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Copyright © 2023 por Vicente Tavares

capa e projeto gráfico


Farbo Editora

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Hoje, na aula de artes, a professora pediu que a gente anotasse
qual era a nossa cor favorita. Imediatamente eu pensei: Minha cor
favorita é o AZUL.
E então, ela começou a falar sobre a psicologia das cores.
O azul traz respeito, impõe autoridade, também indica sabedoria,
lealdade, sofisticação.
É incrível pensar em quanta arrogância dá pra concentrar apenas
pode dizer: “minha cor favorite é o azul.”
Acho que se eu pensar bastante consigo fazer minha vida caber
em dez coisas azuis.
A primeira tem que ser o horrível macacão azul da saída de
maternidade. Eu devo ter ouvido um milhão de vezes minha mãe
contando o tanto que meu pai economizou para comprar essa peça
insuportavelmente brega, assim que soube o sexo do bebê, ainda na

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barriga da minha mãe. “Ele sempre sonhou em ter um filho
homem”, era como minha mãe sempre começava a história. “Seu
pai economizava cada centavo que podia. “Parou até de beber a
cervejinha dele pra juntar dinheiro”, é a passagem favorita da minha
mãe. Claro que isso foi antes do caso do fusca, mas não quero me
adiantar, calma que eu chego lá.
Depois eu acho que o short azul com elástico na perna, aquele
que a gente era obrigado a usar na escola. Eu peguei ódio daquela
roupa depois que o Reinaldo do 3º ano abaixou meu short no meio
do corredor cheio de alunos. Eu nunca senti tanta vergonha na
minha vida. Tudo o que eu queria era nunca mais ter que voltar para
a escola, mas é claro que eu voltei e aguentei anos de bullying (que
na época era chamado de “brincadeira de criança”).
Isso pode parecer meio aleatório, mas foi algo que eu lembrei, sei
lá por que.
Mas eu também lembro do meu bolo de aniversário de 12 anos.
Foi a primeira vez que minha mãe tentou, ela mesma, fazer a
decoração do bolo da festa. Naquela época a situação financeira já
está bastante ruim e minha mãe me disse que a festa seria o meu
presente de aniversário naquele ano. O bolo era de chocolate e tinha
uma cobertura de chantilly tingido de azul. Estava feíssimo, mas
pelo esforço que minha mãe teve, não consegui dizer a verdade
quando ela me perguntou: “Você gostou, filho?”. “Adorei. Está
lindo, mãe”
Desde os meus 6 anos de idade eu tinha (porque meus pais
disseram) uma “namoradinha”, a Marlene e na minha festa de 12
anos, com o bolo azul feio eu dei meu primeiro beijo e levei um tapa
da Marlene quando eu disse que estava terminando com ela. “O Di
beija muito melhor que você”, ela me disse quando saiu irritada. O
Di era meu vizinho da casa da frente. Será que a Marlene estava me
traindo com o Di esse tempo todo?
Lembro que meu pai viu aquela cena e colocou a mão no meu
ombro, estranhamente cheio de orgulho e me consolou: “É, filho,
elas são assim mesmo. Toma, vai tomar umas com seus amigos pra
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esquecer os problemas”, ele disse e me entregou um copo de Coca-
Cola. Eu segui o conselho dele e passei o resto da festa com o
Luciano que era meu melhor amigo no mundo.
Pouco depois do meu aniversário de 16 anos eu peguei o Fusca
Azul do meu pai, sem ele saber. Eu nunca contei pra ninguém, mas
foi ideia do Luciano.
Ela não me disse qual era o plano, só me garantiu que seria uma
noite que eu nunca mais ia esquecer e ele tinha razão sobre isso.
Eu esperei meu pai dormir e peguei a chave do carro e sai de
fininho com o motor desligado até quase chegar na esquina. Eu
estava indo direto pra casa do Luciano pra encontrar com ele, e eu
não sabia exatamente o porquê, mas meu coração estava disparado.
Naquela época eu achava que era a adrenalina de estar fazendo algo
errado, ilegal e ao mesmo tempo era incrível pensar em tudo o que
eu podia fazer só por estar naquele carro. E quase que para sentir o
poder eu acelerei até passar dos 100 km/h, até sentir o volante
trepidando da minha mão, percebi que eu estava prestes a perder o
controle do carro e bater à toda velocidade num poste, eu lembro
que eu sorri.
Quando cheguei na casa do Luciano ele estava me esperando do
lado de fora, todo arrumado e bem vestido com a calça jeans nova
e a camisa branca, o cabelo jogado pra trás com gel. E junto com ele
duas garotas, irmãs gêmeas que tinham os improváveis apelidos de
Cacá e Caqui. De imediato o Lu se jogou no banco de trás com a
Cacá e deixou a Caqui sentando ao meu lado, na frente.
“Toca pra Pedra Grande” foi o que ele disse batendo no meu
ombro cheio de empolgação.
A Pedra Grande (que não era azul) era um lugar que todo
adolescente da minha época conhecia. No final da estrada da Seção
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piquenique durante o dia e os casais usavam de motel durante a
noite.

