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© 2023 Wizards of the Coast.
1ª edição

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A todos os jogadores de Magic

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Sumário

ASSALTO EM NOVA PHYREXIA ....................................................... 10


DESCIDA DESCONTROLADA ............................................................ 11
FUNDAÇÕES INSTÁVEIS .................................................................. 31
PERDAS INCONCEBÍVEIS ................................................................. 52
CHANCES IMPOSSÍVEIS ................................................................... 74
RESOLUÇÕES INEVITÁVEIS.............................................................. 95
PHYREXIA: TUDO SERÁ UM .............................................................. 116
CINZAS .......................................................................................... 117
UM CORPO VAZIO......................................................................... 137
DURO COMO A RAIVA, CLARO COMO A ALEGRIA ........................ 157
UM HOMEM DE PARTES ............................................................... 178
SOZINHO ....................................................................................... 204

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ASSALTO EM NOVA PHYREXIA

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EPISÓDIO 1:
DESCIDA DESCONTROLADA
Seanan McGuire

Se alguém tivesse perguntado a Kaito o que ele esperava


encontrar em Nova Phyrexia, ele não saberia dizer. As informações
que todos tinham à disposição quando chegaram eram inconclusivas
demais em certos aspectos; além disso, ninguém havia
testemunhado um plano totalmente completado e sobrevivido para
contar a história. Eles haviam recolhido dados, realizado operações
de reconhecimento e tudo mais para se preparar para a incursão,
mas ele ainda não sabia o que estava esperando — apenas, de certa
forma, o que não estava esperando.

Arte por: Igor Kieryluk


Ele certamente não esperava o sentimento de bater numa parede
de vento eletrostático — não o suficiente para causar dano real, mas
o bastante para desorientar, distrair e, inevitavelmente, levar embora
sua consciência.
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E, agora que isso aconteceu, ele certamente não esperava que
Nova Phyrexia parecesse uma das praias turísticas mais agradáveis
de Kamigawa. O que ele conseguiu ver de Nova Phyrexia foi uma
faixa de areia intacta, sem sinal de que nada mais perigoso que uma
queimadura solar havia acontecido por lá. Era agradável. Agradável
demais. Nova Phyrexia não era um perigo, era um paraíso, e ele
deveria relaxar e deixar que tudo o envolvesse como a onda de um
mar acolhedor.colapsou colapsou .
O quebrar das ondas ecoou em seus ouvidos conforme ele
fechou os olhos e se afundou ainda mais na areia. Parte dele sabia
que Phyrexia reconheceria sua presença em breve, reagindo da
mesma forma que qualquer fera perigosa reagiria a um intruso. Uma
pequena centelha de coerência nas margens de sua consciência
gritou implorando-lhe para acordar, acordar, sair dessa!
Phyrexia era um perigo. Ele não estaria aqui se Phyrexia não fosse
um perigo. Kamigawa estava em apuros, e era seu dever fazer o
possível para proteger tudo aquilo que ele sempre estimou. Seus
amigos, seu plano, sua irmãcolapsou colapsou .ele veio aqui para
salvar todos eles.
Mas a areia era quente e acolhedora, e ele não conseguiu
encontrar forças para se mover até que mãos pequenas e fortes o
agarraram pelos ombros e o colocaram na posição sentada. Elas
tinham um toque familiar, como um par de mãos que ele deveria
conhecer. Elas também pareciam um ataque e, por isso, ele se
debateu, tentando escapar. A pequena porção da sua mente que
começara a gritar antes gritou ainda mais alto, tentando lembrá-lo
de que resistir deveria ter sido sua primeira ideia, sua primeira reação
ao primeiro sussurro de ação hostil, mas não: só o debater-se inútil
pareceu adequado.
Uma dessas mãos pequenas e fortes soltou seus ombros e ele
conseguiu se libertar brevemente, pronto para se afundar
novamente na paz e no prazer, antes de sentir um tapa no rosto que
o acertou bem abaixo do olho, com tal força que ele ouviu o estalo
tanto quanto o sentiu. Ele recuou com os olhos abertos e, pela
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primeira vez, se deu conta de que aquilo que pensava ser sons de
ondas eram, na realidade, metal colidindo com metal, mágicas
atingindo seus alvos e grunhidos de esforço. Alguém gritou e ele
soube, sem dúvida nenhuma, que, antes do golpe, o som teria
parecido uma ave marinha voando sobre sua cabeça — se é que ele
conseguiria ouvi-lo.
“Pronto”, disse a Errante com satisfação, soltando seu outro
ombro e agitando suas mãos para se livrar da força do impacto. Os
nós de seus dedos, embora vermelhos, estavam intactos. “Estava me
perguntando quando você se juntaria a nós.”
“Juntar...?” Kaito pausou, enquanto seus pensamentos se
voltavam para a parede de vento estático. A parede que ele
acreditava ter sido agradável, até mesmo pacífica, poucos momentos
antes. Mas ela foi, não foi? Ela foicolapsou colapsou .foicolapsou
colapsou .foi algo de que ele não conseguia se lembrar, exceto pelo
som de gritos. Alguns deles podem até ter vindo dele mesmo.
Ele tateou instintivamente à procura de sua espada, com o corpo
subitamente tomado por uma adrenalina que deveria ter chegado
desde o princípio, e congelou ao se dar conta de que seu
equipamento havia desaparecido. Sem espada, sem o pequeno
espírito amigável que emulava um zangão tanuki em forma e função.
Phyrexia o havia golpeado enquanto ele deveria estar intocável,
desnudando-o no mesmo instante. Seus olhos se voltaram para a
Errante a tempo de vê-la desaparecer momentaneamente,
esfumaçando-se como uma vela que chegou ao fim.
“Não”, ele disse, balançando a cabeça com ferocidade. “Não.
Você precisa de mais tempo. Eu preciso de mais tempo. Você não
pode ir embora antes de me dizer o que eu perdi.”
“Uma — barreira", ela disse. “Não esperando, e parece ter —
bloqueado minha capacidade de me ancorar. Não posso — ficar
aqui. Perdendo controle. Preciso — dizer a você —” Um olhar de
profunda frustração se apossou do seu rosto e ela se virou,
apontando para um local um pouco além do ombro direito de Kaito,
“Nahiri! Pare — de brincar — com essa coisa!”
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Kaito se virou, contrariado como estava por desviar os olhos da
Errante quando ela estava tão perto de desaparecer, e avistou Nahiri,
com espada empunhada e o rosto levemente ruborizado pelo
esforço. O calor do seu sangue evidenciava o tom ardósia da sua
pele. Ela estava dançando — não, lutando com uma figura que
parecia ser formada de metal líquido implantado com cabeamento,
um sonho delirante de poesia mecânica que escapou da bancada do
seu inventor e se virou contra o mundo. Parecia impossível que
qualquer um, mesmo a litomante, conseguisse lutar contra a
construção e vencer.

Arte por: Chris Cold

Em seguida, o ar reluziu ao seu redor, inflamando-se com um


estrondo alto como um trovão, conforme Nahiri convocou a
cintilante areia metálica de Nova Phyrexia para se juntar à sua dança.
A areia levantou, grão a grão, e rodopiou ao redor da Planeswalker,
numa tempestade mais mortal que sua saraivada de lâminas de
pedra, quebrando sobre a figura lutadora e sobrepujando-a
conforme invadia seus mecanismos expostos e condutos nasais. O
oponente de Nahiri havia sido destruído em um piscar de olhos.
Conforme ele caía, Nahiri estava presente, dando um passo à
frente e atravessando sua espada principal pelo centro da criatura.
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Ela se retorceu uma vez e, de repente, a forma por baixo do monte
de areia ficou imóvel.
"Nahiri", gritou a Errante, com uma voz tão forte que, por breves
instantes, Kaito ousou ter esperança de que ela estava se
estabilizando. Ele se virou na direção dela, e seu coração afundou.
Ela continuava aparecendo e desvanecendo, perto de ser puxada de
volta para as Eternidades Cegas. Deve ter sido necessária uma
enorme força de vontade para ficar, nem que seja por tão pouco
tempo.
Nahiri caminhou sobre as areias de metal com a facilidade de
quem caminha sobre o chão firme, parando para virar a cabeça na
direção de Kaito antes de se concentrar na Errante. “Chamou?”
A Errante franziu a testa. “Embaralhado por mais tempo — que
— necessário explicar — o que ele — perdeu”, disse ela, com um
estranho espaçamento entre as palavras conforme saía de fase
demais para ser ouvida.
"Certo", disse Nahiri. Ela se focou em Kaito. “Não sei se eles
sabiam que estávamos chegando ou se são apenas monstros
paranoicos, mas batemos em algum tipo de escudo planar quando
invadimos Nova Phyrexia. Deveríamos estar bem. Obviamente não
estávamos. Não sei onde a maior parte da equipe foi parar. Nós três
caímos aqui. A areia pegou você?”
Kaito acena com a cabeça, entorpecido.
“Me pegou primeiro também”, disse Nahiri. “Para a minha sorte,
todo este lugar é feito de metal — não metal normal, mas próximo
o suficiente para meus propósitos, ainda que essas coisas prefiram
nos ferir do que nos ajudar. É uma arma passiva. Ainda assim, pode
matá-lo se você permitir. Eu me agitei para tirá-la de mim e
encontrei a Errante ao seu lado, alternando para dentro e para fora
do plano. Não sei se ela aguentará por muito mais tempo.”
"O que era aquela coisa que você estava enfrentando?" perguntou
Kaito, sem querer pensar na possibilidade de perder a Errante para
as Eternidades Cegas nem por um momento.
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"Um habitante local", disse Nahiri, encolhendo os ombros.
“Rápido. Bastante letal. Não necessariamente um desafio.”
“Você se machucou?”
“Foi só um arranhão. Nada que não passe depois de uma
caminhada.” Com a mão livre, ela tocou na parte de trás do seu
pescoço. Seus dedos voltaram umedecidos de sangue — e não
encharcados, como estariam caso estivesse gravemente ferida. “Meu
sangue ainda está vermelho. Sem óleo. Vou ficar bem.”
Ela ergueu seus dedos ao ar para ele inspecionar, com um leve
sorriso no rosto. Por trás dele, os olhos da Errante se abriram e ela
oscilou com mais rapidez, aparentemente juntando forças para mais
uma exclamação.
Nahiri abaixou a mão. “Vamos lá”, ela disse. “Não sei onde
estamos, mas precisamos encontrar os outros na Camada da
Fornalha, e não aconselho que fiquemos em nenhum lugar onde
Phyrexia quer que estejamos. Vamos andando antes que este lugar
mande defesas mais sofisticadas que alguns soldados de infantaria e
areia hipnótica.”
“Eu perdi meu equipamento", disse Kaito.
“Está na areia?”
Ele agitou a cabeça enquanto procurava.
"Acho que não", disse ele. “Se meu zangão estivesse por aqui, ele
já teria me encontrado. Você é a detectora de metais, e não eu. Sente
algum aço de Kamigawa perto de nós?”
“Desculpe. Só metais phyrexianos”, disse Nahiri.
“Nós vamos encontrar”, disse Kaito. “E encontraremos os
outros. Você sabe por onde ir?”
“Por aqui", disse Nahiri, e começou a caminhar. “Se tivermos
mantido a nossa trajetória original conforme caímos, a próxima
zona de aterrissagem é por aqui. Se não tivermos, isso quer dizer
que estamos perdidos em Phyrexia, e aconselho você a começar a
rezar para o que quer que você acredite.”
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“Como você conseguiu se orientar com tanta rapidez?”,
perguntou Kaito, tentando desacelerá-la por tempo o bastante para
ele ajudar a Errante a atravessar a areia. Não que ela normalmente
precisasse de assistência, mas incerta como era sua permanência
neste plano, ele queria fazer o que podia para facilitar a jornada dela.
“Tenho prática”, respondeu Nahiri. “Vi explosões vindas dali. As
coisas ficaram um pouco caóticas por lá”. Seu tom revelava uma
satisfação mórbida. Era difícil dizer se ela estava orgulhosa dos seus
companheiros por terem destruído as coisas, invejosa por não ter
tido a mesma oportunidade ou feliz por ter conseguido terminar sua
própria briga sem grandes dificuldades. Por vezes, Nahiri era uma
pessoa confusa. Ele não a conhecia bem o suficiente para entender
tudo aquilo que ela dizia ainda, e, dadas as circunstâncias, não sabia
se teria essa chance.
Eles se arrastaram pela areia — areia que, após uma inspeção
mais cuidadosa de Kaito, era tudo menos isso; o que ele considerava
ser um litoral era um deserto infinito de partículas de metal, peças
de Mirrodin moídas a pó pelo poder phyrexiano. A Errante
caminhava ao seu lado, oscilante e silenciosa, gastando claramente
toda a sua energia para permanecer em sintonia com o plano. Ele
olhou mais uma vez para Nahiri.
“Nada aqui é o que parece”, disse ela, com a voz ríspida. “Não
podemos confiar em nada que é Phyrexiano. Tudo mente para você,
o tempo todo, quer esteja consciente disso ou não. Continue
andando.”
Kaito continuou andando.
O deserto se desenrolava à frente deles, prolongando-se até a
base distante de um monumento enorme e incompreensível,
construído com base numa paródia distorcida da geometria. Eles
continuaram até as sombras do monumento titânico, um trio
minúsculo de agressores caminhando por uma terra hostil, e nada
mais se movia, e eles estavam sozinhos, e o peso opressivo de
Phyrexia estava por toda parte ao seu redor, e eles nunca mais
estariam sozinhos novamente.
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A paisagem ficava cada vez mais ordenada conforme eles
continuavam, terrível em suas simetrias alienígenas. Construtos
grandiosos de metal cintilante lançavam suas sombras sobre o solo
luminoso, celebrando vitórias inconcebíveis e brilhando em locais
onde a carne estava exposta, o que fez a pele de Kaito arrepiar.
Seriam estruturas restantes de Mirrodin ou formas adormecidas de
golias phyrexianos?
É melhor deixar alguns mistérios por resolver. Pelo menos os
cinco sóis de Mirrodin ainda brilhavam, tênues em meio à densa
neblina. O grupo se aproximou da porção final de um muro baixo
que parecia ter sido forjado com ossos meio derretidos e prata, e
parou ao ver uma estátua de pedra suspensa entre dois pilares de
ferro, em um emaranhado de cabos de aço.
Ela representava um elfo, baixo e musculoso, esculpido com tal
perfeição que Kaito poderia jurar tê-lo visto respirar. Parecia uma
peça totalmente deslocada em meio ao emaranhado phyrexiano de
metais e ossos.
Nahiri assobiou repentinamente. Kaito olhou para ela, confuso.
“Essa pedra”, ela disse. “É um edro zendikari. Ou Phyrexia
chegou a Zendikar, ou tem mais alguma coisa acontecendo aqui.”
A Errante apontou para a figura. Kaito olhou na direção do seu
dado. Por que a estátua estaria usando roupas E mais, por que a
estátua estaria armada? Um protetor de bronze com uma espada de
lâmina dupla estava preso ao seu braço esquerdo.
“Ele é um dos nossos”, disse Nahiri abruptamente. Ela começou
a se mover para frente.
Contra o seu melhor juízo, Kaito colocou a mão no seu braço.
Ela parou.
“Em Kamigawa, chamamos isso de armadilha”, disse ele.
Ela acenou devagar, consentindo. “Se for, morderemos a isca",
disse ela.

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Kaito começou a procurar por objetos que poderiam ser usados
como projéteis. As facas de metal de Nahiri seriam ideais, mas ele
não sabia se conseguiria arrancar um único lingote da litomante
mesmo que quisesse.
Os detritos por baixo da estátua teriam que servir. Kaito
alcançou-os através da telecinesia, puxando uma nuvem de lascas e
estilhaços de metal à sua volta. Não era nada perto da sua espada ou
de Himoto, seu tanuki, mas era infinitamente melhor que entrar em
uma luta desarmado.
Não que eles saibam que isso viraria uma luta. A estátua poderia
não ser nada, e, até agora, eles não tinham sido atacados. Com
cuidado, o trio se moveu na direção da estátua.
Eles estavam quase chegando quando os cabos que a
sustentavam se retorceram de volta à atividade, como um ninho de
cobras despertando da hibernação. Alguns deles se desenrolaram
totalmente e recuaram, aumentando a impressão de uma consciência
de serpente. Kaito contraiu-se, preparando-se para atacar com seu
arsenal de flechas improvisadas. A Errante levantou a mão,
sinalizando para que ele permanecesse imóvel. Ele parou, tenso mas
sem atacar, e viu Nahiri se movendo para frente com uma graça
cautelosa.
Os cabos se retorceram e acompanharam seus movimentos. A
estátua abriu seus olhos e começou a se debater conforme os cabos
ficavam mais apertados.
“Definitivamente um dos nossos”, disse Nahiri. “Parece não
estar ferido. Creio que vamos conseguir libertá-lo.”
“Então nós atacamos?” Kaito olhou para a Errante.
Ela acenou com consentimento, e ele libertou a fúria confusa que
nutria desde a praia em uma saraivada de estilhaços, criando uma
chuva de lâminas brutas sobre o ninho de cabos em um turbilhão
de cortes rodopiantes. Os cabos responderam atacando a nuvem, e
uma sinfonia dissonante de metais crepitantes e explosivos se
formou.
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Enquanto isso, Nahiri entrou em ação. Suas facas poderosas
voaram em frente para continuar o trabalho iniciado pelo arsenal
improvisado de Kaito, cortando e fatiando a criatura de cabo com a
precisão de um artista. A estátua inclinou cada vez mais para baixo
conforme os tensos tendões metálicos que a seguravam foram
sendo cortados, até que, com um alto estalo, o último tendão
rompeu e arremessou-a no chão. A Errante correu em sua direção e
se ajoelhou ao lado da figura, tentando sentir algum pulso.
O homem de pedra respondeu desferindo um poderoso, embora
desorientado, soco em sua direção. O primeiro ataque atravessou o
corpo da mulher de cabelos brancos como se ela fosse um fantasma,
deixando-a com a testa franzida em desaprovação.
“Ela não está exatamente aqui”, disse Kaito, seguindo os passos
da Errante para oferecer as mãos ao homem de pedra. “Não bata
nela de novo, por favor.”
“O que—” O homem, que outrora era uma estátua, permitiu ser
puxado para cima e olhou ao seu redor desorientado até, finalmente,
parar seus olhos em Nahiri, que aplicava um curativo do kit médico
de Kaito na parte de trás do seu pescoço, pressionando firmemente
as bordas do adesivo mágico. “O que aconteceu?”
A Errante, que esteve silenciosa desde a última vez em que falou
com Nahiri, respirou fundo e juntou suas forças. “Chegamos em
uma — barreira”, conseguiu dizer, com a voz oscilando com tal
volume que parecia estar em movimento pelas proximidades.
“Todos — se dividam. Tentando — encontrar outros.”
Nahiri olhou para eles. “Vamos ter que fazer isso toda vez que
encontrarmos alguém?”, perguntou. “Porque, se for o caso, vai ficar
bem chato.”
O homem estátua sorriu, parecendo animado com o comentário.
“Podemos estar perdidos em um plano hostil, mas algumas coisas
não mudam nunca; heróis sempre se confrontam na primeira vez
que se encontram.” A camada de pedra desapareceu de sua pele,
sendo substituída por um leve bronzeado. Ele ofereceu à Errante

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um cumprimento educado. “Sou Tyvar Kell, Príncipe de Kaldheim.
Agradeço a você pelo seu conselho.”
Ela abriu a boca, mas nenhum som foi emitido. Um olhar de
frustração tomou conta do seu rosto.
“A Errante não está conseguindo se estabilizar", disse Kaito.
“Não sei como ela conseguiu se aguentar por tanto tempo assim,
mas se não descansarmos, nós a perderemos em breve.”
“Ela vai voltar”, disse Nahiri.
“Mas isso importa, se não esperarmos por ela?”
Nahiri não tinha uma resposta para essa pergunta. Ela olhou para
a Errante, depois para Kaito, e repetiu, “Temos que continuar
andando.”
Em grupo, os três continuaram sua caminhada pelos ermos
malditos de Nova Phyrexia. Havia uma certa beleza nos
monumentos sombrios à distância, mas, depois de ver os cabos
vivos que mantiveram Tyvar aprisionado, Kaito estava ciente de que
todos os lugares pelos quais tinham passado eram construções deste
plano violento, e não fruto da natureza do plano. Tudo poderia se
transformar numa ameaça, a qualquer momento.
A Errante continuou oscilando e não se pronunciou novamente.
Ela se manteve perto de Kaito, olhando ao redor com uma
preocupação evidente. Havia algo que claramente a incomodava —
ele queria encontrar alguma forma de ajudá-la, mas eles não
poderiam se dar ao luxo de parar por tempo suficiente para ele
tentar.

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Arte por: Campbell White

E assim o grupo continuou, até que, no horizonte, um pequeno


grupo desconjuntado de tendas e anexos se afigurou, com pequenas
figuras se movendo entre eles. Nahiri e Tyvar ficaram tensos. Kaito,
mais preocupado em encontrar um local de descanso para a Errante,
sugeriu que eles ficassem calmos. O grupo continuou em frente até
que as figuras se tornaram mais visíveis: eram mirranianos. A maior
parte deles eram humanos, com pele bronzeada e armadura
dourada, onde se podiam ver relances de tecido branco entre as
placas. Entre o grupo, também se moviam leoninos, silhuetas felinas
cujo avistamento trazia conforto. Uma tonalidade dourava suave
brilhava nos pequenos pontos de pele exposta visíveis em torno da
armadura.
Todos se moviam com a graça natural dos orgânicos, e não com
a estranha marcha dos completados, e Kaito expirou com alívio.
Segurança. Tanto quanto era possível encontrar naquele plano. E
estava ali, bem à frente deles.
Ele se voltou para a Errante, na intenção de dizer algo que
animasse seu espírito e estimulasse sua força. Sua expiração se
transformou num suspiro quando observou que ela não estava mais
lá. Ela havia conseguido se manter estável por tempo suficiente para
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ver seu amigo de infância se livrando do perigo inicial, mas não mais
que isso.
“Ela vai voltar”, disse Kaito, tanto para si próprio quanto para os
outros. “Ela sempre volta.”
“Coragem, amigo”, disse Tyvar, batendo em seu ombro. “Ainda
temos muito o que andar.”
“Sim, mascolapsou colapsou .Queria que nós dois chegássemos
juntos até aqui", disse Kaito, que começou novamente a andar.
Juntos, os três se aproximaram do acampamento.
Uma mulher hirsuta de cabelos ruivos curtos e pele clara, despida
de qualquer ornamento metálico, apareceu para recebê-los. Nas
mãos, segurava um cajado com uma luz cintilante voltado para
baixo, sem representar ameaça imediata mas pronto para se tornar
uma.

Arte por: Miranda Meeks

“Vocês não são phyrexianos”, disse ela, com a voz incisiva.


“Vocês são aqueles que Koth nos avisou que chegariam. Eu sou
Melira. Sou uma amiga, e uma curandeira. Algum de vocês está
ferido? Precisam de ajuda?”

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“Não", disse Tyvar. Sua voz ecoou com nitidez no ar frio e
estático. “Chegamos aqui seguindo o chamado de Karn e das
Sentinelas, mas, ao chegarmos, nos perdemos. Vocês são as
primeiras faces amistosas que encontramos. Há outros por aqui
parecidos conosco?”
“Ah”, disse a mulher num gesto de compreensão. “Ouvi boatos
de que Elesh Norn estava preparando algum tipo de barreira de
defesa contra pessoas como vocês. Aparentemente, já está tudo a
postos. O resto do grupo de vocês deve estar se reunindo duas
camadas abaixo, na Fornalha, presumindo que tenham conseguido
chegar tão longe.”
Ela começou a se afastar do pequeno acampamento,
gesticulando para que os três a seguissem.
“Esta é a Fachada Monumental”, disse. “Quando os phyrexianos
ocuparam Mirrodin. Eles construíram uma camada em torno do
nosso plano, aprisionando aqueles de nós que haviam sobrevivido
para continuar a lutar sob ela. Não nos seria mais permitido ver os
sóis do nosso lar original. É para cá que eles mandam seus
brinquedinhos para lutarem um contra o outro até a morte, mas nós
subimos para encontrar vocês. A jornada teria sido mais difícil para
vocês se não estivéssemos aqui, atraindo perigos e nos certificando
de que nada escapa para denunciar nossa localização.”
Então quer dizer que nem toda área de Phyrexia era vigiada?
Kaito acenou, considerando essas as primeiras boas notícias que eles
haviam recebido desde sua chegada.
"Mirrodin — a verdadeira Mirrodin — está sob os nossos pés",
continuou Melira. Ela parou no centro de um pedaço de chão
estranhamente achatado, olhando para cada um deles até, por fim,
se concentrar em Nahiri. “Você é a litomante que eles disseram que
viria, certo?”
“Sou”, disse Nahiri, com facas voando no ar ao seu redor. “Por
quê?”

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“Vai ajudar, só isso”, disse Melira, antes de golpear o centro do
pedaço de chão com a parte inferior do seu cajado.
Houve uma pausa momentânea, longa o suficiente para que
Melira parecesse chateada e olhasse sobre os ombros, como se
estivesse à espera de alguma coisa. Então, o chão desabou sob os
seus pés, conforme uma porção de aproximadamente 3 metros
daquilo que Melira chamou de Fachada Monumental desmoronou
para dentro.
As cargas explosivas haviam sido preparadas com excelência.
Kaito teve de admirar a perícia, mesmo sabendo que estava caindo.
Tratava-se de uma evolução nova e perturbadora do enredo. Sobre
eles, a fina camada do plano parecia uma placa estilhaçada de metal
preto. Por baixo deles, a paisagem se apressava para recepcioná-los,
a pouco menos de 30 metros abaixo.
Nahiri olhou com desconfiança para Melira, que não parecia estar
nem um pouco preocupada. Os trechos de terra desmoronada por
baixo deles brilharam, vermelhos como o fogo, enquanto a
litomante os segurava e desacelerava sua queda para criar uma
concha oca no qual o grupo pudesse prosseguir durante o resto do
caminho para não se ferir.
Ao observar a situação, Melira sorriu. Kaito piscou. “Você está
rindo de quê? Poderíamos estar mortos!”
“Koth disse que vocês são magos poderosos que chegaram para
salvar o plano”, disse Melira. “Bom, a camada da Fachada quebra o
tempo todo, com ou sem sua ajuda. Se não conseguisse aguentar
uma pequena queda, você não teria muito sucesso em sua missão
mesmo. Embora isto seja melhor do que eu esperava. Quando
aterrizarmos, estaremos perto de Lowlight — podemos ir em
direção à lacuna e, em seguida, nos dirigirmos para a Camada da
Fornalha para conhecer os outros sobreviventes.”
Kaito não gostou daquela palavra. “Sobreviventes” parecia uma
premonição, e com a Errante fora de cena, isso era algo em que ele
não queria pensar. Ainda assim, ele se esforçou para apresentar uma

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expressão o mais neutra possível. “Estamos muito gratos pela sua
ajuda”, disse ele enquanto olhava para Nahiri, esperando que ela
dissesse que estava ferida quando ela e a Errante o encontraram na
areia. Mas ela não disse nada, concentrando-se em orientá-los para
uma aterrissagem segura.
Afinal, foi só um arranhão. Era melhor não quebrar sua
concentração por causa de um arranhão, quando na verdade não era
nada que precisasse de cura.
Tyvar tinha outras dúvidas. Ele acenou, indicando o terreno ao
seu redor. “Descemos ainda mais? Esta não é a Camada da
Fornalha?”
“Não”, disse Melira. “Os phyrexianos chamam esta parte de
Mirrex. Não nos permitem nem mesmo o luxo de usar nosso
verdadeiro nome. Eu disse a vocês que a Mirrodin real estava por
baixo de nós. Isto é tudo o que sobrou do nosso lar.”
“Entendi”, disse Tyvar, contido.
“As nossas principais forças de ataque se reunirão em Lowlight,
prontas para auxiliar vocês em seus esforços", disse Melira.
“Nenhum preço é alto demais para se pagar pela liberdade de
Mirrodin. Outrora, esta foi uma bela terra. Se o destino permitir,
assim o será novamente.”
“Por Mirrodin, e pelo Multiverso”, disse Kaito, e Melira sorriu
para ele brevemente, antes de se mexer para olhar pelas bordas da
plataforma improvisada de Nahiri.
Mirrodin — ou o que restou do plano — resumia-se a uma terra
erma sob eles, definhada pela falta de luz, sem nem mesmo a beleza
alienígena encontrada na superfície. Se Phyrexia havia feito isso para
quebrar o espírito de resistência, é provável que tenham chegado
mais perto de cumprir esse objetivo do que qualquer um quisesse
acreditar.
Nahiri guiou a plataforma até uma parada na superfície, olhando
para Melira. “Todo o lugar é assim?”, perguntou.

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Melira acenou. “Sim. Continue indo para baixo, e haverá sempre
uma surpresa nova e aterrorizante à sua espera.” Ela pulou do
pedaço da camada para o chão, que, aqui, era de pedra, intercalada
com mais hexágonos metálicos. “Pelo menos eles são previsíveis.
Tudo aqui quer matar ou completar você. Sem exceções.”
“Nem mesmo você?”, perguntou Nahiri.
“Eu?”, perguntou Melira. “Eu sou imune. É por isso que a
Resistência permite que eu ande por aí sem um guarda, e que Koth
me pediu para proteger vocês. Vamos. Lowlight é por aqui."
Ela começou a se mover rapidamente pelas terras ermas,
enquanto os Planeswalkers a seguiam em direção à silhueta pequena
e assolada de um acampamento mirraniano. Quando chegaram à
fronteira, ela os levou diretamente para uma parede baixa feita de
algo semelhante a lâminas de vidro, fazendo gestos amplos.
“Ocupamos a lacuna quando Koth disse que vocês estavam
chegando", disse ela. “Isso nos levará para a Camada da Fornalha.
Teríamos soltado ela mais cedo, presumindo que ninguém viria.”
“Então, vamos descer”, disse Nahiri.
Melira parecia quase entretida. “Algum de vocês já usou uma
dessas antes?”
“Não", disse Kaito.
“Elas são divertidas”, disse ela. “Por dentro, elas brincam com a
gravidade, impedindo que a gente caia além do primeiro pulo.
Começar é sempre mais difícil do que continuar.” Melira caminhou
lentamente em direção à lacuna, pisando na série de caixotes que
haviam sido empilhados contra a parede, e saltou.
Os Planeswalkers a seguiram. Ao escalar os mesmos caixotes,
eles olharam para baixo e a viram de pé nas paredes de um tipo de
túnel que levava às profundezas de Phyrexia, iluminado por uma luz
fraca e sem fonte. Ela virou o rosto e olhou para eles.
“E aí?”, perguntou. “Vamos ou não?”

27
Nahiri saltou sem hesitação, e Kaito saltou logo depois dela.
Houve um momento de desorientação repugnante, e então ele
estava diante da parede do túnel. Olhando para trás, Tyvar era o
único que parecia estar posicionando de forma a desafiar a gravidade
— algo que o grandalhão claramente percebeu, pois começou a rir
e pulou na lacuna.
“Em frente, meus amigos”, ele disse, caminhando para frente.
Kaito passou por ele e, pouco tempo depois, o par passou por
Nahiri, descendo em solo phyrexiano.
Melira ficou um pouco para trás com Nahiri, olhando para o
curativo na parte de trás do pescoço da outra mulher, mas sem
perguntar nada... pelo menos por enquanto.

Nahiri não se sentia bem. Ela estava familiarizada com seu corpo
e com a forma como funcionava, com ossos e tecidos misturados
como pedras em terreno fértil, e, agora, algo estava estranho. O
corte na parte de trás do seu pescoço, aquele ferimento pequeno e
inconsequente, pulsava, intrometendo-se mais em sua consciência
do que qualquer coisa tão pequena teria o direito de intrometer. Ela
ficou um pouco para trás, permitindo que Melira passasse por ela, e
colocou a mão na nuca para sentir o curativo que havia retirado do
pacote de Kaito. A gaze estava estranhamente amassada, como se
algo a tivesse pressionado por baixo.
Puxando o curativo, ela tocou na superfície por baixo com seus
dedos delicados e não encontrou nenhum ferimento, apenas pele
macia e uma pequena protusão escorregadia que não deveria estar
ali, como se seus ossos tivessem decidido se realinhar. Ela retirou
sua mão com consternação e não se surpreendeu ao ver que seus
dedos brilhavam com o mesmo óleo que revestia as lanças dos
phyrexianos.
Ela fora infectada.
Ela já estava perdida.

28
Arte por: PINDURSKI

Ela sabia que deveria contar aos seus companheiros, mas como?
E de que adiantaria se eles soubessem? Eles não podiam matá-la, e
mesmo se tentassem, ela os enfrentaria, independentemente de sua
condição. Ela não poderia ir embora; caso contrário, carregaria a
mácula deste planeta condenado e moribundo para infectar outro
lugar. Supostamente, a mirraniana era uma curandeira, mas nem
mesmo uma curandeira conseguiria parar com isso — ou será que
conseguiria? Não, era melhor levar eles o mais longe que
conseguisse antes de sucumbir e se tornar algo que eles tivessem
mais facilidade de destruir.
Pressionando o curativo para baixo, ela cobriu novamente a
ferida e continuou em frente.

O acampamento mirraniano, pequeno como era, estava arrasado


quando a mulher de cabelos brancos e chapéu de aba larga apareceu,
olhando cautelosamente ao redor com a espada preparada. Nada se
moveu para atacá-la.
“Kaito!”, gritou. “Kaito, você está aqui?”

