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Vicente Tavares [organização]

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“Nós temos um amor pelo livro físico e não é nada contra os livros
eletrônicos. Esse projeto é uma maneira de lembrar e celebrar
a experiência singular que o livro físico pode oferecer.
Queríamos que fosse o objeto mais belo, interessante e tátil
possível.”

J. J. Abrams

S. – O navio de Teseu é um livro de literatura de ficção, catalogado na Câmara


Brasileira do Livro como Romance Norte-americano, considerado adulto
por não ter classificação etária definida. Foi concebido e produzido pelo
produtor norte norte-americano J.J. Abrams, escrito pelo roteirista Doug
Dorst e lançado nos Estados Unidos em 2013.
O livro é comercializado dentro de uma caixa preta lacrada e sem
informações suficientes que indiquem, na íntegra, o seu conteúdo. Ao
romper o lacre, o leitor se depara com um livro antigo, intitulado O navio
de Teseu, escrito por V.M. Straka, cuja lombada tem uma etiqueta numerada
indicando uma catalogação. Na folha de rosto, uma nota escrita a lápis
solicita a devolução do livro à Biblioteca Central da Pollard State
University, sala P19.
As 458 páginas de O navio de Teseu estão escritas à mão, rabiscadas e
desenhadas com grafite e diversas cores de canetas. Além disso, ele tem
23 encartes manipuláveis como cartas, folha de jornal, postais, foto etc.
São mensagens e documentos por meio das quais Eric e Jennifer,
leitores fictícios do texto de V.M. Straka, se comunicam para investigar a
vida e o desaparecimento deste escritor.

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A ideia

Na era do e-mail e das mensagens instantâneas, quando tudo


é enviado para a nuvem e torna-se intangível, S. é
intencionalmente tangível. Queríamos incluir coisas que você
pode segurar nas mãos: cartões-postais, fotocópias, documentos
jurídicos, páginas de jornais, um mapa desenhado em um
guardanapo.
J.J. Abrams

J.J. Abrams é diretor da produtora americana Bad Robot, escritor e


produtor reconhecido pelo trabalho nos filmes de ação Missão Impossível,
Super 8 e Star War e por séries como Alias, Lost e Fringe. Suas produções
têm como característica o uso de objetos simbólicos que instigam o
público ao propor enigmas e por criar histórias que transportam o
telespectador para dentro da narrativa, exigindo sua participação e
reflexão, expandindo possibilidades.
O insight para S. – O navio de Teseu surgiu em 1998, quando Abrams
estava no aeroporto internacional de Los Angeles e encontrou um livro
do escritor Robert Ludlum abandonado em um banco. Dentro do livro
havia um pedido escrito à mão:

“a quem encontrar esse livro, por favor leia e deixe-o em algum lugar para que outra
pessoa o encontre”.

Em entrevistas, Abrams contou que isto o fez “lembrar dos


tempos de escola, de olhar as notas escritas nas margens dos livros da
biblioteca”. Imaginou o quanto seria interessante se “ao invés de colocar
o livro de volta para que outro o leia, a pessoa que pegou o livro se sentisse
compelido a continuar a conversa?”. Ou ainda, “e se o relacionamento se
iniciasse dentro do livro?”
A partir disso, Abrams imaginou a ideia central do livro como uma
história de espionagem e entrevistou alguns escritores que pudessem
desenvolvê-la. Até que foi apresentado à Doug Dorst em 2009, “Abrams
queria um romance que se desdobrasse nas margens de outro romance”.

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Eu apresentei algumas ideias que foram desenvolvidas ao longo de um
ano, até que reunimos uma amostra para vender o livro. Depois, foram
dois anos realizando o projeto.
Primeiro Dorst escreveu o texto de O Navio de Teseu, um conto
simbólico de mistério e suspense. A vida de Straka foi inspirada em B.
Traven, um autor com uma visão árida e violenta de mundo que manteve
sua identidade em segredo por toda a vida. Teseu na mitologia grega é o
herói que matou o Minotauro, monstro que habitava o labirinto de Creta.
O navio de Teseu é conhecido como sendo paradoxo que questiona a
autenticidade de um objeto ao ter suas peças substituídas.
Em resenha, Leon Idris de Azevedo do blog Prelúdios, explicou o
paradoxo proposto pelo historiador e filósofo grego Plutarco sobre as
reformas feitas na embarcação que teria levado Teseu até Creta:
Plutarco conta que a embarcação foi preservada pelos atenienses por
quase mil anos e propôs o desafio de explicarmos quando é que alguma
coisa perde sua essência, quando é que deixa de ser o que a consideramos
ser. Ao longo do suposto milênio, o navio usado por Teseu teve de passar
por inúmeras reformas, sempre perdendo suas partes originais e sendo
reconstruído com partes novas. Então, pergunta-se, ao se substituir a
última parte constituinte do navio original, ele deixaria de ser o navio de
Teseu?
O livro partiu da ideia de ser um simulacro trocado por dois leitores e
que provocasse uma ilusão de ótica no leitor-real. Eric, um aluno já
graduado, pesquisa as obras de Straka e Jen, uma graduanda, “se
provocam, flertam e começam a desvendar os mistérios do romance”. O
projeto “foi ficando cada vez mais complexo à medida que ia tomando
forma”. Foi quando surgiu a ideia de ter partes encartadas:
Quando nos encontrávamos (Abrams e Dorst), fazia parte de nossas
discussões que o projeto não tivesse apenas anotações no miolo, mas a
ideia de que ela poderia ter também algumas partes físicas, tangíveis,
removíveis, artefatos que representassem a relação e a investigação deles
(Eric e Jen). Por isso, foi parte da diversão imaginar como isto poderia ser.
Mas, na verdade, esse tipo de coisa poderia se tornar um artifício ou
macete destinado a atrair a atenção do público. Qual seria a lista de desejos
das coisas que poderíamos ter no livro?
A minha lista de desejos era ridiculamente longa, mas fazia parte da
diversão.
Enquanto eu estava escrevendo, me ocorria que poderia ter um
sortimento de peças informativas e documentos que poderiam ser
indicados em uma nota. Só depois descobrimos que isto tudo nos serviria
mais tarde.
Além das mensagens nas margens e dos efêmeros encartados, um
outro diferencial está no prefácio e nas notas de rodapé escritas por F.X.
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Caldeira. Por meio destes elementos, o leitor-real é levado a desvendar os
enigmas e as cifras de S.. Estas características, fizeram com que o livro
fosse chamado pela crítica e pelos fãs de “quebra-cabeça literário” ou
“livro-jogo”, conceito que foi rebatido por Dorst em uma entrevista:
“apesar de adorar quebra-cabeças, não é isso que estávamos fazendo”.
Um dos meus favoritos é a carta da Jen. É quando você se dá conta de
que não haveria outra forma de encaixar isto no livro. Isto é engraçado,
porque quando você está lendo o livro você se torna um voyeur por estar
entrando no universo do autor. Para mim, a maior experiência em S. – O
navio de Teseu, é literalmente ler o diário de alguém, na verdade, de duas
pessoas. Tem momentos no livro que isto parece muito pessoal e íntimo,
e são o que eu amo no estilo de Doug. Para mim o livro transcende
qualquer tipo de artifício que a história poderia usar.
As narrativas verbais e não-verbais do livro se destacam por sua
construção em camadas: uma delas se refere ao conjunto do projeto
idealizado pelos autores reais, J.J. Abrams e Doug Dorst, representado
pela caixa preta S.; a história de Eric e Jennifer nas margens está em outra
camada e se complementa pela camada dos efêmeros encartados; a camada
da história de O navio de Teseu, por sua vez, se liga a camada da narrativa de
F.X. Caldeira (as notas de rodapé e o prefácio). Segundo Brendon Wocke,
estas camadas livro “não só exigem que o leitor descodifique a
complexidade cronológica da história, mas também escolha como irá lê-
la”.

O livro responde a todas as perguntas e a todos os enigmas? Não, não


responde. E, talvez essa seja justamente a proposta. Mas isso não atrapalha
ou diminui a experiência única que é ler e decifrar esse livro incrível.