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Durante o trajeto até lá, o Luciano e a Cacá estavam no maior
amasso, tão empolgados com as mãos indo em lugares tão íntimos
que eu fiquei até encabulado de ter percebido e meu corpo me
denunciou.
E o pior foi que a Caqui no meu do meu lado percebeu e esticou
a mão para me tocar. Eu não sei o que deu em mim...
provavelmente, pânico, mas eu afastei a mão dela de um jeito tão
repentino que ficou um clima chato. Acabei me desculpando,
dizendo alguma coisa sobre ter a atenção ao volante ou algo imbecil
assim.
Logo que chegamos na Pedra Grande, o Luciano desceu do carro
dizendo: “Vamos deixar vocês dois mais à vontade aí” e me deu uma
piscadinha cheia de significado e dali ele foi pra trilha que tinha bem
ao lado da Pedra que dava o nome do lugar. E de lá, poucos minutos
depois, já estava ouvindo os gemidos dos dois enquanto faziam
sexo.
Outra vez meu corpo me denunciou de imaginar a cena que se
desenrolava na escuridão e a Caqui tentou outra vez me tocar.
Segurei a mão dela e disse pra irmos pro banco de trás. É claro que
eu nunca tinha feito sexo com ninguém antes e não sabia muito bem
o que fazer.
No banco de trás do fusca azul roubado do meu pai comecei a
beijar aquela menina que nunca troquei mais do que dez palavras e
achei bastante exagerado os gemidos que ela dava ofegando por
absolutamente nada. Parecia que ela queria competir com os sons
que a irmã dela fazia enquanto transava com o Luciano.
Da minha parte fui o mais ousado que imaginei que poderia ser:
apalpei os peitos dela por cima da blusa, e eu já estava preparado pra
ela me rejeitar, me chamar de atrevido e se afastar de mim, exigindo
que eu nunca mais encostasse nela, mas não foi assim que aconteceu
Para minha total surpresa, ela tirou a camiseta e deixou que eu
tocasse seus peitos por cima do sutiã, e ela tinha peitos muito
pequenos e, como eu não sabia o que fazer, imitei o gesto dela e tirei
minha camiseta, me pareceu a coisa certa a fazer naquela hora.
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Voltamos a nos beijar. Ela, com sofreguidão, gemendo e
remexendo o corpo como num roteiro sensual. Eu, analisando cada
coisa estúpida e sem sentido, coisas como: “muita saliva”, “o sutiã
dela parece meio velho”. Em meio a esses pensamentos idiotas tive
a minha mão conduzida até a calcinha dela que estava bastante
molhada, e o que eu pensei naquela hora? “Será que ela tá
menstruada? Ou fez xixi? Meu pai vai perceber se ficar cheiro de
mijo no carro”. E “Eu não vou conseguir ver a cor da calcinha dela
no escuro”.
E foi aí que eu tive a ideia ridiculamente estúpida: acendi a luz
interna do carro. Aquilo foi tão imbecil que a Caio meio que
protegendo a vista perguntou: “Que foi?”
Eu respondi meio abobalhado “Eu queria te ver melhor
(Chapeuzinho Vermelho?). Você é tão bonita (não era).
Aquela mentira deu certo (mais ou menos) e é onde entra a quinta
coisa azul. A calcinha dela era azul. Ela apagou a luz do carro e
percebeu que teria que fazer todo o trabalho sozinha. Ela me
colocou sentado no banco de trás e abaixou o cós da minha calça e
cueca e ainda que eu estivesse petrificado de medo e vergonha, meu
corpo de 16 anos ainda estava reagindo à imaginação da cena que
rolava na trilha ali perto (agora sem os gemidos e barulhos).
Com um sorriso malicioso que eu tenho certeza que foi ensaiado
uma dúzia de vezes no espelho, Caqui tirou um chiclete imaginário
da boca e começou a me chupar.
E foi nessa hora que o policial acendeu a lanterna para dentro do
carro e viu tudo.

Horas depois eu estava na delegacia, de cabeça baixa, com


vergonha enquanto meu pai gritava comigo na frente de todo
mundo, aparentemente a única coisa que eu havia feito de errado
tinha sido pegar o carro escondido. A surra prometida diante dos
policiais se concretizou quando chegamos em casa.