29
Ninguém respondeu. Um pedaço de chão havia desmoronado e
deixado um buraco a poucos metros dali, e a Errante correu em sua
direção, reconhecendo o que era. Ela olhou para as profundezas e
não viu nenhum sinal de seus companheiros, apenas destroços no
distante solo mirraniano. Eles se foram.
Ela havia regressado das Eternidades Cegas tarde demais, e eles
estavam perdidos.
“Eu deveria tê-los avisado", lamentou ela. “Eles não têm ideia de
onde estão indo. Fomos inocentes demais de pensar que
conseguiríamos o que queríamos com tanta facilidade.”
Ela se endireitou. Seu tempo neste plano seria curto. Se ela estava
ali para vê-los novamente, é isso que ela ia fazer. Até que isso
acontecesse, tudo o que ela podia fazer era aguardar sua partida e
esperar que todos estivessem em segurança
Não seria o suficiente. Tinha que ser o suficiente.
Era tudo o que ela tinha.

30
EPISÓDIO 2:
FUNDAÇÕES INSTÁVEIS

Imóvel, gritando e sentindo-se como estivesse caindo para


sempre.
Elspeth acordara sozinha, no solo de Nova Phyrexia, tomada
pelo medo do pior. Claramente, haviam caído em uma armadilha.
Seria ela a única poupada, outra vez prisioneira de Phyrexia?

Arte por: Adam Burn


O pensamento mal tivera tempo de se formar quando um
conjunto de phyrexianos avançou em disparada pelo topo da colina.
Elspeth pegou sua espada e levantou-se para enfrentar a ameaça,
grata por não terem aparecido enquanto ainda estava inconsciente.
Ela poderia ter sido vencida facilmente; o maior dos guerreiros cai
quando desprevenido.

31
Ou quando em menor número. Eram seis deles contra uma,
sendo que eles sim conheciam o terreno. Ela ainda deu fim a três
deles antes de começar a perder terreno. O primeiro phyrexiano
cortara o braço dela, e o medo retornou, mais ardente desta vez,
mostrando que a batalha talvez não estivesse ao seu favor.
Foi então que uma lâmina tingida de roxo perfurou o coração de
um phyrexiano, mostrando que ela não era a única sobrevivente —
e que não estava lutando sozinha.
A presença de Kaya rapidamente virou o jogo a seu favor,
permitindo que ambas saíssem ilesas, Elspeth quase em frenesi
enquanto procurava feridas em Kaya. Ela era imune, mas Kaya não,
e todo cuidado era pouco em Phyrexia.
A exposição era uma sentença de morte. Todos sabiam disso. Os
riscos foram algumas das primeiras coisas a serem explicadas
quando a ameaça phyrexiana foi descoberta. Havia maneiras de
escapar daquela inevitabilidade, mas eram raras, custosas, ou ambas.
Halo talvez fosse uma delas, mas seus suprimentos eram limitados e
tinham de testar em campo. Era demais esperar que Melira ainda
estaria viva e capaz de ajudá-las.
Ainda assim, saber de algo e aceitar aquilo eram coisas muito
diferentes, e Elspeth não tinha certeza se Kaya tinha total ciência do
perigo que estava correndo.
— Você está bem? — disse Kaya. Elspeth assentiu levemente.
Com o fim da luta, a dupla seguiu adiante, ao acampamento
mirraniano, onde um troll chamado Thrun conseguiu fazer um
buraco na concha da aeronave e largar uma corda que poderiam usar
para chegar à superfície da velha Mirrodin. De lá, continuaram em
direção à lacuna branca, a abertura original ao núcleo de Mirrodin,
que agora as levaria à Camada da Fornalha. Nenhum outro membro
da companhia apareceu para se juntar a elas.
Elspeth tinha esperança, descontrolada e um tanto infundada, de
que quando chegassem ao fundo, encontrariam os demais.

32
Enquanto andavam, sua melancolia era evidente. Kaya estaria em
negação deliberada se não percebesse. — Não deve ser muito longe
daqui, raio de sol. — disse ela, usando a gravidade da lacuna para
andar ao longo da parede. — Nós duas pousamos bem. Um pouco
esburacado, mas estamos bem. Encontraremos os outros. Você
verá.
— Pelo menos você não acordou com forças phyrexianas vindo
separar você de sua cabeça.
— Não, só esse amiguinho me sacudindo. Kaya acariciou a
cabeça do pequeno robô com formato de tanuki que repousava em
seu ombro. Não era de Mirran nem de Phyrexia; Elspeth acreditava
que fosse de Kamigawa. Deve ter pertencido a alguém de uma das
outras equipes de ataque. Teve sorte de ter pousado com Kaya. Se
tivesse ficado mais tempo por conta própria, Phyrexia teria
encontrado uma forma de entrar.
Elspeth, que era familiar com as lacunas por sua presença em
Mirrodin durante a guerra, andava mais calmamente, tentando ficar
à frente de seus próprios pensamentos, os quais tomaram caminhos
mais sombrios do que desejara. Ela sabia que voltar aqui seria difícil,
mas vendo o que tinha ocorrido, o quanto foi perdido, era brutal.
Nova Phyrexia parecia um plano feito para o arrependimento.
Talvez doesse menos para Kaya, que nunca vira Mirrodin, que sabia
que andavam por um cemitério, mas não sabia o volume de sangue
que tingia cada superfície. Era mais fácil, de certo modo, andar pelas
cinzas de uma batalha que nunca foi sua.
A lacuna seguia sempre adiante, mais longa do que seria possível
sem a magia nutritiva que escorria de suas paredes, sustentando-a e
reforçando-a. Quando chegaram ao fundo, era como se tivessem
chegado ao topo; seguiram a linha da magia de ancoragem longe o
bastante a ponto de a gravidade reverter novamente, forçando-as a
agarrar os degraus proeminentes das paredes e escalar os últimos
três metros até a abertura.

33
Erguendo-se na borda da lacuna, Elspeth se segurou firme
enquanto observava a Camada da Fornalha. Abaixo dela, podia
ouvir a descida quase sem esforço de Kaya, e passou um pouco para
o lado. — Segure-se quando vier até aqui. — ela falou. — O resto
de magia vai nos escoltar ao chão assim que nos soltarmos.
— Escoltar-nos ao... ah. É claro que vamos ser jogadas do teto.
— esbravejou Kaya. — Os mirranianos não acreditavam em
gravidade confiável?
— Isso é gravidade confiável. Só é um confiável diferente.
Kaya impulsionou-se para cima, para perto de Elspeth, olhou em
volta, e proferiu um longo e baixo assobio. Não era uma reação sem
fundamento.
Fiel ao seu nome, a Camada da Fornalha queimava. Magma
fervilhava por tudo ao redor delas, e o ar era sufocante e quente.
Prateleiras de rocha piroclástica serviam de chão sólido, e, de alguma
forma, as termoclinas das piscinas ferventes não as tornavam
insuportáveis, mas sim meramente confortáveis. A vida podia,
impossivelmente, sobreviver aqui.
Abaixo delas, em uma das maiores prateleiras piroclásticas, uma
estrutura mirraniana aleatória projetava-se na paisagem. Um
conjunto de tendas e pavilhões improvisados circundava suas
bordas, camuflada no escuro para se misturar à terra ao redor, nada
grande o bastante para uma única pessoa derrubar em um piscar de
olhos. Pessoas moviam-se entre elas, diminutas pela distância e
reduzidas a largos riscos de fisicalidade.
Kaya olhou para Elspeth.
— Mirran?
— Phyrexianos não fazem tendas.
— Acha que o resto de nosso pessoal vai estar aqui embaixo?
— Se não estiverem, acho que já acabou. — respondeu Elspeth,
e, com o coração pulando na garganta, de alguma forma ainda
martelando em seu peito, ela largou-se.

34
A magia da lacuna a pegou antes que pudesse cair mais de alguns
metros e a levou ao chão de forma tão gentil quanto o colo materno,
Kaya flutuando ao seu lado e rindo para dentro.
Quando seus pés tocaram a superfície, começou a se reunir uma
multidão. As pessoas que emergiram para ir ao encontro delas
usavam ouro brilhante e enfeites de metal, mas careciam da
perfeição dos verdadeiros phyrexianos: era a força a qual vieram
encontrar.
— Elspeth! — gritou uma voz da multidão; profunda, áspera e
estrondosa. Uma voz como uma montanha, inesperada e familiar.
Elspeth firmou-se antes da alegria tomar conta de si, e ela então pôs
o maior sorriso que jamais pusera, dando a volta e lançando-se na
direção do orador.
— Koth! — gritou. — Koth, pensei que você estava morto!

Arte por: Aurore Folny


O Planeswalker maior a pegou pela cintura e a girou, ambos
rindo, felizes e leves demais para um lugar ardente como esse, na
hora mais sombria de todas. Ele era um homem imponente de pele
negra, cujo corpo estava protegido por uma armadura rochosa, e o
contraste entre ele e a mais leve — porém não tão mais baixa —
Elspeth era marcante.

35
Kaya olhou em volta, seu próprio semblante passando ao
relaxamento ao ver um rosto no alvoroço. — Tyvar. — disse ela,
sorrindo ao andar até ele. — Eu devia saber que encontraria o
caminho até aqui antes de nós.
Ele riu. — E eu devia saber que não fazia sentido ficar
preocupado com você! Céus, você seria uma pessoa completamente
diferente se não ficasse em perigo na menor das oportunidades.
— Acordei sozinha, com o equipamento de outra pessoa à minha
volta, e esse raio de sol estava lá — Kaya apontou para Elspeth, que
ainda sorria e abraçava Koth. —, pouco mais à frente. Fomos
atingidas com força na travessia. Vocês...?
— Temo que todos nós. — disse Tyvar, esmorecendo. — Nem
todos conseguiram nos encontrar. Jace foi o último a chegar, antes
de vocês, e chegou sozinho, trilhando seu caminho pela superfície.
— Jace. . .?
— Está atrás de você. — disse a voz comedida e familiar de Jace.
Kaya deixou um suspiro fugir. — Você só queria ver se eu ia
pular. — ela acusou calmamente, virando-se para vê-lo.
O esguio telepata deu de ombros. — Você nunca pula, então
parece inútil tentar. — disse ele, sorrindo de leve. — Olá, Kaya.
Estava preocupado que tivéssemos perdido você.
— Você não poderia, sabe...? Ela tocou em sua própria têmpora.
— Você fez a ligação mental antes de irmos embora. Você devia ser
capaz de me dar um toque.
O leve sorriso que vinha se formando no rosto de Jace sumiu. —
A barreira quebrou aquela ligação, bem como muitas outras coisas.
Não consegui falar com nenhuma das outras equipes. Os que você
vê aqui são todos os que conseguimos recuperar da força de ataque.
Kaya franziu a testa. — Vraska? Nissa? A Errante? Lukka?
— Vraska não estava conosco quando acordamos. — respondeu.
— Nissa estava, mas enquanto nos preparávamos para a jornada,

36
uma armadilha a afastou de nós, como se ela tivesse sido forçada a
transplanar outra vez.
— Achamos que nosso grupo possa ter encontrado algo similar.
— disse Nahiri, saindo da multidão com Kaito logo atrás. Jace olhou
para ela friamente, mas não fez comentário algum.
Kaya franziu a testa ainda mais. Não era segredo que não havia
amor perdido entre Jace e Nahiri. Ela vinha contando com aqueles
que os conheciam melhor para ser a barreira entre eles, e não tinha
interesse verdadeiro de ser escolhida para o trabalho. — O que quer
dizer? — ela perguntou.
— Ei! Kaito interrompeu, antes que alguém pudesse responder.
— Esses aí são meus! — Ponpon!
— Esses? Kaya tocou na lâmina que havia amarrado à sua cintura
com o comprimento de uma corda, o pequeno robô saltou do
ombro dela até Kaito e o agarrou, rangendo alegremente. —
Estavam perto de mim quando acordei. São seus?
— Não dá para notar? Não são phyrexianos. — disse Kaito,
estendendo sua mão. Ele parecia exausto. Todos pareciam, em
intensidades distintas.
— Agora que falou nisso, é verdade. Extravagante demais para
mim, de qualquer forma. — disse Kaya, desamarrando a lâmina e
batendo o cabo na palma de Kaito. Ele estava visivelmente relaxado,
mostrando um leve sorriso de gratidão e logo voltando sua atenção
ao pequeno robô em seu ombro, murmurando uma saudação. Ele
rangeu de volta, obviamente em casa.
Agora parecendo bem mais calmo, Kaito voltou-se para Kaya.
— Sem sinal de Lukka. A Errante estava conosco quando chegou.
— disse ele. — Sua centelha é sempre um pouco. . .imprevisível,
mas, normalmente, ela consegue mantê-la sob um mínimo de
controle. Desta vez, ela tremeluziu por um bom tempo até partir
para as Eternidades Cegas.
— Talvez você tivesse conseguido mudar de fase com ela e nos
dizer o que ela estava tentando falar antes de sumir. — disse Nahiri.
37
Kaya nunca tentara usar sua magia dessa forma, mas concordou
mesmo assim. — Talvez fosse possível. Parecia que Nissa estava
machucada pelo acontecimento?
— Não — disse Jace, a tristeza audível. —, ela simplesmente
sumiu. Os phyrexianos estavam mais preparados para nosso ataque
do que esperávamos.
— Tenho certeza que ela está bem. — disse Nahiri bruscamente.
— Aquela elfa é osso duro. Precisamos descobrir qual é o plano
com tantos de nós desaparecidos.
Subitamente desconfortável, Kaya voltou sua atenção a Jace,
erguendo uma sobrancelha. — Então?
— Então — respondeu. —, o plano não mudou. O plano não
pode mudar. Estamos na metade de nosso pessoal, mas sabíamos que
as chances estariam contra nós. Se não levarmos o sílex à base da
Árvore-mundo antes que ela se conecte pelas Eternidades Cegas,
todos os planos terão o destino de Mirrodin.
Tyvar fechou o rosto. — Está falando daquela zombaria
corrompida de uma Árvore-mundo. — disse ele, afiado.
Jace apenas deu de ombros.
— Elesh Norn a chama de Quebra-reinos. Melira saiu da
multidão, o nome fazendo o rosto de Tyvar cerrar ainda mais.
Kaya reprimiu uma estremecida ao observar a paisagem
arruinada e escurecida ao redor deles. Ela havia visto morte o
bastante, causado outras mais, para pensar que não existiria mais
nada que pudesse apavorá-la de verdade. Mas isso. . .isso era muito
pior do que qualquer coisa que ela jamais imaginara. E nem era tudo.
Muito de Phyrexia ainda jazia abaixo deles, seus horrores ainda a
serem revelados, seus perigos ainda a serem enfrentados.
— Você ainda tem o sílex. — disse ela, meio afirmando, meio
perguntando. — O plano de Karn pode ser realizado.
— Sim. — disse Jace. — Ainda podemos vencer.

38
Arte por: Leanna Crossan

— Karn? Elspeth chegou empurrando os demais para abrir


caminho, Koth logo atrás dela. — Alguma notícia?
— Ainda desaparecido. — disse Jace. — Eu. . .— Ele parou por
um instante, e então balançou a cabeça. — Não houve sinal dele ou
de Ajani desde que chegamos aqui.
— Talvez seja melhor assim — disse Elspeth, com o rosto
educadamente tentando manter a maior neutralidade possível. —
Ambos sabem demais sobre o sílex. Ajani destruiu o último.
— Esse "sílex" é o que você vai usar para tirar a Quebra-mundos
de Elesh Norn, certo? — questionou Melira.
— Sim — disse Jace, com uma calma impressionante. —
Plantado entre as raízes de sua Árvore-mundo...
— Assim chamada. — praguejou Tyvar.
Jace o encarou. — Isso destruirá a árvore antes que ela tenha a
chance de conectar esse plano ao resto do Multiverso. A maldição
phyrexiana continuará contida até que possa ser eliminada.
— O quão contida pode ser quando começar a se infiltrar em
outros planos? — perguntou Kaito. — Kamigawa não é um custo
de guerra.
39
— Nem Mirrodin — disse Melira. — Ainda lutamos pelo plano
que tínhamos, mesmo que jamais possamos restaurá-lo ao que era
antes. — O que este sílex faz para Mirrodin?
— Melira, já falamos sobre isso. — disse Koth.
— Sim, você e eu falamos sobre isso, e você ama Mirrodin o
bastante para se importar com o que acontece ao nosso lar. Quero
que alguém que não ame nosso lar me olhe nos olhos e diga que
vamos sobreviver. Ela olhou para Jace. — Meu povo já sobreviveu
ao fim de nosso plano. Seu plano não importa mais que o nosso
para eu sacrificar o pouco que nos resta.
Jace assentiu lentamente. — Com base em meus cálculos, a
explosão será tão imensa que destruirá Quebra-mundos, e
provavelmente eliminará todo o Germinúcleo no processo. A não
ser que os phyrexianos tenham desestabilizado o plano muito além
do que as informações indicam, essa deve ser a extensão dos danos.
Melira concordou. — O quanto você sabe sabe sobre o que
fizeram com nossa geografia?
— Sabemos que o plano tem camadas, esfera dentro de esfera, e
pousamos duas camadas mais acima do que pretendíamos.
— Você não está errado. — disse Melira. Ela pegou um pedaço
de rocha metálica do chão olhando para Nahiri. — Ei, litomante,
quão bom é seu controle?
— Melhor que o de qualquer um aqui. — disse Nahiri.
— Então me ajude. Consegue fazer uma pequena bola do
tamanho do meu punho fechado? Ela ergueu sua mão livre, dedos
enrolados em ilustração.
— Jogue para esse lado.
Melira arremessou a pedra até Nahiri. Na metade do arco, ela
congelou e se partiu em pedaços, um deles se alisando para formar
a esfera solicitada. Ela se lançou para longe do resto do material,
começando a girar. Melira parecia satisfeita.

40
Arte por: Illustranesia
— Este é o Germinúcleo — disse ela. — É aqui que temos que
pegar você se quiser usar esse seu tal de sílex.
— Tudo bem. — disse Jace.
Melira olhou de volta para Nahiri. — Pode colocar uma concha
redonda ao redor da esfera que você fez?
— Peça algo difícil. — disse Nahiri. Um pouco dos destroços
aplanou e se enrolou ao redor da bola, formando outra esfera maior.
Ela continuou a girar.
— Os Jardins Micossintéticos. — disse Melira. — Foi assim que
nos pegaram, no início. Plantaram, no centro do nosso plano,
fungos que bombeavam a contaminação phyrexiana para o ar, e
respiramos aquilo sem saber. A maioria já havia morrido antes de
descobrirmos que havia uma luta.
— Táticas de covardes. — disse Tyvar.
— Outra camada, por favor. — disse Melira, e uma terceira
esfera tomou forma. — A Basílica Alva. É a fortaleza de Elesh
Norn. Esperamos que a rebelião de Urabrask a mantenha distraída
enquanto passamos por seu território. Se não, não há como
passarmos pelo Germinúcleo sem que ela nos veja.
— Mais? — perguntou Nahiri.
41
— Por favor. — respondeu Melira. — Quatro desta vez; e pode
deixar um canal entre cada uma?
Mais quatro conchas se formaram, cada uma com momentâneo
brilho quente e logo resfriando e escurecendo conforme a cor
original. Kaya olhou para Nahiri. Ainda parecia completamente
serena, como se essa demonstração fina de poder controlado não
fosse nada para ela. Era quase inquietante. Kaya sabia que Nahiri era
uma das Planeswalkers mais antigas, se não a mais antiga, mas uma
coisa era saber, outra era ver.
— A esfera mais externa; essa é a Camada da Fornalha. É onde
estamos agora. Não estamos seguros aqui, mas mais seguros do que
em quase qualquer lugar, e conseguimos conectar um túnel sem cair
no meio, o que levou algum tempo. Mirranianos morreram para
fazer um atalho para você. Respeite isso.
Melira parou, virando seu rosto para longe. O silêncio dela se
alastrou por tempo suficiente para Koth preencher o vazio. —
Abaixo de nós há o Labirinto do Caçador, e depois o Centro
Cirúrgico. Desviaremos de ambas para pousar nos Poços de Dross,
diretamente acima da Basílica Alva. Ele fitou Elspeth. Os Poços de
Dross contém o que costumava ser chamado de Mefidross.
Teremos que tomar cuidado lá embaixo, mas devemos conseguir
chegar ao próximo ponto de descida sem muitos problemas.
Elspeth assentiu. — Isso é. . .isso é um pesadelo. — ela disse. —
Como você sobreviveu?
— Mais duas camadas acima de nós. Você as viu. — disse Melira.
— O que você pode não ter percebido é que a camada acima, a qual
chamamos de Mirrex, é tudo o que resta de nosso plano original.
Eles o estriparam para construir seu próprio.
— Quanto à nossa sobrevivência, não é fácil. — disse Koth. —
A comida está escassa. A água potável ainda mais. Os elfos já se
foram. Não vejo um vedalkeno não completado há anos. Lutamos
as batalhas que podemos lutar, salvamos quem podemos, e nunca
paramos de nos mover por muito tempo. Mirrodin era — é — um

42
plano de aço. O povo de Mirrodin reflete isso. Desde que um de
nós esteja respirando, continuaremos a revidar.
Elspeth concordou novamente, mais lentamente dessa vez. —
Sinto muito por ter ficado tanto tempo longe.
— Não sinta. — disse ele. — Saber que salvei você, mesmo sem
poder salvar tantos... ajudou.
— Então nosso plano importa. — disse Melira, apontando para
a esfera girando enquanto Nahiri adicionava mais duas camadas para
representar Mirrex e a Fachada Monumental. — Nossa luta importa.
Nossa luta também importa, ou não estaríamos ajudando vocês.
Nenhum plano deveria ter esse fim.
— Concordo. — disse Tyvar, soando vencido.
— Concordo. — ecoou Kaito.
Um a um, os outros Planeswalkers soaram em concordância, e
os mirranianos próximos fizeram o mesmo.
Melira encarou Jace com olhar severo. — Então, agora que
conhece nossa geografia interna, ainda tem certeza de que vamos
sobreviver ao que está planejando?
— Não, não tenho. — hesitou Jace, após um longo instante e
um suspiro. — Quando Urza usou o primeiro sílex, quebrou coisa
que não sabíamos que poderiam ser quebradas. Mas não temos
tempo para fazer um novo plano. Nem devemos esperar pelos
demais.
— Não sei quanto a vocês, mas eu não gosto da ideia de dar
tempo para Elesh Norn terminar seu plano. Temos que derrubar
aquela árvore antes que ela se conecte às Eternidades Cegas, ou a
onda de choque pode ser inimaginável. Podemos perder muito mais
que Mirrodin. — disse Kaya.
Nahiri olhou para Jace. — Estas pessoas não têm ideia do que
estão nos ajudando a fazer. — disse em voz baixa.
Melira voltou-se para ele. — O que ela acha que você não está
nos contando?
43
Jace fez uma careta, olhando para longe antes de responder. —
Vamos acionar uma bomba no centro do plano. A onda de
choque deve viajar ao longo da árvore e destruí-la sem ferir Mirrodin,
mas não podemos testar isso. Nossas suposições sobre a
estabilidade de Mirrodin não podiam levar em conta a enorme
quantidade de reestruturação que nos mostrou. Ele indicou a esfera
de Nahiri, ainda girando, apesar da partida. Ela não foi longe.
— Isso ainda pode nos destruir.
— Se eu disser sim, você se recusará a ajudar?
— Se você tivesse dito não, eu teria recusado ajudar. — disse
Melira. — Koth é um geomante, não um litomante. Diz que há uma
diferença, mas eu não saberia dizer qual, e a terra fala com ele
quando a pedra hesita. Ele me disse que havia a chance de que isso
desestabilizasse nosso plano. Vale a pena o risco para salvar o resto
do multiverso, desde que você não minta sobre.
Kaya concordou. Esse lugar era um cemitério de cinzas e aço, e
merecia ser respeitado enquanto o usavam para conquistar seus
objetivos. O motivo pelo qual estavam aqui poderia destruir
Mirrodin para sempre, e era difícil dizer que era uma coisa ruim, se
havia uma uma chance de que também eliminasse a ameça
phyrexiana do Multiverso. Haveria uma onde de choque quando o
sílex fosse detonado, isso é inquestionável. Mas se a Árvore-mundo
ainda estivesse para ser conectada às Eternidades Cegas, o choque
não teria mais para onde ir. Talvez exterminasse esse plano
completamente.
— Então precisamos ir. — disse Jace. — As forças mirranianas
concordaram em ajudar com seus equipamentos reservas, caso
alguém precise de armas ou armadura. Óleo phyrexiano não precisa
entrar na pele para infectar.
Koth foi à frente. — Nosso equipamento foi tratado com uma
substância chamada de hexouro. É raro e precioso, mas oferece
alguma proteção contra phyresis, e aumenta a força da arma contra

44
os completados. Mais está disponível para tratar o equipamento que
vocês trouxeram.
— Isso é novo. — disse Elspeth. — De onde vem?
— Um último presente de Mirrodin. — disse Koth. — Fazemos
a jornada para cima, até Mirrex, e coletamos as chapas restantes do
Vácuo Tremeluzente. Tratar as chapas com sérum mosco-lume
transforma o metal em hexouro e permite que o usemos para nos
defender.
— Há alguma forma de eu obter um pedaço desse metal "Vácuo
Tremeluzente"? — perguntou Tyvar.
— Sim. — respondeu um dos mirranianos, que esteve
observando em silêncio até então. — Venha comigo. Ele fez sinal
para Tyvar segui-lo por entre a multidão. E assim ele fez. Após um
instante ponderando, Koth e Kaito fizeram o mesmo.
— Não podemos demorar muito aqui. — disse Melira. —
Sobrevivemos na Camada da Fornalha pelo prazer de Urabrask, e
ele não gosta quando ficamos confortáveis demais.
— Kaya franziu o cenho para Jace. Ele inclinou a cabeça para
Melira. — Claro. — disse. — Urabrask é o pretor da Fornalha
Silenciosa. — continuou, passando o olhar para Kaya. — Ele não
os concede abrigo, mas permite que peguem o que conseguirem
encontrar, assim evitando a extinção deles. O caos que ele cria pode
ser a chave para nosso sucesso.
— Então devemos agradecimentos a um phyrexiano. — disse
Kaya, apertando o lábio. — Essa é difícil de engolir.
Melira suspirou. — Essa é uma era de horrores, e tudo é difícil
de engolir. — disse. — O túnel foi desobstruído para usarmos, na
medida do possível. Aqui, as coisas mudam momento a momento,
e parece que a segurança pode acabar em um piscar de olhos. É uma
boa construção mirraniana, e vai nos levar aos Poços de Dross. Ela
apontou para a esfera girando.
— E se o túnel estiver comprometido? — questionou Kaya.

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Melira suspirou novamente. — Precisaríamos lutar para chegar
aos Poços de Dross, e nunca chegaríamos com vida. Nosso plano
falharia. Seu Multiverso ruiria. Confiamos no túnel.
— Não disse que não deveríamos. — respondeu Kaya. — Eu só
gosto de saber os detalhes do plano.
— Sim, eu também. — disse Melira, apaziguada. — Descemos
pelos Poços de Dross, invadimos o palácio de Elesh Norn enquanto
suas forças estão em algum outro lugar, chegamos ao Germinúcleo
e destruímos a árvore antes que se conecte.
— Simples. — disse Kaya. — O que poderia dar errado?
— Apenas tudo. — disse Jace, severo, e Melira riu.
— Vou ver como está o resto do seu pessoal. — ela disse,
pegando o modelo rotacional de Mirrodin do ar e segurando-o
debaixo do braço enquanto andava para longe, deixando Kaya e Jace
a sós.
Não longe dali, Kaito ajoelhou-se, seu tanuki ao seu lado, e
passou uma lasca de hexouro em sua lâmina, observando-a deixar
rastros brilhantes para trás. — Parece errado afiar uma arma com
algo que possa alterar o aço.
Tyvar deu de ombros, transformando um metal que foi afiado
como mercúrio impossivelmente manchado entre seus dedos. —
Este metal do Vácuo Tremeluzente é diferente de qualquer coisa
que já vi. — disse ele. Ele olhou para o mirraniano que os levou ao
escasso arsenal. — E repele o "óleo reluzente" deles?
— Isso não vai te salvar. — disse o mirraniano, passando um
escudo a Tyvar. — A infecção ainda pode ocorrer, e você ainda
pode se perder. Mas fará seus golpes mais afiados e pode lhe dar
mais tempo.
— Tempo é tudo que precisamos. — disse Tyvar.

46
Arte por: Heonhwa Cho
Kaito sorriu, balançando a cabeça. — Se o curso de metalurgia
puder esperar, precisamos terminar de nos preparar. — disse ele,
partindo sua espada em suas estrelas de arremesso individuais e
meticulosamente passando o hexouro em cada ponta.
Melira ficou por perto, parando para prender uma pequena bolsa
de hexouro em pó enquanto andava.
— Existe alguma forma de tratar meu drone? — perguntou
Kaito.
Tyvar concentrou-se no outro homem. Era uma pergunta válida,
e ele queria saber a resposta tanto quanto Kaito.
— O pequeno constructo pode ser aprimorado, caso suas
engrenagens estejam tensionadas. — disse o mirraniano.
Kaito riu. — Pó é sempre perigoso. Ela vai ficar tensionada.
Não muito longe dali, Koth e Elspeth sentaram em caixas duras,
observando um ao outro como se a um irmão perdido; e, de certa
forma, era exatamente isso. Nascidos em planos diferentes,
portadores de centelhas diferentes, mas irmãos forjados em uma
batalha terrível. Uma batalha que ainda não acabara.
— Pensei que nunca mais fosse vê-lo. — disse Elspeth.

47
— Pensei o mesmo sobre você. — disse Koth. — Sua presença
é um milagre. Porém, queria que não tivesse vindo. Você lutou para
se libertar disso. Você devia ter sido poupada. Você poderia ter ido
em busca de seu lar, poderia ter escapado, e não—
— Sou uma guerreira. — disse Elspeth. — Posso não querer ser
uma, mas tenho de ser a heroína para honrar aqueles que nunca
tiveram essa chance. Tenho que tentar, Koth. E, se eu soubesse do
perigo e me recusasse a vir, seria apenas uma covarde.
— Eu entendo. — É uma honra saber que terei outra chance de
cair lutando ao seu lado.
Elspeth conseguiu abrir um sorriso. — Eu só queria que
tivéssemos mais tempo.
— Isso que quer dizer ser você mesmo, e não ser forçado a se
tornar parte da massa phyrexiana. — disse Koth. Ele se levantou,
oferecendo-lhe a mão. — Venha. Está quase na hora de ir.
Ela piscou para ele ao pegar sua mão e deixá-lo erguê-la. — Você
vem conosco?
— Eu vou. — confirmou Koth. — Tenho uma equipe de
demolição aguardando para fazer o que precisa ser feito, caso seu
sílex falhe. Sabe que não gosto de problemas com uma só solução.
Esta árvore não vai criar raízes em outros solos.
Elspeth sorriu. — Estou feliz por ter você comigo. Tanto por
egoísmo quanto pelo fato de achar que nossas chances de sucesso
aumentam muito.
— Você sempre teve fé demais em mim. — disse Koth com
suavidade, enquanto caminhavam juntos para onde os outros se
preparavam para a guerra.
Nahiri, que esteve esperando que eles se movessem, saiu das
sombras para a relativa privacidade do local que eles haviam
escolhido para conversar. Ela chiou de dor ao tirar a bandagem do
pescoço, revelando o áspero e endurecido espinho que crescia ali.
— Foi o que pensei. — disse Melira, atrás dela.