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O Processo de Produção

S.– O navio de Teseu foi publicado no Brasil pela editora Intrínseca e


lançado em novembro 2015. Jorge Oakim, diretor da Intrínseca, conheceu
o livro através de um proposta simples recebida por baixo da porta do
quarto do hotel durante uma feira e se interessou em ter o nome de
Abrams no catálogo da editora.
Heloiza Daou, gerente de marketing da Intrínseca, comentou que “ele
decidiu comprar mesmo sem olhar o livro, mas, mesmo que ele tivesse
olhado, ele teria comprado”. Para Raphael Pacanowski, gerente de
produção, Oakim “apostou na ideia, no conceito – tem a ver com o ar que
a gente respira aqui. (...) Mas quando chegou na minha mão, não minto,
bateu aquele ar... como é que a gente vai fazer isto?”.
A edição brasileira levou quase três anos para ser concluída, desde a
aquisição dos direitos de publicação em 2013, até a chegada nas livrarias
em novembro de 2015. Por sua complexidade, o livro demandou tempo e
dedicação, um empenho compreendido pela diretoria da editora Intrínseca
que adiou seu lançamento até que ele estivesse realmente pronto.
Giuliana Alonso e Ulisses Teixeira foram contratados para revisar e
conferir a tradução dos textos relativos aos enigmas e às cifras de O navio
de Teseu. Nesta etapa, foram encontrados erros no livro original que
precisaram ser corrigidos pela Melcher, caso o contrário, a versão brasileira
não funcionaria em seu conceito integral. Por exemplo:
Na nota 16 (pg. 242), no original a data da pintura não bate com as
datas de nascimento e da morte do pintor (Gerrit van Swygert). Mudamos
os anos para caber no código e mantivemos essa estranheza do original.
No capítulo 7, mudamos a cadeia de letras da nota 5 (pg. 263) para que o

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código pudesse formar a frase em português. (Giuliana Alonso, enviado
por e-mail)
No cap.10 é que a coisa pega fogo. O código só é decifrado com a roda
que vem no final do livro. A cada nota é citada uma cidade. No entanto,
duas coisas devem ser mencionadas. A primeira é que a roda não é exata.
A segunda é a mais grave: se seguirmos essa latitude/longitude de Calais,
a mensagem não dá certo. As únicas soluções que conseguimos pensar
para essa cifra foi mudar as letras na roda seguindo as instruções das
latitudes/longitudes que indicamos ou deixar em inglês mesmo, disse
Ulisses Teixeira.

I have loved you from the beginning I will love you to the end.
Eu amei você desde o início e vou continuar a amar até o final.

Raphael apresentou o livro original norte-americano em várias gráficas,


inclusive as que imprimiam os livros da Cosac Naify e da Companhia das
Letras, acostumadas com projetos diferenciados.
Quando o livro original norte-americano chegou, eu decupei todo o
livro e fui com o livro original debaixo do braço até as duas principais
gráficas com quem a gente trabalha. Falei, olha, este livro vai demandar
um esforço criativo para ser feito aqui no Brasil. Não quiseram nem fazer
uma cotação porque eles viram que não era financeiramente viável. O livro
tem um trabalho manual muito extenso em termos de acabamento, de
papel, em suma, tudo.
Por intermédio da Melcher Books o livro e seus encartes foram
impressos em Hong Kong, na China, o que demandou quatro meses de
produção – desde o envio dos arquivos até a chegada do livro pronto no
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Brasil. A própria gráfica se encarregou de encartar os efêmeros, página por
página – manualmente – com exceção do guardanapo.
Para produzir lá fora eles imprimem o livro, montam o livro, deixam
tudo pronto e fazem o encarte. Depois, colocam o livro dentro da caixa
com tudo e colam este outro adesivo (o lacre) – que é o que faz o unboxing
– e que é colado manualmente, depois shrinka o livro. (Raphael
Pacanowski, na entrevista)
“O guardanapo foi o mais engraçado desta história toda”, disse
Heloiza. Ele demandava um maquinário específico e uma quantidade
mínima de 200 mil unidades para ser produzido na China. “Como era final
de ano, a gente brincava que ia dar brinde de guardanapo”, disse Raphael.
Uma fábrica brasileira conseguiu adaptar a sua máquina de acordo com o
formato norte-americano, assim, o livro atravessou o oceano sem ser
lacrado.
O livro veio da China sem o lacre. A editora contratou uma empresa
de manuseio e daí eles abriram, colocaram o guardanapo, colaram a
etiqueta e depois lacraram. Então esta parte final foi feita aqui no Brasil –
são ainda mais umas duas semanas depois da alfândega.
O livro foi lançado em novembro de 2015 com uma tiragem inicial de
doze mil exemplares custando entre R$82,00 e R$94,90, S. – O navio de
Teseu vendeu, durante 3 meses, “uma média de 150 a 180 livros por
semana. Não deu nem tempo do livro chegar nas cidades menores”,
segundo Heloiza. Em dezembro de 2015, no evento ComicCom em São
Paulo, o stand da editora vendeu um livro atrás do outro, por vezes, dois,
três exemplares para um único comprador. “O livro S. não tem preço.
Poderia custar R$150,00 – 200,00 e assim mesmo iria esgotar.”
A segunda tiragem foi de vinte mil exemplares. Segundo Rafael, isto
“não é uma coisa muito comum. Não são muitos livros que a gente
imprime com uma tiragem pequena no início e que depois faz uma tiragem
maior que a inicial”.
Segundo Heloiza, S. “atende muita gente, muitas faixas etárias. (...) O
leitor paga o preço que for para ter este livro. Quando você apresenta um
projeto como este, ou um livro com um acabamento super incrível e

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maravilhoso, as pessoas compram. As pessoas têm necessidade de algo
diferente.”
É livro pra quem gosta de mistério, de arte... é livro pra quem gosta de
livro – tátil. É impossível você ficar indiferente. Ele parece ter cheiro de
livro antigo... você mexe no livro com medo que ele vá rasgar.
S. tem uma identificação afetiva, tem esta coisa de pessoas que são
personagens escrevendo sobre o livro, cartas que são para eles. Você cria
afeto. Essa coisa do analógico vs. digital... a gente vê um caminho diferente
para o livro físico, impresso.
Ele ainda tem muita vida, mas tem mais vida ainda quando o projeto é
diferente.
Tratar o livro impresso como uma coisa especial. Acho que o S. é uma
ode ao livro impresso, é muito fora do que há disponível no mercado, ele
é uma outra experiência. Ele cria links e traz uma realidade online de
compartilhamento e de criação com uma coisa muito analógica
Para Raphael Pacanowsk, o livro “consegue integrar esta inovação
digital onde é tudo muito interativo. Você é um personagem que vai
acessando outros links”.
Antonio Rhoden foi o designer contratado para fazer toda a adaptação
do design de S. por já fazer trabalhos de caligrafia para a editora. “Tudo é
letra dele. Ele fazia tudo à mão. Falem com ele, vale muito a pena. E ele é
super empolgado para falar sobre este livro”, sugeriu Raphael.
Heloiza Daou contou que fizeram dois “bastidores” com Antonio e ele
falava que virava esses personagens... “hoje estou meio Jennifer, hoje estou
meio Eric...” E se você pega o original, você vê que o trabalho do Antonio
é impressionante, o lápis principalmente dá vontade de apagar.
Para analisar o lettering foram comprados outros livros. Chegou o
alemão, tinha caligrafia, mas aquela caligrafia quase que única para todos.
O francês era pior ainda, eles usaram uma fonte, o que não faz o menor
sentido, era tudo igual, só mudava a cor. Quando o francês chegou pra
editora, eles mandaram com uma restrição – o J.J. não gostou. Nunca foi
opção para Intrinseca usar uma fonte.

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Entrevista com o designer Antonio Rhoden

A intervenção brasileira do design de S. ficou sob responsabilidade de


Antonio Rhoden e Maria Inês Coimbra, do escritório Ô de Casa. Ambos
trabalham desde 2006 com design e produção de livros e revistas, inclusive
com adaptação e lettering. Sua estrutura é caseira e a parceria com a editora
Intrínseca já existe há alguns anos.
Para a entrevista realizada dia 27 de setembro de 2016 na Livraria da
Travessa de Ipanema, Antonio levou uma pasta com vários materiais –
resultado de todo o processo de intervenção –, desde cadernos de
caligrafia, rascunhos, canetas, as 458 folhas de papel vegetal escritas à mão
e algumas orientações enviadas pela agência estrangeira.

Foram 458 folhas de papel de seda levadas para a entrevista.


Ao longo da pesquisa de mestrado, optou-se por chamar o projeto de
Antonio de “intervenção”, ao invés de “adaptação”. “Adaptar” refere-se à
ajustar, harmonizar, ambientar-se. “Intervir” refere-se à interceder,
influenciar, contribuir com ideias e sugestões – ações que se adequam
melhor a uma atividade que envolveu pesquisas, imersões e alterações de
acordo com o seu ponto de vista.

