As pessoas se perguntam: como um homem da minha posição pôde fazer isso?
Muitos anos no ofício de juiz me ensinaram que, se os atos humanos obedecem aos desígnios secretos de Deus, diante dos homens eles devem falar por si. Mas posso apresentar as circunstâncias que os antecederam. Eu estava saindo de uma livraria de livros velhos, no Largo de São Francisco. O calor era opressivo, mas nuvens negras anunciavam uma tempestade. Eu só queria chegar logo em casa para ler um pouco. Eles estavam vendendo bugigangas expostas num tabuleiro, ele de pé, ela sentada na borda do chafariz. Um arame estendido entre as estacas que sustentavam o tabuleiro servia de varal para peças de roupa. O vestido dela estava úmido e grudado em seu corpo e seus cabelos indicavam que ela havia se banhado nas águas suspeitas do chafariz. Aproximei-me para examinar as bugigangas: pentes, espelhinhos, pregadores, chaveiros. Às vezes faço compras nos ambulantes só para ajudar. Ela fixou os olhos em mim e sorriu. Tinha uma falha lateral nos dentes e era menina demais para usar aquele batom. O senhor é o pai dela? - perguntei. Padrinho, doutor - o homem disse. Você tem casa? - perguntei à garota. Ela olhou para ele e não respondeu. Então me dirigi a ele. O senhor não acha que ela deveria ter uma casa e ir à escola? Acho sim senhor - ele disse. Eu posso arranjar = falei. Até aquele momento, na vida, eu jamais pensara em assumir uma responsabilidade dessas. Foi como uma força me inspirasse, mas agora não ouso falar em Deus. - É ela quem me ajuda, doutor. Fui tirar dinheiro no banco e, quando voltei, ela estava pronta, com uma pequena sacola de pano dependurada no ombro. Na hora de vir comigo, não olhou para trás. - Você gosta dele? – perguntei. - Não – ela disse. – onde é que nós vamos? - Para casa – eu disse. – é melhor você tirar isso da boca. Estendi–lhe o lenço para que ela limpasse o batom dos lábios. Depois ela me devolveu o lenço e me deu a mão. Começou a chover e tomamos um táxi. Eu disse a ela que no dia seguinte iríamos comprar roupas e procurar uma escola. Logo que chegamos em casa ela pediu para que eu ligasse a televisão. Falei que antes ela devia tomar um banho. Dei-lhe uma toalha, acendi o aquecedor e mostrei como se usava o chuveiro. Voltei para a sala e liguei a televisão. Quando ela saiu do banho, vi que passara de novo o batom. O resto, tirando os exageros de sempre, foi mais ou menos o que se publicou nos jornais.