48
Narihi deu um salto, dando meia-volta para encarar a esguia
mirraniana. Melira não se moveu.
— Dá para notar o olhar de pessoas que mantêm a esperança de
estarem erradas, e você o tinha. — Aqui. Ela botou a mão dentro
do bolso e jogou a algibeira de hexouro para Nahiri, que a pegou e
ficou a observando sem expressão por um instante, e então franziu
a testa à Melissa.
— Você ainda não está no seu pior. — disse Melira. — Eu
poderia tratá-la agora, e você teria excelentes chances de
recuperação. Mas perderia dias se fizéssemos isso, talvez mais.
— Acho que não temos esse tempo. — respondeu Nahiri.
— Achei que fosse dizer isso. Seu estágio está precoce o bastante
para podermos esperar. Você tem tempo até que não tenha mais
volta. Experimente o hexouro. Se isso não funcionar, pode me dizer
o que quer fazer.
O espinho no pescoço de Nahiri era coberto por uma camada do
que parecia ser pele comum; pegando um pedaço afiado de xisto,
ela cortou aquele pequeno tecido até encontrar algo duro que ela
esperava — verdadeiramente — que fosse um osso. Com a outra
mão, ela espargiu o hexouro em pó na ferida que criara. A pele ficou
tensa e ela sentiu uma bolha se formar, expelindo o hexouro de seu
corpo. Com uma coceira convulsiva, a pele costurou-se outra vez;
ela a tocou para testar, e não encontrou sutura ou sangue, apenas
um leve rastro arenoso de hexouro.
Sem demonstrar reação, Nahiri baixou a bandagem e olhou para
Melira. — Não funcionou. — disse ela. — Você diz que pode dar
um jeito?
— Posso. — disse Melira. — Mas se o fizer. . .é uma cura difícil
para o corpo suportar. Você ficará inutilizada por dias.
— Não dá para apressar?
— Isso é apressar. Seu corpo já está lutando com tudo que pode.
Isso me ajuda. Porém, perderemos você por um tempo. Podemos
vencer sem você?
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Nahiri estava em silêncio, mas sua expressão rigidamente
desenhada era mais do que uma resposta. Não, eles não podiam
vencer. Ela era a maga mais poderosa que eles tinham, e, além disso,
ela estava em um plano que respondia perfeitamente à sua magia.
Precisavam dela. — Depois de tudo que fiz pelo Multiverso, não
deveria acabar assim. — Não é certo.
— E não vai acabar assim. — disse Melira. Ela jogou a esfera que
vinha carregando à Nahiri. Ela parou no meio do caminho entre as
duas, voltando à sua lenta rotação. — Você é forte. Você vai lutar.
Agora lutará ainda mais por Mirrodin, e por seu próprio futuro.
Nahiri assentiu lentamente. — E se eu já estiver infectada, posso
mostrar a esses phyrexianos desgraçados o dano que uma filha de
Zendikar pode causar até me derrubarem.
— Bom. — disse Melira. — Então lutamos agora, curamos você
depois.
Nahiri concordou e foi para o lado de Melira. Juntas, as duas
caminharam para junto dos demais. Era hora de partir.
Jace e Kaya estavam se preparando para partir, a postos em uma
pequena vagoneta manual que os levaria pelo sistema de túneis até
os Poços de Dross. Ambos pareciam sinistramente determinados a
enfrentar o que quer que estivesse à frente, rostos resolutos, sem
sinal de tensão.
Nahiri invejou de leve aquela confiança deles. A sua própria
estava tênue.
Então Jace acenou, e os operadores da vagoneta começaram
bombear. Moveram-se para longe, para dentro da escuridão.
Os outros entraram em suas próprias vagonetas. Tyvar com
Kaito, Nahiri com Melira e um grupo de mirranianos. Koth e sua
equipe de demolição encheram um carrinho sozinhos, até restar
apenas Elspeth para adentrar o escuro. Ela esperou, olhando para o
acampamento ao redor dela. Era tão transitório, tão temporário, e
ainda assim tão duradouro. Isso era o que a lembrava da resistência.
Era ali que Mirrodin tomaria seu destino de volta e se ergueria —
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ferida, mas livre —, ou seria adicionada aos livros dos mortos para
sempre.
Eles precisavam vencer. Eles precisavam. Não só pelo Multiverso,
mas pelos mirranianos que morreram para levá-los até tão longe, e
pelo mirranianos ainda por vir, que mereciam muito mais do que
este plano arruinado.
Mais determinada do que nunca, Elspeth entrou na última
vagoneta, acenou com a cabeça para os elfos operando a manivela,
e fez sua própria descia às sombras de Nova Phyrexia.

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EPISÓDIO 3:
PERDAS INCONCEBÍVEIS

O túnel despencava abaixo, mirando no coração de Nova


Phyrexia. As paredes estreitas perpassavam rápidas demais para
serem observadas, camuflando os horrores inomináveis e
maravilhas espantadoras do plano transformado.
Elspeth agarrou-se ao carrinho, ciente de que um único
solavanco poderia fazê-la tombar sozinha nas profundezas da hostil
e asfixiante escuridão.

Arte por: Yeong-Hao Han


Pela primeira vez, ela desejou que estivesse pilotando com outros
Planeswalkers, ao invés dos mirranianos. Alguém que a distraísse.
Ao invés disso, havia apenas a descida ao escuro, e os elfos no
controle, segurando tão firme quanto ela.
Havia pouco tempo para conversa entre a partida e o começo
daquilo que em sua mente era uma queda livre. Os dois operadores
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estavam ansiosos para compartilhar o que sabiam sobre o plano
avassalado com a pessoa dita ser sua possível salvadora. E como ela
queria conquistar tal título! Eles eram tão estranhos para Elspeth
quanto ela era para eles. Ela tinha vergonha de admitir para si mesma
que estava grata por aquele desconhecimento. Era mais fácil para as
pessoas enxergarem você como heroína se nunca tivessem visto
você falhar.
Ela já falhara com Mirrodin uma vez, e este lugar arruinado era
sua punição e pagamento por tal erro. Ela não podia ver o
Multiverso sofrer do mesmo destino. Ela morreria para evitar isso,
caso chegasse a tal ponto.
— Estamos passando pelo Labirinto do Caçador e pelo Centro
Cirúrgico. — disse um deles. — Fique grata por isso. Estamos poupando-
a das coisas que jamais deveria ver.
— O Labirinto do Caçador. . . ??
— Talvez você se lembre dele como o Emaranhado. Durante a grande
transformação, Vorinclex transportou o pior dele para baixo da superfície,
usando-o como semente de seu novo império. Aquele que respondeu parecia
quase saudosista. Provavelmente havia nascido no Emaranhado, e
devia se lembrar dele livre, vivo e belo, e pensava jamais poder vê-
lo assim outra vez.
A queda livre começara logo em seguida, e os operadores ficaram
ocupados demais para continuar a explicação da paisagem que ela
não teria de ver. Elspeth fechou os olhos contra o vento célere —
não havia nada ali além do leve brilho metálico do aparato de
manobra no centro da vagoneta. A escuridão de Nova Phyrexia era
onipresente, sem nem mesmo a magia gravitacional da lacuna para
suavizar a descida deles — e agarrou-se com todas as forças.
E então, pouco a pouco, começaram a nivelar. Ela abriu os olhos,
e, quase imediatamente, desejou que não o tivesse feito.
O céu, ou o que quer que fosse, era um mar de nuvens leprosas
que se agitavam e mudavam sem cessar, assemelhando-se a uma
podridão de dentro para fora, mesmo pairando no céu. A paisagem
53
era dotada de piscinas de um líquido verde e brilhante, o qual ela
reconheceu como necrogênio, que reluzia em um tom soturno.
Mesmo antes de Phyrexia, isso já era mortal, capaz de transmutar
desavisados em mortos-vivos. Agora, poderia fazer isso ou induzir
phyresis, e ela não queria um nem outro.
Elspeth olhou para sua mão e tremeu. A luz do necrogênio a
tornou pálida, como se estivesse apodrecendo. As expressões lívidas
de seus companheiros eram análogas às suas. Aos olhos daquele
lugar, eles já estavam mortos.
— Tudo apodrece aqui. — disse um dos operadores. Ele fixou
sua atenção em pilotar a vagoneta até o fim da linha, onde os demais
já aguardavam. — Se ficar respirando os vapores daqui por tempo
demais, também apodrecerá.
— Não é tão ruim quanto o Centro Cirúrgico. — disse a outra,
sua face mergulhada em preocupação. — Lá, se ficar perto demais
das fontes, a phyresis pode iniciar só por ter respirado um borrifo.
O vapor mata antes de você se transformar.
Elspeth destrancou os dedos da grade que vinha segurando e ali
ficou, mexendo as mãos para aliviar a cãibra. — Isso é horrível.
— Isso é Nova Phyrexia. — disse o primeiro operador. — Muda
o que pode, mata o que não pode, e converte as ruínas à sua própria
imagem.
Eles ainda estavam desacelerando, agora quase parando. Os
outros carrinhos não estavam muito longe, seus passageiros em
vários estágios de preparar equipamento e desembarcar. A equipe
de demolição de Koth estava testando o chão enegrecido entre as
piscinas de necrogênio com longas estacas de metal, em busca do
caminho que mais pudessem chamar de seguro para sair daquele
pesadelo.
— Temos um túnel, não muito longe daqui, que deve nos levar
direto à Basílica Alva. — disse Koth, de voz solene, mas não
sombria.

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Se, até agora, ainda não havia perdido as esperanças, Elspeth
achava que ele jamais iria.
— Você faz parecer muito fácil. — disse Nahiri, descendo de seu
carrinho, os calcanhares batendo no chão. Parecia impossível ela ter
conseguido evitar o necrogênio, mas ela falava a língua do metal e
da pedra; a esfera provavelmente lhe contava todos os seus
segredos, até mesmo agora. Não havia por que se preocupar com
Nahiri, que estava indo até Koth sem hesitar. — Mas não vai ser,
vai?
— Não. — respondeu Koth. — Se formos pela rota mais direta,
talvez consigamos evitar a maior parte das forças de Thrissik. Se não
pudermos evitá-las, tentarão levá-los com vida, se puderem. Ele está
construindo marcos tumulares para trazer seu Destruidor, e os
magos mais poderosos são os melhores materiais de construção.
Nahiri ergueu uma sobrancelha. Kaya, que havia solvido o
problema do necrogênio transformando a parte de baixo das pernas
em translucidez púrpura, bufou. — Sim, sim, somos sempre os
melhores alvos.
— Pelo menos a confusão deve nos dar alguma cobertura.
Recebido com olhares vazios dos Planeswalkers, Koth deu um leve
e medonho sorriso. — Sete thanes governam os Poços de Dross,
mas nunca foram unidos. Quatro foram para o lado de Urabrask.
Roxith, Geth, Vraan e Sheoldred estão emprestando forças para a
rebelião contra a Phyrexia de Norn. Os outros três devem estar
distraídos, caçando território e de olho em traições. Temos mais
chance em nosso objetivo. Mas temos que ir agora mesmo.
— Se este é o momento em que podemos ir sem sermos vistos,
temos que sair logo. — disse Kaito, saindo do carrinho. Tyvar estava
logo atrás dele, girando seu pedaço de Vácuo Tremeluzente entre os
dedos como uma moeda e sorrindo em ironia para Kaya.
— Meu amigo gosta de ser esquecido. — disse ele. — Um desejo
incompreensível, mas admirável.

55
Elspeth pegou sua sacola e foi se juntar ao grupo. Eles eram o
que restava da equipe de ataque: eram a única esperança que o
Multiverso tinha de não sucumbir ao apocalipse phyrexiano. Eles
precisavam vencer.
— Tome. — disse ela, abrindo o saco e removendo uma
sequência de garrafas de vidro com Halo, doses individuais
amarradas juntas com uma faixa de couro, suas rolhas bem
emperradas. Isso vai nos proteger do necrogênio no ar por algum
tempo.
Ela foi entregando as garrafas, esperando até que todos tivessem
uma para destampar a sua própria e beber o conteúdo. Como
sempre, o gosto era efervescente e limpo, cítrico e doce, mas não
enjoativo. Ela limpou a boca e olhou em volta, observando os
outros fazerem o mesmo.
Jace engoliu o resto do Halo e respirou de forma ríspida, a garrafa
escorregando dos dedos logo antes dele mesmo cair de volta na
vagoneta atrás dele. Os mirranianos ao redor dele exclamaram de
medo e Kaya correu até ele, pegando seu pulso para senti-lo.
Após um instante, ela olhou para cima, atônita. — O pulso dele
está descontrolado. — disse. — Elspeth o que você fez?
— Nada... a não ser que o necrogênio estivesse impedindo outra
coisa de acontecer. Elspeth moveu-se rapidamente para o lado de
Kaya. Jace estava começando a tremer, não em convulsão, mas
evidente que sem controle de seu movimento. — Deixe-me vê-lo.
Melira acabara de dizer isso quando viu Jace. — Isso não é
phyresis. — ela disse. — Não sei o que é isso.
— Halo não machuca pessoas. — disse Elspeth, afoita. Ela
segurou Jace, e congelou, tremendo. — Ele está com dor. Muita dor.
Está queimando ele vivo. Eu teria percebido se estivesse com uma
dor assim enquanto estávamos mais acima. Isso é novo. Isso
começou quando elecolapsou . ..
— Temos que sair daqui. — disse um dos operadores das
vagonetas, olhando para Koth. — Não viemos preparados para ficar
56
nos Poços de Dross por mais tempo do que o que levamos para
descer. Sinto muito. Mesmo com o suco mágico da dama, temos que
sair daqui.
— E faremos o mesmo. — disse Koth. — Ou mandamos o
amigo de vocês de volta para cima com os outros ou carreguem-no,
mas temos que ir.
— Posso carregá-lo. — disse Tyvar. — Precisamos dele para o
plano dar certo.
— Mas ele não é o único que sabe operar o sílex. Nahiri fitou
Kaya. — Ela também é treinada. Ambos podem fazê-lo.
— Sou a reserva. — disse Kaya. — Só assumo se ele estiver
incapacitado.
— Ele me parece bem incapacitado. — disse Nahiri.
Jace arfou e sentou-se. Uma luz branco-azulada faiscava no ar ao
redor dele, o movimento jogando Kaya para o lado. Ele se
contorceu em descontrole, olhando para o nada, até saltar de dentro
da vagoneta e pousar de pé, parecendo determinado a partir em
meio à paisagem escura.
Tyvar o pegou pelo braço antes que ele pudesse entrar em uma
das piscinas de necrogênio, fazendo-o parar. — Você nos assustou,
amigo. — disse. — O que aconteceu?
Jace se virou para fitá-lo, parecendo não vê-lo totalmente. — O
Halo limpou minha mente, e eu. . .ela está com dor. — ele disse. —
Ela está me chamando. Tenho que ajudá-la. Tenho que ajudá-la
agora mesmo! Vocês precisa me deixar ir!
Tyvar franziu o cenho, ainda segurando Jace. — Ela? Quem é
"ela"?
— Vraska. — disse Jace, falando como se o nome fosse forçado
a ser proferido, como se não houvesse mais nada que ele pudesse
ter dito, como se fosse a última coisa do mundo que quisesse dizer.
— Ela me trouxe até aqui, e está sozinha, e assustada. Eu — eu ouço
seu sofrimento de qualquer lugar.

57
Os operadores da vagoneta voltaram aos controles, olhando para
Koth à espera de permissão para partir. Ele assentiu, e começaram
a dar impulsos — máquinas simples os levando à escuridão — para
longe do brilho do necrogênico. Outra vez, Jace tentou livrar-se de
Tyvar.
— Você precisa me soltar. — disse ele. — Preciso ir até ela. Ela
precisa de mim, e não vai sobreviver se eu não ajudá-la.
— Temos uma missão. — Koth proferiu.
A cabeça de Jace deu um solavanco, e os olhos pareceram ter
foco pela primeira vez. — Vraska precisa de mim. — disse ríspido,
e respirou fundo, acalmando-se. — Vocês pode ir sem mim. Eu
ajudarei ela e alcançaremos vocês juntos. Por favor.
— Uma força dividida não é força alguma. — disse Tyvar.
Jace olhou para ele com olhos arregalados, como se não pudesse
acreditar que sua tentativa lógica não tivesse funcionado. Ele se
contorceu mais forte desta vez, e livrou-se de Tyvar. Sem olhar para
trás, começou a espreitar por entre a podridão obscura.
— Isso é imprudente. — murmurou Koth.
— Ele a ama. — disse Elspeth. — Ele não consegue ouvir mais
nada.
— Não podemos deixá-lo ir. — disse Nahiri. Kaya e Kaito
piscaram para ela. Kayla fez que sim. — Ele tem o sílex. Se
perdermos aquilo, perdemos tudo. Podíamos nem ter vindo.
Podíamos ter ficado em casa, preocupados com nossos próprios
planos, e deixado os restos de Mirrodin queimarem. O grupo partiu
atrás de Jace, abandonando a rota segura dos Poços de Dross. O
plano, ainda que não esquecido, ruía sobre suas mãos, e seria
despedaçado se não achassem uma forma de retomá-lo em breve.
Eles seguiram Jace, um grupo amontoado de Planeswalkers e
mirranianos.

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— Essa é uma ideia terrível. — sussurrou Kaito. — Tenho várias
ideias terríveis, mas elas não costumam matar todos à minha volta.
Mas Jace tem ideias especialmente ruins, pelo visto.
Ainda assim, ele andou com os outros, e nenhum deles olhou
para trás.

Primeiro, parecia que a paisagem execrável e podre de


necrogênio era deles. E então, figuras hostis começaram a aparecer
— conchas de metal escurecido mal contendo tendões vermelhos
crus e ossos expostos, membros saltando de cada superfície de seus
corpos, e armas que pareciam cutelos grosseiros feitos para cortar
exoesqueletos poderosos. Algumas eram pequenas, do tamanho dos
Planeswalkers, enquanto outras eram muito maiores, enormes
colossos de metal e vísceras.
A maioria espelhava os Poços de Dross, conchas negras e
empoladas por conta do ambiente cáustico, enquanto outras eram
vermelho puro, formas superaquecidas de metal cortando
oponentes enquanto avançavam. A rebelião de Urabrask havia
começado.
As forças phyrexianas fizeram o estômago de Elspeth embrulhar.
Ela reconheceu os ecos e formas nas quais confiara durante a guerra
de Mirrodin — os braços de um elfo viridiano e o robusto peitoral
de um loxodonte. Outros aspectos de suas formas eram novos,
tornando-os ainda mais perturbadores. Toda vez que ela pensava
saber o que estava enxergando, encontrava outra coisa que causava
estranheza. Doeu olhar muito de perto.
Até então, os phyrexianos pareciam concentrados na batalha uns
contra os outros, seus pés fortes agitando a paisagem metálica e
esparrinhando necrogênio nas piscinas. Foi só ao passar perto de
uma das lutas que Elspeth entendeu o que estava ocorrendo. Os
olhos dela se arregalaram, e se virou para ver Jace.
— Você está fazendo eles nos evitarem. — disse ela.

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— Quando olham para nós, não veem absolutamente nada. —
Não é um escudo. É uma mudança completa do ambiente deles. A
tensão era evidente em sua voz. — Esse é o caminho mais rápido
para chegar até Vraska. — Ela está com tanto medo; e está sozinha.
Uma estrutura vasta e horripilante surgiu entre as nuvens
pútridas, tão escura e decadente quanto qualquer coisa ao redor de
si, protegida pelas terríveis "asas" de uma caixa torácica grande
demais para ter pertencido a algo vivo. Kaya fez um leve som de
repugnância. Koth fez um som mais alto de temor. Kaito olhou para
eles com as sobrancelhas erguidas.
— O Coliseu de Sheoldred. — disse Koth. — Ela faz eles
lutarem lá por diversão.
— Eles? — indagou Kaito, inexpressivo.
— Phyrexianos. Campeões ou aqueles que a descontentaram;
não importa. Eles entram e a maioria nunca mais sai. Às vezes, ela
leva nosso povo para lá, quando são capturados vivos e
considerados indignos das "dádivas" de Phyrexia. Koth balançou a
cabeça, parecendo mais revoltado a cada instante. — Ninguém sai
do coliseu vivo e sem mudar. Eu escapei. Ou quase. Parte de mim
lutará lá até eu morrer.
— Vraska. — disse Jace, e começou a correr de novo, com Nahiri
e Kaya logo atrás, Nahiri seguindo o sílex, Kaya seguindo Nahiri.
— Se essas ilusões andam com ele, as forças de Nova Phyrexia
vão nos ver em breve. — disse Tyvar. Ele parecia nervoso, pela
primeira vez. Em concordância velada, ele e os demais correram
atrás de Jace. Os portões do coliseu estavam destrancados, tão
estreita a passagem que o grupo teve que entrar em fila única. Jace
foi primeiro, Nahiri e Kaya logo na sequência.
Os outros nem haviam entrado quando ouviram Nahiri
xingando, bem como o som de metal se rasgando do chão. A
litomante se preparava para a guerra. Eles trocaram olhares em
passos rápidos, desembainhando suas armas conforme corriam.

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Kaito segurou o braço de Elspeth antes que ela pudesse entrar.
— Não podemos fazer isso. — disse ele. — Jace é nosso amigo,
mas isso é tolice. Temos que recuperar o sílex e seguir caminho.
Elspeth olhou para ele da forma mais moderada que conseguiu.
— De que adianta lutar se não podemos nem mesmo salvar os
nossos? — indagou.
Como se vencido, ele a soltou.
Elspeth se virou e adentrou o Coliseu de Sheoldred.
O interior era vasto, como um recipiente eviscerado cercado por
altas fileiras de assentos sem encosto, tão íngremes que era quase
certo que um espectador cairia caso não tomasse cuidado. Um piso
de metal esburacado estendia-se pelo centro, uma piscina de
necrogênio borbulhante visível no meio e nas bordas. Era um poço
de horrores.

Arte por: Dibujante Nocturno


E no recipiente, sangrando profusamente por uma dezena de
ferimentos horríveis, estava Vraska. A górgona tinha uma mão
apertada em seu peito, sangue escorrendo por entre os dedos,
enquanto ela segurava uma parte essencial de si. As gavinhas
serpentinas na cabeça jaziam imóveis, e um anel de phyrexianos

61
chegou perto dela, pisando nos corpos petrificados de seus
comparsas.
Aqueles não eram os únicos corpos no chão: cerca de uma dúzia
de mirranianos fora dizimada antes de as coisas chegarem a esse
ponto. Elspeth não pôde evitar de pensar, enquanto os via, que pelo
menos morreram sem serem completados; foi limpo e rápido.
Jace estava indo direto até Vraska, confiando que suas ilusões o
protegeriam. Os phyrexianos ainda não o viam, mas aquilo não
duraria para sempre. Passar pelo campo de batalha como fantasmas
era uma coisa. Passar entre um predador e sua presa era
completamente diferente. Kaito ergueu sua espada, e Elspeth fez
mesmo. Tyvar puxou o hexágono de metal preto de seu bolso e o
girou entre os dedos, a pele ondulando até ter uma nova
composição, uma natureza inata emprestada.
Koth suspirou, os ombros caindo. — Então é isso. — disse ele,
antes dar um grito severo. —Por Mirrodin! Ele avançou, a armadura
rochosa passando a um branco quente quando a ativou. Ele pegou
um pique de um dos caídos e correu, o calor se espalhando ao longo
da haste metálica; e então, ele brandia um bastão superaquecido.
Os outros estavam só um passo atrás. As lâminas de Nahiri
giraram em uma canção rodopiante de morte ao seu redor, cortando
dois dos phyrexianos restantes antes que pudessem terminar de se
transformarem. Kaya se moveu para avançar, e Nahiri deu um giro
até ela com olhos fumegantes.
— Não. — vociferou. — Se aquele tolo quer se matar, temos
que contar com você. Sem vocês dois, será o nosso fim. Fique fora
disso.
Kaya nunca tivera tanto medo de Nahiri antes. Ela encarou-a nos
olhos e fez sua pele arrepiar com uma morbidade tomando seu ser.
Ela deu um passo para trás e viu os demais enfrentarem os
phyrexianos.
Os inimigos deram as costas à Vraska, distraídos pelos
Planeswalkers, mas ainda sem ver Jace, que continuou sua corrida
62
obstinada até a górgona. Kaito ergueu sua espada para bloquear uma
das criaturas blindadas enquanto Himono apitava em aviso, e
cambaleou com a força do impacto. De repente, Tyvar estava ali,
entrepondo-se a Kaito e o ataque seguinte da espada da criatura,
grunhindo ao chocá-la contra suas próprias costas de placas
metálicas.
A arma mal arranhou a superfície. Seu sorriso era selvagem ao
girar sua arma na direção da besta. Atrás dele, Kaito inclinou a
cabeça. A camada de óleo phyrexiano reluzente que a explosão
causou na pele transformada de Tyvar descascou e se enrolou como
uma bola, pairando no ar sobre a cabeça de Tyvar.
Koth espancou os phyrexianos com seus pulsos superaquecidos,
mirando nas fissuras de suas armaduras, articulações e espaços
abertos, esquivando das armas. Um dos phyrexianos — algo terrível,
que se assemelhava a uma lagosta mecânica, feita da fundição de
mais de uma dezena de corpos humanoides menores em uma única
forma — rugiu e tentou perfurá-lo com uma garra semicrustácea.
Koth a pegou antes que pudesse enfiar a ponta em sua armadura,
esforçando-se para deixá-la longe de si.
Um ataque da espada de Elspeth decepou a garra, com uma luz
dourada radiante brilhando do impacto. Koth sorriu para ela, que
continuava a desferir ataques, decepando então a besta. Então, ele
deu a volta e arremessou a garra no próximo combatente em linha,
transpassando o objeto pela sua garganta. O lutador piscou uma vez,
quase comicamente surpreso, e caiu, sem vida e imóvel.
A bola de óleo, que Kaito havia criado, acelerou de repente,
atirando-se contra os olhos do phyrexiano mais próximo. A grande
figura cambaleou para trás, cega por alguns instantes, e aquela era a
abertura que Tyvar precisava para matá-la. Ele chutou o corpo
enquanto o mesmo caía, virando-se para Kaito.
— Boa mira!
— Eu trapaceio. — disse Kaito, dando de ombros.

63
Em meio a tudo isso, Nahiri avançou em uma nuvem de metal
rodopiante, uma espantosa causadora de destruição sem fim. Os
phyrexianos restantes jamais tiveram chance contra ela, muito
menos contra a força dos Planeswalkers reunidos. O último deles
caiu, enquanto as facas dela voltavam à posição neutra no ar ao seu
redor, e Jace finalmente alcançou Vraska, que deu um passo para
trás, para longe dele, a mão livre erguida para afastá-lo.
Ele parou, fitando-a com olhos espantados, que ainda tinham um
leve brilho azul do esforço de se manter oculto de Phyrexia. —
Vraska? — disse ele, não se preocupando em manter a dor afastada
de sua voz. — Vraska, temos Elspeth conosco. Temos Halo. Temos
Melira. Ela pode curar phyresis. Podemos curar suas feridas. Não é
tão ruim quanto vocêpensa . ..
— Não. — disse Vraska; sua voz, geralmente firme, estava vazia
e esganiçada. — Não, Jace, não. Eu sinto muito por tê-lo chamado.
Não era minha intenção. Estamos ligados, e você... não deveria ter
ouvido aquilo.
Jace piscou, dando um passo na direção dela. — O quê? Não.
Chamar-me foi a coisa certa a ser feita, e está segura agora; estamos
seguros, nós salvamos você—
— Não! Toda a força esvaída de Vraska retornou em prol de uma
única e violenta sílaba. Ela vacilou, olhando para ele, de alguma
forma menor do que jamais fora; de alguma forma. . .reduzida. —
Você não me salvou, Jace. Você não pode. Chegou tarde demais.
Está dentro de mim. Phyrexia é um veneno, o qual não se pode
expelir. É tarde demais.
Jace a observou em franco horror. Melira mordeu o lábio.
— Posso sentir daqui. — disse ela, contida. — O fato de ela ainda
manter tanto de si. . .ela deve ter uma vontade capaz de mover
montanhas. Se não estivesse tão ferida, talvez; mas da forma queestá
. ..
Nahiri deu um passo à frente, facas no encalço. — Ainda
podemos dar a ela um fim limpo. — disse ela, com voz ausente de
64
qualquer sentimento. — Podemos deixá-la morrer como você
mesma.
— Se tocar nela, eu mato você. — praguejou Jace, tirando os
olhos de Vraska tempo o bastante para lançar um olhar à Nahiri.
Nahiri parou, olhando para ele sem compaixão. Jace voltou até
Vraska.
— Por favor. — disse ele. — Podemos pelo menos tentar.
Podemos. . .temos que fazer algo.
— Vocês têm que correr. — disse Vraska. — Todos vocês.
Corram agora, enquanto há chance disso correr como havíamos
planejado. Sabíamos que poderia haver perdas. Sabíamos
que haveria perdas. Corram. Corra, Jace Beleren, e não olha para trás.
Por favor. Eu te amo. Não deixe meu amor por você ser o motivo
de sua morte. Vá. Salve o Multiverso, e viva. Isso me faria feliz.
— Não vou deixá-la.
— Mas nós vamos. — disse Kaito. — Jace, você pode ficar com
Vraska, se é o que deseja. Você pode fazer suas próprias escolhas.
Mas não pode fazê-las com o sílex.
Nahiri estalou os dedos. Suas facas avançaram, rasgando as tiras
da sacola de Jace antes que ele pudesse reagir, e Kaya a pegou antes
de atingir o chão, abraçando-a no peito e se afastando.
— Você vai desistir dela? Jace olhou, sem esperança, de rosto em
rosto; pessoas que conhecia, com as quais lutara por anos, pessoas
qua mal reconhecia. — Elspeth, você veio aqui para ser um farol de
esperança—
— Para todos. — interviu Elspeth. — Phyrexia não deixa as
pessoas irem.
— Jace, por favor. — disse Vraska. — É o meu fim. Deixe-me
ir. Ela parou, com um breve sorriso viajando por seus lábios. —
Nunca esperei morrer de outra forma que não sozinha.
— Você não vai morrer sozinha. — exclamou Jace, voltando-se a
ela. — Você não vai morrer.
65
— Eu vou. — disse Vraska.
Nenhum dos dois parecia perceber a saída dos outros
Planeswalkers do coliseu, deixando-os para trás. Kaya segurava o
sílex com firmeza. Eles estavam perdidos em seu próprio mundo.
E então, Jace se aproximou, e desse vez, Vraska não recuou, nem
mesmo quando ele segurou suas mãos ensanguentadas.
— Feche seus olhos. — ele disse.
Vraska o fez.

O grupo se espremeu pela passagem estreita em fila única,


chegando à paisagem escura e apodrecida fora do coliseu, deixando
Vraska e Jace para trás.
Eles entraram direto no meio de uma guerra.
A luta dentro do coliseu foi tudo, menos silenciosa. Eles
mataram, gritaram e berraram uns com os outros sem nem pensar
no fato de que poderiam ser ouvidos. Com Jace ainda lá dentro, não
havia mais nada os camuflando dos combatentes em campo, cuja
maioria, não mais dispersa, reunira-se do lado de fora do coliseu.
Eles se organizaram em fileiras de criaturas que iam de tamanho
humano com várias pernas até constructos enormes de tendões e
ossos.

66
Arte por: Lie Setiawan
Os Planeswalkers e mirranianos se encararam. Estavam exaustos
demais por conta da luta para salvar Vraska. Partes da pele
começavam a se mostrar por baixo da carapaça de metal de Tyvar,
e as facas de Nahiri já se moviam mais devagar.
Não podiam voltar, ou dariam de cara com um caminho sem
saída. Não podiam avançar sem eliminar os inimigos.
Elspeth pegou a mão de Koth, apertando seus dedos e buscando
conforto no fato de que fizeram todo o possível. Eles poderiam
falhar, poderiam — mas tentaram.
— Por Mirrodin? — ela perguntou, resoluta a lutar.
O grandalhão assentiu. — Por Mirrodin! — ele rugiu, e partiram
em disparada, uma onda destinada a fazer a terra tremer, em uma
luta até o fim.

— Pode abrir os olhos agora. — disse Jace.


Vraska piscou e olhou em volta. O coliseu havia sumido,
substituído por uma avenida ravnicana ensolarada. O céu, perfeito
e sem nuvens, raramente assim ficava. Ela olhou para Jace e piscou
de novo. Todos os vestígios da batalha haviam sumido, junto com
as vestes de batalha. Ao invés disso, ele vestia um traje de passeio,
cabelos quase que domados para se comportarem, e ofereceu-lhe a
mão.
— Posso não ser capaz de salvá-la de Phyrexia, mas posso passar
mais um dia com você. — disse ele. — Deixe-me oferecer isso.
— Jace. — disse ela, a voz transformando-se em riso quando ele
pegou sua mão e a puxou para mais perto, e tudo estava
maravilhoso, e não havia nada de errado.
Ela quase podia fingir que acreditava na ilusão, tal era sua
imersão. Eles andaram pelas ruas de Ravnica, visitando salões de
guildas e grandes museus, e ela deixou a cabeça repousar em seu

67
ombro, perdida em seu sonho do futuro que podiam ter tido juntos,
se o Multiverso tivesse sido um pouco mais gentil.
Ela agarrou firme sua mão, na versão do mundo perfeito dele —
o mundo perfeito deles. — Obrigada. — sussurrou. — É
maravilhoso.
— Eu te amo. — disse ele.
Vraska fechou o rosto. — Você precisa ir agora. Do contrário,
quando Phyrexia tomar minha mente, temo que vou feri-lo. Por
favor. Por aquilo que poderíamos ter sido. Faça isso por mim.
— Não. Não vou deixá-la. Posso salvar sua mente. Aqui, pelo
menos. Podemos ficar juntos, um lugar onde Phyrexia não pode
chegar... — e o céu começou a escurecer. — Oh, Jace. — disse ela,
a voz passando a um suspiro ao proferir seu nome. — Não se sinta
mal. Você sempre tem que ser o herói que acha a resposta, mas, às
vezes, não há uma. Caso você tivesse sido só um pouco mais rápido.
. ..
Se Elspeth e Kaya tivessem descido da superfície mais rápido —
se ele não tivesse escolhido esperá-las —, se ele não tivesse deixado
Nahiri iniciar uma discussão com ele no acampamento mirraniano.
Se.
— Não é tarde demais. — ele disse.
— É, sim. Ela tocou o lado de seu rosto. — Está em você
também. Você já está perdido.
— O quê?
— Aqui, nos Poços de Dross, o óleo que espalha a infecção
impregna o ar acima das piscinas de necrogênio. Você devia ter
corrido, meu bravo e tolo garoto. Ela balançou a cabeça. — Você
está tão arruinado quanto eu.
— Eu tomei Halo antes de encontrá-la. Eu tenho
tempo. Nós temos tempo.

68
Jace suspirou, chegando mais perto. Vraska se inclinou para ir ao
seu encontro, e os lábios deles se tocaram — um último beijo dado
às sombras do fim.
Ele sentiu o fim dos lábios lábios dela, e algo fincou a palma de
sua mão direita, queimando como gelo, e a ilusão, que ele tão
cauteloso criara, desmoronou ao redor deles, dando lugar ao lúgubre
céu phyrexiano. Jace tentou se afastar. Vraska o segurou rápido, as
mãos ainda unidas, e sorriu, mais dócil que nunca.
— Pela glória de Phyrexia. — ela murmurou.

Arte por: Martina Fačková


Ela tinha uma cauda longa e curvada, como a de um escorpião,
denteada na ponta. Foi aquilo que o atingira, inserindo uma dose
grande de óleo brilhante. Ela riu, e os olhos reluziram ao fitá-lo pela
primeira vez. Jace levantou seu braço em ardência para cobrir o
rosto, deu a volta e correu da phyrexiana, que o conhecia melhor
que ninguém.
Sua gargalhada o seguiu, e ele trombou direto com a lateral
metálica de Tyvar. O elfo estava recuando pela entrada com os
demais, fugindo de uma ameaça de ataque das forças phyrexianas.
Vraska ainda ria. Eles iam morrer aqui. Todos.