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O projeto chegou às mãos de Antonio por meio do contato de Raphael
Pacanowski: “temos um projeto diferenciado. O nome é S.. É melhor você
vir aqui, a gente tem que pensar no prazo”.
Quando eu fui para a reunião eu já tinha visto alguma coisa de fora. Eu
não tinha noção do todo, mas olhei a letra do Eric e pensei, ah, esta aqui
eu já matei, beleza.
Quando eu olhei a letra dela (da Jen), eu pensei, caligrafia norte-
americana – não é a nossa caligrafia.
Fui com tudo na cabeça, mas com a intenção de dizer para ele ah, isto
vai demorar... o que vocês estão esperando? É para seis meses? Seis meses
não é prazo para este trabalho. Não, está tranquilo, a editora respondeu.
Quando saímos da reunião, eu e a Inês, falamos, eu vou ter que fazer vinte
páginas por dia. Eu acho que dá.
Impossível, quando eu comecei, pensei, por que eu fui falar isto? Levou
praticamente um ano.
Antes de iniciarem o trabalho, Inês e Antonio reorganizaram todos
arquivos enviados pela Melcher – essa etapa foi importante para evitar
erros ou duplicatas de impressões durante a diagramação. O arquivo
principal de diagramação, feito no programa Indesign, precisou ser refeito
e todas as imagens foram separadas em layers individuais. Eram cinquenta
tipos diferentes de fundos amarelados, diversas imagens de carimbos e
manuscritos para todas as páginas do livro.
Eu mandei pro Raphael um guia com todos os dados pra gente checar,
qual pantone estava entrando em quais encartes. Era um mundo de coisas.
Além das quatro cores, são mais de vinte pantones. O fundo amarelado,
tem mais de cinquenta (imagens) diferentes, aleatórias – o designer vai ver
isto. O leitor talvez não perceba, ele vai perceber o conjunto todo, “ah
aqui tem uma manchinha, pôxa que legal, não tinha aqui, aqui tem outra...”
isto foi um cuidado da edição original.
Para a realização do projeto, Maria Inês ficou responsável por
diagramar e fazer as emendas do texto corrido de S.. A Antonio coube a
execução e digitalização dos manuscritos e a manipulação dos fundos e
dos textos convertidos em imagens.

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Quando começamos a fazer o trabalho, já tinha uma conversa rolando
de que na França já estariam fazendo o adaptado. Quando passou uns três
ou quatro meses, a gente ainda estava trabalhando com a tradução, alguém
entrou na Amazon e já tinha a edição pronta da França. O que era
impossível, a agência tinha acabado de vender para fora, a Intrínseca tinha
acabado de comprar, ou seja, não era possível em tão pouco tempo. Eles
usaram uma fonte e mataram o projeto. Perdeu completamente o sentido
fazer com uma fonte digital, regular. Aí, a agência americana, sabendo
disto, recomendou que se evitasse a fonte digital, e que a identidade
original fosse mantida.
A edição francesa é a pior edição entre as estrangeiras e eles passaram
a pedir testes.
Então, eu fiz o primeiro capítulo e submeti à agência americana. Foi
também onde perdemos bastante tempo porque eles levaram dois, três
meses para responder. Daí eles retornaram falando que estava maravilhoso
– Com louvor! Pode seguir. E a partir daí as outras edições como a alemã,
a italiana, a coreana, etc... foram feitas à mão.

Detalhe da página com as fontes digitais usadas na edição francesa.


A primeira etapa do trabalho consistiu na diagramação do texto corrido
de O navio de Teseu. Como os manuscritos interagem com este texto
através de setas, traços e palavras assinaladas, a diagramação teria que estar
revisada e com as emendas feitas, para depois ser “trancada”. A primeira
impressão da cópia “limpa” manteve os manuscritos em inglês, servindo
de guia para a escrita de Antonio.

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Diferente de um projeto comum, qualquer modificação no texto
corrido de O navio de Teseu após o início dos manuscritos resultaria na
perda de todo o trabalho já feito.
O miolo tinha que estar totalmente revisado e totalmente fechado, a
gente não ia poder modificar depois que começasse a fazer isto, para o
texto não correr de página.
Então se andasse uma linha e eu tivesse feito aqui um sublinhado, ia
andar pra frente e ia perder linha, ia ser uma bagunça geral. Era imperativo
que fosse trancado depois da última revisão.
Os efêmeros foram enviados pela agência norte-americana como
arquivos de imagens, com textos e texturas de fundo em um único layer.
Foi necessário apagar os textos em inglês e reconstruir as texturas com a
aplicação de filtros até chegar no resultado original – só depois os textos
foram escritos em português. Até mesmo o obituário de Caldeira que,
teoricamente já estaria em português (simulava um recorte de jornal
brasileiro), precisou ser refeito pois estava em “portunhol”.
Antonio teve o cuidado de manter a diagramação no mesmo lugar e se
preocupou em refazer borrões, como as passagens de mão na tinta fresca
e pingos de caneta.
A gente adaptou o arquivo original, tirou estes fundos todos e aplicou
em layers separadas, aí desligava para não ficar trabalhando com o fundo.
Isto aqui por exemplo, também deu um trabalhão enorme porque não veio
editável pra mim, refiz exatamente igual, com a mesma posição, com as
mesmas manchinhas, mesmas falhas. Para que eu pudesse editar
“novembro, dezembro, devolvido”, tive que fazer tudo de novo – isto foi
muito recorrente nos encartes. Era uma exigência minha de fazer como
estava no original, se tiver uma falha eu reproduzo a falha. Eles mesmos
não recomendaram que fosse feito assim.
Os carimbos também precisaram ser apagados e refeitos com os
mesmos aspectos, falhados e borrados. Nos postais, por exemplo, os
carimbos dos Correio estavam em Cruzeiros e não em Reais, sendo que a
viagem de Eric à Bahia se passa em 2012. Segundo Antonio, algumas

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adaptações estrangeiras como a italiana “não fizeram isto, mantiveram
todos os selos, porque dá trabalho”.

Versão brasileira e norte americana do obituário.

Versão norte americana e a intervenção brasileira dos carimbos postais.

Para o lettering da Jennifer, Antonio precisou treinar caligrafia


norteamericana, pois, tanto o aprendizado do abecedário quanto a maneira
de segurar a caneta são diferentes da caligrafia brasileira.
Eles têm sentido diferente de começar a letra. A caligrafia escolar, que
é uma característica da caligrafia dela é completamente diferente da nossa.
Tem umas variações de início de letra, de formato. Daí você começa a se
dar conta da loucura que é... eu comecei a escrever e pensei, eu não sei
mais pegar em uma caneta.
Quando foi a última vez que você escreveu uma carta? Você escreve
bilhete, um post it, mas uma carta... Como é que vou fazer isto?

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Caderno de caligrafia usado para treinar a letra da Jennifer.

O treino das letras foi feito em cadernos de caligrafia. Para realizar os


manuscritos, Antonio testou papéis brancos, pautados, vegetais e de seda
(cristal).
O único papel que funcionou foi o cristal, encontrado entre as folhas
brancas do bloco A3 da Raphael – um papel estilo overlay, semi-
transparente, liso de um lado e poroso do outro. Sua transparência ajudou
na visualização dos manuscritos em inglês (deixados na primeira prova
limpa) e a textura forneceu naturalidade aos traços das canetas, aplicados
posteriormente sobre as páginas envelhecidas do livro.
Ao todo foram 2.500 folhas gastas para ter o trabalho pronto.

Antonio Rhoden e o processo do lettering em vegetal.


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Eu tentei fazer com vegetal, mas ele não era transparente o suficiente
e as canetas deslizavam, daí fui testando outros papéis. Cheguei neste papel
de seda (cristal) que eu encontrei nestes blocos. Ele é um overlay e era
tudo que eu precisava... mas na minha cabeça, vou comprar três blocos –
é o suficiente. Quando acabou o terceiro bloco eu voltei e tinha acabado
na Casa Cruz do Centro, na de Irajá tinham 2 blocos.
Eles pararam de fazer, você encontra do pequeno, não encontra do
grande. Daí comprei um na Caçula – um rolão. Mas você vê que o papel
é diferente.
A diagramação dela (da Maria Inês) era a minha guia. Eu usava sempre
isto como base, colocava o cristal por cima e aí já fazia o traço direto, usava
a mancha (gráfica) original para eu poder me localizar na primeira etapa
do trabalho.

Eric, Jennifer, Desjardins e Ermelinda, em inglês e português.

