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Os Desígnios Secretos (Sérgio Sant'Anna)

As pessoas se perguntam: como um homem da minha posição pôde fazer isso?


Muitos anos no ofício de juiz me ensinaram que, se os atos humanos obedecem aos
desígnios secretos de Deus, diante dos homens eles devem falar por si. Mas posso
apresentar as circunstâncias que os antecederam. Eu estava saindo de uma livraria de
livros velhos, no Largo de São Francisco. O calor era opressivo, mas nuvens negras
anunciavam uma tempestade. Eu só queria chegar logo em casa para ler um pouco.
Eles estavam vendendo bugigangas expostas num tabuleiro, ele de pé, ela sentada na
borda do chafariz. Um arame estendido entre as estacas que sustentavam o tabuleiro
servia de varal para peças de roupa. O vestido dela estava úmido e grudado em seu corpo
e seus cabelos indicavam que ela havia se banhado nas águas suspeitas do chafariz.
Aproximei-me para examinar as bugigangas: pentes, espelhinhos, pregadores, chaveiros.
Às vezes faço compras nos ambulantes só para ajudar. Ela fixou os olhos em mim e sorriu.
Tinha uma falha lateral nos dentes e era menina demais para usar aquele batom.
O senhor é o pai dela? - perguntei.
Padrinho, doutor - o homem disse.
Você tem casa? - perguntei à garota.
Ela olhou para ele e não respondeu. Então me dirigi a ele.
O senhor não acha que ela deveria ter uma casa e ir à escola?
Acho sim senhor - ele disse.
Eu posso arranjar = falei.
Até aquele momento, na vida, eu jamais pensara em assumir uma responsabilidade
dessas. Foi como uma força me inspirasse, mas agora não ouso falar em Deus.
- É ela quem me ajuda, doutor.
Fui tirar dinheiro no banco e, quando voltei, ela estava pronta, com uma pequena sacola de
pano dependurada no ombro. Na hora de vir comigo, não olhou para trás.
- Você gosta dele? – perguntei.
- Não – ela disse. – onde é que nós vamos?
- Para casa – eu disse. – é melhor você tirar isso da boca.
Estendi–lhe o lenço para que ela limpasse o batom dos lábios. Depois ela me devolveu o
lenço e me deu a mão.
Começou a chover e tomamos um táxi. Eu disse a ela que no dia seguinte iríamos comprar
roupas e procurar uma escola.
Logo que chegamos em casa ela pediu para que eu ligasse a televisão. Falei que antes ela
devia tomar um banho. Dei-lhe uma toalha, acendi o aquecedor e mostrei como se usava o
chuveiro. Voltei para a sala e liguei a televisão.
Quando ela saiu do banho, vi que passara de novo o batom.
O resto, tirando os exageros de sempre, foi mais ou menos o que se publicou nos jornais.

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