, desgracento! – o saci responde – A rolha um dia se desfaz. Meu sangue

na tampa vai secar e sumir e eu num vô mais ter vossemecê pra me estorvar!

- Ará! Devia ter de dado pro boto quando tive a chance!

Ao resmungar isso, uma ideia brotou em sua mente. Porém, antes que o plano

amadurecesse, a matriarca urrou por entre as árvores. Ele mancou o mais rápido que pode

para longe, pensando na possibilidade que tinha na mão.

Quando parou para tomar fôlego, usou a lua para se localizar. O charco era uma

evidência de que o rio não estava tão longe dali. Assim que determinou onde leste e oeste

estavam, aumentou a marcha. Nesse espaço de tempo, o corpo da matriarca caiu pesado

do topo das árvores contra ele.

João não teve tempo nem para se virar e encarar o inimigo. As garras de Dona

Nelza mastigaram suas costas com velocidade. O golpe fez o corpo do preto ser projetado
para frente, deixando um rastro de sangue no ar. Ele rolou pelo chão duro e logo começou

a se afogar.

O golpe potente o jogara no rio: exatamente onde ele queria estar. Entretanto, mal

podia se colocar de pé depois do dano recebido. Quando por fim emergiu, encontrou Dona

Nelza em sua forma humana na margem. A garrafa do Pererê boiava presa a João e ele

pode ouvir os murmúrios desesperados do tinhoso.

- Acabou, seu Jão! – ela falou com os olhos injetados – Essa terra não precisa mais

dos seus predicados não, viu?

- Ará, Dona Nelza! – ele falou, recuando para o fundo – Mas é bom pagar pelas

outras crias da senhora que dei cabo, visse? A crise tá braba e cobro por cabeça.

A mulher fechou ainda mais o cenho e seu corpo se retorceu. Enquanto sua

corcunda se elevava e era preenchida com pelos grisalhos, sua fuça se alongava. Os braços

e pernas redistribuíam ossos com sons secos e um cheiro ocre impregnou a noite.

- Ocê vai pagar, preto desgracento! – ela avançou com sua pele caindo pelo

caminho – Em NoMe dA TeRrA dE AnHaNGÁ... OCÊ... VAI... PAGAAAAAR!!!

GRRRRRRRRRRRRRRRRRR!!!

A matriarca saltou para dar cabo da vida de João sem dó, nem piedade. O preto

percebeu um rebojo próximo a ele a tempo e puxou a garrafa do Pererê enquanto erguia

a medalha de São João Apóstolo. A capeloba o enredou num encontrão, levando-o para

o fundo enquanto cravava suas garras nas ancas dele. O preto gritou, fazendo água entrar

em seus pulmões e soube naquele instante que estava prestes a ser retalhado.
Mas algo a impediu de completar o arco de ataque.

João segurou a medalha com mais força e viu dois pares de braços com

membranas entre os dedos puxarem a desgracenta para o fundo. Livrando-se da confusão,

ele nadou desesperado até a superfície em busca de ar.

Se arrastou com dificuldade até a margem lamacenta, vomitando água e sangue

dos pulmões. Cansado, deitou-se de costas e encarou a lua nova acima dele. Não pode

evitar um sorriso. Com algum esforço se sentou e pôs-se a encarar o rebojo que descia

com a correnteza. Era o fim da matriarca.

Ou não.

Inesperadamente, algo o puxou pelo pé de volta para a água sem dar tempo de

reação. Afogando-se, deu de cara com a face humana de Dona Nelza, desesperada em

busca de ar enquanto as duas criaturas hominídeas com cara de boto a arrastavam para as

profundezas. Ele tentou alcançar a medalha de São João Apóstolo, mas a mulher se

agarrava aos seus braços, impedindo-o. Um dos botos avançou contra ele e o agarrou pela

perna, puxando-o com força para os domínios da Mãe d'Água.

- Maldito João das Quantas! – o pererê gritou.

E um turbilhão de bolhas se formou entre João e Dona Nelza, catapultando-o para

fora da água num instante. O corpo do preto caiu pesado em terra firme, tirando todo o ar

de seu peito e ferindo ainda mais suas costas. Contorcendo-se de dor, afastou-se da

margem, ouvindo os gritos engasgados de Dona Nelza que emergia e submergia puxada

pelos botos, até que não voltou mais.


EGRESSO

-Ah, Dona Nelza! – João pensou assim que a matriarca afundou de vez - O rio não

é a Terra de Anhangá.

Mas por alguma razão, Anhangá estava lá.

João apagou assim que Nelza foi levada pelos botos. Mas em seus últimos

segundos de lucidez, pensou ter visto um tamanduá branco se aproximar dele na beira do

rio. Ele transmitia uma aura de paz e o abraçava com suas garras afiadas. Entretanto, era

um abraço gentil, caloroso e reconfortante.

Como o de seus pais. Como o de sua avó.

João sonhou com eles, de volta ao quilombo. Estavam sentados em volta de uma

mesa de aroeira para um grande banquete junto à comunidade. O cheiro de feijoada era

real e certeiro. Suas andanças desde aquela época, eram distantes e inexistentes.

Acordou, balançando.

O chão era de madeira e as nuvens corriam carregadas acima de si. Logo um

temporal se formaria. Sentiu a garrafa do pererê ao seu lado e apalpou seu corpo com

receio. Suas feridas tinham cicatrizado, mas ainda trajava a roupa puída da lida. Talvez

fosse efeito do seu tempo como capelobo. Talvez tenha sido Anhangá. Mas João decidiu

não se importar com isso por agora. O importante era saber onde estava.

Ele se ergueu e sentiu a piroga balançar a deriva. Quando olhou para a margem,

viu os bugros que sobraram reunidos e armados com arcos e azagaias. Não pareciam estar
felizes. E como poderiam? Ele havia exterminado a alcateia de Vila Nova, que

acreditavam ser uma dádiva de Anhangá. Era um milagre terem o deixado vivo.

João apanhou um pouco da água do rio com as mãos e bebeu, refrescando-se.

Apanhando o remo, endireitou a embarcação a favor da correnteza e remou.

- Vossemecê sobreviveu de novo, preto véio. – a voz do saci falou em seu ouvido.

- Graças a meu Padim Padre Ciço! – João o exalta, fazendo sinal da cruz – Ará!

Faltou só uma caninha pra celebrar.

O saci bufou e João das Quantas sorriu ao ver botos brincando em volta da

embarcação. Seus olhos fitaram o horizonte e se lembrou duma cobra ardente tocando o

terror num povoado rio abaixo, não muito longe dali. Talvez fosse apenas fogo fátuo ou

alguém com picaretagem. De toda forma, era o único caminho que podia seguir.

[...]

JOÃO DAS QUANTAS HÁ DE VOLTAR, VISSE?

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