Antonio chegou a fazer uma planilha prevendo o tempo que gastaria


em cada página de manuscrito. No início ele conseguia fazer três páginas
por dia – vinte páginas quando estava com a “corda no pescoço”. Seu
método foi seguir a sequência da paginação alternando as letras de Eric e
Jennifer, trocando as canetas.
No final de uma página você está com a cabeça do cara. Exatamente
assim, igual um trabalho de ator. Você fica muito imerso no negócio.
Quando eu comecei a fazer (os manuscritos) eu tinha todo um ritual,
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colocava uma música, botava luz, ligava o ar condicionado, fechava a
porta. A gente que trabalha com criação só começa a fazer quando sente
bem, senão, vai sair errado. Daí quando me via fazendo três vezes e não
estava bom… preciso repensar meu método.
Eu acho que gastava uns vinte minutos de média por página, cinco
páginas por hora – em um livro de quinhentas páginas... Eu tirava as
manhãs para fazer outros trabalhos e ficava com este basicamente de noite.
Na etapa final, eu já não existia, não ia a compromissos, não botava o pé
na rua. Daí você quer ver volume, já entra no ritmo.
Antonio deveria seguir as orientações da Melcher sobre as marcas e
cores das canetas, porém, surgiram imprevistos. A caneta laranja ficou
com uma cor mais cintilante que a do livro original impresso,
provavelmente pelo tipo de papel usado por eles, neste caso, Rhoden
precisou modificar a saturação. Além disso, algumas marcas não foram
encontradas como a caneta verde Pilot Ponta fina – ele precisou escrever
tudo na cor vermelha para depois convertê-la para a cor verde. Todas as
modificações foram feitas página a página por meio de actions no
Photoshop.
Não tinha o menor sentido fazer isto digital. Óbvio que era mais fácil.
Engraçado porque a nossa edição se tornou um marco. Para gente e até
mesmo pra outros trabalhos na editora. Fizemos uma HQ depois em que
todo o lettering foi feito à mão, qualquer outra editora faria isto digital,
mais fácil, mais rápido, mais prático, mais econômico. O que a Intrínseca
fez foi muito legal.

A diferença de tom entre as cores das canetas no papel vegetal e no livro impresso.

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Canetas usadas por Antonio e Imagem do arquivo de Indesign.

Quando eu terminei o livro eu olhava pro material, olhava aquela


quantidade… gente, que projeto é esse? É realmente um livro único, do
ponto de vista do design, do ponto de vista técnico, do ponto de vista da
produção gráfica e do ponto de vista editorial. (…) É muito além do livro
comum, é um livro que foi concebido pra ser único. (Antonio Rhoden,
canal da Intrínseca14, Youtube)

Os efêmeros

Espero ter sido útil a vocês. Esses são, é claro, assuntos


que me interessam. Lembrem-se, contudo, por favor, de
que nem todas as perguntas devem ser respondidas.
(Trecho da carta de Ermelinda)

Os 23 efêmeros encartados ao longo de S. – O navio de Teseu foram


produzidos em diferentes papéis, gramaturas, cores e acabamentos como
facas de corte, de vinco, e foram separados neste subcapítulo em grupos
de acordo com seus aspectos funcionais. A proposta foi ressaltar aspectos

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gerais de cada grupo, bem como fazer uma análise semiótica das funções
estéticas, simbólicas e práticas dos mesmos.
Ao utilizar diferentes materiais e técnicas, os efêmeros enganam a
percepção visual do leitor-real, fazendo com que ele vivencie uma possível
verdade através desta materialidade, colocando-se no lugar de cúmplice
e/ou voyer. Cada grupo de efêmeros possui características discursivas e
simbólicas que provocam inferências no leitor-real. Ferrara afirma que
toda a codificação é uma representação parcial – uma relação entre uma
representação presente e outras representações possíveis, eventuais e
virtuais – esta parcialidade é que instiga o interesse e a pertinência do
interpretante. A capacidade representativa de uma linguagem é reforçada
pela percepção de cada sentido em particular: ler, ver, tocar, abrir, fechar,
ouvir, sentir.... Assim, cada efêmero provoca suas próprias inferências,
que, no conjunto, se complementam para produzir sentidos e estimular a
imersão na leitura.
Integrar sensações e associar percepções dizem respeito àquele
complexo ato de recepção. Sensações e associações despertam a memória
das nossas experiências sensíveis e culturais, individuais e coletivas de
modo que toda a nossa vivência passada e conservada na memória seja
acionada.
As cartas, os postais e o cartão S. – O navio de Teseu pode ser
considerado um romance epistolar pelas mensagens trocadas por Eric e
Jennifer e pelos efêmeros. A pesquisa não teve como objetivo aprofundar
no tema romance epistolar, mas sim nos pontos relevantes à análise gráfica
e simbólica deste grupo de efêmeros.
Segundo Gomes, o romance epistolar foi um gênero popular dos
séculos XVIII e XIX e tem como característica principal o
desenvolvimento da história através de cartas impressas, que até então,
seguiam o mesmo padrão da mancha gráfica do livro. No século XX e
XXI, com o surgimento de novas técnicas de impressão, torna-se possível
incluir envelopes, cartas e postais que podem ser manuseados, fornecendo
uma concretude à experiência. Um exemplo é a trilogia Griffin & Sabine,
de Nick Bantock.

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As Cartas
A carta é um canal “onde o processo de comunicação se complementa
com absoluta transparência (...) num mesmo texto estão evidentes o
emitente, o canal, a mensagem, o código, o destino e o receptor”. A
principal função de uma carta é comunicar-se com outra pessoa,
principalmente quando existe um obstáculo que as separam fisicamente.
Da mesma forma o romance epistolar, “é um meio de aproximar o leitor
do personagem, de estreitar as identidades e intimidades”
“O objetivo desta técnica é conceder um tom real à narrativa”, é
provocar uma ilusão de não-ficcionalidade, um efeito de verdade. Em S.,
a ilusão de não-ficcionalidade é intensificada pelo diferencial gráfico de
cada ítem deste grupo como formatos, dobras, gramaturas, tonalidades e
texturas de papéis; e, principalmente, por seus versos diferenciados,
marcas d'água, cabeçalhos, iniciais; incluindo a simulação de empresas e
gráficas e carimbos dos Correios, no caso dos postais. A procedência dos
materiais também é essencial para estabelecer a crença no simulacro, assim
como o uso de diferentes canetas com borrões e rasuras que representam
a naturalidade da escrita. Segundo Gomes:
A carta como gênero ficcional, tratada por Claudio Guillé, apresenta
três importantes elementos: o texto, o modelo de mundo e a aparência de
realidade. A comunicação epistolar ficcional será aceita pelo leitor como
“realidade possível” a medida que incorpora elementos do seu mundo de
referência. Os elementos imaginados se misturam com dados reais
comuns ao emissor e ao receptor.
As cartas possuem um caráter particular, são confidenciais e estão
dobradas dentro do livro. O manuseio e a leitura deste grupo de efêmeros
fazem com que o leitor “espie” relatos íntimos, quando Jennifer e Eric se
abrem e contam fatos familiares, com isto o leitor vivencia as
transformações nos personagens e o crescimento da sua relação.
A circulação dos cartões-postais se diferencia do caráter privado das
cartas, pois, seu conteúdo é público – acessível a qualquer um. Os postais
têm fotos do Brasil e alguns possuem aparência mais antiga do que a data
carimbada, simulando décadas de 1970 e 1980, provavelmente para se
adequar melhor à aparência envelhecida do livro.
22
Cartões Postais
Dois cartões têm propostas diferentes. Um deles é o cartão do macaco
prego que foi criado para acolher o recorte de jornal do suposto obituário
de Caldeira, como a sua morte nunca foi comprovada, este obituário
representa um elemento de duplo simulacro. O macaco é um elemento
importante e recorrente na história de O navio de Teseu, presente nos
doodles, nos textos e neste cartão. Como simbologia representa o
inconsciente e pode ser usado como forma de despistar, principalmente
se for associada à frase “follow the monkey”, que aparece no texto, e à
imagem de rodamoinho e looping também recorrente na história.
O outro é o cartão pessoal de Jean-Bernard Desjardins, de formato
pequeno e com uma moldura, que contém uma citação tirada do romance
de Staka, Coriolis: “uma pessoa não é mais nem menos do que a história
de sua paixão e ações”. De acordo com o blog Who is Straka há um
sentido na imagem do homem segurando um pássaro sobre as rosas. As
rosas são elementos importantes para JJ. Abrams e na literatura em geral,
simbolizam vida, perfeição, significado final, etc. e o pássaro remete a
vários personagens da história de O navio de Teseu.
As fotografias
A fotografia é uma imagem técnica produzida por aparelhos, e,
segundo Mcluhan, teve uma rápida aceitação no mundo letrado por
“propiciar um mundo de gestos inclusivos e de disposições dramáticas
necessariamente omitidas da palavra escrita”. Para Philippe Dubois no
livro O ato fotográfico:
(A fotografia) remete sempre a uma anterioridade, a qual foi detida,
congelada em seu tempo e seu lugar. A imagem fotográfica não é um
espelho neutro, mas um instrumento de transposição, de análise, (…) de
transformação do real”
As duas fotos que aparecem nos efêmeros representam o momento
congelado, impresso e registrado da existência e dos fatos reais, são
elementos comprobatórios.
A foto de Caldeira, mesmo estando borrada, comprova que ela é uma
mulher (e não um homem como era pensado). A fotografia do muro foi