69
Nahiri assobiou entre os dentes ao desferir um golpe contra um
gigante bruto. — É nosso fim! — ela gritou. A bandagem em seu
pescoço se soltou em algum momento da luta, balançando
conforme ela se movia. Ela a pegou e puxou, revelando uma
estranha e ossuda protuberância na coluna. Não parecia se importar
com quem visse ao ficar de costas para ver os demais.
— Não há como vencer. — disse ela. — A missão só vai para
frente se nós formos. Então você vai em frente. Segure-se em algo.
A magia dela se ergueu como uma maré ardente. Ela a encontrou
profunda o bastante para fazer o ar dançar como uma névoa de calor
de ondulações visíveis. O poder de Nahiri parecia incansável,
implacável. Uma a uma, as facas que havia, de forma meticulosa,
evocado da substância da camada, caíram. A espada em sua mão
queimava mais forte. As proximidades do coliseu começaram a
quebrar e ruir, incapazes de resistir ao seu chamado inexorável.
A protuberância ossuda em sua coluna crescia, como se extrair
tal poder da própria Phyrexia acelerasse uma transformação terrível.
A pele dela começou a rachar, revelando veias vermelhas, ardentes
e profundas no lugar do sangue.
Ela encontrou os olhos de Jace do outro lado do campo de
batalha desolado, seus próprios olhos agora inteiramente pretos
como carvões extintos. — Não deixe isso ser em vão. — disse ela.
— Termine o serviço.

70
Arte por: Andrey Kuzinskiy
Ela golpeou com a espada, e, naquele instante, era uma figura
lendária; naquele instante, ela poderia ter dilacerado o plano. E
então, com uma vasta e terrível destruição, ela fez exatamente isso,
e tudo caiu em escuridão.

A poeira cobriu o ar, escurecida com necrogênio e brilhante com


incrível esplendor. Pouco a pouco, foi se desfazendo.
Elspeth sentou-se, tossindo, e empurrou um grande destroço
para longe do corpo e foi se arrastando de joelhos e mãos no chão
à procura dos demais. O impacto do corpo dela contra o chão de
porcelana esmagou sua sacola, e ela teve que conter o ímpeto de
chorar ao ver o precioso Halo restante sendo derramado no chão e
se dissipando como uma névoa em arco-íris.
Não que ele os tivesse ajudado muito até então. Estavam
perdendo. Eles iam morrer aqui — se tivessem sorte. Sem sorte,
iriam se tornar novas ferramentas terríveis do arsenal de Phyrexia e
levar a destruição pelos planos.
Não. Não, ela não podia pensar assim. Ela se levantou olhando
ao redor e ficou aliviada por ver Koth se erguendo dos destroços.

71
Ele olhou para cima, de maxilar entreaberto. — Que completa idiota.
— suspirou.
— O quê? — perguntou Elspeth.
Ele apontou. — Olhe.
Ela olhou para cima. Havia um grande vão no céu prateado,
escuro e afiado, como se alguém tivesse cortado caminho ali.
— Ela derrubou o coliseu inteiro na Basílica Alva. — disse ele.
— Incrível.
Os outros estavam se levantando dos destroços. Tyvar ajudou
Kaito, Kaya auxiliou Jace. Elspeth ficou aliviada por ver que o saco
com o sílex estava em melhores condições que a sua própria. Ele
parecia intacto.
Nahiri estava desaparecida.
Acima deles, phyrexianos começaram a sair do buraco, quase
imediatamente iniciando a batalha uns contra os outros. Eles não
caíram; seguraram-se à superfície prateada do céu, ignorando a
gravidade em favor da carnificina. Mais phyrexianos apareceram
entre as paredes, encouraçados em branco-prateado, marcando-os
como habitantes da Basílica Alva.
Elspeth virou-se e arquejou. Os outros seguiram seu olhar. Ali,
brilhante contra o horizonte artificial, estava Atraxa, a forma
brilhante de asas largas, lutando contra os invasores obscuros no
domínio de sua senhora.
— Precisamos ir. — disse Koth. — Esta batalha manterá as
forças de Elesh Norn distraídas por algum tempo, mas não para
sempre.
— E eu não tenho para sempre. — disse Jace. Ele ergueu o
braço, com bolhas e queimado do veneno de Vraska. A pele se partia
em fissuras, e havia um brilho lustroso nada semelhante a sangue.
— O Halo em meu corpo vai desacelerá-la, mas não pará-la.
— Melira. — disse Elspeth.

72
A pequena mirraniana assentiu. — Ele ficaria incapacitado, e
nunca conseguiríamos levá-lo à superfície. — disse ela. — Não
posso fazer isso aqui.
Jace olhou para ela sem surpresa alguma. — Kaya, devolva-me o
sílex. Não vou sobreviver dessa forma, então melhor que eu seja eu
a acionar a explosão.
— Se acha que isso é um bom argumento, você perdeu a cabeça.
— disse Kaya, protegendo a sacola.
— Podemos discutir enquanto andamos. — disse Koth. —
Estamos próximos ao Altar. Sua amiga litomante nos levou a nosso
objetivo, e não devíamos deixar seu sacrifício ser em vão.
— Não posso acreditar que viverei em um mundo em que Nahiri
me salvou. — disse Jace. Ele olhou para seu braço, sua boca cerrada.
— Mas, como disse, acho que não precisarei.
Eles começaram a andar, abrindo caminho entre os entulhos, em
direção ao altar de Norn.
Jace continuou a sussurrar para Kaya, tentando convencê-la a lhe
entregar a sacola. Até que, enfim, com expressão de desgosto, ela a
atirou nos braços dele, o corpo piscando em roxo ao transpassar os
destroços maiores. Jace descansou o saco em sua cintura, nem
contente nem descontente; a perda de Vraska — e de seu próprio
futuro de uma vez só — quebrou algo dentro dele, e seu olhar de
desespero era como um golpe ao coração de Elspeth. Ela não podia
encará-lo por muito tempo.
Eles perderam dois dos seus — três, se incluísse Jace à lista —, e
todo o Halo. Estavam presos no coração de Nova Phyrexia, sem
caminho claro para casa.
Quantas coisas ainda lhes restavam perder?
Sob o céu ardente da Basílica Alva, e a luz corrompida de Atraxa,
eles prosseguiram.

73
EPISÓDIO 4:
CHANCES IMPOSSÍVEIS

Elspeth acelerou o passo para igualar ao de Koth, ambos se


movendo com toda a velocidade que a plataforma forrada de
detritos permitia. O sacrifício de Nahiri os deixou mais próximos de
seu objetivo. A situação também os retardou consideravelmente
(salvo no caso de Kaya), pois escorregar nos detritos significaria uma
longa queda até as profundezas da camada.
O buraco no céu cristalino sobre a cabeça deles ainda era visível,
uma ferida dentada na perfeição do local, fervilhando com todas as
cores de Phyrexia. Eles corriam em meio a uma guerra e, embora
ninguém pudesse dizer que não foram tocados por seus horrores,
por alguns momentos, eles eram pequenos demais para chamar
atenção.

74
Arte por: Marc Simonetti
Elspeth disparou um olhar venenoso na direção dos guerreiros
acima. Vocês mal podem esperar, ela pensou, tão feroz quanto
podia. Vocês vão se arrepender do que fizeram conosco.
Eles não se arrependeriam. Ela sabia disso. Mesmo que tudo
corresse perfeitamente a partir de então, mesmo que eles
arrancassem uma vitória impossível deste caos, Phyrexia não se
arrependeria de ter destruído Mirrodin. Eles não foram criados para
se arrepender das coisas. Phyrexia agia pelo bem e pela glória de
Phyrexia e, no final, isso era tudo o que importava. Tudo seria Um,
ou nada mais existiria.
A ponte alta onde haviam caído parecia delicada demais para ter
resistido ao impacto de tamanha peça maciça do Coliseu de
Sheoldred. Mesmo que, em condições normais, a ponte pudesse ter
sido resistente o suficiente, a natureza de sua chegada conferira a
eles ainda mais peso, com a magnitude do sacrifício de Nahiri
tombando-os diretamente nas insondáveis profundezas brancas.
Olhando sobre a borda, Elspeth conseguiu ver mais da camada
abaixo do que parecia possível. Uma treliça de plataformas de
alabastro se expandia por todos os locais ao seu redor, conectadas
por longas pontes de tendões carmesim.

75
Depois dos maculados ermos de necrogênio dos Poços de Dross,
este lugar lembrava Elspeth do sangue salpicado sobre as areias
brancas de Theros, manchando aquilo que deveria ser intacto. Koth,
Melira e os engenheiros goblins eram mirranianos de nascença. Os
planeswalkers eram estranhos no local, mas este era Mirrodin, este
era o plano deles, e não de Phyrexia, independentemente do quanto
ele havia sido transformado pelo óleo brilhante. Eles jamais
deveriam parecer deslocados em sua própria terra natal.
Conglomerados de edifícios ascendiam sobre as plataformas na
treliça como esculturas orgânicas, mesclando curvas esguias de
metal mecânico com a crueza orgânica de ossos e tendões. Tudo era
branco sobre vermelho, um plano inteiro feito à imagem de Elesh
Norn, como um terrível pesadelo.
Embora as pontes tivessem sido claramente criadas para facilitar
a passagem de multidões de phyrexianos, elas estavam vazias, salvo
pelos próprios planeswalkers. A batalha que estava sendo travada
sobre eles estava distante demais para sequer ecoar onde estavam;
parecia que estavam sozinhos. Em vez disso, um som baixo
preenchia o ar, como se as próprias estruturas o entoassem. Um
hino phyrexiano de horrores.
“Nahiri fez um grande sacrifício por nós”, disse Koth. “Temos
que continuar em frente para honrar o fim que ela escolheu.”
“Ela estava infectada”, disse Elspeth. “Eu vi as mudanças nela,
pouco antes do fim. É impossível que ela não tenha se dado conta
do que estava acontecendo. Mas ela nunca disse nada.”
“Ela disse para mim”, disse Melira, movendo-se em meio ao
grupo para garantir que todos mantivessem o ritmo. “Quando
estávamos na Fornalha, ela me perguntou se eu poderia ajudá-la.”
“E você poderia?”, perguntou Elspeth.
“Poderia", disse Melira, respirando fundo. “Eu poderia tê-la
ajudado, mas reverter o processo de phyresis é como puxar um
espinheiro de um solo fértil. Ele lança centenas de raízes. Quando
escavamos uma, encontramos cem iguais. Reparar seu corpo do
76
dano que já havia sido causado a deixaria incapacitada durante dias.
Ela teria que ter ficado para trás.”
“Para ela, isso seria equivalente a desperdiçar um tempo que já
não tínhamos", disse Elspeth.
Enquanto falavam, eles conseguiram alcançar Kaya. Kaya olhou
para eles, escutando, e então perguntou, “Você poderia fazer uma
cura dessas no Jace?”
“Se ele me permitisse”, disse Melira.
Kaya olhou para trás na direção de Jace e o viu caminhando,
reservado, com o Sílex se mexendo dentro da bolsa que trazia no
quadril. A ferida em seu braço havia evoluído: fios e metal cintilante
brilhavam pela queimadura. O pouco de carne que havia restado
tinha uma aparência crua e úmida, escurecendo conforme
transmutava em cabos fibrosos.
“Não acho que ele vai nos deixar fazer isso”, disse ela, em voz
baixa.
“Então você me conhece melhor do que acha que conhece”, disse a voz de
Jace em sua cabeça. Melira, que tinha menos experiência com
telepatia que os demais, pareceu surpreendida. “Você realmente achou
que eu não prestaria atenção enquanto vocês discutem o meu futuro? Não vou
colocar todos nós em risco para salvar minha própria vida, não depois de já
termos perdido Vraska. Isso é mais peso do que estou disposto a carregar.”
“Bom saber que você ainda está conosco, Jace”, respondeu Kaya.
“Por enquanto”, respondeu Jace lugubremente. Sua voz mental
ficou em silêncio novamente, enquanto toda sua energia se
concentrava em mover-se para frente.
“Honraremos a história de Nahiri e o fim que ela escreveu para
si saindo daqui vitoriosos”, disse Tyvar, que estava caminhando logo
atrás com Kaito. “Um grande sacrifício exige um grande relato.”
“Só espero que ela esteja morta”, disse Kaito.
Elspeth se virou e olhou para ele, atônita. “Explique isso”, disse
ela.
77
O planeswalker magricela encolheu os ombros, fazendo com que
o tanuki sobre seus ombros abanasse a cabeça. “Temos que admitir,
é provável que ela seja a mais poderosa de todos nós.”
“Sim”, disse Elspeth, lentamente.
“Ela viaja há tanto tempo que duvido que qualquer um de nós
conseguisse derrotá-la”, ele continuou. “Talvez nem dois de nós.
Mas um a um, contra um poder daquele tipo? Eu seria derrotado, e
você também. Não quero enfrentá-la do outro lado do campo de
batalha. Ela optou por garantir que pudéssemos continuar seguindo
em frente, mesmo que isso significasse se afastar da única pessoa
que poderia ter sido capaz de salvá-la. Espero que seu sacrifício
tenha sido realizado por completo, e que ela não pare no meio e se
vire contra as pessoas que estava tentando proteger.”
“Às vezes, é melhor chorar pela morte de um companheiro do
que se arriscar a lutar contra ele”, disse Tyvar, finalmente, com um
tom comedido.
Era um pensamento perturbador que Elspeth não queria nutrir,
embora soubesse que era inevitável. Eles não tinham encontrado
um corpo entre os destroços. Embora Nahiri tivesse se sacrificado
por eles, ela ainda poderia voltar com outra forma, transformada em
um inimigo inexaurível.
“Bom, isso é terrível”, disse Kaya. “Obrigada pela observação.”
“Este não é o lugar ideal para ilusões mesquinhas.” Kaito
encolheu os ombros. “Quando não vemos as coisas como elas são
de verdade, acabamos nos machucando.”
“Um, que diabos é aquilo?”, perguntou Kaya enquanto parava
subitamente no meio do caminho e olhava, boquiaberta, para o
colosso imóvel que surgia das profundezas abaixo deles.
Sua cabeça era uma lágrima invertida de metal branco, dividida
no meio por um buraco vermelho vazio, como se algo ainda maior
tivesse aparecido para retirar seu olho. A forma do seu corpo era
curvada e alongada, fazendo com que fosse impossível compará-lo
com uma forma corporal normal. Não era um inseto e nem um
78
réptil, mas também não era humanoide ou feito seguindo qualquer
plano previsível. Todo ele era feito de branco e vermelho,
adequando-se quase perfeitamente ao cenário ao redor. Antes que
Kaya tivesse chamado atenção para ele, Elspeth o tomou por mais
um edifício monumental.
“Elesh Norn não gosta de entregar o que acha que pertence a
ela”, disse Koth melancolicamente. “Ela tem seus favoritos —
aqueles que melhor a serviram ou que lutaram contra ela com mais
ferocidade — ossificados. Transformados em ossos e adicionados à
sua Basílica Alva.” Ele apontou para a estátua. “Precisamos ter
cuidado mesmo assim. Já vi estruturas como esta ganhando vida e
matando mirranianos que se aproximaram demais.”
Então a coisa poderia ser uma estátua ou um phyrexiano que
atacaria assim que o grupo se aproximasse. Sua posição o deixava ao
lado da ponte, uma ameaça assomadora. Elspeth fez uma careta
enquanto segurava o punho de sua espada.
“Podemos ir para uma ponte mais segura?”, perguntou Kaito.
“Não se quisermos chegar ao altar de Elesh Norn”, disse Koth.
“A partir de lá, podemos ter acesso aos Jardins Micossintéticos.” É
lá que teremos acesso ao Germinúcleo, e é lá que ela plantou seu
Quebra-reinos. É para lá que temos que ir.”
“Ainda não consegui entender como ela conseguiu plantar uma
Árvore-mundo, mesmo que seja falsa”, disse Tyvar. A dimensão da
Basílica Alva roubou um pouco de presença de sua voz
normalmente ressonante, fazendo com que soasse reduzido.
Todos ali estavam reduzidos. Eles se diminuíam na presença de
Phyrexia.
Tyvar continuou: “A Árvore-mundo cresce dentro do próprio
Cosmo, vinculando os reinos de Kaldheim. Ela existe dentro e fora
da realidade. Mesmo que alguém tivesse roubado uma semente, ela
dividiria este plano pela metade após germinar. O fato de que isso
não tinha acontecido era um milagre e um horror.”

79
“Nunca vimos algo assim antes", disse Koth. “A maior parte das
pessoas não viu. Melira é a única espiã que temos que conseguiu ir
até a árvore e depois voltar.”
“Só porque eles não conseguem me infectar”, disse Melira.
“Todos que foram até os jardins comigo e sobreviveram por tempo
o suficiente para sair novamente sucumbiram antes de chegarmos
em casa. A árvore de Norn foi plantada abaixo do Germinúcleo,
onde ela aprisionou Karn. É uma coisa realmente terrível, aquela
árvore. Tyvar tem razão. Olhando para ela, temos a ideia de que ela
deveria dividir o plano em dois. Suas raízes são profundas, e seus
galhos são tão altos que chegam até os Jardins Micossintéticos.” Ela
franziu a testa. “De certa forma, olhar para eles é como olhar para
algo que está debaixo d’água. Os galhos têm formas estranhas e
distorcidas, e há algo de errado com eles.”
“Trilhas dos Presságios”, disse Tyvar. “De certa forma, ela está
gerando Trilhas dos Presságios nos galhos de uma árvore que não
tem o direito de existir.” Ele olhou com desconfiança, primeiro para
o nada e, em seguida, para o gigante imóvel que estava por perto.
“Temos que acabar com isso.”
“É por isso que estamos aqui", disse Kaya. Ela olhou para Koth.
“Podemos continuar em frente?”
“Se for atacar, vai atacar”, disse ele. “O altar de Elesh Norn não
está longe daqui.” Ele apontou na direção de um edifício maior que
os outros, mais ornamentado, arranhando o céu como uma citadela
de branco brilhante e vermelho brutal, orgânica e mecânica ao
mesmo tempo. Era bela de uma forma rigorosa e austera. Era um
monumento a uma Phyrexia unificada.
Os olhos de Elspeth doíam se ela olhasse para a construção por
muito tempo. Apertando um pouco mais o punho da espada, ela
acenou. “Continuamos em frente.”
Eles continuaram a caminhada. Eles estavam mais juntos agora
do que quando começaram a percorrer a ponte. Kaya continuava
numa posição oposta no grupo à de Jace, mas independentemente

80
do que ele disse para fazer com que ela lhe desse o Sílex, ela já não
o encarava mais com tanta fúria.
O golias não se mexia. Eles passaram por baixo do seu olhar
vazio sem complicações, continuando em direção ao aglomerado de
edifícios que os esperava na outra extremidade da ponte. Kaya
permaneceu na frente do grupo, alternando pelos detritos em seu
caminho em vez de contorná-los, com pequenos salpicos de energia
roxa marcando seu caminho.
Koth, Elspeth e os mirranianos vinham depois, com Kaito
poucos metros atrás, caminhando entre eles e Tyvar, enquanto Jace
seguia na traseira com o Sílex. Tyvar continuava olhando para ele,
quando, por fim, disse “Apresse-se, amigo Jace. Não queremos
perdê-lo agora.”
“Não, creio que não”, disse Jace, com uma fagulha de humor
negro em seu tom. “Não dá para salvar o Multiverso sem mim.”
As portas do altar se escancararam à frente deles, como a
mandíbula aterrorizante de uma fera impossível e devoradora. A
construção parecia congelada entre a vida e a morte,
simultaneamente uma arquitetura fixa e um corpo petrificado. Ao
olhar para ela, a pele do braço de Elspeth se arrepiou. Mas eles
prosseguiram, alertas e prontos para o perigo, até o saguão vazio.
“Tenho a nítida sensação de que estamos caminhando para uma
armadilha”, disse Tyvar, com um tom baixo que tinha menos a ver
com seu respeito por aquele espaço do que por um desejo muito
real de não chamar atenção. Phyrexianos congelados adornavam as
paredes: os objetos favoritos de Elesh Norn.

81
Arte por: Nino Vecia
“É porque provavelmente estamos", disse Kaya. “Primeiro nos
espalhamos pela superfície, depois encontramos Vraska viva e capaz
de aguentar tempo suficiente para chamar Jace? Com Ajani do lado
deles, eles conseguiram antecipar nosso plano de ataque. Ele nos
conhece bem demais. Essa Elesh Norn de que vocês tanto falam
parece inteligente o suficiente para usá-lo contra nós.”
“Inteligente? Sim. Omnisciente? Não”, disse Melira. “Suas forças
estão distraídas com a rebelião. Temos que continuar em frente.”
Eles continuaram se aprofundando no edifício silencioso,
passando por colunas de corpos imóveis, paredes com tendões que
se desenrolavam como heras, fileiras e mais fileiras de dentes com
aparência terrivelmente humana e mais milhares de outros pesadelos
phyrexianos. A Basílica Alva não tinha fim, e eles estavam prestes a
conhecer tudo.

A escadaria em espiral que ia da Basílica Alva aos Jardins


Micossintéticos era acessada por meio de uma câmera que ficava
abaixo do trono de Elesh Norn. Ela também estava desprotegida, e
os planeswalkers se agruparam conforme o sentimento de entrar em
uma armadilha se intensificava. Tyvar passou os dedos sobre seu
pedaço de metal do Vácuo Tremeluzente, aguardando o momento
82
certo em que seria necessário converter seu corpo na substância
mais rígida e mais resistente. Conservar sua magia para o momento
mais oportuno era mais difícil do que ele imaginava; este lugar fazia
com que ele quisesse ter uma armadura vestida a todo momento.
Todos eles eram heróis, grandes aliados na luta contra um terrível
inimigo, e ele se sentia extremamente grato por sua história o ter
levado ao lado deles. Nas histórias, quanto maior a derrota, maior
será a vitória que a segue. Mas era difícil pensar nisso agora, sob o
peso de Phyrexia e do futuro.
Na base das escadas, havia uma plataforma de metal azul
brilhante — um pequeno pedaço da Basílica Alva que se prolongava
para a esfera inferior. A escada que eles usaram para descer era uma
coluna oculta por trás deles, esticando-se até o teto distante.
A primeira metade da coluna, mais próxima da Basílica Alva, era
feita de metal branco. Conforme se aproximava do chão, o branco
dava lugar a um cinza azulado metalizado, tornando-se
estranhamente texturizado, quase como se fosse feito de pedra.
Kaya piscou, levantando suas mãos como se desejasse tocar a
parede.
“Não”, repreendeu-a Melira. Kaya olhou para ela com surpresa,
abaixando suas mãos novamente. Melira, um pouco mais relaxada,
explicou, “É micossintético. Foi assim que Phyrexia nos capturou
antes de tudo. Eles invadiram o coração de Mirrodin e enviaram
seus esporos infecciosos por tudo o que tínhamos.”
Kaya olhou novamente para a parede e se aproximou de Koth,
com sua equipe de explosivos. “Bom saber”, disse ela.
“Me perdoe, Melira, mas não estou vendo nenhuma árvore”,
disse Tyvar.
Jace gemeu.
O grupo formou um círculo ao seu redor e viu-o agarrando o
estômago, com sua pele dividida se afastando cada vez mais
conforme as “veias” de metal por baixo lutavam pelo domínio dos
tecidos do seu corpo. Ele conseguiu se endireitar, com os olhos
83
emanando um leve tom de azul enquanto sua voz ecoava pela cabeça
de todos.
“Melira disse que devemos procurar o Germinúcleo. Temos que ir mais a
fundo.”
“Mais a fundo”, disse Koth. “Sim. Elesh Norn proíbe o acesso
ao Germinúcleo.”
“Mas ainda existe um caminho”, disse Melira. “Elesh Norn não
consegue atravessar materiais sólidos, como a amiga de vocês aqui.”
Ela apontou o dedão para Kaya. “Só precisamos chegar até a porta.
E atravessá-la.”
Os planeswalkers olharam para a paisagem forrada de metal, com
delicadas colunas micossintéticas, mas não viram nenhuma estrutura
além daquela por trás deles.

Arte por: Andrew Mar


“Onde?”, perguntou Elspeth.
“Por aqui”, disse Melira, começando a abrir caminho pelo chão
acidentado.
Os outros a seguiram, caminhando cuidadosamente para não
tocar nos pilares micossintéticos. Todos se mantiveram juntos, de
forma a evitar surpresas. Ela os levou até uma estrutura erguida de

84
filamentos fúngicos que se retorcia em forma de entranhas, como
se uma fera colossal tivesse sido estripada no local.
Gesticulando na direção da pilha, Melira disse, “A entrada para o
Germinúcleo. Tudo o que ele toca, fica infectado. Acredito que
Elesh Norn tenha pensado que qualquer mirraniano que tivesse
chegado até aqui merecesse a honra da completação. Por sorte, sou
imune à phyresis. Nem mesmo o óleo brilhante fica na minha pele
por muito tempo.”
Conforme ela se aproximou da pilha, a estrutura se agitou,
pulsando, antes de se abrir em um aterrorizante buraco para a
escuridão com gavinhas ondulantes. Uma entrada disfarçada de
anêmona monstruosa. As gavinhas se estenderam, quase
acariciando-a, e deixaram uma camada de óleo brilhante para trás.
Ela limpou o óleo e se virou para os outros.
Koth franziu a testa. "A maior parte de nós não tem a sua
resistência específica, Melira. Vamos ter que explodir o chão.”
“Por que estamos mexendo com isso? Vamos perder o disfarce
que temos", disse Kaito. “Existe outra forma de descer?”
“Talvez eu tenha uma outra solução”, disse Tyvar. Ele segurou
seu pedaço de metal de Vácuo Tremeluzente. “No coliseu, Kaito
removeu o óleo phyrexiano da minha pele antes que ele pudesse
invadir o meu corpo. Se ele conseguir limpar o óleo de forma
suficientemente rápida, posso espalhar minha mágica pelo grupo
enquanto atravessamos para o Germinúcleo. Teremos que ser
rápidos. Transmutar essa quantidade de pessoas é uma proeza que
nem eu mesmo sei por quanto tempo conseguirei manter. Mas isso
nos dará um pouco de proteção, pelo menos o suficiente para Kaito
fazer a sua parte.”
“Eu posso fazer isso, mas essa coisa resiste à minha telecinese.
Vou ficar com uma dor de cabeça enorme”, disse Kaito, colocando-
se a postos.
Melira franziu a testa. “Creio que possamos tentar", disse ela.
“Como isso funciona?”
85
“Me dê um momento", disse Tyvar. “Nenhum de vocês
conseguirá acessar sua mágica enquanto estiverem sob o efeito da
minha, mas isso só quer dizer que teremos que nos mexer
rapidamente.”
Kaito parecia alarmado. “Como poderei limpar o óleo se não
tiver acesso à minha mágica?”
“O Halo que você tomou antes deverá ser suficiente para
protegê-lo por alguns segundos", disse Koth. “Podemos conseguir
pelo menos isso.”
Kaito acenou e o grupo se juntou em volta de Tyvar, que respirou
fundo. O cheiro de vegetação os envolveu, interrompido apenas
pelo aroma oleoso fúngico da superfície micossintética. De todos os
membros do grupo, só Kaya o reconheceu como o cheiro do ar de
Kaldheim. O metal começou a se espalhar pela pele de Tyvar,
primeiro devagar e, depois, cada vez mais rápido, até que todo o seu
corpo se transformou numa escultura de metal do Vácuo
Tremeluzente.
O metal continuou a se espalhar, cobrindo-os sem dificuldade.
Jace foi o último a se transformar totalmente. O ferimento no seu
braço parecia quase resistir ao processo, como se Phyrexia não
estivesse disposta a abrir mão do seu controle nem mesmo por um
instante.
Quando o processo terminou, Tyvar ergueu a mão e disse,
“Vamos nos mover”.
Eles continuaram em grupo até a massa acariciante de gavinhas,
que rasparam suas peles endurecidas e deixaram rastros de óleo, mas
não atacaram. À frente deles, havia um corredor estreito que levava
a um vestíbulo aberto, conectado ao que parecia ser uma única
ponte. Eles correram, sem desejo de conhecer o limite da mágica de
Tyvar antes de passar pelo corredor.
No fim, eles saíram não na terrível paisagem phyrexiana com a
qual se acostumaram, mas sim em algo vivo e primordial, ainda mais

86
terrível por estar crescendo. Tyvar olhou para Kaito. Kaito acenou,
e Tyvar dissipou a mágica.
O metal do Vácuo Tremeluzente derreteu, trazendo todos de
volta à carne, com as peles brilhando de óleo. Kaito arregaçou as
mangas e o óleo levantou de seus corpos, formando uma bola que
se arremessou da borda da ponte.
“Obrigada”, disse Kaya. “Ei, Tyvar, gostei do espetáculo...
Tyvar?”
Ele não respondeu. Ele estava olhando para algo à distância,
dirigindo-se para a ponte com olhos arregalados e o rosto pálido.
Kaya se virou e olhou para a Árvore-mundo phyrexiana. Quebra-
reinos.
Era óbvio que Elesh Norn a havia cultivado, alimentado e
corrompido. Sua casca era feita do mesmo metal porcelânico branco
que eles tinham visto na superfície. Nos locais em que a brotação
abrira fissuras na sua superfície, era possível ver um tom de
vermelho vívido e agonizante. Em vez de seiva, ela produzia óleo
brilhante, e sombras estranhas se moviam pela sua superfície,
confusas até o momento em que Kaya olhou mais para cima.
Oblongos longos e brancos se suspendiam próximo aos galhos mais
altos da árvore impossível, desaparecendo parcialmente no
distorcido horizonte conforme alcançavam as Eternidades Cegas.
“Navios invasores”, disse Koth lugubremente. “Eles estão quase
prontos.”
“Isto é uma perversão da própria alma de Kaldheim”, disse
Tyvar. “Eu sabia que seria um cenário horrível, mas isto. . .isto é
muito pior do que eu imaginava.”
O ar estava estranhamente imóvel, como se todo o reino
segurasse a respiração. Lá nas alturas, nos galhos distantes da árvore
gigante, uma luz branca brilhava e apagava, espalhando-se em uma
treliça terrivelmente simétrica pelas camadas superiores do céu.
“Temos que correr”, disse Jace.

87
Eles correram. A ponte que ligava os jardins ao núcleo de Nova
Phyrexia era uma linha estreita sobre um poço sem fundo; na outra
extremidade da ponte, havia uma abertura escura nas raízes
emaranhadas da árvore. Os planeswalkers estavam quase chegando
quando o céu piscou mais uma vez. Desta vez, o brilho foi de maior
intensidade, como um sol explodindo nas camadas mais altas.
As explosões cataclísmicas enchiam a atmosfera de distorções
prismáticas brilhantes, seguidas da impossibilidade reluzente das
Eternidades Cegas. Jace gemeu. Elspeth tropeçou e estava prestes a
cair pela borda da ponte, quando Koth agarrou-a pelo ombro e a
puxou de volta.
Kaya só conseguia olhar para cima, com uma expressão em
branco. “Chegamos tarde demais”, disse ela.
"Kaya —" disse Kaito.
Ela se voltou para encará-lo. "Todo esse esforço não serviu de nada”,
ela desabafou. “A Árvore-mundo se conectou ao Multiverso. Elesh
Norn pode acessar as Eternidades Cegas. Nós falhamos.”
“Me recuso a permitir que o coração de Kaldheim seja a arma
que destrói o Multiverso”, disse Tyvar. “Ainda podemos fazer o
nosso melhor para desfazer isso.”
“Corram”, disse Jace, sem fôlego. “Temos que correr.” Ele
conseguiu dar mais alguns passos, cambaleante, e depois caiu no
chão.
"Tyvar", disse Koth.
Tyvar acenou e, tocando no pedaço de metal do Vácuo
Tremeluzente, se transformou em metal e se aproximou de Jace,
segurando o outro homem nos braços. Juntos, o grupo continuou
em frente, rumo à abertura, rumo à escuridão.

A entrada levava a uma cavidade dentro da árvore, uma grande


sala abobada formada de raízes entrelaçadas. Passagens escuras
saíam da câmara. A maior delas, diretamente à frente do grupo,

88
parecia ser o canal principal. No centro do espaço, sobre um estrado
baixo, estava Karn.