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O Luciano e a Cacá ouviram o policial se aproximando e tiveram
o bom senso de parar de barulho e sumir quando eu e a Caqui fomos
flagrados. A Caqui, eu soube depois, também levou uma surra da
mãe e ficou de castigo pra sempre, provavelmente.
Quase um mês depois do episódio do fusca azul, o Luciano
apareceu lá em casa quando meus pais tinham saído pra ir pra igreja
e eu, de castigo, não podia por o pé pra fora de casa. Era da escola
pra dentro de casa e só.
Também não podia receber ninguém, mas era óbvio que eu não
estava nem aí pra isso. Apesar de tudo ter dado errado pra mim, pro
Luciano aquela tinha sido a melhor noite da vida dele e eu achei
aquela frase muito idiota e exagerada.
Se, pelo menos, a tal da Cacá fosse linda, maravilhosa, tudo bem,
mas estava longe disso. Ainda assim ele estava extasiado contando
cada detalhe de como tinha feito sexo com ela naquela noite (e em
muitas outras depois).
Eu não queria saber de nada daquilo. Toda aquela confusão que
eu tinha me metido tinha sido por causa dele e por ideia dele
também. Fui humilhado na frente de todo mundo, apanhei do meu
pai, estava de castigo e ele só queria se gabar do que tinha feito. Mas
ao mesmo tempo eu ficava excitado de ouvir ele contar e detalhar
tudo e achava sexy e engraçado o jeito que ele passava a mão no
peito dele, demonstrando como tinha apalpado os peitos da Cacá e
a camisa azul do Cruzeiro colava no corpo delineando os contornos
dele.
Eu não era o único que me excitava com a narrativa. De
relembrar a história, o volume na bermuda dele aumentava e pulsava
e quando ele disse “Olha! Só de lembrar já fico duro de novo. Olha
só, duro feito pedra”, eu entendi que era pra conferir se estava duro
e, sem pensar, apalpei meu melhor amigo no mundo. O único que
podia me entender, que me conhecia de verdade, mais do que eu
mesmo, que me apalpou de volta, rindo e disse: “Ei, tá durão
também, hein?”

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Só o Luciano pra fazer eu sentir que aquele beijo não era errado,
que aquele corpo quente sobre o meu não era proibido.
Meu pai não entendia e nunca aceitaria. Nunca. Na casa dele, não;
um filho dele, não.
A mochila em que eu coloquei meia dúzia de roupas era azul,
jeans, já velha, rasgada e suja, do mesmo jeito que eu estava me
sentindo depois que eu fui expulso de casa.
Tentei ir pra casa do meu tio, o único que mora perto o suficiente
pra eu passar uma noite, só uma noite que eu queria. Mas é claro
que ele já estava sabendo de tudo, nem sequer me abriu a porta e
ainda ameaçou sair e me matar de porrada. Como se meu pai já não
tivesse feito isso.
Eu não tinha onde dormir e nem o que comer, então, ir pra escola
era um jeito de poder comer alguma coisa. Me dei conta que havia
muitos anos que eu não tomava o leite com chocolate na caneca azul
da escola, não porque não gostasse, mas porque era coisa de criança
ficar na fila do lanche, mas era tão bom ser criança, acho que as
coisas eram muito menos complicadas.
Logo na primeira aula eu fui parar na diretoria por não ter trazido
material, apesar da mochila abarrotada. A diretora não estava
preocupada com o por quê da minha cara estar toda machucada, o
julgamento dela já dava todas as explicações que ela queria: “Devia
se preocupar em trazer seu material ao invés de se meter em brigas
na rua ou de ficar pelos matos por aí.”. É a história do fusca azul
ficou famosa.
Mesmo assim ela me concedeu generosamente uma folha de
papel pardo (disse que não achava folhas de sulfite) e uma caneta
azul para copiar as lições. Papel pardo!
Na hora do intervalo eu estava faminto e o macarrão com
salsicha servido no prato de plástico azul nunca pareceu tão gostoso
e depois que eu terminei de comer, finalmente consegui encontrar o
Luciano.

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Achei que tinha ido pra escola pra ter o que comer, mas quando
eu o vi parado perto da quadra, percebi que, na verdade, eu só tinha
ido pra poder falar com ele, pra saber se ele estava bem. Dizer que
eu estava bem.
“Fica longe de mim, tá?”, foi o soco mais forte que eu podia ter
levado e era feito só de palavras. Eu queria ter reclamado. Ter dito:
“Não, você, não. Qualquer um, menos você.” Mas tudo o que eu
falei foi: “Tá” e vi ele se afastar.
Esqueci de dizer que a professora de artes também falou que o
azul é cor da tristeza e da melancolia. Mas qual será a cor do vazio?
Branco, talvez, ou será o preto da escuridão total?
Acho que vou descobrir... e não vou ter ninguém pra contar.

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