23
encartada por Jennifer e se refere a um túnel de tijolo maciço recentemente
encontrado perto de onde Caldeira cresceu onde se vê a black letter “S”
grafitada. Esta foto do muro representa um “encontro” entre as camadas
da história do O navio de Teseu com a camada da história de Eric e Jen.
Fotocópias de documentos
Este grupo é composto por cinco documentos impressos em papel off
set 120g, no formato letter, sendo dois em pantone roxo, dois em preto e
branco e um colorido. Dois documentos simulam telegramas copiados por
meio de um mimeógrafo, os demais simulam cartas escritas à máquina e
fotocopiadas e o quinto documento é uma página de revista diagramada e
fotocopiada.
O design deste grupo representa uma dupla simulação. Primeiro, os
documentos tiveram que ser criados pensando em suas técnicas originais
e depois tiveram que ser manipulados para simular as tecnologias das
cópias e a interferências destes meios sobre os originais. Para Lyman
Bryson, apud Mcluhan “tecnologia é explicitação”, assim, o design
explicita as imperfeições típicas destas tecnologias: o telégrafo e a máquina
de escrever, com letras tipicamente fora de registro e com sombreados. O
telégrafo se caracteriza pela simultaneidade e confiabilidade no envio da
informação.
Riscos e texturas, defeitos, impurezas e manchas provocadas pela
entrada da luz e da qualidade precária da copiadora, típica do uso em
escolas ou em departamentos públicos como é o caso do Arquito Straka.
A qualidade física destes documentos reproduz texturas concretas com
forte apelo, evocando processos, observações e representações. Os
carimbos na cor vermelha sinalizam que o documento foi carimbado após
a reprodução, demarcando propriedade e autenticidade. De acordo com
Lupton:
A cor pode exprimir uma atmosfera, descrever uma realidade ou
codificar uma informação. Os designers usam cor para fazer com que
algumas coisas se destaquem e outras desapareçam.
De acordo com o Arquivo Nacional, o fator determinante que confere
a um documento a sua condição de documento arquivístico é que ele faça

24
parte de um conjunto orgânico e cumpra uma determinada função ao ser
produzido.
Documentos são a essência de uma organização – servem para
registrar, bem como comprovar a existência e as suas atividades. A
preservação da memória através de documentos permite uma construção
historiográfica.
A carta confidencial de Straka para Sr. Grahan tem duas versões, uma
está na língua original e a outra se trata de uma transcrição para o inglês.
Observa-se que por ser uma transcrição feita posteriormente, o papel
timbrado está diferente, assim como a letra da máquina de escrever. A
versão original está mais desgastada e a letra mais falhada, enquanto a
versão mais recente está mais nítida. O carimbo do documento Straka
também está com duas versões. A textura da fotocópia é diferente,
demonstrando o cuidado dos designers a estes detalhes.
O guardanapo
A ilustração feita no guardanapo por Eric é o mapa dos túneis
escondidos da cidade onde está a faculdade e foi feita no café da Pollard
University. A logomarca do café da escola tem a ilustração de um
antilocapra, animal parecido com o antílope e nativo da América do Norte.
O ato de desenhar em guardanapos é comum em bares e pode representar
um raciocínio, uma ideia, funcionando como “mapa mental”.
A Roda de Eötvös
Eötvös é o nome da roda encartada na última guarda do livro. Ela é
feita em duas lâminas de papel supremo 200g, impressa em quatro
pantones, dourado, azul, vermelho e creme e fixada com um ilhóes no
centro que permite girá-la. Ela tem um vazado no qual se visualizam letras
desvendadas por meio de um enigma proposto no capítulo 10.
Na história de O navio de Teseu, Eötvös também se refere uma doença
fictícia que o personagem Coriolis pega, provocando uma sensação de
desorientação que vai se intensificado à medida que ele segue em direção
ao Equador. Na Wikipedia o efeito Eötvös é descrito como:
No início do século XX, uma equipe do Instituto de Geodesia de
Potsdam efetuou uma experiência baseada em medições de gravidade em
25
navios em movimento nos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico. Enquanto
estudava os resultados desta experiência, o nobre e físico húngaro Loránd
Eötvös (1848-1919) verificou que as medições eram menores quando o
navio se movia para oriente e maiores quando se movia para ocidente. Ele
identificou este fenômeno como consequência principal da rotação da
Terra. Em 1908 foram efetuadas novas medições no Mar Negro com dois
navios, um movendo-se para oriente e outro para ocidente. Os resultados
provaram a teoria de Eötvös.
O círculo e o movimento circular são elementos presentes em toda a
história de O navio de Teseu e no conceito do livro S. – O navio de Teseu,
representado por meio de vários elementos visuais.
Jornal The Daily Pronghorn
A lâmina de jornal encartada no livro é uma simulação de uma
publicação da Universidade Pollard. Foi diagramado em um grid de cinco
colunas, possui manchetes, subtítulos, anúncios, fios de diferentes
espessuras, fotos, vinhetas, cabeçalho, rodapé e olhos que ressaltam alguns
trechos no meio das colunas. As tipografias usadas são serifadas, bastões
para os textos de olho e uma black letter na logo do jornal. Foi impressa
em um tipo de papel Pólen creme 120g. Publicações universitárias têm o
objetivo de promover uma maior integração entre os estudantes,
professores e funcionários, fornecer notícias relativas ao campus mas
também amenidades e informações gerais. Este efêmero fornece uma
informação complementar sobre um motim envolvendo Eric e no verso
têm matérias referente a acontecimentos diversos cotidianos, que nada
têm a ver com a história, provocando uma espécie de pausa na leitura de
S..

26
Sequência de Leitura

Essa é uma obra rica em detalhes. Não é um livro para ser lido com
pressa. Embora tenha pessoas que dizem que o leu em uma semana, outras
demoraram, pelo menos 20 ou 25 dias. Tudo depende do seu tempo. Mas,
ele não é um livro para ser lido de maneira corrida e sem prestar atenção
aos detalhes.
Então acalme-se; saboreie e curta essa leitura única! Explore a obra.
Explorar no sentido de apreciar cada pedacinho. Observar caixa "S.", o
livro " O Navio de Teseu", a lombada, os anexos (sem tirá-los da ordem)
e maravilhar-se com a composição dela.
Feito isso, inicie a leitura pelo livro central, sem pressa, por completo.
Leia O Navio de Teseu (ONDT), incluindo notas de rodapé e anotações
a lápis de Eric. Na parte a lápis está a voz solitária de Eric, antes da entrada
de Jen na história. Dê bastante atenção à introdução do livro.

27
1º período – Eric, lápis
As primeiras mensagens de Eric foram escritas à lápis, Jennifer ainda não
fazia parte da trama. São anotações solitárias e ele ainda tinha cuidado de
preservar o livro – o grafite pode ser apagado.

• 2º período – Jen, caneta azul; Eric, caneta preta


Neste momento, Jennifer entra em cena e passa a pegar o livro na
biblioteca, iniciando a escrita com caneta azul. Suas mensagens são
respondidas por Eric com uma caneta preta, podendo ser uma forma de
“marcar território” e dando um destaque maior às suas mensagens.

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• 3º período – Eric, caneta verde; Jen, caneta laranja
Se refere a um período intermediário entre eles. Tentaram marcar alguns
encontros e desvendar alguns mistérios, mas ainda não havia nada de
concreto.

• 4º período – Eric, caneta vermelha; Jen, caneta roxa


Eles passam a utilizar canetas de ponta mais grossa e há um aumento de
intimidade entre os dois.

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• 5º período - Eric e Jen, caneta preta
O uso da mesma caneta indica que os dois estavam juntos.

Durante a leitura é recomendado ter uma lista com os nomes dos


possíveis candidatos ao misterioso Straka. Quando terminar você
conseguirá responder a várias perguntas.