Arte por: Kasia 'Kafis' Zielińska


O grande golem de prata havia sido aberto, dissecado, e estava
espalhado pela plataforma. Para o terror de todos, ao ouvir o som
dos passos, ele virou a cabeça e coaxou, “Vocês não deveriam estar
aqui. Este lugar não é para vocês.”
“Karn!” Koth e Elspeth correram em sua direção e pararam
quando estavam prestes a tocá-lo, observando o dano.
“O que eles fizeram?”, perguntou Elspeth.
“Não é óbvio? Eles rejeitaram o Pai das Máquinas.” Karn agitou
a cabeça. Esse parecia ser todo o movimento que ainda lhe restava.
“Corram. A invasão ainda está começando. É possível que vocês
ainda consigam salvar alguns planos. A menos que. . .não. O Sílex
foi destruído. Tudo está perdido.”
“Nós fizemos outro", disse Elspeth. “Ainda podemos acabar
com isso.”
Karn fez uma pausa, claramente pensando. “Vocês precisarão
chegar à fonte da raiz e detoná-la.”
"Mas —" começou Melira, detendo-se depois de um olhar
incisivo de Koth.
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“Eu tiraria esse fardo das costas de vocês se eu pudesse”, disse
Karn. “Essa deveria ter sido minha missão o tempo todo. Vocês
deveriam estar livres para regressar aos seus lares e protegê-los do
que está prestes a acontecer.”
“Mas você não pode”, disse Kaya. “Você não consegue nem se
mexer.”
“É tarde demais para mim", disse Karn.
“Não só para você”, disse Jace, empurrando o peito de Tyvar. O
outro homem o colocou no chão, e ele se aproximou de Karn, com
os braços virados para mostrar o dano que se espalhava do seu
ferimento. “É tarde demais para mim também. Permita que eu tire
o Multiverso da mão deles.”
Ele se arrastou até a entrada que havia no outro lado da sala.
Depois de uma pausa desconfortável, Tyvar e Kaya o seguiram.
Melira se ajoelhou ao lado da cabeça de Karn, limpando os
rastros de óleo brilhante e tentando colocá-lo em uma posição mais
confortável. Koth e a equipe de explosivos fizeram um círculo ao
seu redor e começaram a libertar cargas para livrá-lo daquilo que o
prendia. Elspeth pausou perto da entrada, sem seguir os outros
planeswalkers e nem ajudar Karn, e olhou para ele.
“Eu deveria — eles precisam — mas você quer que eu fique?”
perguntou.
“Quero dizer sim, por nada além de egoísmo, mas não posso”,
disse Karn, irritado. “Nunca pensei que você fosse ver este plano
mais uma vez. Sinto muito. Queria que você não tivesse que morrer
conosco.”
“Foi escolha minha, Karn.”
“Siga seus amigos, saia deste plano. Encontre um lugar mais
adequado para um confronto final.”
“Não", disse Elspeth. “Chega de correr.”
Karn suspirou, com a voz aparentemente exausta.

90
“Vamos ficar aqui para ajudar a moldar as cargas e auxiliar Karn
assim que ele estiver livre”, disse Koth. “Vá.”
“Eu queria não ter que partir.”
“Tudo bem”, disse Melira, procurando sorrir. “Chegamos mais
longe juntos do que eu imaginava que chegaríamos.”
“Vejo vocês em breve", disse Elspeth, enquanto caminhava pela
entrada que dava acesso à fonte da raiz.

A ponte final era longa, branca e repleta de partes vermelhas.


Muitos de seus amigos estavam mortos ou perdidos. Ajani, com
a mente distorcida e o corpo condenado a nunca morrer, agora que
ele fora absolvido a Phyrexia. Karn, possivelmente danificado além
de qualquer conserto. Sua ira era vasta e ainda mais agonizante por
ser tão nova. Ela perdera mais do que jamais achara ser possível. Ela
sentia que todo o seu ser era uma ferida antiga que fora aberta
novamente, maior do que nunca e incurável.
Elspeth começou a correr.
Ela alcançou os outros no meio da ponte, aproximando-se de
uma réplica horripilante do altar de Elesh Norn. Esta versão era feita
com as raízes entrelaçadas da Quebra-reinos, em vez de corpos
ossificados de phyrexianos, mas claramente servia o mesmo
propósito. O altar feria os olhos e enganava o coração ao mesmo
tempo, e Elspeth odiava-o mais do que pensava ser possível.
Jace estava novamente de pé. Ele olhou de relance para ela
conforme a integrante se juntava novamente ao grupo, dando um
pequeno aceno de boas-vindas, e não disse mais nada. O lugar
transmitia uma sensação de vida oposta à quietude da Basílica: o ar
entoava um coro sinistro de vozes dissonantes, sobrepostas entre si
para formar uma harmonização de partes incipientes, em vez da
cacofonia que era de se esperar.
“Os phyrexianos conseguem formar harmonias?”, suspirou
Kaya.

91
A estática tremulava no ar saturado de éter. O teto de raízes sobre
o grupo se abriu conforme eles se aproximavam do tronco, uma
tapeçaria de raízes finas que dava uma vista privilegiada para a
grande estrutura da própria Árvore-mundo. As raízes de retorciam
por uma abertura direta para as Eternidades Cegas, com clarões de
outros planos aparecendo pela névoa. Os galhos superiores
crepitavam com a energia que Tyvar chamava de “Trilhas dos
Presságios”. Deste ângulo, era possível ver longas passarelas que
conectavam as cápsulas brancas oblongas das naves invasoras às
árvores. Phyrexianos percorriam apressadamente as passarelas,
preparando-se para seu ataque ao Multiverso.
A fumaça expelida pelas naves era vermelha. Vermelha como o
sangue, vermelha como o contágio.
“Quantos são exatamente?”, perguntou Kaya. “Devem ser
milhões deles”, disse Kaito, em silenciosos espanto.
“Eles só nos mostraram o que achavam que éramos dignos de
ver”, disse Jace. As naves brancas chegavam até os galhos mais altos,
como frutas terríveis se preparando para a colheita. “Eles estavam
aqui se preparando para a luta real esse tempo todo.”
Por trás deles, na ponte, eles ouviram passos, firmes e confiantes.
Conforme o grupo se virou, todos estavam empunhando suas armas
— exceto Jace, que se agarrou ao Sílex e deu um passo para trás,
para longe do conflito que se delineava.
Lá, caminhando na direção deles com a calma de quem se dirige
a uma reunião vespertina em um parque, estavam Ajani e Tibalt, mas
não como eles os conheciam. Ajani vestia uma armadura metálica
vermelha e branca que parecia crescer do seu próprio corpo. Ela
ecoava a Basílica Alva, marcando-o como uma das criaturas de
Elesh Norn. Ele carregava um enorme machado duplo, com as
lâminas invertidas em honra à phyrexiana.
Ver seu mentor coberto com o uniforme de sua maior inimiga
fez com que Elspeth sentisse o próprio bílis na garganta, mas não
tanto quanto o sorriso que tomou conta do rosto dele ao vê-la.

92
“Bem-vinda”, disse ele, e sua voz era a mesma que sempre havia
sido. “Elspeth, minha cara, que prazer é vê-la novamente. Fico
muito feliz em saber que você sobreviveu para se juntar a mim.”
“Não estou aqui para me juntar a você”, retorquiu ela,
posicionando a espada à sua frente e agarrando nela com toda a
força. “Estou aqui para deter você.”
“Por que você faria isso?”, perguntou ele com uma curiosidade
honesta. “Agora, podemos ficar juntos para sempre, perfeitos e
harmônicos. Chega de diferenças, chega de conflitos, chega de dor.
Você estará em casa. Teremos a paz que sempre buscamos. Tudo
será um.”
“Nunca", disse Elspeth.
Ao lado dele, Tibalt era um pesado de placas ósseas e protusões
conectadas por tendões trançados, reconhecível apenas pelo sorriso
arrogante que adornava o pouco de carne que restava no seu rosto.
Sua cauda, sempre bifurcada na ponta, tinha se dividido até a base,
e, agora, tinha como extremidade dois ferrões que pingavam óleo
brilhante no caminho de raízes que estava atrás deles.
“Você foi um monstro em Kaldheim. Agora, finalmente tem
uma aparência condizente”, disse Tyvar, surpreendentemente
calmo.
“Pequeno principezinho, idiota demais para saber quando ter
medo", caçoou Tibalt. “Seu destino sempre foi perecer nas minhas
mãos.”
"Kaito, leve os outros ao destino”, disse Tyvar, sem tirar os olhos
de Tibalt. “Elspeth e eu cuidaremos dos vermes.”
“Tyvar —”
“Vá”, gritou o elfo, sem virar a cabeça. “Estamos predestinados
a vencer essas lutas. Os skalds cantarão sobre o confronto que
acontecerá hoje, mas só se alguém sobreviver para contar nossa
história. Vá.”

93
“Se você diz”, disse Kaito, que deu um adeus triste e forçado
conforme se virava para oferecer o braço a Jace e guiá-lo até a
passagem na parte de trás da sala. Kaya seguiu com um último olhar
de remorso, e os três desapareceram, deixando Tyvar e Elspeth
sozinhos com seus inimigos transformados.
“Muito bem, muito bem”, disse Tyvar, quase formalmente.
“Podemos começar?”

Arte por: Filipe Pagliuso


Ajani rugiu conforme Elspeth saltou em sua direção, e Tibalt fez
uma investida contra Tyvar conforme o metal do Vácuo
Tremeluzente ondulava sobre a pele do herói, e a batalha começou.
Os gritos começaram pouco tempo depois.

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EPISÓDIO 5:
RESOLUÇÕES INEVITÁVEIS

Os sons de batalha esvaneciam atrás deles conforme Jace, Kaito


e Kaya se embrenhavam cada vez mais fundo na recriação
miniaturizada da citadela de Elesh Norn dentro do Germinúcleo. O
espaço era arejado e infinito, repleto de hastes untuosas e obscenas
de luz dourada, indomada pelos horrores que a atravessavam. Por
mais que tentasse, Kaya não conseguia adivinhar a origem das luzes;
não havia sol ao longo da superfície do que fora Mirrodin, nenhum
fonte de iluminação óbvia, mas ainda assim as paredes e salas ao seu
redor brilhavam, o ar reluzindo com a harmonia dissonante do
oculto coro phyrexiano.

Arte por: Marta Nael

95
Jace não parecia bem. Ele estava se movendo com seu próprio
esforço, mas os fios que cresciam de sua carne e ossos estavam
rompendo sua pele, rasgando-a e se enrolando juntos em voltas
delicadas, ondulando como cílios, conforme formavam uma concha
ao redor do braço dele. Ele mudou de lado a bolsa contendo o sílex,
repousando-a contra seu quadril conforme se apressavam.
Kaya pensou que o pior sinal era o fato que ele os deixava ver
quão longe ele havia ido, ao invés de conjurar uma ilusão
tranquilizante sobre si. Nisso, ele era como um gato; Jace nunca quis
que alguém visse o quanto estava feriado, preferindo mascarar o
dano e se apresentar perfeitamente bem. E agora ele estava
perambulando ferido.
Mas, até aí, todos eles estavam feridos a suas próprias formas.
Kaito andou com passos rápidos e eficientes, sua atenção dividida
entre seus arredores e o zangão hexagonal dourado em seu ombro,
que fazia barulhos calmantes e se esfregava em sua bochecha,
claramente tentando acalmar o ansioso planeswalker. Kaya poderia
ter feito uma piada sobre precisar de um ursinho de pelúcia para
lidar com o estresse da batalha, mas, honestamente, ela desejava ter
trazido um amigo consigo. Mesmo um pequeno que não pudesse
falar.
Claro, que ela trouxe amigos consigo. Ela veio com Tyvar, Vraska
e os outros. E agora ela estava atravessando o território inimigo com
um estranho e um homem morto para ajudar a detonar uma bomba
que poderia matar incontáveis estranhos. A ameaça phyrexiana era
muito real e pior do que ela temia.
Ainda assim, havia pessoas como Melira, que mantinha
esperança em seus corações e lâminas em suas mãos, que não
estavam dispostas a se render da luta. As mortes foram insondáveis.
O custo para as pessoas de Mirrodin já havia sido mais do que
poderia ser justamente retribuído. Elas mereciam muito mais. Kaya
sabia, sem questionar, que não havia um arquiteto glorioso no
Multiverso, não havia uma divindade gentil tomando decisões
gigantescas sobre como as coisas aconteceriam, porque nenhum
96
arquiteto com um traço de gentileza em seu coração teria feito tal
coisa aos inocentes de Mirrodin. Mesmo se alguém argumentasse
que Phyrexia tem tanto direito de existir quanto o resto deles, o fato
era que a máquina de contágio era, na melhor das hipóteses um
parasita e, na pior, um predador. Um Multiverso que continha
Phyrexia inevitavelmente se tornaria Phyrexia, consumido por seu
terrível Um. Apenas uma versão da realidade poderia sobreviver
esse conflito.
Ela sabia qual queria que fosse.
Os sons de batalha desapareciam atrás deles. Kaya temia
terrivelmente que eles três fossem tudo que restava. Quebra-reinos
— sem querer desrespeitar Tyvar, ela não conseguia nem pensar
nisso como uma Árvore Mundo — estava completada. Seus amigos
estavam mortos. Não houve tempo para lamentações, e o tempo
que eles ainda tinham era tão curto que ela duvidava que haveria
algum. Se ela morresse aqui, seria lamentada? Algum deles seria?
"Eu odeio esse lugar", disse Kaito, a voz baixa ao despedaçar o
quase-silêncio harmônico. Kaya olhou para ele quase surpresa. Jace
não olhou. Ele continuava olhando direto para frente, claramente se
forçando a continuar seguindo pelo que devem ter sido agonias
indizíveis.
"Não está certo", disse Kaito, olhando diretamente para Kaya.
"Eu não sou particularmente sensível a espíritos, mas Boseiju, a
grande árvore em Kamigawa, exista em harmonia com tudo ao seu
redor. Ela é repleta de kami, espíritos. Tudo em Kamigawa é. Nesse
lugar. . .os espíritos deve ter sido consumidos junto com tudo mais,
ou eles estariam gritando eternamente. Eu não acho que seja
necessário ser sensitivo para perceber isso."
"Não," Kaya admitiu. Os espíritos de que Kaito falou não
pareciam o tipo de espíritos com quem ela costumava lidar, aqueles
nascidos da morte, e não nascidos naturalmente imortais. Com tanta
morte que esse plano viu, ela esperava que o ar fosse tão espesso
com fantasmas que fosse difícil de respirar, mas não havia nada. Ela
não poderia chamar nenhum aspecto de Phyrexia de estéril, nem
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mesmo quando a poeira havia sido feita para infectar e consumir os
incautos. E, ainda assim, "estéril" era a única palavra que vinha a
mente ao tentar descrever os espíritos desse lugar. Phyrexia não
libertava suas vítimas, nem mesmo na morte.
As paredes ao redor deles eram vazias, o que parecia menos um
golpe de sorte e mais um pedaço inescapável da armadilha
gigantesca que toda essa missão se tornara. Kaya respirou fundo.
Jace ainda não tinha se transformado. Eles ainda tinham o sílex.
Ainda não estava tudo perdido. Eles se moviam com esperança
resignada — uma resignação que só se tornava mais forte desde que
deixaram Elspeth para trás. Alguma coisa sobre a outra planeswalker
tornava fácil acreditar que o impossível poderia, afinal, ser possível.
Isso se foi, junto com Elspeth em si, e mesmo se após isso eles
vencessem, eles também teriam pago caro por sua vitória. Nada vai
apagar o dano que foi feito por Phyrexia.
Nada.
O teto sobre eles deu lugar a painéis claros como as asas de
alguma mosca adormecida, transparentes e orgânicas, e — como
tantas outras coisas neste lugar terrível — estranhamente vivas e
repartidas por veias levemente mais escuras que pulsavam com óleo
brilhante. Danificar a "luz do céu" despejaria neles a infecção.
Através do painéis, eles podiam ver as pontes de tendão vermelho
levando para os grandes navios da invasão, fileiras sem fim de
guerreiros phyrexianos de vermelho e branco da facção de Elesh
Norn preenchendo os conveses inchados das embarcações em
espera. Eles estavam grávidos de Phyrexia, prontos para espalhar
sua semente terrível pelo Multiverso.
A névoa vermelha espalhou-se para baixo dos navios conforme
eles se prepararam para o lançamento, adicionando uma sombra
sangrenta sobre as luzes do céu. A membrana clara absorveu as
partículas vermelhas, limpando-se a cada poucos segundos apenas
para ser manchada de novo, um ciclo sem fim de recuperação e
mancha. Kaya estremeceu.

98
"É um beco sem saída," Jace murmurou sombriamente. "Temos
que voltar e tentar outra direção."
Kaito disse com a voz macia, "Eu não acho. Kaya, Jace — por
aqui."
Eles se moveram em direção ao pequeno ninja, juntando-se a ele,
contornando um buraco no chão. Parecia que deveria ser uma
entrada para uma escadaria, só que alguém esqueceu de construir as
escadas. Ao invés, leva a uma queda de 3 metros em um disco
suspenso de metal branco, distinto do chão no qual ficam de pé na
ausência de paredes ao redor dele.
O buraco era acompanhando por outro maior no disco abaixo,
expondo o tronco de Quebra-reinos conforme desaparecia em uma
névoa marmorizada por luz. Isto foi o mais perto que eles chegariam
da raiz principal da árvore.
"Este é um plano desenhado para cair por ele," disse Kaya,
tentando fazer soar leve à medida em que se ficava intangível e caía
no disco abaixo.
O cheiro do ozônio, de micossintetizante e do que parecia uma
perversão horrível do ar de Kaldheim dirigiu-se para o nariz dela
assim que ela pousou, e ela estremeceu de novo, movendo-se para
se posicionar abaixo do buraco.
"Vamos," ela disse se posicionando para pegar Jace quando ele
caísse. "Vamos terminar isso."
Kaito ajudou Jace a ficar em uma posição sentada na borda do
buraco. O telepata exausto caiu, ainda agarrando o sílex, as pernas
balançando como uma criança se preparando para pular de um
balanço. Quando ele finalmente pulou da borda, Kaito o
estabilizando o tempo todo, Kaya teve um vislumbre breve e
envergonhado de querer pisar fora do caminho e só deixá-lo cair.
Ele já estava perdido, ela estava convidando um monstro em um
buraco de flecha do qual não escapatória. Mas ela ficou no lugar e
quando ele caiu nos braços dela, ela conseguiu não se encolher dos
arames nos braços dele.
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Ela não conseguiu evitar sair de fase conforme eles cutucavam a
carne dela, já carregando a necessidade de Phyrexia de espalhar a
infecção, e Jace olhou para ela com compreensão, mesmo quando
ele tropeçou para recuperar o equilíbrio.
"Já está quase acabando", ele disse, a voz ecoando dentro da cabeça
dela sem passar pelas suas orelhas.
Em particular, e para o crédito de Jace, Kaya duvidava que ele a
permitisse ter dúvidas sem comentá-las. Ele se mexeu para
desempacotar o sílex, revelando-o no ar phyrexiano pela primeira
vez. Kaya deu um passo para trás. Kaito, que havia caído sem ser
percebido por nenhum deles, deu um passo para frente, parando
apenas quando Kaya segurou no seu braço.
"Dê um espaço pra ele," ela disse. "Isso é delicado."
"Você tem certeza de que é seguro para nós estar tão perto?"
perguntou Kaito.
"Urza detonou a primeira no colo dele, e ele sobreviveu," disse
Kaya. "Nós vamos ficar bem. Provavelmente." Assumindo que o
plano sobreviva.
Assumindo que a onda de choque viajando pela árvore não
rasgue Nova Phyrexia de alto a baixo. Ainda pode enviar os últimos
mirranianos ao esquecimento e todos os planeswalkers ainda nesse
plano junto com eles. Se Nahiri tivesse sobrevivido à queda e ainda
se agarrasse a quem havia sido, ela seria apagada em um instante pela
detonação. Assim como Elspeth e Tyvar e todos os outros, até
mesmo...
Kaya não conseguia nem mesmo delinear a forma do próprio
nome em seus pensamentos. Ela gastou anos dançando entre os
fantasmas. Se ela morresse aqui, não deixaria um fantasma de si para
trás.
"Espere", ela disse conforme Jace se mexia para se acomodar de
pernas cruzadas perto do sílex, colocando suas mãos na borda. Os
arames que se projetavam de seu braço afastaram-se do metal, quase
como se reconhecessem o desastre iminente.
100
Jace olhou para cima pra ela, as sobrancelhas erguidas em leve
surpresa.
"Você tem certeza de que deveríamos fazer isso?" Kaya
perguntou. "A Árvore da Invasão está conectada. "Varra tudo — é
o que sílex diz, certo? Os entalhes? Quando você detoná-lo, a rajada
viajará pelos ramos. Ela poderia danificar ou até mesmo destruir
cada plano com que entrar em contato. E nós não temos meios de
saber quais planos são. Vyrn, Tolvada, Ixalan — mesmo Ravnica,
todos podem ser baixas."
"Se Phyrexia os alcançou, eles já são," disse Jace.
"Espera aí," disse Kaito. "Eu vim aqui para salvar Kamigawa, não
para destruí-la."
"O sílex destrói tudo o que toca", disse Kaya. "Mesmo o tempo foi
fraturado quando Urza usou o original. Havia uma chance de
Mirrodin sobreviver antes que a árvore fosse completada — e a
explosão seria contida a esse plano. Agora, se ela puder seguir pelos
Caminhos do Presságio que Tyvar viu se formar nos galhos. . . .Jace,
nós poderíamos destruir tudo. Nós poderíamos explodir as
Eternidades Cegas. Você precisa esperar."
"Vraska está morta, e eu estou morrendo", disse Jace
calmamente. "Meu corpo pode continuar e virar os poderes que
contém contra qualquer um de vocês que ainda esteja vivo — e eu
me mataria antes que isso aconteça, se eu fosse você. Você não tem
ideia de quanto tempo e energia eu gastei para não destruir as mentes
ao meu redor só porque eu posso, ou quão forte eu trabalhei para
achar uma forma de me mover em um Multiverso de tal
simplicidade sem fazer um dano sem fim. Eu seria uma arma incrível
para o domínio de Phyrexia." Os olhos dele faiscaram com um
brilho azul inumano, mais brilhante que seu normal e ele fez uma
careta se recompondo. "Eles estão começando a falar através de
mim, Kaya, estamos sem tempo. Cada momento que esperamos, cada
segundo que gastamos hesitando sobre sua súbita necessidade de ser
a heroína, não apenas a salvadora, significa que outro plano está

101
potencialmente perdido. Não estamos destruindo nada. Nós
estamos evitando mais mortes. Culpe Phyrexia, não a nós."
Ele suspirou pesadamente, de repente parecendo exausto. "E não
há outra forma. Melhor cumprir a promessa do sílex e queimar os
ramos, varrer tudo, do que perder o Multiverso inteiro. Traga o fim.
Derrube os impérios para um novo começo. Renove tudo."

Arte por: L.A. Draws


Ele começou a erguer o sílex para seu colo.
Kaya se moveu instantaneamente, investindo à frente e
agarrando o pulso dele antes que ele pudesse completar o
movimento. Ele puxou sua mão do agarrão dela e para longe do
sílex, os olhos se estreitando.
Ela puxou a adaga do cinto. Os olhos de Jace começaram a
brilhar. Nenhum deles disse uma palavra. Kaito olhou para os dois
confuso brevemente, antes de puxar a espada e assumir posição ao
lado de Kaya.
"Me desculpe, Jace, mas eu não posso deixar você arriscar
Kamigawa", ele disse.
"Muito bem então", disse Jace e se ergueu devagar,
laboriosamente.

102
Na ponte sobre o vácuo, o machado de Ajani se chocou contra
a lâmina da espada de Elspeth, empurrando a planeswalker menor
de volta, enquanto ela enterrou os calcanhares na superfície de
tendões e tentou manter sua posição.
"Você não pode me derrotar, jovem", disse Ajani, a voz
sobrenaturalmente calma e monótona. Ele falou com ela como se
fosse uma criança que tivesse tentado roubar um de muitos doces,
que precisasse ser demovida de um desejo não-saudável. O tom dele
só continha afeição e preocupação genuína sob a calma, e se ele
soasse um pouco menos como ele, Elspeth poderia girar sua lâmina
e cortar seus calcanhares, derrubando-o caído para as profundezas.
"É inútil tentar. Junte-se a nós. Nós somos inevitáveis. Nós somos
o ideal. Nós somos Um, e uma vez que você se torne Um conosco,
seremos mais fortes de uma forma que você nunca sonhou
enquanto viveu em uma carne imperfeita e defeituosa."
"Nunca", proferiu Elspeth, seu desafio soando fraco em seus
próprios ouvidos. "Ajani, se você pode me ouvir, me desculpe."
"Você não tem nada por que se desculpar," disse Ajani
empurrando mais forte sua espada, tentando se mover para o espaço
dela. Ele ainda não a golpeara, permitindo que todos os ataques
viessem dela. . .mas agora ela não podia se afastar sem abrir demais
sua guarda. Mesmo a defesa poderia ser uma armadilha.
"Pare de lutar contra nós!"
"Phyrexia não é inimigo de ninguém," disse Ajani. "Nós apenas
queremos trazê-los a paz e perfeição de se tornar Um. Nós só
queríamos trazer você para casa."
"Então, você é inimigo de todo mundo," disse Elspeth.
"Que seja," disse Ajani. "Você não precisa estar viva para se
juntar a Phyrexia."
Ajani finalmente atacou, balançando o machado em um arco
brutal acompanhado de uma rajada de foça mágica destrutiva que
errou a cabeça de Elspeth por pouco, arrancando um pedaço da
ponte atrás dela. Ela girou, atingindo seus joelhos, enquanto ele
103
saltava agilmente para fora do caminho, movendo-se a uma
velocidade que fez com que o fôlego dela ficasse preso em sua
garganta. A batalha já havia sido declarada. Agora, começou com
força.

Não tão longe de Elspeth e Ajani, Tyvar usou as lâminas dele


para manter as farpas gêmeas das caudas de Tibalt controladas,
mantendo a máxima distância do planeswalker bestial. A pele de
Tyvar ainda estava metálica e brilhante, seu corpo inteiro convertido
em metal do Vácuo Tremeluzente pela proteção que isso poderia
oferecer contra o óleo reluzente que pingava como veneno do corpo
de Tibalt.
"Pequeno príncipe," sibilou Tibalt, um sorriso maldoso em seu
rosto distorcido. "Pequeno fingidor, pequeno pretenso herói, não
haverá sagas em seu nome. Se sua lenda sobreviver a esse dia, será
uma fábula de fracasso. A saga do homem escolhido por uma
grandeza de que ele nunca foi digno. Como é ser o último príncipe
de Kaldheim?"
"Você não é o Deus das Mentiras," rosnou Tyvar, elevando seu
braço para bloquear uma das caldas de Tibalt. "Mesmo assim, nada
que você diz é confiável."
"Talvez não, mas você é estúpido demais para entender quando
deve ter medo," disse Tibalt, afastando uma cauda do aperto de
Tyvar e lançando-a em direção a ele, a farpa resvalando no metal do
ombro de Tyvar.
Tyvar sibilou com dor, e Tibalt sibilou de prazer, os dois homens
unidos pela primeira, e talvez única vez, em sua concordância.
"Dor, sim," disse Tibalt com grande satisfação. "Você pode ser
resistente a meus encantos, mas só porque sua cabeça é muito vazia
para entender quando você deveria duvidar de suas convicções.
Nem todo mundo é tão desprovido de preocupação."

104
Ele desviou o olhar de Tyvar, o insulto final no meio de uma
batalha, e dirigiu um sorriso de lábios finos para Elspeth enquanto
lutava contra seu antigo mentor.
"Dúvida," disse Tibalt, fumaça oleosa começando a vazar dos
cantos da boca dele. "A maior arma dentre todas."

Elspeth cambaleou ao bloquear o último golpe de Ajani, mal


mantendo seus pés no chão. Uma onda de miséria e dúvida a
invadiu. Isso era culpa dela. Ajani não teria sido infectada se
estivesse prestando mais atenção, se ela tivesse sido uma estudante
melhor, se estivesse menos distraída por seus próprios problemas,
se tivesse sido forte o suficiente para salvar Mirrodin no primeiro
lugar, ao invés de permitir que ele caísse para Phyrexia. Se ela fosse
uma pessoa melhor, nada disso teria acontecido.
Se ela tivesse aberto seu caminho rumo a camada da Fornalha
mais rápido, eles teriam alcançado a árvore antes que ela se
conectasse, encontrado Vraska antes que ela se completasse, teriam
salvo muitos outros, teriam salvo todos. Isso tudo era culpa dela.
O próximo golpe de Ajani derrubou a arma das mãos dela, e
Elspeth recuou, com mãos espalmadas, tentando afastá-lo. Ela nem
mesmo podia implorar, não com a tristeza a oprimindo.
Tibalt riu, apunhalou Tyvar de novo e de novo, o qual cambaleou
sob os golpes, horrorizado pela visão da retirada de Elspeth. Ver ela
perder sua fé na luta. . .
pareceu como se toda a esperança estivesse perdida.

Kaya investiu em Jace, ou pelo menos, para espaço onde


Jace deveria estar e tropeçou no ar vazio da imagem projetada do
telepata, o Jace falso quebrando-se como névoa e dissipando.
"Kaya, por favor", ele disse. "Nós somos planeswalkers. Significa
que nós devemos a algo maior que nós, mesmo quando não é
conveniente ou ideal. Nós viemos aqui para salvar o Multiverso.

105
Detonar o sílex pode destruir uma dúzia de planos. Também pode
abalá-los um pouco. De qualquer forma, o resto viverá."
"O Multiverso não está morrendo, seu sem coração..." Kaya se
pegou respirando fundo. O Jace que ela sempre conheceu era
meticuloso sobre a privacidade das mentes ao redor de si, mantendo
a telepatia dele sob rígido controle. Ele nunca teria espiado os medos
mais profundos dela, nem jogado suas fraquezas nela dessa forma.
Mesmo quando treinava com Nahiri, ele tomava cuidado para evitar
dizer qualquer coisa que implicasse consciência dos pensamentos
dela.
Ela não conseguia saber que ele a estava lendo, mas certamente
sentia como se ele estivesse, e ela não gostava nem um pouco. Ela
estreitou os olhos. Ele se posicionou entre ela e o sílex, sua figura
esguia representando uma pequena barreira.
E então, abruptamente, havia três dele e nenhum era o original.
A forma física de Kaya piscou em púrpura transparente quando ela
saiu de fase ligeiramente, desconectando-se do resto do plano. Ela
não conseguia detectar pensamentos, não da forma que Jace podia,
mas ela podia detectar a energia espiritual e dois dos Jaces não
tinham espíritos. Eles não eram reais. Apenas o terceiro, o mais
longe de sua localização atual, existia de fato.
Ela se virou em direção a Kaito. "Aquele", ela disparou,
gesticulando em direção ao Jace em questão. "Pare-o."
Kaito não precisou que dissesse duas vezes. Produzindo uma
mão cheia de shurikens de dentro de sua camisa, ele as arremessou
no Jace de verdade, sua telecinese as pegando e conduzindo direto
ao alvo. Ele queria parar, não matar, e conforme os projéteis
encontravam a carne do braço ferido de Jace, as duas imagens falsas
piscaram e morreram.
Kaya empurrou a adaga dela na bainha, em perseguição ao Jace
verdadeiro e do sílex.
"Espere", disse a voz dele. "Por favor."
Kaya parou, olhos cerrados, encarando o Jace real.
106
Ele olhou para trás, pálido e abatido e mais jovem que ela jamais
percebeu que era; ele parecia menos um planeswalker todo
poderoso, e mais como um homem à beira de um colapso. Os
arames ondulantes em seu braço — que eram, ela finalmente viu,
surpreendentemente semelhante às gavinhas do cabelo de Vraska
em suas curvas sinuosas e mexas ondulantes lânguidas —
começaram a iluminar em suas pontas, como seus olhos que
estavam abrindo, mesmo quando eles teciam uma treliça em forma
de cesta cada vez mais apertada em torno de seu braço. Logo, eles
cortariam toda a circulação, se eles já não o tenham feito.
As shurikens de Kaito cortaram algumas mechas, deixando-as se
contorcer e morrer no chão, e abriram linhas rasas e sem sangue na
pele de Jace. A velocidade da completação phyrexiana foi um
pesadelo do tipo que Kaya nunca considerou, e ela não queria nada
mais além de despertar dele.
"Nós temos que fazer isso", ele disse.
"Não, você tem que fazer isso", disse Kaya. "Nós temos que
preservar o Multiverso. Todos os planos que Phyrexia não tocou
estão conectados também às Eternidades Cegas, assim como essa
árvore condenada — se explodirmos ela agora, podemos varrer
tudo."
"A imperatriz," disse Kaito soando aterrorizado.
"Qualquer planeswalker em trânsito no momento", disse Kaya.
"Todos nós. Eu não vou permitir que você faça isso." Ela se
precipitou para o sílex, agarrando-o com ambas as mãos. "Acabou,
Jace. Você perdeu. Todos nós perdemos."

Elspeth recuou outro passo, incapaz de se manter firme contra


as ondas de desespero e dúvida que emanavam de Tibalt. Ela falhara,
todos eles falharam, Ajani perdeu e Nova Capenna fora perdida e
ela estava perdida, é assim que terminou sempre foi assim que as
coisas terminaram, ela estava em negação por achar que poderia
fazer qualquer coisa para pará-lo...
107
A dúvida a rasgou, arrancando os véus de virtude e compaixão
que ela trabalhou com afinco por tanto tempo para construir, até
que o núcleo do Elspeth Tirel estava exposto. A criança que
desafiou Elesh Norn em um plano sem qualquer oração de
esperança; que foi capaz de permanecer intacta diante dos horrores
de Phyrexia. Ajani, vendo a abertura, balançou seu machado em
direção a nuca exposta dela.
A espada de Elspeth bloqueou o golpe, erguida inesperadamente
entre eles. Ele pausou, piscando com surpresa, apenas para perceber
que o olhar nos olhos dela era o de um animal acuado.
Não distante dali, Tibalt riu. "Oh, a bela lutadora boazinha
revida, não é? Uma pena que você não a encontrou antes, Príncipe
das Tolices, ela poderia ter sido inútil o suficiente para se sentar ao
seu lado. Embora seu irmão teria a levado embora, como ele faz
com tudo o que vale a pena ter. Você poderia encontrar a grandeza
sem ele."
Tyvar rosnou. Quando Tibalt o apunhalou com as farpas de sua
cauda novamente, ele soltou uma de suas adagas e agarrou o
apêndice agressor logo atrás do ferrão, dobrando-o para trás
enquanto o metal do Vácuo Tremeluzente que cobria o corpo de
Tyvar começou a fluir, varrendo a carne de Tibalt conforme a
transmutação se espalhou para tomá-lo, quase phyrexiana a seu
próprio modo.
Tibalt sibilou tentando se libertar. Tyvar não o deixou ir. O metal
do Vácuo Tremeluzente se espalhou para cobrir mais e mais do
corpo de Tibalt. A carne que já tinha sido transmutada parecia quase
se recolher, tentando fugir da mudança tóxica.
"O que você está fazendo?" Tibalt exigiu em claro alarme.
"Minha magia suprime qualquer coisa que engolfar," disse Tyvar
e sorriu mostrando dentes de metal como uma ameaça. "Sua dúvida
não pode tocar o que não pode alcançar."
De fato, a postura de Elspeth cresceu em confiança naquele
instante, até que duas coisas aconteceram: o metal do Vácuo
108
Tremeluzente engoliu o pedacinho final da carne de Tibalt, e um
pulso de esperança, forte o suficiente para queimar completamente
a infecção de Phyrexia, como se capaz de iluminar as Eternidades
Cegas, surgiu do corpo dela.
"Dúvida não é nada," disse Elspeth. "Dúvida não muda o que é
correto. Eu não vou me juntar ao seu Um. Nem ninguém mais vai."
Luz branca saiu em uma rajada da lâmina dela, deixando Ajani
balançando em seus calcanhares. Ela ficou de pé, assumindo uma
posição ofensiva.
A luta não havia terminado ainda.
Ajani gritou e cambaleou. Elspeth bateu o punho da espada na
nuca dele, levando-o ao chão. O machado caiu dos dedos
subitamente sem sensibilidade de Ajani conforme ele escorregava da
consciência.
Com olhos selvagens, Elspeth se virou em direção a Tyvar e a
Tibalt que se debatia. Tyvar balançou a cabeça.
"Eu posso lidar com esse demônio", ele disse. "Ele me deve uma
morte pelo que fez com meu plano. Vai. Ache os outros. Vou ficar
bem.”

Arte por: Kieran Yanner

109
O metal do Vácuo Tremeluzente estava desaparecendo da pele
dele, e também de Tibalt, conforme a reserva de magia de Tyvar se
aproximava do esgotamento. Tibalt o apunhalou com sua cauda
livre e Tyvar também a agarrou, dobrando ambas para trás com um
gemido cansado. Percebendo o que ele estava prestes a fazer, Tibalt
tento se livrar.
A última coisa que Elspeth viu antes de correr para a ponte,
seguindo o rastro dos outros que foram levados, foi Tyvar
conduzindo as farpas gêmeas da cauda de Tibalt para o espaço em
que deveria estar o coração do phyrexiano. Tibalt gritou, alto e
agonizante, e ainda estava gritando enquanto Tyvar o atirou da
ponte. Houve um baque nauseante quando Tibalt bateu na ponte
abaixo, seguido pelo silêncio.
Elspeth correu.

Kaya agarrou o sílex, relaxando com sua solidez antes de dissipar


seu estado e se tornar sólida mais uma vez — apenas para o sílex se
dissolver em suas mãos como névoa. Ela caiu em outra das ilusões
de Jace.
"Kaya!" gritou Kaito.
Ela se virou para encarar Jace bem a tempo de ver os arames
entrelaçando no rosto dele, olhos brilhando mais azuis do que
jamais antes. "Não," ela ofegou.
Jace olhou para ela pela borda do sílex real, com uma careta no
rosto, ainda seguro nas mãos dele, e respondeu baixo "Sim. Kaya,
eu sinto muito. Kaito, eu sinto muito. Todo mundo," e então ele riu
seco e sombrio e sem humor, "Me desculpem."
Ele desapareceu protegido da visão pela sua própria magia.
Do outro lado da ilusão, Jace passou seu polegar por sua testa,
quase impressionado por quão rápido a pele se partiu.. . .embora o
que pingasse do ferimento no sílex não fosse sangue, não
exatamente. Ele suspirou. Tanta perda. Tanto mais para se perder.

110
Com um esforço quase físico que o fez piscar em uma
visibilidade momentânea, ele forçou seu luto e fúria para a tigela.
Não apenas seu luto: o sofrimento e a agonia melancólica de toda
Mirrodin. Arrependimento pelo Multiverso. O amor de Vraska. Ele
os despejou no sílex como o mel mais doce, tão espesso e puro que
ele quase podia vê-lo.
As palavras não importavam. Jace sabia disso, mas sentiu
imediatamente de qualquer forma. Urza havia lhes dito tanto tempo
atrás. Teferi vira, e Kaya por meio dele, e Jace através dela. Uma
linha intacta — então e agora. Um fim, para outro. "Devaste a terra
totalmente. Traga o fim," ele murmurou. "Sinto muito."
A voz dele ecoou no espaço fechado, impossivelmente alta,
enquanto a luz se derramava dentro da tigela do sílex, rastejando
para a borda como uma coisa viva, aproximando-se da borda. Kaya
gemeu, medo e desespero, enquanto Kaito se movia para se colocar
entre a luz crescente e o outro planeswalker. Nenhum dele viu
Elspeth cair pelo buraco no teto e correr pela sala em direção a Jace.
Jace se virou para encará-la, seus olhos em chamas com a luz azul
impiedosa. De alguma forma, nesse momento, ela entendeu tudo —
o que Jace resolvera fazer, o que estava para acontecer não apenas a
Mirrodin, mas ao Multiverso em si. Elspeth viu, com compreensão
cristalina, o que precisava ser feito.
Ela não hesitou. Em um único movimento convulso, ela cravou
a lâmina dela através de Jace e o jogou de lado, permitindo que o
corpo dele levasse a espada consigo enquanto ele caia e agarrando o
sílex com as próprias mãos dela.

111
Arte por: Magali Villeneuve
Ela teve tempo para olhar de relance para Kaya e Kaito enquanto
a luz alcançava o cume sobre a borda do sílex e um estalo agudo
ecoou pela sala, fazendo-a desaparecer. O sílex foi com ela,
conectado a ela para algum destino desconhecido, algum lugar além
das Eternidades Cegas.
Tyvar, ensanguentado e mais uma vez de carne, caiu pelo buraco
para se juntar a Kaya, Kaito e a forma caída de Jace, movendo-se
para o lado de Kaya. Ela se virou para ele com olhos selvagens.
O que quer que Tyvar fosse dizer foi levado por uma serie de
explosões massivas que consumiram todo o som, uma onda de
pressão se derramando do tronco de Quebra-reinos enquanto ele
pulsava com luz. Cada pulso acendeu o ar com uma miríade de cores
oleosas impossíveis, jogando o mundo ao redor deles em um ciclo
de noites e dias tão rápidos quanto uma batida do coração. A árvore
estava completamente ativada e estava transmitindo pelo
Multiverso.
O choque derrubou todos os três no chão, e na rápida luz
pulsante nenhum deles viu o momento em que a íris da parede se
abriu como um olho, permitindo que o odor do éter preenchesse a
sala previamente selada.

112
Tyvar cambaleou para ficar de pé, erguendo Kaya consigo. Kaito
já tinha recuperado seu equilíbrio e estava olhando fixamente para
cima, extasiado e aterrorizado. Os outros olharam pra cima a viram
os ramos de Quebra-reinos piscando em flashes de luz impossível,
ao mesmo tempo conectados à árvore e ausentes. Tyvar fez um
pequeno som de desalento.
"Eles trilham os Caminhos do Pressagio", ele disse. "Eles
carregam o desastre em seu despertar."
Cada ramo, com seu fardo pesado de invasores phyrexianos,
alcançou outro plano e iria compartilhar seu fruto terrível lá, para
completar o novo solo fértil.
"O sílex se foi", Kaya gemeu. "Elspeth se foi, Jace se foi, o
Multiverso esta condenado, nós falhamos, Tyvar, nós falhamos."
"Eu vi esperança hoje," disse Tyvar. "Nós não falhamos."
"Hum, gente?" disse Kaito, ele agarrou a própria espada com
ambas as mão e deu um passo para ficar de pé com Tyvar, os dois
se postando como uma parede de resistência entre Kaya e a abertura
na parede. O leve som de passos veio do outro lado. "Eu acho que
estamos prestes a ter companhia."
O trio recuou da nova porta, até que os ombros de Kaya estavam
quase tocando o tronco pulsante e brilhoso de Quebra-reinos. Os
três deixaram as armas em prontidão, a carne de Tyvar se
transformando mais uma vez em metal do Vácuo Tremeluzente
conforme ele ficou de pé lado a lado com ninja esguio. Eles
trocaram um olhar final, suas expressões igualmente ameaçadoras.
Nada que estivesse se aproximando de Phyrexia poderia ser um
amigo, nem neste momento, nem neste espaço.
Passos ecoaram entrando na sala, insuportavelmente altos,
quicando nas paredes e teto. Uma figura, quase esquelética, feita de
tecido vermelho esfolado e metal brilhante branco-porcelana pisou
na sala. Elsh Norn virou seu rosto sem olhos em direção aos
planeswalkers remanescentes e sorriu, enquanto um esquadrão de
guerreiros phyrexianos entrou depois dela. Kaito engasgou feio ao
113
ver Tamiyo se movendo entre eles, toda a maciez dela afiada como
pontas de lâminas, os olhos dela contornados com rastros de óleo
brilhante.
"Bem-vindos, viajantes cansados, a Phyrexia", disse Elesh Norn.
Ela dirigiu seu sorriso ao corpo de Jace, que se contorceu e ficou de
pé, a espada de Elspeth escorregando do corpo dele conforme ele
se movia para se juntar a sua nova mestra. Kaito agarrou a lâmina
assim que estava desprotegida, acomodando-a em sua mão livre.
Elesh Norn riu. "Tão preocupado," ela disse. "Não oferecemos
ameaça. Apenas oferecemos harmonia e paz. Nós somos Um.
Todos serão Um. Por que resistir? Seus amigos já estão aqui."
Ela virou seu sorriso em direção as fileiras dos subordinados.
Eles se separaram e uma nova forma se moveu entre eles, para a luz.
Nahiri claramente não sobreviveu a sua queda. Os espinhos que
rasgaram a pele de suas costas e ombros estavam mais pronunciados
agora, transformando sua silhueta em uma paródia grotesca de sua
própria nuvem de lâminas flutuantes. Suas mãos se foram, os braços
substituídos do cotovelo para baixo por lâminas de metal.
Rachaduras se espalhavam por sua pele metálica, mostrando metal
derretido abaixo, e seus olhos brilhavam com o mesmo calor
abrasador terrível.
Kaito sibilou entre os dentes, vendo cada oponente que ele
temera aparecer diante de si. "Você nunca esteve melhor", ele disse.
Nahiri não reagiu. Outra figura a seguiu em uma floresta de cabos
finos, usando formações de raízes conectadas da parte de baixo de
seu corpo como tentáculos enquanto ela se posicionava do outro
lado da phyrexiana. Apêndices extras brotaram das protuberâncias
de madeira que cobriam a carne dela. O rosto dela, como o de
Tamiyo, estava marcado com óleo brilhoso. Kaya encarou. A Nissa
que ela conheceu se foi. Nada da animista de fala mansa permanecia.
Tyvar mostrou seus dentes, ajustando a empunhadora de suas
adagas. Ver outra elfa tão mutilada e desviada era doloroso, a

114
despeito da curta convivência. Isso era mais que horror. Era uma
ofensa.
"Nahiri lutou contra nós, mas ela encontrou a paz, e um caminho
melhor em Um", disse Elesh Norn. "Ela e Nissa vieram do mesmo
lugar, mas nunca foram amigas. Agora elas são irmãs, unidas,
finalmente do mesmo lado de todas as formas. Elas são Um. Vocês
também podem ser Um. Apenas se rendam e acabará rápido."
"Não", disse Tyvar.
"Eu estou de boa", disse Kaito.
"Vão para o inferno", disse Kaya.
"Tanta hostilidade", disse Elesh Norn. "Parece que não temos
um acordo, então. Se vocês serão nossos inimigos, então muito bem.
Inimigos, então."
Com isso Elesh Norn ergueu sua mão, fechando suas garras
perfeitas e a invasão começou.

Arte por: Chris Rahn

115
PHYREXIA: TUDO SERÁ UM

116
CINZAS
Cassandra Khaw

Neyali observava sua célula da resistência e anotava mentalmente


o que via. Ela notou quais escudos estavam lascados ou desgastados
e quais espadas estavam rachadas ou dentadas. Conforme progredia,
ela também conferia seus aliados: quem estava mancado, quem não
podia mais colocar força no braço dominante, quem estava
respirando com chiado enquanto eles atravessavam as terras ermas
nos limites da Fornalha Silenciosa.

Arte por: Bryan Sola


Saheena, uma velha mulher vulshoque, com as costas retas apesar
da idade, caminhava com um orgulho rígido, um filho em cada
ombro. Agora ela tinha apenas um olho, devido a um confronto
recente. Ainda havia sangue seco em seu pescoço. Elham, a mulher
aurioque que havia liderado antes de Neyali, caminhava pesado logo

117
atrás delas, com mais bolsas do que devia carregar, deixando os
companheiros com mais liberdade de movimento. Eles tinham tão
poucos recursos e o que tinham, independente da forma, era usado
sem reservas. Neyali jurou fazer seu melhor para encontrar o
consolo que pudesse.
Não fazia muito tempo que ela estava sozinha, vagando pelas
ruínas de Mirrex com seu pássaro de fogo Otharri, procurando
algum sinal — qualquer sinal, não importa quão pequeno ou
improvável — de que havia outros sobreviventes do massacre
phyrexiano de sua vila. Agora, essas pessoas dependiam
dela. Confiavam nela. Neyali se perguntava se a honra um dia pararia
de parecer tão pesada.
Ela foi tirada de sua contemplação pelo grito estridente de
Otharri.
Ao piado do pássaro de fogo, os companheiros de célula de
Neyali fecharam as fileiras, um movimento perfeitamente
sincronizado, tensos à espera de uma emboscada. Nenhuma veio.
Não havia sinais de phyrexianos se aproximando, nenhum ruído de
garras rastejando pela pedra, nenhum silvo de vapor de um golias.
Nada, absolutamente nada.
Mas Otharri não arriscaria divulgar a posição deles se não fosse
importante. Sentindo a pulsação na garganta, Neyali olhou para seu
povo de novo, desesperada para entender o que ela não tinha visto.
Foi quando ela notou.
— Reyana, suspirou Neyali.
Neyali se lançou em movimento antes que qualquer um de seus
homens pudesse responder, correndo de volta para o corredor
iluminado de vermelho, Otharri seguindo logo atrás. Reyana havia
assumido o papel de guarda da retaguarda como sempre fazia, mas
não estava lá. Neyali passou as possibilidades na cabeça. Será que
Reyana tinha sido atacada por um dos chefes sucateiros? Se tivesse
sido, o resto deles logo estaria rodeado de phyrexianos. Não fazia
sentido que eles tivessem parado em Reyana, sem contar o fato de
118
que Urabrask, pelo que todos diziam, havia insistido para que
deixassem os mirranianos em paz.
Vapor quente saiu da parede mais à direita, revelando a presença
de uma passagem estreita que ela não havia visto antes: uma
rachadura na superfície de metal, do tamanho certo para caber uma
figura humanoide. Pelo vão, Neyali viu uma silhueta familiar. Era
Reyana, se movendo para trás gradualmente na direção de uma
beirada, com um oceano de magma laranja fumegante abaixo dali.
Na frente dela, uma figura humanoide imponente, seu braço
esquerdo transmutado na forma de uma foice agigantada, o dourado
de sua pele original quase totalmente obscurecido por pregas de
metal. Havia sido uma mulher no passado, aurioque. No chão, as
armas de Reyana: esquecidas, abandonadas. Em seu rosto, uma
expressão que Neyali nunca havia visto no rosto de sua amiga de
infância, uma desesperança absoluta como se seu coração estivesse
irreparavelmente partido.
— Você está finalmente pronta para se tornar perfeita, disse a
aspirante numa voz feminina, baixa e quase familiar. Então, ela
avançou sobre Reyana, um braço esticado: uma estranha ternura
permeava o gesto e, para a surpresa de Nyali, Reyana engoliu um
soluço de choro.
Uma mulher menos impulsiva poderia ter aguardado por
reforços ou, pelo menos, um entendimento melhor das
circunstâncias. Mas, para o bem ou para o mal, Neyali era uma
criatura de instinto, composta de tantas chamas quanto seus
pássaros de fogo. Então adiante ela foi, suas mãos fechadas em
punhos. Suas manoplas reluziram naquela luz tórrida. Ela gritou um
desafio, ecoado pela batida de coração de Otharri um segundo
depois, o pássaro de fogo passando por Neyali em um tremor de
asas brilhantes. Ele atacou o rosto da aspirante conforme ela virava.
A phyrexiana ergueu seu braço laminado para cortar a fênix ao meio
e Neyali se abaixou e golpeou para cima, esmagando onde deveriam
estar os ossos frágeis de um pulso.

119
Choveu metal estilhaçado por cima dela. A aspirante — uma
mulher aurioque mais velha, vagamente familiar, sem dúvida alta
quando era feita de carne, ainda mais alta depois de completa —
cambaleou mas não gritou, apenas olhou para Reyana.
— Não haverá mais medo quando a carne macia se tornar
perfeita.
Neyali não desacelerou. Ela agarrou a aspirante pelo braço
arruinado e girou para uma posição onde podia enfiar o cotovelo
em seu peito, todo seu peso por trás do movimento. Então ela
correu, levando ambas até a beirada, largando no último segundo. A
phyrexiana caiu sem emitir nenhum grito.
— Neyali...
— Você está bem? Neyali correu de volta para sua amiga e a
observou em busca de ferimentos. Os phyrexianos só precisavam
de um corte. Bastava uma gota de olho brilhante e eles teriam que
correr de volta para o acampamento para conseguir a cura que
Reyana necessitaria antes da phyresis se tornar irreversível. — Você
foi contaminada? Ela tinha óleo? Me mostre —
— Neyali —
A mulher vulshoque agarrou a cabeça de Reyana com as mãos.
— Seus olhos. Deixe-me ver seus olhos.
— Eu estou bem. Eu prometo. Reyana fechou as mãos sobre as
mão de Neyali. E era sua amiga de novo, não a casca que ela havia
sido antes, movimento retornando a suas feições expressivas. Ela
sorriu, de forma afetuosa mas exausta. — Ela não fez nada contra
mim.
— Por que você não a enfrentou? O que houve com suas armas?
A luz sumiu de seu rosto mais uma vez.
— Neyali, era a minha mãe.

O criadouro brilhava com a luz de velas emitida pelos pássaros


de fogo em repouso, suas chamas esmaecidas conforme eles
120
murmuravam e cantavam uns para os outros, dando um tom azul-
esverdeado às sombras em movimento. Era um espaço menor do
que Neyali gostaria para eles. Caso tivesse esse luxo, ela o teria
construído com algo mais resistente, algo feito para acolher gerações
de pássaros de fogo. Não seria tão improvisado, com plataformas e
caixas de ninho feitas de coisa melhor que sucata.
Neyali acariciou Otharri abaixo de seu bico plumado.
— Um dia, ela prometeu ao amigo. Sua parceira dormia ao lado
dele, os filhotes aconchegados com ela. — Vamos construir para
vocês um criadouro nas cinzas da Forja de Urabrask e seus filhotes
crescerão lá, aquecidos e felizes, bem como os filhotes deles e a
geração que vier depois deles.
Em resposta, Otharri bateu as asas e colocou a cabeça na mão de
Neyali, seu pescoço esticado, seu humor satisfeito e indolente.
Neyali coçou suas plumas diligentemente antes de se voltar para
Reyana, enquanto a mulher aurioque se ocupava com seus próprios
pássaros. Elas tinham tido sorte. Apesar de todo o caos recente —
mais e mais, havia histórias de inquietude entre os sacerdotes,
rumores de que Urabrask estava planejando algo titânico — que
havia caído sobre a resistência recentemente, os pássaros de fogo
haviam tido uma boa temporada de acasalamento. Todas as fêmeas
estavam com ovos, uma raridade. Se pelo menos metade desses
ovos sobrevivessem, mudaria muita coisa.
— Como estão os seus?, disse Neyali, caminhando
cuidadosamente entre os pássaros de fogo dormindo até o lado de
Reyana.
— Sem filhos, Reyana disse, seu tom vazio.
Ela deu um passo para o lado para revelar o que seu corpo alto
estava ocultando: um ninho de ovos quebrados, vazando clara
fosforescente. Era uma dádiva que não houvesse traço do filhote
perdido e que a mãe fosse jovem o bastante para ser indiferente
quando a sua cria, mais preocupada em obter a atenção de um
macho próximo.

121
— O que houve, disse Neyali, estremecendo. A última coisa que
ela queria para amiga era outra tragédia.
— Rastejantes, talvez, disse Reyana, ainda com aquele tom de
voz oco conforme ela mexia nos pedaços. — Não me surpreenderia
se fossem ratos. De qualquer forma, não importa. Os filhotes estão
mortos. Do mesmo jeito que minha mãe.
Neyali engoliu em seco. — Se eu soubesse...
— Você não tinha como saber. Eu não sabia. Não até ela estar
ali, pedindo para me juntar a ela.
— Eu podia ter perguntado, disse Neyali, incapaz de se livrar da
certeza de que havia falhado horrivelmente e que precisaria pagar
um preço terrível. — Eu podia ter pensado primeiro antes de agir.
Podíamos ter conseguido salvá-la. Podíamos conseguir fazer algo.
Sua voz falhou na última palavra.
— Ela não ficaria feliz, disse Reyana, fazendo contato visual com
Neyali. Sua voz suavizou. — Minha mãe... ela era uma mulher
tímida. Vidro em vez de aço. Tudo a amedrontava. Tudo era um
sinal de morte ou pior. Você podia ver nos olhos dela: o quanto ela
queria que tudo parasse.
Reyana engoliu em seco, fazendo barulho.
— Eu costumava desejar que ela só morresse, disse Reyana, com
terrível dignidade. — Não porque estivesse cansada de seu choro ou
por ressentir quando ela me batia. Eu queria....
Neyali se embasbacou diante da amiga. — Ela batia em você?
— Não com malícia. Acho que ela precisava descarregar.
Precisava de uma forma de mitigar as pressões enormes que sofria.
Ela precisava se expressar, ou teria explodido.
— Ainda assim, foi cruel...
— Eu a amava, sabe, disse Reyana e Neyali ouviu censura
naquelas palavras ditas calmamente. — Ainda amo. De qualquer
forma, acho que seria mais fácil que ela só não existisse nesse

122
mundo. Queria que o tormento dela acabasse. Isso faz de mim uma
filha ruim?
— Não, disse Neyali, as mãos fechando e abrindo, como se ela
pudesse arrancar as palavras do ar. — Você não é. Eu entendo
perfeitamente. Os phyrexianos tiraram tanto de nós. Por isso
lutamos. O que aconteceu com sua mãe... nós podemos garantir que
não aconteça com mais ninguém.
Reyana inalou, sua respiração irregular. — E se Phyrexia estiver
certa?
— Não brinque com isso, disse Neyali.
— Sei que o que eles fizeram foi um pecado, uma violação da
alma. Mas você deve ter visto minha mãe, Neyali. Ela estava calma.
Ela nunca esteve calma antes. Eu nunca a vi aproveitar um dia de
paz que fosse. Mesmo durante o sono ela murmurava, chorava e
gemia. A versão que eu encontrei hoje... ela estava em repouso. Eu
acho...
Horror fluiu através de Neyali. Ela podia ver onde essa frase
terminaria e a ideia de ouvir isso em voz alta, de Reyana dar fôlego
a essas palavras, fazia Neyali querer gritar. Por um momento
culpado, ela se encontrou desejando que Reyana tivesse sido
infectada pelo óleo brilhante, para que ela pudesse jogar a culpa
dessa perspectiva assustadora na corrupção phyrexiana. Afinal, a
alternativa era muito pior: esse pensamento atingido por Reyana
havia vindo de conclusões inteiramente dela. — A paz, disse Neyali
muito cautelosamente, que os phyrexianos sentem é falsa. Nasce da
perda da individualidade. Aquela coisa não era sua mãe. Não mais.
Era, na melhor das hipóteses, um fantoche. Uma mentira feita de
aço e carne.
— Tem certeza?
Neyali afirmou com a cabeça.
— Cada um dos aspirantes é uma isca. Servem para atrair, para
convencer os restantes de que a phyresis é a única opção lógica.
Estão ali para quebrar nossos corações e espíritos. E de qualquer
123
forma — sua voz suavizou — acho que você passou por aquele
encontro com mais graça do que eu teria. Pessoalmente, eu teria
enlouquecido de dor.
— E quem disse que eu não enlouqueci?
Neyali pousou a mão no ombro direito da amiga. — Se você tiver
enlouquecido, saiba que terá companhia quando formos gargalhar
no escuro. Fiz uma promessa quando nos encontramos. Não vou
abandonar você. Não importa o que aconteça, sempre estarei ao seu
lado.
Apenas mais tarde, quando Neyali foi para a cama, ela percebeu
que Reyana não havia dito sua metade da rotina habitual delas e caiu
no sono ponderando sobre o que aquilo significava.

Neyali acordou na manhã seguinte com um jovem menino


vulshoque — o mais velho dos filhos de Saheena; ele tinha os olhos
e a postura, diziam, de um pai há muito falecido — limpando a
garganta. Ela se sentou de pronto, esfregando a planta da mão no
olho direito. Ou a idade estava chegando ou ela estava ficando
confortável demais com a ideia de que essas eram pessoas em quem
podia confiar. Neyali esperava fervorosamente que fosse a primeira
opção. Complacência significava morte.
— O que houve?
A miséria na expressão do menino cresceu. Ele entregou um
bilhete.
— É Reyana, ele disse, malfadado. — Ela se foi.

Se foi, no caso, significava um bilhete na cama e os pertences


abandonados. Era como se ela tivesse simplesmente decidido ir
embora por enquanto. Nenhuma de suas rações havia sido tocada.
Se não fosse pelo bilhete, se Neyali fosse uma pessoa mais otimista,
ela poderia escolher acreditar que Reyana estava por perto. Mas

124
Neyali conhecia o bastante do mundo para saber que não podia se
permitir aquela ilusão.
Se voltou para o bilhete, em busca de pistas.
Me encontre no Complexo de Recuperação.
Por que Reyana iria para lá?
Neyali se perguntava se não era um armadilha, se Reyana não
tinha sido levada contra a vontade e forçada a escrever a nota,
atraindo Neyali para ser capturada. Mas para que essa possibilidade
fosse verdade, deveria haver mais sinais de conflito, alguma
indicação de que os phyrexianos haviam penetrado as defesas do
acampamento.
Neyali afastou a vozinha que suspirava talvez ela tenha ido por conta
própria.
— O goblin manda lá, não é?, disse Elham, o branco de seu
cabelo tornado ainda mais incandescente pelos salpicos branco-
dourados em sua pele.
— Acho que sim, disse Neyali, o bilhete de volta no bolso. Ela
verificava o equipamento de forma inquieta, em busca de defeitos,
procurando ferrugem nas luvas. Otharri observava de seu poleiro.
Neyali havia visto Slobad uma vez, mas só de longe: um goblin
monstruosamente grande, seus braços inchados com aço preto.
— Ele é um Chefe de Fornalha? — perguntou o mais novo de
Saheena. Qual era o nome dele? Para a vergonha de Neyali, ela não
conseguia lembrar, não com o pânico ribombando em suas costelas.
— Não, disse Elham. Ele se livra do lixo. Urabrask manda
phyrexianos antigos para ele, para reaproveitar.
Nada era desperdiçado na Camada da Fornalha. O que não
pudesse ser aproveitado era reduzido a componentes, desmontado
e reconstruído para que pudesse ser útil de novo.
— O que ele iria querer com Reyana, então? Neyali perguntou,
frustrada.

125
— Mão de obra? — disse a mulher aurioque. Saheena e seu mais
novo vieram da esquina, o sangue removido, um curativo no olho.
— Ele não pode gerenciar esse complexo sozinho.
Neyali assentiu. Mais fácil que a introspecção. Mais simples dar
nome a um adversário e partir de primeira procurando uma briga.
Ela bateu o punho contra a palma aberta, mostrando os dentes para
seus companheiros de célula.
— Certo, disse Neyali. — Eu vou encontrar Reyana. Ninguém é
obrigado a vir comigo nessa missão. Reyana é minha amiga e...
— Ela é da nossa família também, disse Elham, passando seu
machado de batalha por cima do ombro, sua postura impedindo
qualquer objeção. Sua panturrilha brilhava com ouro polido; uma
prótese simples, bem articulada e muito bem feita.
— Posso estar cometendo um erro.
— Todos perdemos alguém, disse Saheena, a voz se espremendo.
Seus olhos desviaram o olhar, as expressões se enevoando. Todos
na célula conheciam a história: eles eram os únicos remanescentes
de uma família enorme, cheia de tios e tias. — Se dermos sorte,
podemos assegurar que Reyana não seja um desses.

A célula se mobilizou em uma hora. A maior parte foi rumo ao


leste, levando a maior parte dos suprimentos para um acampamento
vizinho, junto dos pássaros de fogo. Apenas Otharri permanecia
com Neyali, evitando se separar da amiga.
Após despedidas rígidas, o que restou da célula de Neyali, os mais
corajosos e mais teimosos, rumou na direção do Complexo de
Restauração. A rota podia ser mais traiçoeira: os túneis que levavam
ao complexo não eram distantes das principais artérias da Camada
da Fornalha, se enrolando em suas bordas. Embora não tivesse
interseção com nenhuma das forjas, a estrada era longa e aquilo por
si só trazia risco de encontros indesejados.
Mas nada ocorreu.

126
A estrada se manteve irritantemente vazia.
Quase como se tivesse sido liberada de propósito. Como se algo
os aguardasse. Poderiam ter perdido a cabeça se não tivessem
encontrado acampamentos mirranianos no caminho: um nas ruínas
do que um dia havia sido uma fábrica; outro na barriga estripada de
um golias, espiras retorcidas de aço preto se erguendo como costelas
quebradas; o último em um cemitério de estruturas bizarras
desmoronando. Em cada acampamento, Neyali e seu grupo
descobriam a mesma coisa: entes queridos haviam desaparecido,
sem sinais de que haviam sido levados à força.
Ela foi por conta própria, insistia a vozinha de novo. Neyali estava
achando difícil ignorar, mas antes que pudesse reconsiderar suas
lealdades, eles chegaram nas cercanias acima do Complexo de
Recuperação.
Uma dia, havia sido um complexo prisional. Jaulas deformadas
se erguem em torres instáveis, as barras amassadas, cedendo em
alguns lugares, como se o que estava dentro estivesse desesperado
para sair. Muitos foram ocupados por figuras abaixadas: mirranianos
capturados, esperando serem ungidos com óleo brilhante.
Maquinário serpenteava por entre os cercados, se enroscando neles
como uma paródia de vida vegetal. O que chamou a atenção de
Neyali foi o poço no centro do Complexo de Recuperação, um
zigurate invertido repletos de tubulações pretas parecidas com veias.
Cada nível era repleto de mecanismos impossíveis, partes móveis
cujo projeto Neyali não conseguia decifrar.
E corpos, ela percebeu.
Incontáveis corpos phyrexianos, forçados a ajoelhar antes de ter
seu metal removido, a carne deixada para trás. Havia fileiras e fileiras
deles, como uma audiência silenciosa observando a plataforma na
sua própria base. Uma única figura ocupava a a fatia estreita de
metal. Neyali sentiu seu coração pular; ela Reyana, algemada e caída.
— Observe os céus por mim, amado, sussurrou Neyali, beijando
o rosto de Otharri. Com um gesto de seu braço, ela lançou o pássaro

127
de fogo no ar. Neyali voltou sua atenção para seus camaradas. —
Há toda chance no mundo disso ser uma armadilha e eu ser uma
imbecil, mas Reyana é minha amiga. Eu prometi que não a
abandonaria. Pretendo cumprir essa promessa. Mas nenhum de
vocês fez o mesmo voto idiota. Não haverá julgamento ou censura
caso vocês escolham ir embora. Se forem embora agora, vocês irão
embora com honra.
Os mirranianos reunidos trocaram olhares, mas nenhum falou
até que Saheena finalmente disse em uma voz entediada:
— Você quer perder tempo ou devemos checar o perímetro?