* Quem é F X Caldeira.
* Quem tem mais chances de ser Straka.
* Quem é o homem que persegue Eric.
* O que houve com Sola.
* Quem é o homem que persegue S.
* O desfecho de ONDT e várias outras coisas.

O maior conselho a se dar é simplesmente absorver cada parte da


experiência de S. sem pressa, no seu tempo, explore, questione, pense sobre
o livro. E, se quiser, junte-se a outras pessoas, online, ou presencialmente,
para explorar os mistérios de S. O livro é um grande quebra-cabeça, cheio
de pistas nas páginas, nas margens, nas notas, nos encartes. Há códigos
para se decifrar, respostas para se encontrar. Quem sabe ler o livro mais
de uma vez. O importante é aproveitar a experiência e se divertir.

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Universo Expandido

Não só as mensagens de Eric e Jennifer, as notas de Caldeiras ou os


efêmeros encartados fornecem a hipertextualidade no livro impresso S. –
O navio de Teseu. Quando Eric e Jennifer mencionam os livros antigos
de Straka ou sobre o seu suposto assassinato em Havana, algumas imagens
podem ser encontradas na internet. No livro impresso, os textos paralelos
à obra literária como guardas, orelhas, quarta capa, prefácio, dedicatórias,
epígrafes, etc. são chamados de paratextos digitais, um conceito cunhado
por Gérard Genette.
O texto raramente se apresenta em estado nu, sem o reforço e o
acompanhamento de certos números de produção, verbais ou não (...), que
em todo caso o cercam e o prolongam."
Marina Burdman, relaciona o conceito de Genette com as narrativas
que têm continuidade nas mídias eletrônicas:
A circulação de textos literários pela internet sinaliza uma progressiva
independência desses textos em relação ao meio impresso e aponta para
novas formas de interação entre autor e leitor (...). À luz destas
transformações, pretende-se repensar a relação entre obra e paratextos,
definidos por Gérard Genette como aparatos que giram em torno do texto
principal de um livro. Com o maior trânsito do leitor, eles exercem novas
funções e ganham importância em relação à obra considerada principal,
seja dialogando com outros textos, contribuindo para as vendas ou
conferindo popularidade ao autor midiático.
A relação de paratextos digitais de S. – O navio de Teseu, oficiais da
Bad Robot estão listados a seguir.

Teaser The stranger: https://www.youtube.com/watch?v=FWaAZCaQXdo


Booktrailer oficial: https://www.youtube.com/watch?v=LIyH96fCWGg
Trailer S.: https://www.youtube.com/watch?v=OuZfpt8nxtk
Vídeo S.earch: https://www.youtube.com/watch?v=tsz4vJuvfE0
Radio Straka: http://www.radiostraka.com/
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Blog EOTVOS wheel: http://www.eotvoswheel.com/
Blog Who is Straka: https://whoisstraka.wordpress.com
Audio Confissão Summersby: https://www.youtube.com/watch?v=_L-
THM1VxHE

Lista de sites brasileiros com material relevante:


https://www.intrinseca.com.br/livro/579/
https://www.intrinseca.com.br/jjabrams/
https://www.intrinseca.com.br/blog/2011/06/j-j-abrams-mas-pode-chamar-
de-sr-misterio/
https://www.intrinseca.com.br/blog/2015/11/o-quebra-cabeca-literario-de-j-j-
abrams/
https://www.intrinseca.com.br/blog/2015/12/perdidos-no-mundo-de-j-j-
abrams/
https://www.intrinseca.com.br/blog/2015/12/as-primeiras-pistas-de-s/
https://www.intrinseca.com.br/blog/2015/12/j-j-abrams-me-proporcionou-
suspiros-editoriais-mas-fez-com-que-eu-acordasse-uma-vizinha-idosa/
https://www.intrinseca.com.br/blog/2016/01/quando-um-desafio-de-j-j-
abrams-cai-na-sua-mesa/
https://www.intrinseca.com.br/blog/2016/01/a-caligrafia-de-s/
https://www.intrinseca.com.br/blog/2016/02/semana-especial-sobre-s/
https://www.intrinseca.com.br/blog/2016/06/s-de-j-j-abrams-esta-de-volta-as-
livrarias/
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/34547/34547_3.PDF
https://alemdolivro.com/2016/01/14/s-j-j-abrams-e-doug-dorst/
https://ilhadeobsidiana.wordpress.com/
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12936/Disserta%C3%A
7%C3%A3o_Doretto.pdf?sequence=3&isAllowed=y
https://www.researchgate.net/publication/346852886_Por_dentro_dos_camin
hos_de_S_de_JJ_Abrams_e_Doug_Dorst_as_acoes_de_lancamento_da_edicao
_brasileira
https://www.youtube.com/watch?v=a9xIAcNZwSQ

Capas de Miraklet i
Braxenholm e The
Winged shoes of
Emydio Alves

32
Fotos do quarto do hotel em Havana

Evidências do assassinato de Straka.

Homem de Santorini.

33
Marie-Hélène Bouhard.

Blog For What it’s Worth, de Jennifer

http://jenheyward.tumblr.com/

O obituário de Straka no jornal de Baltimore.


34
35
Crítica à Straka na revista McKay's, de 1952.

36
Versão do cap. 10, enviado para Jennifer.

O Capítulo 10 encontrado por Jen

Segue abaixo a tradução do material que a Jen recebeu. O texto do


suposto capítulo original de Straka substitui tudo que está em O Navio
de Teseu a partir da terceira palavra da segunda linha da página 451 em
diante.

==========================================

VLP00002304954988 - Trabalho: 00273

Para: Heyward, J

Querida Heyward,
Estou te enviando o texto traduzido. Espero que isto lhe seja útil.
Espero ter notícias suas.
Saudações,
I. Svobodová

——————————————————————————-

37
Tradução Tcheco/Português de EPH-9990 (00273)

destruída. Mas deve circular. Não deve ser contida. E Vévoda é o único
que a contém. Assim, a tarefa permanece. Quando ele e Sola a
completarem, eles subirão estes corredores e ressurgirão no mundo. Pode
haver Agentes à espera, mas haverá mais trabalhadores, e todos eles
carregarão machados e cinzéis e outros implementos que eles podem usar
para destruir estes barris e deixar o vinho preto…

Ele cheirou: um cheiro rançoso cortando o olfato e a terra através da


névoa azul-escura. Ele o reconheceu no momento em que sentiu o puxão
da perna da calça. O macaco, de alguma forma, parecia estar bem mais
vigoroso e de sua boca desdentada saiu uma vocalização de um tipo que
S. nunca ouviu antes, livre de provocação, condescendência ou irritação.
Soa – e aqui, S. se pergunta se o ar nas adegas está enevoando a sua mente
– como se o macaco estivesse imitando a execução das notas no último
apito de S. para Sola.

O macaco levanta uma das mãos, mostrando a S. um pedaço irregular de


uma rocha cinza-escura, girando-a para frente e para trás como se
esperasse que a luz do bulbo acima deles capturasse uma de suas facetas e
a fizesse brilhar. Quando S. sussurra – eu não entendo –, o macaco vai
direto para o próximo barril e bate a rocha contra a superfície, circundando
a tampa do barril. Os sons são altos, afiados e ecoantes; todo mundo na
adega pode ouvir, e já ouviu. S. cambaleia em direção ao macaco, para
agarrá-lo, mas pega apenas um tufo de pelos que fica na sua mão. Então,
com força e destreza surpreendentes, o macaco retira a tampa do barril,
que estava frouxa, e derrama o vinho negro, que arqueia ondulando para
fora, formando uma poça na terra comprimida. O cheiro rodopia em
torno dele… sagrado. O espírito vive. Ele ouve um zumbido débil e
eufônico de vozes e se aquieta para escutar mais de perto. E o brilho azul-
escuro na superfície das poças – isso, isso é a coisa preciosa que captura a
luz. Ele forma uma concha com as mãos, para provar…

O chamado de socorro de Sola, e um grito masculino. Qual veio primeiro?


Há quanto tempo ele está vacilando embriagado? Há quanto tempo ele
está parado?

Esta é a escolha que ele faz: ele corre para frente, mais profundamente na
adega, em direção a ela. Ele deixa para trás o macaco, que dispara para o
próximo barril. Os sons de rocha sobre o carvalho começam novamente.