Arte por: Marta Nael

Eles fizeram três circuitos do Complexo de Recuperação antes


de Neyali desistir. Para todos os efeitos, o local não tinha defesas. O
detector de pureza de ar não revelou nenhum aumento de partículas
tóxicas: o sinal normal de phyrexianos escondidos. Estava vazio,
exceto por Reyana e aquela coleção de corpos.
— E agora?, disse Elham após voltar ao ponto de observação
original.
Ela olhou para onde Reyana estava, preocupada. Neyali queria
dizer “eu não sei”, mas não podia. Estavam contando com

128
ela. Elham estava contando com ela, esperando ordens. A mulher
tinha sido uma heroína, uma mentora e havia confiado em Neyali
para tomar seu lugar quando ela o deixou vago.
Neyali engoliu em seco.
— Vou descer sozinha.
Isso assustou Elham. — Isso é imprudente.
— É estratégico, respondeu Neyali. — Se não vimos alguma
coisa e for mesmo uma armadilha, o foco estará em mim, dando ao
resto de vocês tempo para retaliar.
— E se estivermos em desvantagem numérica?
— Então vocês fogem.
— Neyali...
— Vocês têm duas ordens, disse Neyali, esperando que fossem
ouvir sua autoridade, não o tremor na sua voz. Ela sabia o que a
bravata podia significar. Completação. Às vezes Neyali imaginava
quanto do original restava após a phyresis. Se restava o bastante da
mente para gritar eternamente sobre o corpo havia se tornado.
Se ela também gritaria.
— Uma guarda de honra, rosnou Saheena, vindo da direita,
teimosa como o ferro.
— Certo. Neyali respondeu de pronto. — Três de vocês.
Comigo. O resto de vocês. A suas estações.
Os mirranianos a saudaram, se dispersando exceto pela matriarca
vulshoque e seus dois filhos, que apareciam agonizantemente jovens
na luz vermelha. Em formação fechada, eles a seguiram rumo ao
poço abaixo: Saheena servia como vanguarda, seus filhos
flanqueando Neyali.
Da mesma forma que sua jornada ao Complexo de Restauração,
a expedição até Reyana foi sem incidentes. Os phyrexianos mortos
permaneceram inertes, como estátuas, apesar de Neyali ter certeza

129
de que eles iriam saltar nos quatro a qualquer momento, como uma
massa de carne desfigurada. Nada se moveu.
Eles chegaram na plataforma. Ela balançava com o peso deles,
embora não o bastante para se erguer como confirmação. Reyana
não respondeu. Ela só ficou lá, olhando para longe, a respiração
curta e irregular.
— Reyana, suspirou Neyali, se ajoelhando do lado da amiga.
Com cuidado, ela colocou Reyana se costas. A aurioque, apesar
da rigidez, estava acordada: olhos abertos, sem foco, expressão
enevoada com a mesma miséria que Neyali havia visto naquela noite,
antes da amiga sair caminhando no escuro.
—Reyana, Neyali disse de novo, como se o nome da amiga fosse
um feitiço. — Sou eu. Viemos tirar você dessa.
A mulher aurioque piscou uma vez, os cílios longos e pretos
como óleo. Seu olhar se focou. A agonia em sua expressão se
fortaleceu. — Desculpe, Neyali. Eu só estava tão exausta.

Arte por: Josh Hass


Neyali meneou a cabeça.
— Não há nada para perdoar. Nós somos uma família — disse
Neyali, a primeira vez que ela tinha colocado esse sentimento em
palavras, a voz repleta de emoção. Sua atenção foi atraída pelas
130
correntes enroladas em torno dos pulsos e braços de Reyana: eram
de feitura incomum, mais elegantes do que os phyrexianos
costumavam usar, mais como tendões oxidados, mais bonitos. — E
família fica junta.
— Sinto muito, Reyana disse de novo em vez de responder, seus
dedos tocando os de Neyali, subindo por seus antebraços; havia
alguma coisa contemplativa em seus movimentos, como se estivesse
avaliando a amiga ou, mais precisamente, a decisão que ela
representava. — Eu realmente sinto muito.
O ar se acelerou. Um brilho de luz vermelha alaranjada subiu
pelos braços de Reyana, passando por suas amarras, chegando até
os nós dos dedos de Neyali. A última se afastou para atrás
instintivamente. Menos de um segundo depois, a luz escureceu e se
materializou em um nó de correntes, caindo na plataforma com um
baque. Reyana, não mais presa, se sentou placidamente, piscando
para seus colegas de célula como se fossem estranhos.
— Eu sabia, rosnou a matriarca. — Traidora.
— O que eles prometeram a você, Reyana? Neyali chorou,
furiosa por seus medos — aquela vozinha, aquela que havia
suspirado de novo e de novo, ela foi por conta própria — terem se
provados corretos. Neyali avaliou os arredores. Tarde demais para
correr, mas os quatro ainda poderiam ganhar tempo para o resto da
célula. Ela só precisava dar o sinal, se assegurar de que o resto sabia
que devia evitar heroísmo de última hora. Seu olhar se ergueu para
o ar sufocado por fumaça; Otharri não estava à vista.
Teria ele sido capturado?
Não. Impossível. A única forma de Phyrexia ter Otharri era
como um cadáver, e isso não aconteceria sem uma luta que ecoaria
por toda a Camada de Fornalhas. Havia um motivo para os
mirranianos verem as fênixes como símbolos da esperanças e os
phyrexianos as verem como presságios de morte. Ele estava em
algum lugar na fumaça, Neyali tinha certeza. Vá embora — ela pediu

131
em pensamento para o pássaro de fogo. Fuja. Leve os outros para um
lugar seguro. Não deixe que o peguem.
— Paz!, gritou Reyana, cambaleando até ficar de pé. Ela chorava
enquanto falava, cada palavra um soluço. — Não somos todos
como você. Não quero morrer com medo, Neyali. Não quero uma
vida como a da minha mãe. Quero que pare. Você entender? Quero
que isso acabe. Quero a paz perfeita que minha mãe recebeu. Slobad
— ele prometeu que haverá paz. Que eu serei reunida com as
pessoas que eu amo, por quem eu anseio, de quem eu sinto falta.
— E você será, veio uma nova voz por trás de Neyali, uma voz
surpreendentemente normal dadas as suas origens.
Ela se virou, vendo Slobad na beira do poço. Neyali o havia visto
antes, e não teve boas impressões dele na época: só mais um horror
phyrexiano em um exército de milhões. Agora, ela estava próxima o
bastante para estremecer diante da verdade dele. Sua pequena forma
goblinoide estava integrada a um construto massivo de cabos e
chapas de metal, um ombro ostentando uma dragona com um
tríptico de cabeças goblin gritando e Neyali podia ver onde os
membros de Slobad tinham sido serrados, onde eles tinham sido
amputados nas juntas e soldados no exoesqueleto de um corpo
phyrexiano similar a um golem.

Arte por: Chris Seaman

132
— Não somos seus inimigos, ele disse. — Lá fora, o mundo é
duro e frio e toma tudo. Amigos, família. Mas aqui? Estamos
seguros. Somos família. E temos todas as pessoas que amamos, uh?
Slobad olhou para suas mãos enormes e depois para o quarteto.
— Você é Neyali.
Seus companheiros assumiram posição, armas prontas. Antes
morte que a completação, Neyali pensou. — Não tenho medo de você.
— E por que deveria ter? Não há nada cruel aqui, uh? Não
queremos machucar nenhum de vocês. Só queremos nos reunir com
aqueles que amamos, disse Slobad suavemente. — Os mirranianos
procuram você em busca de liderança. Por que não guiá-los para
casa, onde serão amados?
— Pai? — choramingou um dos vulshoques mais jovens, sua
lança caindo das mão.
Um aspirante surgiu ao lado de Slobad: um homem vulshoque,
com chifres, quase inteiramente trajado de aço.
— Mantenham o foco — ela avisou aos aliados. — Não
esmoreçam.
— Eu ofereço uma escolha a vocês. A vocês quatro, disse Slobad.
— Para o resto dos mirranianos escondidos.
Neyali sentiu o coração apertar.
Slobad sabia.
— Estamos com você, seja o que você decidir, disse Saheena
calmamente. — Diga para morremos contigo e morreremos. Até o
fim, Neyali. Havia uma leve falha na calma de sua voz e Neyali
questionou se ela havia jurado aquelas mesmas palavras ao parceiro
que achava estar morto, que agora aparecia diante deles, ou pelo
menos a casca dele. — Estamos com você até o fim.
Neyali olhou de volta para onde Reyana estava. Ela estava de
joelhos, as mãos retorcidas juntas em oração, balançando no lugar.
Estava chorando: lágrimas, não óleo, e era muito pior que se Reyana

133
tivesse sido corrompida. Saber que Reyana havia escolhido isso. Saber
que ela havia optado por ser uma isca.
Neyali, a imbecil que era, havia entrado direto na armadilha,
mesmo que cada instinto tivesse implorado para que ela não o
fizessem. Mas ainda havia salvação.
— Por que deveríamos confiar em você? — disse Neyali. —
Como eu sei que você não vai levar todos nós, de qualquer forma?
Urabrask deu suas ordens. Você não devia ter coisa melhor pra fazer
do que nos prejudicar?
— Prejudicar? Por que eu prejudicaria você, uh? Não quero. Só
quero ajudar.
Neyali engoliu em seco, olhando para aqueles que ela havia
liderado até a ruína.
— Deixe esses três irem, se você acredita nisso.
— Feito.
— Neyali...
Vão, disse Neyali. — Antes que ele mude de ideia.
Ela podia sentir a matriarca vulshoque tensa, seus filhos
trêmulos: um choramingo mordido por um, um suspiro de
frustração engolido por outro. Então, Saheena acenou, quase
imperceptivelmente. Os três passaram por Neyali. Mantendo sua
palavra, Slobad e seus asseclas não fizeram nada, apenas observando
com seus olhos brilhantes de fundição.

Era piedade da parte de Slobad, Neyali decidiu, que ela fosse


colocada em uma jaula muito acima de onde Reyana aceitaria o óleo
brilhante. Desse ponto, Neyali quase conseguia fingir que sua amiga
era uma estranha, uma traidora com quem ela havia rompido
laços. Pelo menos o resto da célula está segura, Neyali pensou para si
mesma, se agarrando às palavras como se fossem a salvação. Pelo
menos Otharri estava seguro.

134
Ela se agarraria àquilo enquanto pudesse. Com sorte, quando a
hora chegasse, seria o que a retardaria o bastante para um guerreiro
da resistência a derrotar.
Para surpresa de Neyali, não foi um sacerdote que veio começar
a transformação de Reyana, mas o próprio Slobad. Havia uma
ternura em como o goblin disse à amiga de Neyali para ficar de
joelhos, uma graça em como ela se abaixou, o círculo de bronze do
seu rosto se erguendo como se fosse receber uma bênção.
Neyali desviou o olhar, incapaz de aguentar o olhar.
Pelo menos o resto da célula está segura, Neyali disse para si mesma de
novo. Pelo menos Otharri está seguro.
Ela ouviu um clique gentil, então: patas repousando nas barras
acima da sua cabeça. O pássaro de fogo trilou uma série de sons
baixos como cumprimento, o bico enfiado entre as ripas.
— O que está fazendo aqui? — Neyali sussurrou, tentando
manter o alívio longe da voz e falhando. — Você tem que ir.
O pássaro de fogo fixou um olho incrédulo nela e inalou.
— Sou só uma pessoa. Não valho a pena. Você...
Neyali riu de forma delirante, incapaz de se conter, atingida pela
própria hipocrisia. Tudo isso havia acontecido por causa de apenas
uma pessoa. Ela havia dado tudo para salvar Reyana, acreditando
que sim, aquela vida podia ser tão importante.
Otharri soprou.
O ar sulfúrico foi de laranja sujo para um branco azulado
incandescente conforme as chamas do pássaro de fogo incineravam
as barras. Cinzas, ainda tingidas de ouro, se soltaram na brisa. Ele
mergulhou para a próxima jaula, fazendo isso de novo e de novo,
enquanto um alarma soava no Complexo de Recuperação. Otharri
cantava um chamado às armas desafiador.
E Neyali respondeu com um grito contente dela mesma.
— Não é — ela urrou. Magia saltou de cada um dos mirranianos
que Otharri soltou, manchas de fogo que grudavam em suas peles.
135
Neyali olhou para onde Slobad esperava com a marreta em mãos —
Não é aqui que eu morrerei.
Se eles se movessem rápido o bastante entre as estruturas
gigantes, não haveria chance dos phyrexianos alcançarem. Os
poucos que subiam pelas jaulas eram afastados pelo fogo de Otharri.
Neyali procurou por Reyana no caos e a encontrou atrás, olhando
para o clamor. Apesar de tudo, ela ainda esticou a mão, uma
tentativa final.
Reyana se virou.
Então era isso. Neyali engoliu em seco. O que ela daria para ter
tempo de discutir com Reyana, tempo para insistir que não havia
motivo par se render, que Reyana precisava lutar. Mas elas tomavam
suas próprias decisões. Seus caminhos haviam se separado. Neyali
saudou sua ex-amiga. Na distância, ela podia ver sua célula — não
só aqueles que haviam escolhido seguir Neyali em sua missão
quixotesca, mas todos — invadindo o Complexo da Recuperação
para abrir uma rota de fuga. Mais tarde, ela teria tempo para ficar de
luto.
Agora ela precisava liderar seu povo para longe.

Arte por: Lie Setiawan

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UM CORPO VAZIO
Aysha U. Farah

Os Poços de Dross fedem.


Você está à base do cofre, olhando para cima, para a parede do
poço fumegante. Você consegue sentir o cheiro de necrogênio
daqui, no cume da Basílica Alva. Pequenos redemoinhos dele giram
acima, como figuras acenando para você. As passagens entre as
esferas são fortemente monitoradas, mas este poço se estende longe
o bastante nas extremidades, então não há ninguém observando.
Pelo menos, sem ninguém que possa te parar.

Arte por: Campbell White


Você abre suas asas, saboreando a tração em seus ombros, e seu
corpo faz aquilo que nasceu para fazer. Algumas batidas das asas são
o bastante para que você chegue ao poço, partindo nuvens de

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necrogênio e deixando um rastro. Nada desafia você, mas alguns
seres rastejantes, que se prendem às paredes, olham para você com
rosnados altos; que logo viram gritos patéticos quando você separa
suas cabeças dos corpos com sua lança. Você sente o cheiro do
jorrar de seus fluídos, que caem como chuva na esfera abaixo. No
lugar onde sua superiora aguarda por notícias de seu sucesso.

— Sabe algo sobre o traidor Geth?


Você curva a cabeça e não diz nada. O mármore frio toca seus joelhos. Não
é uma pergunta que precisa de resposta. Todos conhecem o lich, o phyrexiano
infectado com a cabeça não completada. Uma mancha de sujeira em um linho
impecável.
— Quero que o encontre, Ixhel. Quero que o mate.
Você, aos poucos, ergue o olhar do chão.
Acima de você há o trono, um estrado coroado com ornamentos de ossos e
porcelana, um puro artesanato phyrexiano. O assento está vazio; sem as
demandas de um conselho, Elesh Norn, Mãe das Máquinas, retira-se a sua
contemplação. Por conta disso, você se ajoelha perante Atraxa, a Grande
Unificadora, e a razão pela qual você respira.
— Geth é um dos sete Tanos de Aço dos Poços de Dross, uma esfera que já
nos causou incômodo considerável. — diz Atraxa. Sua voz é brusca como um
chicote. — Peço que reduza o número deles a seis. — Traga-me sua cabeça
nojenta.
— Assim será feito. — você diz, entoando as palavras. — Não prevejo
dificuldades.
Atraxa profere um som escorregadio de sua garganta. — Não. — ela diz.
— Claro que não, não é mesmo? Você é minha mais perfeita criação.
Atraxa vai até você, que rapidamente desce os olhos ao vermelho vivo do
tapete. Os dedos dela acariciam suas bochechas, e você sente uma breve fagulha
dentro de si, onde poderia haver o coração de uma criatura menor. É algo além
de lealdade, além do mero desejo de espalhar a Ortodoxia das Máquinas pelo
Multiverso.

138
Você ignora e torce para que suma.
Até então, sempre sumiu.

Você localiza um terreno alto, o que é mais fácil na teoria que na


prática — a esfera é chamada de Poços de Dross por um motivo. A
paisagem é rasa, marcada por piscinas brilhantes de necrogênio
líquido, reluzente e venenoso. Estruturas retorcidas e bruscas de
osso preto-dourado se espalham pelo horizonte. Você contrai os
lábios. Sabe que cada esfera tem seu propósito na perfeita unidade
de Nova Phyrexia, mas você não consegue evitar o nojo. Não
quando você tem a serenidade da Basílica Alva para comparar ao
resto.
Por sorte, você acredita que será uma viagem curta. Suas palavras
à Atraxa não foram arrogantes — você derrotou cada criatura que
ficou em seu caminho.
Você encontra pouca resistência atravessando a paisagem,
respirando o ar corrosivo no percurso, mantendo distância das
piscinas brilhantes.
Tempo depois, seu avanço é parado. A fortaleza de Gerth é
visível além da próxima elevação, mas o caminho é bloqueado por
um penhasco de rochas pretas reluzentes. Você poderia escalá-lo,
mas levaria tempo. Você poderia voar por cima dele, mas isso
anunciaria sua presença à toda a esfera, o que lhe foi dito para evitar,
se possível. Você está longe de precisar de medidas drásticas.
Andando até as sombras do rochedo, você vê os contornos de
um portão. It looks like it could almost be naturally occurring, as if
the supersaturated atmosphere has given the rock a mind of its own,
like a Dominus. Não há trinco nem fechadura. Ao invés disso, você
acha gravuras circulares, dispostas em forma de leque, à altura dos
ombros. Você pressiona a palma sobre uma delas.
Um tom grave pulsa de dentro da pedra. Você dá um passo para
trás. Ele some tão rápido que você nem tem certeza se o ouviu. Você

139
pressiona o ponto de novo. O mesmo som ecoa. Você pressiona
cada gravura ao redor, e cada uma faz um som um pouco diferente.
Você inclina a cabeça e pressiona elas de novo. Algo nos sons
causa desconforto dentro de sua mente. Você não gosta disso.
— Precisa pressioná-los na ordem certa.
A voz vem de trás de você, escorregadia, lisa e sibilante, mas se
engasga ao final, quando você gira e derruba o falante no chão,
pressionando os dedos contra sua garganta.
— Por favor. — ele se engasga.
Isso, combinado à facilidade com que se dobra abaixo de você,
mantém sua mão parada tempo o bastante para poder vê-lo melhor.
— Eu... eu s-sei o que está pensando. — gagueja a coisa. Você
aperta a mão em torno de seu pescoço, mesmo que surpresa por
aquilo ter um pescoço. Um rosto. Um torso. Mãos nuas e feias. É
um aspirante — um humano masculino, ou um elfo. Talvez vindo
do Labirinto do Caçador, uma esfera diversos níveis acima, julgando
por seu cheiro, tonalidade e forma completada.

Arte por: Aaron J. Riley


— Piedade! Aquilo está gritando em seus ouvidos. — Piedade!
Você zomba. — Identifique-se, criatura.

140
— Belaxis! — ele desembucha. — Sou Belaxis. Não pode me
matar.
— Eu posso. — você diz.
— Não! Digo, acredito em você, eu acredito! O aspirante treme.
A voz dele fica um tanto anasalada de medo. — Digo, você não
deveria me matar! Por favor, não me mate!
Sua cabeça se inclina. — Por que não?
— Porque não quero morrer!
Sua cabeça continua se inclinando. — Por quê?
— Ah sim, claro... — o aspirante respira com dificuldade. Sua
frágil e indefesa caixa torácica sobe e desce. O movimento é
desagradável, mas envolvente. — Claro, essa é uma boa pergunta.
Filosófica. Por que você não quer morrer?
Você pensa na pergunta. Sabe a resposta certa. A resposta
esperada de qualquer phyrexiano. Por que alguém temeria a morte
quando nenhum indivíduo detém qualquer valor? Toda vida na
esfera existe puramente para espalhar a verdade de Phyrexia pelo
Multiverso. Não há outra razão para se viver.
Ainda assim, pensar nisso abala algo dentro de você. Você tenta
entender o porquê.
— Porque precisam de mim. — você conclui.
O aspirante bufa pelos nojentos orifícios em seu rosto. — Não
se veja em tão alto patamar — ele murmura. — Não que não deva!
— ele acrescenta rápido, pois você volta a enforcá-lo. Antes que
possa reduzir a voz dele a nada, ele grita: — Não pode me matar!
Tenho um contrato com Lorde Geth!
Aquilo faz você parar. — O quê?
— L-lorde Geth. O aspirante está respirando rápido. Ele fede a
medo. O que um débil meio-completado está fazendo em um lugar
como esse? Ele devia ter sido destroçado em um único dia no
Labirinto do Caçador. — Lorde Geth faz acordos. É por isso que o
chamam de Tano dos Contratos!
141
— Quem o chama assim? Isso não era de conhecimento em sua
missão.
— Lorde Geth salva as pessoas. Com seus acordos! Os olhos do
aspirante brilham e ardem. Eles estão se enchendo de algum óleo
claro e estranho.
— Ele faz o quê?
— Acordos! Proteção. Ele pode levar você por entre esferas.
Bem. O aspirante olha rápido e nervoso para você. — Não ele,
exatamente. Ele fez contato comigo e me tirou do Labirinto do
Caçador. Ele me salvou. E agora eu guarneço o portão à sua estadia.
— Se eu o matar, esse portão se abre?
— Sim. Espere! Não! A respiração do aspirante acelera de novo.
— Não é assim que funciona. Se me matar, ele nunca vai abrir!
Nunquinha! Além disso, Lorde Geth saberá e virá atrás de você!
Você se senta, um pouco confusa. Todos os aspirantes são tão
ávidos? Você nunca esteve em posição de descobrir. — Se eu o
matar, Lorde Geth saberá?
— Sim!
— Como ele saberá?
— Não tenho certeza. Mate-me e descobrirá.
Você põe peso na lança.
— É brincadeira, é brincadeira! Ele só saberá!
Você pondera sobre essa nova opção. Você poderia
simplesmente matar esse aspirante e revelar o lich assim? Suas
ordens são outras. Mas assim pode ser mais rápido.
Não. Você não pode se desviar.
— Eu posso ajudar você.
— Você? Não fale asneiras, criatura.
— Eu disse, meu nome é Belaxis! Pelo menos, ele não parece
mais estar com os olhos vazando. — Qual é o seu?

142
— Ixhel — você responde. — Da Basílica Alva.
Belaxis a encara. Talvez não devesse ter dado seu nome a esse
ser inútil. Mas você também não está disposta a negá-lo.
— Ixhel. Belaxis, o aspirante, espalha o nome por sua estranha
boca rosa. — Ixhel. Posso ajudá-la! Quer passar por aquela porta,
certo? Posso ajudá-la.
— O quê?
— O enigma! Posso ajudar com o enigma da porta.
Você se levanta com rispidez. — Posso fazer isso sozinha.
Você se preocupa que isso, sim, seja arrogância.
Os sons não fazem sentido, não o bastante para que os
decodifique. Isso incomoda você. Os sons perturbam seu cérebro;
você acha que deveria saber o que significam, reconhecer o padrão
que os faz.
Atrás de você, Belaxis mantém um ritmo constante de tagarelice.
— Hmm, veja... você é alta o bastante para atingir todas as placas!
É útil para algo desse tipo, mas suas costas podem começar a doer.
Opa! Comece pela bem da esquerda—
— Acho que ser alta é menos útil quando está voando... essas
asas funcionam? Aposto que é difícil de você ficar reta quando está
no ar. Pode lutar enquanto voa? Ah, as duas do meio precisam ser
pressionadas juntas—!
— Uau, a Basílica Alva, eu nunca a vi. Sim, onde eu a teria visto,
não é? Ela é bonita como você? Ali, na direita!
Você cerra os dentes, mas segue o conselho, usando as dicas para
unir os sons. Todos os phyrexianos operam rumo a um objetivo em
comum. Seria contraproducente negar o auxílio de alguém por ter
voz abrasiva e esganiçada.
— Ah, pronto, pronto!
A porta pisca com uma fina luz azul, e o portão se abre. Você
sente a empolgação da vitória que costuma ser associada a partir
143
uma criatura ao meio. Isso quase faz você querer se virar e enfiar a
lança na garganta do aspirante.
Você se vira e vê ele de pé, olhando para o horizonte. A fria luz
radioativa dos poços reluzem na armadura verde e prateada que
reveste seu torso e coxas. As partes nuas ainda não completadas de
seu corpo são macias, quase obscenas. Você, sem dúvidas, jamais
foi tão frágil.
Ele fica aqui sentado o dia todo, esperando que alguém como
você apareça e tente usar o portão. Como seria uma vida assim.
Como ele fica imóvel com tantos gritos em sua cabeça? Ele deve
gostar do tempo que passa aqui, se tem tanta vontade de ficar vivo.
Engraçado.
Você se vira para o portão aberto. O túnel é iluminado apenas
por um fino córrego de necrogênio que escorre pelo meio. Você
torce o nariz, mas vai para dentro.
— Adeus, senhora Ixhel! Belaxis chama você. — Mande meus
cumprimentos a Lorde Geth!
Você não encontra mais ninguém tão estranho ou falante em seu
caminho até a propriedade de Lorde Geth, mas vê mais aspirantes
do que há muito tempo. Criaturas de toda Nova Phyrexia. De todas
as esferas. Alguns meio-completados, alguns cujo processo de ser
completado deu errado. Eles deviam ter sido sucateados antes de
respirarem pela primeira vez; Lorde Geth fizera acordos com eles
também?
Estranho. Estranho como funcionam as mentes dessas meio-
criaturas. Unindo-se a uma criatura monstruosa e blasfema só pela
promessa de continuidade de suas vidas inúteis? Você nem consegue
compreender. A única razão pela qual existe é espalhar a perfeição
pelo Multiverso. Se não puder fazer isso, por que não se deixar ser
desmontado e ser completado como algo que pode fazê-lo?
Você não encontra grande resistência em sua jornada, tirando
alguns rastejantes que tentam a sorte, como sempre o fazem. Você
acha a fortaleza de Geth com facilidade — é uma praga no
144
horizonte. Uma estrutura colossal de ossos negros e vísceras
vermelhas, crescida na terra ardente consagrada por necrogênio.
Este portão não é vigiado e não tem nenhum enigma bobo. A
porta aguarda à sua frente. Ninguém a desafia nas escadas, nem
mesmo no grande salão. Está tudo pacato, como em um túmulo.
Ao passar por um pequeno arco negro, a raiva começa a
consumi-la. É uma sala do trono. Uma alta e proeminente imitação
do trono de Elesh Norn jaz entre tochas gotejantes. Está vazio.
Como ele ousa? Como ele ousa se comparar à Mãe das
Máquinas? A insolência é inacreditável.
— Tolo. Sua voz ecoa pelo amplo salão. — Lich. Abominação!
Onde está você?
— Você é mais esperta do que pensei. — diz uma voz em seu
ouvido. — Curioso.
É a segunda vez que algum espreitador conseguiu pegá-la de
surpresa. Desta vez você empunha a lança, girando-a no ar. O
choque é tão forte que descarrega o impacto sobre todo o seu corpo.
Por muito pouco, você se mantém de pé.
— Bom. Parece que você não é só conversa.
Lorde Geth está diante de você.

Arte por: Martin de Diego Sádaba


145
Seu corpo projetado de vários membros paira sobre você. Suas
patas aracnídeas fixadas ao chão de mármore. Sua face horrenda
olha para baixo. Ele não possui a energia ou graça ágil de Belaxis,
mas, por algum motivo, você não consegue evitar de pensar nele ao
olhar nos olhos de Lorde Geth. Ele segura sua lança entre duas
pinças.
— Presumo que a Mãe finalmente a enviou para me matar. —
diz ele. — Ela odeia tanto isso.
Você empunha a espada e amplia sua postura. Geth é maior do
que você esperava, e seu corpo está mais completado. Na verdade,
apenas a cabeça dele permanece orgânica. Uma coisa podre e feia
no centro do que deveria ser um corpo aproveitável. Você o odeia
mais do que odiou Belaxis, porque pelo menos não era culpa dele.
Você sabe que Geth insistira nisso, recusou-se a se entregar por
completo.
— É nojento. — você zomba. — Isso se torna você.
Geth ri. Os olhos dele queimam. — O quão baixo estou, ao olhar
dela, para que me envie uma soldada da infantaria ao invés de um
pretor. Nem mesmo a Unificadora. Como está Atraxa?
Seus olhos brilham pela ira. Uma soldada de infantaria? Você?
Quantos cadáveres recuperou para completar?
Não importa, você diz a si mesma. Não importa o que ele pensa
de você. Você não importa de forma alguma.
— Você não tem direito de sequer dizer o nome dela. — você
sibila. — Nem sequer de pensá-lo.
Geth ri outra vez. Ele defende seu próximo ataque com um
preguiçoso giro da garra, desviando sem nenhuma força aparente.
O impacto ainda faz você tremer. Você cerra os dentes para não
deixar que ele veja o choque.
Estupidez. Estupidez sua assumir que ele não seria resistente.
Você se acostumou a lutar contra não completados, pequenos
organismos sem valor que não têm chance diante do poder de uma
verdadeira phyrexiana.
146
— Vejo que está enferrujada — diz Geth. — Você tem lutado
contra criaturas que não podem revidar. Ele a lê como se tivesse
acesso aos seus pensamentos. — Colocando os dentes sobre meus
contratados, não é?
— Até parece que eu iria cegar minha lâmina contra inimigos tão
inúteis. — você lança.
— Sim, é o que você diria, não é mesmo? Os ataques de Geth
tornam-se mais poderosos enquanto ele fala. Você ouve um assobio
no ar quando ele quase a atinge. — É isso que você e sua laia nunca
vão entender. A única lealdade verdadeira é aquela que pode ser
comprada.
— Tolice. Não faz sentido. Ele fala as mesmas asneiras que
Belaxis falava, tentando confundi-la. É patético um tano
compartilhar a miséria de um meio-completado. Não é de se admirar
que suas comandantes o querem morto.
E, ainda assim, o poder dele é inegável.
— Você duvida de mim? Por que motivo luta então, criança da
Ortodoxia das Máquinas?
— Meu nome é Ixhel. — você fala.
Geth sorri. A elasticidade do rosto dele é repugnante. Você não
está acostumada a ver coisas assim. — Ixhel. Um bom nome para
outra boneca phyrexiana.
Você cospe. — Acha que me insulta?
— O desinteresse de um público não torna a piada menos
divertida.
Piadas. Há. Você vai mostrar para ele o que é piada.
Especialmente agora que está começando a perceber que faz muito
mais sentido evitar seus ataques do que desviá-los. Ele tem razão
sobre uma coisa — lutar contra ninguéns te amoleceu. Você não
estava preparada para alguém com tal força.
— E agora você está correndo por aí como uma rata — diz Geth,
com uma voz profunda e presente. — Está com medo de lutar? Ele
147
faz outro giro largo, forçando você a voltar a uma escaramuça
desajeitada. O mármore de ossos sob seus pés é desconhecido; você
não para de escorregar. Deveria tê-lo forçado a sair e lutar com você
no céu.
— Não me admira sua fraqueza. — diz Geth, com outra risada.
— Nenhum de vocês entende a vitória nascida do verdadeiro
esforço. O esforço para sobreviver.
— Você não sabe de nada!
— Sei de mais do que você pensa. O rosto feio de Geth sorri
para você, um rito hediondo. — Sei que o que faz um guerreiro de
verdade é o conhecimento de que se perder, você morre. Não de
que, se perder, haverá outros milhares sem rosto para tomar seu
lugar. Sua onipresença os tornam fracos.
— Você está errado. — você grita de volta.
— Estou? As chamas das tochas brilham na proteção espessa das
costas de Geth. — Então por que não larga suas armas e morre?
Com certeza sua comandante pode simplesmente mandar sua
próxima versão.
Belaxis disse quase a mesma coisa, mas em poucas palavras. Você
teme que, por um segundo, estivessem se comunicando. Aquele
Belaxis é um informante direto do tano, e não um mero lacaio inútil.
Você ignora. Não importa.
Geth parou de atacar, então você para também, fazendo tudo
que pode para não mostrar que já está exausta.
De alguma forma, Geth continua falando. — Quando vocês
vencerem, o que manterá seu povo unido? Quando se espalharem
pelo Multiverso?
Você queria poder cobrir os ouvidos. Você urra e empunha sua
lança. Geth, em uma explosão de velocidade, além de qualquer coisa
que demonstrara antes, irrompe por sua guarda, pegando-a pelo
pescoço com uma garra. Você congela.

148
Ele puxa você para perto. Seu hálito é quente e fétido. — E
quanto a você, pequena emissária? When you have burned down the
rest of the plane, what will you have to sustain you beyond your
orthodoxy? O amor daquela estranha e rígida mãe?
A pergunta reverbera dentro de você. Pelo que você vive? Por que você
existe?
Com um forte grito de raiva, você arrasta sua garganta ao longo
da lâmina, abrindo-a em um jato de sangue óleo e sangue quente.
Desvencilhando-se de Geth, você abaixa sua lâmina com um único
golpe, separando a cabeça dele do corpo. Você a pega. Sua voz
borbulha em sua garganta arruinada.
— Apodreça no chão, sua criatura desprezível. No final, seus
contratos foram tão valiosos quanto sua vida patética.
A dor é dilacerante, mas não é nada se comparada ao êxtase da
vitória. E conforme aquele êxtase cresce, um desejo cresce com ele.
É avassalador. Deixa você de joelhos.
Esse tolo, esse monstro. Ele não merece o alívio da morte. Você
o odeia, você o odeia! Ainda assim, conforme sua garganta se
reforma, você sente a carne ceder sobre seus dedos. O brilho opaco
dos olhos ficam enevoados. São quase belos agora; belos como o
brilho verde e prateado ao redor da carne vulnerável.
A cabeça de Geth murmura palavras que você julga serem sem
sentido. O que ele poderia ter sido caso tivesse cedido? Quem dera
ele tivesse percebido a verdade.
Talvez, assim, você possa ajudá-lo.