38
Ele tropeça quando o caminho repentinamente mergulha, quebra o ombro
ao bater no aro de um barril e se esparrama, ralando o chão com o joelho,
o queixo e a palma da mão. Seu primeiro pensamento é em Pfeifer, de
estar imobilizado, incapaz de continuar, incapaz de salvar a si mesmo ou
a aos outros, mas ele é capaz de se levantar. Da escuridão, em algum lugar,
ouve-se uma tosse, um gorgolejo. O macaco, sem dúvida, provando do
fruto de seu trabalho. S. manca, anda e corre. Sem ossos quebrados. Dor
e nada mais. E a dor o desperta plenamente para algo que ele deveria ter
entendido completamente há muito tempo atrás: mais importante do que
frustrar Vévoda, mais importante do que a preciosa história e a circulação
da verdade, é Sola. O que é mais importante para ele é Sola. Sua história.

Ela já sabe disso? Deveria saber.

Uma nota do apito dela, mas uma que ele reconhece apenas como a
primeira sílaba de uma chamada mais longa. Sem o resto, seu significado
é impreciso.

Ele chama de volta, uma nota, para reconhecimento. Eu posso te ouvir.


Implicitamente, ele espera, significa: eu estou chegando. Eu estarei lá em
breve. Faça o que for preciso para se manter segura. Ele não pode mais
esconder sua posição, de qualquer forma, não com o barulho do macaco,
o que importa é a sua mensagem, ele cobrir a distância até ela por meio da
escuridão.

Mais profundamente na descida retorcida, há vozes, várias masculinas, e a


dela. Para frente, enquanto em algum lugar atrás dele, em algum lugar nas
adegas onde, também, a não pode alcançar, o macaco destrói e, S. imagina,
se lança bêbado através de sua destruição.

Vévoda saúda seus convidados, monarcas depostos que com a sua ajuda
retomarão seu governo dentro de um ano. Um marido e mulher. Pessoas
frívolas, mas bem capitalizadas, e parecem estar se divertindo em meio a
essa cena inesperadamente dramática. Eles nunca experimentaram um
desafio tão direto, uma ameaça física. Nem ele, é claro, mas seus Agentes
sim, que é o que importa. Essa primeira impressão o deixou ambivalente.

A mulher bebe enquanto o marido ajuda o Agente a completar os arranjos.


“Você tem uma bela coleção”, ela diz.

“O vinho os atrai”, Vévoda diz. Eles levantam os copos um para o outro,


celebrando seu entendimento.
39
O marido se levanta, mancha o seu colete com um lenço. Limpa a testa.
Franzindo para a faixa azul-escuro que aparece.

O Agente endireita o chapéu. A resistência o tirou do lugar por um grau.


A próxima vez que o apito toca, Vévoda acena para ele, mandando-o fazer
o seu trabalho.

As vozes agora soam conversacionais. O silêncio o preocuparia, mas ouvir


a calma deles é aterrorizante. O som de um Agente se aproximando é
meramente chato, pois requer sua quietude. Ele se agacha à sombra de um
barril na parte mais escura da passagem, a meio caminho entre a luz de um
lado e a luz do outro. Esses são os passos de um homem que anda
destemido, que é certo de que vai se dar melhor do que qualquer oposição
que ele encontrar. S. retira sua faca da bainha. Ele espera que o Agente
acelere seu ritmo. Sola é tudo o que importa.

Seu nariz se enche com o rico e fedorento cheiro de pêlo sujo ensopado
no líquido azul-escuro. Ele vira a cabeça e encontra o macaco lá, ao nível
dos olhos. Ele abre a boca, mas não faz nenhum som, como se soubesse
melhor. Sua respiração, apesar do vinho cobrir sua boca, é o mau cheiro
da decadência. Mas lá, nas sombras, o macaco se senta, e S. tem pouca
escolha senão sentar-se silenciosamente ao lado dele e ouvir aquelas vozes
à frente. Onde está a raiva, o som do confronto e da luta? O até mesmo
do triunfo?

O Agente passa por ele, com sobretudo e fedora. Ele é um homem jovem,
alto e atlético, todo confiante e com o queixo levantado. Mas o que lhe
falta é cuidado, e S. o despacha antes mesmo que o Agente percebesse que
estava em perigo.

Enquanto o corpo do homem treme em seu fim, quando a vida se


escorrega na terra, S. não faz nada além de limpar sua lâmina. No
momento seguinte, o Agente não é nada, e S. permanece-o que? Uma
fúria? Um propósito? Um fim adequado?

S. segue em frente.

No meio da escuridão: uma dispersão de notas assobiadas, como se


fossem lançadas descuidadamente ao vento. Não é um sinal que ele
entende. Não é a linguagem deles.

40
A legítima princesa ri baixinho para si mesma. O que é divertido, estar
cheia dos mais belos vinhos e se afastando calmamente como um canário!

Mas seu anfitrião aparece de repente. Ele é um homem pequeno e


encantador, vestido de forma imaculada, e com aqueles cabelos
branquíssimos, as pontas do bigode vibrando para ela quando ele oferece
um sorriso malicioso! Ele é o anfitrião deles e, como tal, seu desconforto
é ser perfeitamente franco sobre a coisa toda, mais do que um pouco
imprudente. Ela espera que não piore e se torne rude. Ela não quer gostar
do homem. Ele será extraordinariamente útil para eles, e ela não gostaria
de se sentir em dívida com uma pessoa rude. E agora, uma linda pistola na
mão dele! Acenando!

“Meu Deus”, ela diz baixinho para o marido. “De onde saiu aquilo?”

O marido dela não responde. Ela não esperava que ele fizesse isso. Ele
não desviou o olhar das prateleiras desde que terminou de ajudar o Agente
naquela tarefa mais excitante. É compreensível, ela supõe, mas ainda é um
pouco rude, mesmo pra ele.

Para frente.

O macaco corre junto com ele, tão perto ao ponto de estar quase debaixo
dos pés, mas eles não se embaraçam, nem sequer se tocam. Os dois podem
muito bem ser apenas um.

Eles cometem erros ao seguirem a voz – agora é apenas uma voz, e S. tem
certeza que é a voz de Vévoda. Eles seguem caminhos que terminam em
becos sem saída, hesitam em bifurcações antes de escolher incorretamente
e ter que voltar atrás. S. se ressente do macaco por não ter um senso de
direção animal mais afinado. Ele imagina – mesmo enquanto corre,
mesmo enquanto se esforça para se fixar na localização da voz – a vida
que ele e Sola podem esperar quando eles retornarem para a superfície, o
vinho derramado, seu trabalho completo. Ele imagina os dois embarcado
no navio, as expressões de admiração da tripulação, abrindo-se para a
passagem do pirata, e deixando que o vento os leve livremente pelos
oceanos. Ele mantém essa visão com um cenário perfeito: um céu
alaranjado, quase tímido, ao entardecer; uma forte brisa morna enchendo
as velas; seu rastro embranquecendo a água atrás deles, sempre e para
sempre marcando onde eles estiveram, mas nunca precisarão voltar
novamente. Isto é o que ele espera, se eles puderem encontrá-la a tempo.

41
Mas, ao se acalmar em sua visão, ele a corrompe: de pé, com ela, naquele
navio imaginário, o pavor cresce dentro dele. O sol, o vento – nem um
nem outro, nada disso pode derrotar o pavor que surge quando ele percebe
que aquelas águas estão minadas. Ele sabe disso, de alguma forma, sabe
que é loucura fingir que estão seguros, que eles são qualquer coisa, menos
condenados. Não vai demorar muito para que eles atinjam uma. O mais
habilidoso dos pilotos não conseguiria orientá-los. Esses dispositivos, um
dos quais salvou sua vida uma era atrás, vai matá-lo, e vai matá-lo no exato
momento em que ele mais vai querer viver.

Seu hospedeiro engatilha a arma. Uma arma tão potente, mas pequena e
discreta! Sua grosseria à parte, tudo é muito emocionante.

A física do som coopera, finalmente, e quando o som do gatilho armado


chega aos ouvidos de S., ele sabe exatamente de onde o som veio. Ele
pode ver, à frente, o caminho se dividindo em um T; quando ele e o
macaco virarem a esquina para a esquerda, ele vão encontrar o homem
segurando a pistola. É tarde demais, e ele está muito perto, para se
preocupar com a furtividade. Sua vantagem vai estar em sua velocidade,
em sua ferocidade, em sua necessidade absoluta de encontrá-la. O macaco
grita, soa como um barulho de guerra. S. aperta o cabo úmido da faca e
eles viram a esquina.

S. vê a pistola, acenando erraticamente enquanto é brandida; ele nota


quatro barris de vinho arrumados a esmo em um canto, é assustador o
quão bem iluminado é o cômodo, a intuição diz que a sala é um retângulo
e que ele e Vévoda – este homem de cabelos e barbas brancas, pequeno e
ansioso – vão enfrentar um ao outro no único ponto de entrada ou saída.
Ele se arremessa contra o homem com a arma de fogo, notando duas
outras pessoas no espaço e um aparador na parede oposta e sabendo que
se Vévoda conseguir atirar, a bala não vai o atingir, porque Vévoda não
tem treinamento nem coragem; ele fabrica armas, mas nunca teve motivos
para usá-las.

Só depois que a pistola dispara e a dor atinge sua clavícula é que ele percebe
o que o seu reconhecimento instantâneo não revelou. Onde ela está?

A bala vai além, levando sua pele e seu sangue. Ela ricocheteia em uma
parede de terra, perfura um barril e se aloja no líquido dentro dele.

A faca desliza de sua mão apertada. Faz barulho no chão, uma superfície
de pedra lisa e polida.
42
A pistola faz o mesmo.

Eles caem como um só, S. acima e Vévoda preso embaixo. Perto, tão perto
quanto a pequena estrutura lutando embaixo dele, uma dor atravessando
seu tronco e a sala incandescente. S. ouve um grunhido furioso vindo da
garganta de alguém, embora ele não saiba se é de Vévoda ou dele mesmo.

O macaco aparece ao lado deles, gritando, levantando-se com uma pedra


na mão. S. vê claramente o rosto do animal, seu pequeno queixo se
estendendo orgulhoso, sua boca simples e larga, toda a força em seu corpo
pronta para florescer. O tempo avança quando o macaco desce com a
pedra. S. vira a cabeça e ouve os sons da rocha contra osso, e do osso
cedendo. Uma, duas vezes, várias outras vezes mais. E assim por diante.

S. rola para o lado, enxuga o rosto, espera até que a respiração retorne.

Sola. ele não a viu e ele não a ouviu porque ela não está mais lá. Eles não
vão ascender para a luz do sol juntos, eles não vão embarcar juntos no
navio. Ele nunca vai ter motivo para temer onde as minas podem estar
escondidas na água; ele nunca vai ter a fortuna da preocupação.

Ele se levanta, se mexe. Há pinturas nas paredes aqui. Há uma mesa baixa
com um decantador e cristal. Do outro lado da sala, há uma mulher em
um vestido roxo, puxando a mão do homem ao lado dela.

“Bem”, diz a mulher. “Eu espero que você não…”, ela não termina.

S. a encara, demorando a entender o que ela quis dizer. Ela puxa o homem
junto a ela, passando por S. e o macaco e os restos de Vévoda. Ela está
usando o apito de Sola em seu pescoço, mas S. não consegue pensar em
uma razão para pará-los, e assim eles desaparecem no labirinto do porão.
Ele se move em direção ao espaço onde eles estavam, na frente do suporte
dos barris, porque agora ele vê que eles não estão todos vazios. O suporte
abriga três corpos, cada um com a face para cima, cada um com os pés na
parede e as cabeças inclinadas para trás, sobre a borda. A gravidade arqueia
as gargantas. Os rostos retorcidos e respingados, riscados em azul-escuro.
Na pedra lisa estão os respingos, os fluxos e as finas partículas assentadas
de uma névoa azul-escura. Em uma parede adjacente, um borrifo de azul-
escuro, padronizado como um tiro de espingarda. Ele sabe – sem sequer
registrar os trajes de empregados – que o corpo mais próximo é o de Sola.

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O vinho negro ainda está pingando de sua boca. Seus lábios ainda úmidos.

As vozes se levantam novamente, dobrando-o, mas ele se endireita e se


aproxima, com uma das mãos presas na ferida do ombro. Os rostos estão
escuros demais para que ele enxergue as feições até que ele esteja perto.
Sola. Khatef-Zelh, tão jovem, do mesmo jeito de quando ele a conheceu
em El-H___. Corbeau, como ela estava no cais, nas colinas, na caverna,
no ar. E agora, ele vê, um quarto corpo, pequeno, aninhado entre a menina
e Corbeau: um recém-nascido. O bebê do Território, ele percebe, enfim,
embora seja difícil dizer.

Sola não deveria estar aqui. Nenhuma delas deveria estar aqui. Mas elas
estão todas aqui e isso porque ele falhou com elas. Todas elas.

O barulho em sua cabeça: todas as vozes de todas as cidades, todos os


gritos e a estática dos céus sobre o mar, todo o estrondo das bombas
caindo na terra. Todo o barulho dessa vida de fracassos, uma vida que
nunca foi a sua própria, para começar.

Você joga sua pedra para longe, vê ela girando e quicando pelo chão. Você
estica seus membros rígidos. Os olhos semi-cerrados do homem estão
abertos, mas você ignora isso. Você sabe quando uma coisa está morta.
Porque você pensaria em olhar para um olho morto?

Do outro lado da sala, o homem transparente ergue as mãos e as pressiona


sobre as orelhas, enquanto a ferida no ombro dele sangra livremente. Ele
treme. Ele se sacode com tanta força que você pode ver milhares de
contornos masculinos borrados se agitando dentro dele. Ele cai em um
joelho, no outro, no chão.

Seus sentidos são aguçados – você é feito de sentidos – e do outro lado da


sala você consegue ouvir as vozes na cabeça dele. Tantas vozes,
desesperadas, enfurecidas, aflitas, sem esperança, e todas elas são dele.

Mil contornos se agitam, mas o homem permanece parado. Sua roupa é


toda sangue e vinho negro. Você chama por ele, mas ele não se move.

A quietude dele te perturba. Por que sentar com os mortos?

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Ocorre a você pela primeira vez que esse homem nunca soube que ele é
transparente. Mas por que você deveria ter percebido isso antes? Como
uma criatura poderia falhar em entender uma coisa tão fundamental sobre
si mesma? Você conheceu o homem transparente há muito tempo, e isso
sempre foi o que ele é.

Mas enquanto você o assiste, caído, os milhares de contornos se agitando,


você consegue sentir o espaço dentro dele escurecendo, engrossando.

Você é velho. Você viu de tudo. Você não viu isso.

O homem agora tem apenas dois desejos. Seu perfume os leva até você.
Ele quer pegar a faca e esculpir uma forma estranha na cara fechada do
outro homem, ou talvez na pele pálida e com pelos brancos de seu ventre,
mas ele não acha que é suficiente. O seu segundo desejo é acender um
fósforo. Isso te alarma. Você está encharcado no vinho negro, e você sabe
do destino. É instintivo.

Você se estica novamente, e se aproxima. Cutuca o homem com seu dedo.


Grita em seu ouvido. Levante-se, você diz para ele. Se mova. Ele não
conhece a sua língua, mas ele sabe o significado. Se mova. Levante-se.
Ande, porque isso deve ser feito. Você não fica no subsolo com os mortos.
Você sobe, você emerge, você respira. Então você encontra o caminho
para a água. Onde há água, há um navio, então é para onde você vai.

Você o belisca, bate na face dele. Você pega o braço dele que não está
sangrando e puxa. Ande, homem, ande.

Mas ele não se move, não fica em pé, não anda, então você se senta, você
se acalma, e você pensa. Você se pergunta se, todo este tempo, se houve
algo essencial sobre ele que você falhou em entender.

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Índice de Encartes

No total o S. – O Navio de Teseu possui 23 encartes, caso você tenha


retirado de ordem, basta seguir a lista abaixo para realocá-los aos seus
locais originais.

REFERÊNCIA PÁGINAS

Fotocópia de carta confidencial de Straka vii

Lista em folha de bloco da Pollard State University 011


Fotocópia da Revista de História e Humanidades de
021
Toronto
Jornal The Daily Pronghorn 033

Telegramas 055

Fotocópia colorida do jornal Lampa 069

Carta de Desjardins 087

Carta cinza de Jennifer para Eric 101

Cartão-postal "Lembrança do Brasil" 113

Fotografia de portal de pedra 131

Cartão-postal "Aves Nativas do Brasil" 179

Cartão-postal de palmeiras 191

Cartão-postal da praia de Ipanema 193

Cartão-postal "Pictorial Brazil" 201

Carta em papel pautado amarelo 203

46
Fotografia antiga de mulher 243

Obituário de F.X. Caldeira 257

Cartão de macaco-prego 257

Mapa no guardanapo 307

Cartão de Jean-Bernard Desjardins 361


Carta para Eric em papel timbrado da Pollard State
377
University Libraries
Carta de Ermelinda Pega 417

Roda de Eötvös Guarda

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