Os Poços de Dross são um buraco nojento e vergonhoso, com


certeza, mas eles têm seus momentos.
Dominating the landscape, more imposing even than Lord
Geth's tower, is the Dominus of Pain. When Phyrexians first settled
this plane and the glistening oil, in all its glory, began transforming

149
it to its right and true state, parts of the land awoke. Elas moviam-
se, chocavam-se e começaram a vagar.
Ninguém sabe ao certo o que são os Domini, nem se pensam e
desejam da mesma forma que outros phyrexianos. Se quiserem,
como é certo, colocar tudo sob domínio da Ortodoxia das
Máquinas.
But you know what this Dominus craves, and a towering, razor-
edged monolith standing against the sky is fully equipped to harvest
it. Fica a um breve voo da torre de Geth, e você não se importa mais
se alguém avistá-la. Porém, as palavras de Geth vibram dentro de
você, pulsantes e estranhas.
The Dominus is at rest. Ele não olha para você. Ele se move e
murmura. Seus ossos polidos sussurram no vento. A podridão
perfuma o ar. Bodies—all sorts, from skitterlings to aspirants to a
single ragged priest—hang fluttering in the breeze, impaled through
with the Dominus's vicious spines. Cada um deles foi escolhido e
colocado com cuidado. Seus gritos e movimentos embriagados com
atenção extasiada.
You don't understand the Dominus, but you'll make use of it.
A piercing wail rings out across the wastes as you pin the writhing
body in your arms down onto a razor-tipped spoke on the
Dominus's east side. Sangue brilha escuro na luz fria do necrogênio.
É incrivelmente quente em suas mãos.
— Por quê? — grasna Belaxis. As costas do aspirante fazem um
arco perfeito. O esporão ósseo se projeta de seu abdômen, até mais
branco do que sua carne não completada.
— Por quê? A voz dele racha. — Eu ajudei você.
Seus dedos descem até o queixo dele, puxando-o para cima. Seu
rosto está se contorcendo, eloquente em dor, tremendo com ela. Seu
corpo, coberto por pele violável e macia, parece ser mais do que o
seu.
— Eu sei. — você diz, vendo ele se contorcer. — E sou grata.

150
Após a escuridão das esferas superiores, o branco puro da
Basílica Alva é quase cegante. Na sala do trono, olhando para o
assento da Mãe das Máquinas, o esplendor quase a deixa de joelhos.
Você passou os últimos dias no venenoso frio do Centro
Cirúrgico, sentada e observando sua criação se manifestar. Aquela
esfera pertence a Jin-Gitaxias, um inventor e visionário, mas se
quiser usar o equipamento, quem iria impedi-la? Ninguém era tolo
a ponto de tentar.
Ao fim do processo, você ficou observando sua criação. Um
estranho sentimento tomou conta de você, não distinto da
experiência de arrancar membro a membro de um inimigo. Porém,
desta vez, você fez algo.
Você fez algo, e leva aquilo para casa consigo.
— Ixhel. Atraxa é elegante e respeitável, a phyrexiana ideal. A
Grande Unificadora, a arma perfeita em batalha. Ela traz a
Ortodoxia das Máquinas à vida. Ela espalha o óleo brilhante pelo
Multiverso. Ela é a única e verdadeira voz a qual você irá sempre
responder.
And now she looks upon what you have brought her with such
disdain you feel like the plane has cracked open.

151
Arte por: Marta Nael
— Ixhel. O que você fez?
O silêncio é ensurdecedor. À distância, um canto ecoa como um
vento sinistro por ossos pendurados. Sua respiração sai como facas.
— Comandante—
— Responda-me.
Você cai de joelhos. — Tudo que eu queria era fazer algo Você
arrisca olhar para cima. Seu corpo está em chamas. — Como você
me fez.
Atraxa a observa. — Eu criei uma arma. Isso é o que você é.
— Eu sei, eu sei. Eu só pensei que—
Atraxa liberta uma risada áspera que você só ouviu soar contra
inimigos. Contra os não completados. Você pensou?
A palavra ressoa pelo salão, quebrando a serenidade como uma
janela de vidro. Ela arranha seu interior. Diante da certeza, não é
preciso pensar. Você sabe disso. Você não precisa ouvir as coisas
que ela lhe diz.
— Livre-se disso, se for um—
— Vishgraz. Uma voz diz o nome. Após um instante, você
percebe que deve ser sua. Ninguém mais sabe.

152
— O quê? A pergunta atinge você como uma pancada.
— Seu nome. Você está prestes a cair por entre o chão. Nunca
sentira algo parecido com esta culpa asfixiante. Você nunca fez nada
para merecê-la. Uma coisa que segue ordens é uma coisa que nunca
pode decepcionar. — Seu nome é Vishgraz.
Atraxa não responde por tanto tempo que você acha que ela foi
embora. Você olha para cima. Ela ainda está aqui, mas não está
olhando para você. — Livre-se disso. — ela ordena.
Ela deixa você de joelhos no chão, olhando para cima, para o
trono vazio.
Ao seu lado, uma voz familiar começa a rir. Uma leve risada
ritmada. Ela combina com este local claro, mas arranha seu âmago.
— Esperava algo diferente?
Pela primeira vez desde que baixou os olhos à frente de sua
comandante, você olha para ele.
Aquele rosto, antes irritante, agora preenche você com um
misterioso carinho. É irreconhecível, coberto pela espessa
blindagem da completação; mas você sabe o que se esconde abaixo.
A cabeça do traidor que você segurou em suas mãos. Pernas
aracnídeas se projetam de um corpo bulboso, empoderado com
blindagem prata e verde. Os olhos verdes perfurantes não mantêm
nada da vivacidade do antigo dono, e nada da angústia.
Dois daqueles membros já foram delicadas asas ósseas em
branco e vermelho. O lugar de onde as extraíra, nas suas costas,
ainda punge dor inflada.
— Do que está falando? Sua voz sai rígida.
Vishgraz oferece-lhe uma mão com um floreio levemente
irônico. Você deixa ele erguê-la.
— Acha que vão agradecer por ter feito algo como eu?
— Ela fez algo como eu — você insiste, mesmo sabendo a pouca
importância que isso tem. O que é uma acusação de hipocrisia diante

153
da Ortodoxia das Máquinas? Elesh Norn decide o que é verdade, e
Atraxa fala através de sua voz.
— Eu queria — você não termina. Esse é o cerne de tudo. Você
sente antes que deixe seus lábios. Você quis. E, ao querer, você
falhou.
Você pretendia dizer que queria salvá-los, dá-los o que você tem;
o que, em breve, todos terão — derrubar a tolice de Geth, aumentar
a atenção nervosa de Belaxis, mas. . .isso seria mentira, ao menos
em parte.
Você odiava Geth. As coisas que ele disse ainda ecoam em sua
mente como sinos dissonantes. Você gostava de Belaxis, ou gostava
das linhas elegantes de sua pele não completada, a forma a luz reluzia
em seus olhos brilhantes e corpo pálido.
Você não sabe o porquê. Você apenas não queria que eles
desaparecessem. Você queria trazê-los consigo. Você é uma criatura
lamentável.
— Queria salvá-lo. — é tudo o que você diz em voz alta.
Quando Vishgraz responde com a mesma risada ritmada, você
ao mesmo tempo a espera e não consegue suportá-la. Você se afasta
dele. — Silêncio!
— Salvar-me?
Você levanta uma mão. — Eu já disse, calado! Ele não estremece
nem tenta pará-la. É isso que impede sua mão. Não é como se
pudesse causar dano real a ele; não mais.
— Salvo? Ele se aproxima de você. Os membros tilintam e os
olhos brilham. — Dentro de mim, posso sentir este corpo querer se
despedaçar. Sinto as partes distintas de todas as coisas que eu
costumava ser.
Ele paira sobre você, tão imenso que apaga a luz. Ele poderia
esmagá-la, se tentasse.

154
— Não lembro do que eu era. — você diz. Você se inclina contra
ele, em uma paródia de um abraço. Você se arrepia. Parece que algo
passou através de você, como Belaxis pelo espinho.
Você dá as costas para ele com rapidez. — Venha comigo.
Por um momento, Vishgraz fica em silêncio. — Onde estamos
indo?
Você olha para trás. — Vamos nos livrar de você.

Os Poços de Dross fedem. Você está sob o mesmo poço e olha


para cima, através da névoa rodopiante de necrogênio. O mesmo
lugar, mas parecem ser quilômetros. It is not the plane that has
changed.
Ao seu lado, Vishgraz faz um som de dúvida, como se estivesse
esperando ser atacado.
— Vá. — você diz.
Nada.
— Vá!
Há uma lenta expiração. — Você deveria vir comigo.
Aquilo faz você olhar para cima. Você ri. — Não.

Arte por: Andrew Mar


155
Vishgraz dá um passo desequilibrado em sua direção. — Você
sabe, Ixhel. Você sabe que deveria. Eles dizem ler as estrelas, saber
que o Multiverso deve ficar sob governo dos phyrexianos. A
harmonia da completação se espalhará mais e mais, e isso é bom, e
é justo. Outro passo. — Porém, você sabe que tudo aquilo são
cinzas. Você, seu povo, tudo o que vocês se determinaram fazer —
tudo que existe por capricho de um tirano.
Você deveria negar.
Você nada diz.
— Sua Ortodoxia das Máquinas vale tanto quanto meus
contratos.
— Você não é ele. — você esbraveja.
— Então o que sou?
Você fita o chão rachado. — Você é meu primeiro desafio. Agora
vá.
Ele fica em silêncio por muito tempo, e, quando responde, é
apenas com o quieto ranger de seus membros, os que deu a ele.
Você está à base do poço, muito depois de ele ter desaparecido
na escuridão. Nas profundezas de seu ser, há uma vontade que
clama por segui-lo.
Mas você não o faz.
Não ainda.

156
DURO COMO A RAIVA,
CLARO COMO A ALEGRIA
Langley Hyde

Quando Lukka saiu das Eternidades Cegas, a umidade e o calor


o atingiram no estômago. A luz verde derramada sobre as copas
obscuras, o gosto rançoso de carne apodrecida no ar, os guinchos
metálicos de feras que não podiam ser vistas, o silêncio sob os pés
causado pelo musgo encharcado — todos estes detalhes diziam que
ele não havia chegado no local certo.

Arte por: Alayna Danner


“Pela vida de todos os planos, eu serei uma sentinela.” Como
poderíamos fazer isso. . .daqui?
Ele não estava com o restante da equipe de ataque. Este não era
o ponto de encontro. Os phyrexianos deviam ter empregado uma

157
nova defesa contra os planeswalkers. Mais uma vez, eles estavam
um passo à frente. Ele devia saber que Jace e os outros não eram
confiáveis para executar uma operação militar corretamente.
Quando o telepata o rastreou, Lukka estava esperando um ataque
devido ao que ele havia feito em Ikoria e Strixhaven. Ele ficou
surpreso quando Jace o recrutou, argumentando que a experiência
militar de Lukka seria essencial para o sucesso de sua missão de
infiltração. Lukka foi relutante. Inicialmente. Mas quando Jace disse
a ele que Phyrexia ameaçava Ikoria, ele não pode ficar impassível.
Ele ainda se importava demais com seu lar para isso.
— Então, aqui estou eu — ele murmurou a si mesmo, olhando
ao redor. — Onde quer que isso seja.
Irritado, chutou um chumaço encharcado de grama. Ele se
esparramou em uma árvore próxima. O chão estava cravado de
buracos cheios de água e raízes grossas — praticamente impassável.
Veias pulsantes transportavam óleo negro através da densa
vegetação rasteira e pequenas ventosas se projetavam dos troncos
das árvores, galhos brotavam em direção à luz do sol. Ele esticou o
pescoço. A rede de galhos acima parecia transitável.
Árvores super abundantes. . .vegetação pútrida e mecanizada?
Tinha que ser o lugar que haviam mencionado, o Labirinto do
Caçador.
Ele considerou, brevemente, transplanar de volta. Mas
considerando-se que ele chegou aqui inesperadamente, não havia
garantia de que ele terminaria onde queria. Ele poderia aterrissar em
uma situação ainda pior. Não, ele iria pelo alto, tentando retornar
aos outros.
Se eu puder encontrar uma criatura que eu possa tomar e dominar, poderei
traçar minha rota rumo à fortaleza de Elesh Norn. Talvez ele ainda tivesse
tempo de chegar ao ponto de encontro e retornar à missão.
Ele se aproximou do tronco da árvore. Folhas semelhantes a
mãos se enroscaram na forma de punhos, afastando-se dele.

158
Ele removeu seu arpão da bainha em seu braço esquerdo. Ele
mirou e o arremessou para cima. O arpão se prendeu em um galho
acima de sua cabeça. A árvore tremeu, purgando muco avermelhado
do ferimento. Lukka puxou a corda para certificar-se de que estava
firme e apoiou seus pés em ranhuras no tronco. Ele se impulsionou
para cima e começou a escalar.
Não era muito diferente de escalar os penhascos em seu lar.
Independentemente do que os outros disseram, Nova Phyrexia era
apenas outro plano.

Um grito nervoso rasgou o ar, espantando um bando de criaturas


de seu ninho no oco da árvore. As criaturas bateram asas em caos e
pânico, seus bicos denteados brilhando em prata e suas asas na cor
úmida de figado fresco. As criaturas giraram rumo a fonte do grito.
Lukka soltou um palavrão. Seu corpo, já cansado da longa
escalada, tremeu quando ele parou em hesitação. Suas mãos doíam
devido às bolhas que se formavam. Mas ele não poderia deixar
ninguém sozinho lutando em seu lugar. Além disso, essa poderia ser
a oportunidade de dominar a vida selvagem local.
Abraçando a árvore com suas coxas, ele removeu o arpão do
galho, desenrolou a corda e o guardou. Então ele se soltou para a
plataforma abaixo. As criaturas voadoras circulantes deram uma
pista da direção, e ele rumou para lá em passo acelerado, saltando
de galho em galho. O entusiasmo expulsou o cansaço de seu corpo,
transformando seus tremores em força e preparando-o para a
batalha vindoura.
Em um galho largo, uma elfa esbelta, brandindo o que parecia
ser uma espada de madeira, lutava ao lado de uma mulher vestida
em branco e dourado, cuja espada longa fluía como água. Lukka as
tinha visto antes: Nissa, e a mulher era chamada de. . .a Errante.

159
Arte por: Alix Branwyn
Um construto distorcido, que parecia uma mescla das piores
partes de uma maquina e um organismo, estava atacando as duas.
Suas quatro pernas estavam fundidas em ângulos estranhos, e apesar
disso o phyrexiano tinha uma graça letal. A Errante, um rápido
borrão de trajes brancos e espada piscante, afastou o brutamontes
phyrexiano, dando espaço para que Nissa conjurasse uma magia. As
tatuagens de Nissa brilhavam um verde levemente esvanecido. Sua
capa verde girava ao seu redor, e ela canalizava uma mágica. Folhas
metálicas estremeceram, e então foram arrancadas da árvore como
se por uma mão invisível. As folhas giraram no ar e então desceram
como um tornado rumo à abominação. As bordas metálicas afiadas
retalharam a criatura. Sangue cinza esverdeado jorrou.
As as duas mulheres não viram a segunda fera, espreitando sobre
elas em um longo galho, pronta para o bote.
Lukka a alcançou com o eludha, o vínculo que ele podia forjar
entre si e outra criatura. Ele pode sentir a mente da fera, um brilho
metálico com elementos biológicos carnudos e pouco utilizados. Ele
a agarrou e espremeu. Lukka quase pode sentir o gosto em sua boca,
o sabor picante de ferro espesso em sua língua. O phyrexiano
congelou, incapaz de prosseguir. Ele pode sentí-lo se rebelar contra
seu domínio, uma luta selvagem dentro de seu crânio.

160
Nissa e a Errante pressionaram o brutamontes centauro ferido,
avançando pelo galho. Ele caiu e seu corpo largou-se sobre o galho,
fazendo com que toda a árvore tremesse. A Errante pulou sobre
suas costas, descendo a espada para decapitar a fera. Então, com um
estralho brilho de luz, a Errante desapareceu.
Teria ela transplanado? Se foi isso, o momento parecia estranho.
Nissa avançou. Ela chutou o brutamontes centauro. Ele deslizou
do galho e iniciou uma queda acidentada rumo à floresta abaixo. Ela
limpou a lâmina em sua capa e a embainhou.
— Não fique muito confortável. Lukka caminhou na direção
dela. — Eu dominei um segundo que queria emboscar vocês de
cima.
— Obrigada. Nissa se virou. Sua expressão mudou. — Lukka.
Lukka acenou com a cabeça para o brutamontes centauro acima
deles. Ele desceu do galho mais alto rumo à plataforma, gentilmente
o suficiente para que o galho abaixo sequer balançasse. — Ele queria
arrancar a carne de seus ossos.
— Não sei nem como viemos parar aqui — disse Nissa.
— Meu plano é encontrar a superfície — disse Lukka. — Assim
que estivermos no alto, poderemos nos organizar e planejar uma
rota para a fortaleza de Elesh Norn.
— E como você planeja navegar neste labirinto?
Lukka acenou com a cabeça em direção à monstruosidade
phyrexiana. Ela havia cedido à ele completamente. Ele deveria saber
que dominar uma criatura semi-mecânica não seria fácil. Ela não
tinha o mesmo instinto de sobrevivência ou senso de si mesmo que
um animal teria. Ela era um mero construto.
— Você formou um vínculo com ela? Nissa perguntou.
Ela não parecia feliz por ele ter salvo a vida dela. Ela o fitava com
desconfiança e preocupação. Ele conhecia esse olhar. Ele o
detestava. Ele recebeu aquele olhar na primeira vez que se ligou a

161
um monstro. — Ele pode nos guiar e nos proteger até alcançarmos
o topo.
— Não acho que seja uma boa ideia você se ligar a um
phyrexiano — Nissa exclamou categoricamente. — Vamos destruí-
lo.
— Eu lutei contra monstros toda a minha vida. Frustrado, Lukka
a afastou. — Posso lidar com ele.
Nissa não disse nada, o que era falar o suficiente.
— Prometo — disse Lukka — que se eu sentir nem que seja uma
dor de estômago, eu mato a criatura.
Nissa o encarou, incerta, e então olhou em volta, para o Labirinto
do Caçador. Ele imaginou que ela estava mensurando sua
capacidade de sobreviver sozinha, sem ele, e percebeu que não era
o suficiente. Finalmente, ela assentiu.
— Não gosto disso — disse Nissa.
— Vou manter minha palavra — ele disse, irritado.
Nissa balançou a cabeça. — Vamos encontrar a melhor rota para
sair daqui.
Lukka mergulhou sua mente na consciência do brutamontes
centauro. Seus pensamentos eram confusos, embrutecidos e
iluminados pela raiva, espessos e escorregadios pela astúcia. Ele
sentiu a forma do território e dos caminhos frequentemente
trilhados da criatura.
— Ah — ele disse, com um sinal de satisfação profunda. —
Vamos subir, é claro.
Nissa parecia incomodada. — Isso eu poderia ter dito a você.

“Subir” era mais fácil de falar do que de fazer, no Labirinto do


Caçador. Primeiro, para alcançar uma árvore “escalável”, Lukka e
Nissa precisariam atravessar um vão cavernoso entre os galhos

162
monolíticos. Por sorte, e como Lukka esperava, o phyrexiano foi
útil.
Primeiro, ele o forçou a estiver seu corpo passivo entre os vãos
dos galhos. Ele e Nissa caminharam pelo brutamontes centauro
como uma ponte. Ele podia sentir sua carne mudar sob seus pés
conforme ele respirava. Os pés de Nissa pareciam um pequeno
padrão afiado ao longo de sua espinha. Ela queria que ele sentisse
suas botas se enterrando?
Quando eles alcançaram a rota mais aberta para cima — uma
árvore sem galhos com alguns poucos espaços para uma emboscada
de predadores — Lukka embarcou no brutamontes centauro. Ele
estendeu sua mão para Nissa. Ela o ignorou e se moveu em posição,
posicionando suas pernas ao redor do corpo do brutamontes
centauro como se ele fosse um cavalo. Isso o irritou. Mesmo o
aroma cítrico dela o incomodava. O que foi, ela lavou seu longo
cabelo escuro em água crítica como preparação para a batalha?
Mas nem sempre era possível escolher seus aliados. Ele podia
seguir ordens e se manter na missão, como qualquer bom soldado,
e respeitar o vínculo formado por lutar ao lado de um aliado.
Com um rápido pensamento, ele fez o brutamontes centauro
escalar a árvore. Ele mal precisava guiá-lo. Ele subiu em pulos, as
juntas extras de seus membros tornando seu movimento um
balanço trepidante. Ele não conseguia se firmar contra o balanço.
Nem conseguia acompanhá-lo.
Nissa parecia desconfortável.
Ele girou a cabeça, vislumbrando um vão entre os galhos com
sua visão dobrada, parte sua, parte do phyrexiano. — Segure-se.
— Pronta.
O brutamontes centauro phyrexiano saltou. A liberdade
momentânea de uma queda livre atravessou Lukka, e eles
balançaram em conjunto quando aterrissaram. O impacto sacudiu a
espinha de Lukka.

163
O brutamontes centauro se balançou à frente, rumo a uma
plataforma que se projetava de uma árvore sem galhos. A plataforma
parecia um fungo metálico, revestido por lâminas semelhantes a
líquen esverdeado.
O brutamontes centauro afundou suas patas dianteiras afiadas na
árvore e começou a subir. Lukka se inclinou para a frente,
aproximando seu centro de gravidade das costas do brutamontes
centauro. Ele podia sentir o esforço de cada parte da fera conforme
escalava, seu coração orgânico batendo com fervor, suas juntas
metálicas estalando devido ao peso combinado de Lukka e Nissa.
Nissa se agarrou a Lukka, seus braços finos ao redor de sua cintura,
sua bochecha sobre suas costas.
Ele decidiu que apenas os pés dela o incomodavam; seus
calcanhares pontudos enterrados no corpo do brutamontes
centauro, e ele podia sentir seu eco em suas próprias costelas.
Ele nem sempre havia sido tão alto e forte quanto agora.
Outrora, antes que ele atingisse seu tamanho na adolescência, um
grupo de garotos mais velhos o encurralou. Naquela época ele já
sabia que era diferente, embora não entendesse como. Em um certo
nível, os outros garotos haviam sentido isso: uma barreira invisível
que o impedia de ser um deles. Eles o encurralaram. Cinco contra
um. Ele decidiu recuar, mas eles o derrubaram. Enquanto se
encolhida para se defender dos golpes, ele precisava escolher: cabeça
ou costelas? Ele enrolou seus braços sobre sua cabeça, e resistiu.
Mais tarde, ele mostraria para eles, é claro. Eles se arrependeriam.
Ele queria que Nissa parasse. Parasse de afundar seus
calcanhares. Parar.
Ele sabia que ela precisava se segurar. É claro, ela precisava. Não
eram as suas costelas. Ele não disse nada.
O Labirinto do Caçador parecia murmurar ao redor dele como
se um vento invisível agitasse os galhos. Mas nenhuma brisa agitou
os cabelos de sua nuca. Esporos desciam flutuando, brilhando em
verde em movimentos rodopiantes.
164
Pequenos globos oculares, salientes como nós na madeira,
abriam-se para acompanhar a passagem de Lukka e Nissa.
Folhagens semelhantes a samambaias desenrolaram suas folhas
como se ansiando por sangue. Pequenas criaturas metálicas
semelhantes a caranguejos rastejaram entre as poças de óleo. Ele
podia sentir sua interconectividade, os phyrexianos que
perambulavam por ali, conectados ao Labirinto do Caçador por
vinhas metálicas. Ora, seria algo e tanto, não é mesmo, dominar
todo um ecossistema.. . .
Imagine o poder. . .
Um clarão de luz branca.
— Cuidado — a Errante gritou. Com um piscar, ela se
materializou em uma árvore perto deles e agora se agarrava à sua
circunferência com um abraço de urso, evitando cair.
Lukka tocou em sua adaga.
Asas de couro se abriram próximas de sua cabeça. Uma
monstruosidade phyrexiana desceu em um rasante, tentando
alcançar o rosto de Nissa com suas garras gotejando óleo. Nissa o
agarrou firmemente com um braço e alcançou sua própria espada
com a mão livre. Lukka tentou se contorcer para evitar a criatura,
mas ela estava diretamente atrás dele. Ele não podia se segurar no
brutamontes e lutar ao mesmo tempo.
A monstruosidade girou ao redor deles, atacando o braço que
Nissa usava para se segurar, rasgando sua mão para que ela não
pudesse sacar a lâmina.

165
Arte por: Lorenzo Mastroianni
Lukka alcançou o brutamontes centauro phyrexiano com sua
mente, ordenando que ele o segurasse. Ele o fez, mas não como ele
pretendia. Veias em forma de vinhas brotaram de seu torso,
afundando-se em sua pele e remexendo-se através de suas vísceras
para se enroscar em sua espinha. Deveria ter doído. Mas não
doeu. Não era isso que ele pretendia. Cada fibra deixou uma dormência
gélida. Lukka sentiu-se um com ele: sua espinha balançou, seus
ossos se firmaram.
Ele se contorceu. Com seus braços agora livres, ele sacou seu
arpão. Ele o arremessou contra o atacante. O arpão prendeu a
monstruosidade phyrexiana surpresa a uma árvore. Sangue oleosos
jorrou em seu rosto. Ele soltou o arpão e o puxou de volta. O corpo
desabou no chão.
Os carniceiros cor de fígado mergulharam no corpo caído com
gritos de felicidade. Apenas o mais apto merecia sobreviver.
A Errante observou Lukka de sua própria árvore. — Sou inútil
aqui — ela murmurou e, piscando mais uma vez, transplanou
embora.
Nissa o encarou horrorizada, seus olhos verdes arregalados. Ela
tinha sangue em seu próprio rosto. Será que a cabeça dela estava
ferida? Às vezes, mesmo cortes superficiais na cabeça poderiam
166
sangrar em profusão, parecendo pior do que realmente eram. Mas
se ela tivesse um trauma severo na cabeça, não seria capaz de lutar.
Ele precisava saber se poderia contar com ela. Ele esticou a mão
para puxar o cabelo dela. Ela recuou instintivamente e começou a
cair. Ele a agarrou. O peso extra dela fez o brutamontes centauro
apertar seus laços internos com ele. Ele estava enraizado dentro
dele.
Nissa parou de resistir. Ela vasculhou o ambiente como se
procurasse um lugar para desembarcar. Mas não havia nada:a penas
o tronco escorregadios de metal e uma longa queda. Ela poderia se
segurar ou transplanar para longe. Ela se segurou. Sua expressão
deixou seus lábios tensos.
O brutamontes centauro, e seu elo com ele, salvaram ambos.

Ele e Nissa atingiram um ponto elevado na copa do Labirinto do


Caçador. A luz aqui era mais clara, um amarelo mais rico e mais
quente, como manteiga em sua língua. A “árvore” que o phyrexiano
estava escalando tinha se estreitado, e agora estava fina o suficiente
para tremer sob o peso deles.
Você merece poder. Você é forte. Aqui, a força é recompensada. Os fracos
são abatidos.
Ele não sabia se era tão óbvio para Nissa quanto era para ele, mas
agora eles haviam alcançado uma altura em que eles precisariam se
mover paralelos ao solo novamente, talvez até alcançarem o limite
da floresta. Os galhos entrelaçados, nodosos como madeira mas
feitos de metal e carne, formavam uma rede de caminhos pelos quais
a vida viajava. Folhas brilhavam, estômatos do tamanho de punhos
se abrindo e fechando conforme as árvores respiravam. Frutos,
grandes como cabeças decepadas, se dependuravam aos montes.
Flores, em um rosa intestino, ordenadas como a oficina de um
açougueiro, gotejavam óleo negro.
Ele não havia percebido como tudo era belo até agora.

167
O brutamontes centauro saltou da árvore eles para a próxima,
pousando pesadamente sobre outra plataforma de cogumelos.
Lukka ordenou que ele recolhesse suas gavinhas. Ele o fez sem
protestar. Ele desembarcou. Nissa observou o estômago dele, mas
não havia sinal de que o phyrexiano estivera dentro dele, exceto por
alguns furos em sua camisa, que poderiam ter sido causados por
qualquer coisa. Nem mesmo uma gota de sangue marcava o tecido.
Nissa caminhou até a borda da plataforma. Ela olhou ao redor,
como se procurasse uma rota. Ela balançou a cabeça, sem encontrar
nada. Ele tinha a impressão de que se o caminho se dividisse, ela
teria sugerido que eles se separassem. Mas não aconteceu. A
folhagem era tão densa que ele podia ver apenas um caminho a
frente. Então, as escolhas dela eram seguir com ele ou transplanar
para casa. A mente phyrexiana disse para ele que esse era a rota certa.
Nissa caminhou até o lado dele. Ela entrelaçou os dedos e os
alongou, agora olhando para cima. — Ainda não consigo ver a saída.
— Está aqui. Ele podia sentir o calor revigorante do sol em suas
costas. Na verdade, quando ele pensava sobre isso, essas árvores
eram organismos perfeitos, tão grandes e fortes com tão pouco para
sustentá-las. Você é como elas, também. Você sempre aceitou o que lhe foi
dado. Você fez o melhor possível com o que tinha.
O caminho levou a uma abertura semelhante a um esfíncter. Ele
permaneceu aberto, ofegando na escuridão.
— Venha. Ele foi em sua direção.
— Espere — Nissa o seguiu, e então parou.
A abertura fechou atrás deles. Nissa girou em direção a ele. Ela
dirigiu a ele um olhar desconfiado, mas não falou nada.
Ele voltou a caminhar. O brutamontes centauro phyrexiano
trotou à frente, obediente.
O cheiro da passagem o recordava de um campo de batalha: o
fedor de sangue e entranhas vazias. As paredes escurecidas ao redor
dele brilhavam com a luz verde doentia das lâminas, e superfície

168
franjada da passagem ondulava à frente, como os cílios dentro de
um estômago.
Nissa o segui, relutante. Ela estava tão preparada para criticá-lo,
mas não era como se ela tivesse um plano melhor. Era ele quem os
tinha trazido até aqui, praticamente arrastando o peso morto dela.
Ele nem sabia porque Nissa tinha escolhido participar deste ataque.
Os menos merecedores deviam perecer para abrir caminho para os mais
espertos e implacáveis.
Ele sempre acreditara na meritocracia. Excelência, habilidade,
treinamento, talento: foi assim que ele havia se tornado capitão dos
Especiais.
Um movimento entre sua camisa e sua pele chamou sua atenção.
Ele enfiou seus dedos nos furos do tecido, esperando encontrar um
mosquito aprisionado.
Algo agarrou seu dedo, macio e semelhante a uma ventosa.
Ele lançou um olhar para trás, mas Nissa estava vasculhando a
passagem em busca de perigos. Ela não estava olhando para ele.
Ele espiou pelo buraco em sua camisa. Algumas raízes
phyrexianas haviam permanecido dentro dele. Agora elas beijavam
seus dedos, como anêmonas do mar.
E se você nunca sentisse dor ou medo? E se a única coisa que você sentisse
fosse certeza e pertencimento — o conhecimento de que aquilo você faz é certo
porque você é quem esta fazendo?
— O que houve? Nissa perguntou.
Lukka puxou seus dedos rapidamente, sentindo-se culpado. Ele
havia dito a ela que iria recuar se experimentasse qualquer mudança
física como resultado do vínculo com a abominação phyrexiana.
Mas aquelas gavinhas delicadas, pulsando de forma molhada nas
pontas de seus dedos, não machucavam. Ele se sentia mais saudável,
mais forte, mais confiante — mais como ele mesmo do que sentira
a muito tempo.
Ele sorriu para Nissa.
169
— Acho que você machuco minhas costelas durante a escalada
— ele disse. — De se segurar muito firme. — Você estava
assustada?
Nissa franziu o cenho. — Você tem certeza de que este é o
caminho certo?
— Muita.
Ao redor dele, as paredes suspiraram de satisfação. Ele avançou
mais fundo, em direção ao som. Será que Nissa também havia
ouvido? Ele pensou que poderia estar ouvindo vozes. Não
sussurros, mas murmúrios. Talvez eles estivessem indo em direção
a um grupo de companheiros planeswalkers, também separados
durante o ataque inicial. Mas, mais provavelmente, ele pensou, eles
estavam indo rumo ao inimigo.
Ele achou que após a escalada, e após várias lutas, ele estaria
dolorido, mas não estava. Seus joelhos pareciam um pouco
diferentes, assim como as juntas do quadril, como se tivessem se
modificado em uma forma mais forte e eficiente.
Há força na mudança e poder na flexibilidade. Vencer é tudo que importa.
Um enxame de criaturas semelhantes a sanguessugas emergiu dos
cílios ao redor deles. Com seus corpos afiados e marcados pelo
brilho de dentes, eles fervilharam em direção a Lukka com uma
velocidade surpreendente. O brutamontes centauro phyrexiano
entrou em ação, esmagando as criaturas carnudas.
A Errante surgiu em um piscar ao lado deles. Por uma fração de
segundo, ela pareceu confusa, mas então entrou em ação, sacando
sua espada e cortando as criaturas em arcos longos e devastadores.
— Fora de um perigo, dentro de outro — ela murmurou.
Nissa cortou as criaturas com sua própria espada e as chutou para
longe antes que pudessem escalar suas pernas. Lukka sequer sacou
seu arpão. Ele não seria efetivo contra criaturas tão insubstanciais
quanto essas — elas eram tão pequenas que ele poderia agarrá-las e
parti-las em dois. Suas mão, seus dedos, pareciam afiados e
metálicos. Ele não conseguia se lembrar de quando esta mudança
170
havia ocorrido, mas deveria ser recente. Ele poderia fatiar o enxame
de criaturas com suas unhas, espalhando pétalas de entranhas
púrpuras pelo chão. Mas elas continuavam vindo.
O chão abaixo deles ondulou desperto, e ele percebeu que eles
haviam caminhado até a criatura-mãe, alojada no chão da passagem,
com seus filhotes enterrados em sua carne como pústulas. O chão
se contorcionou de novo, dentes emergindo, múltiplas bocas se
abrindo sob seus pés.
A Errante gritou e correu para fora da boca da fera.
Nissa agarrou sua mão e puxou Lukka adiante. Os dois pularam
para fora da bocarra da fera rumo ao chão à frente, mais duro, seco
e metálico.
Atrás deles, a fera-mãe se enrolou à frente e ao redor do
brutamontes centauro phyrexiano e o engolfou. O grito angustiado
e furioso dele ecoou dentro de Lukka. Como pode ele pensar que
esta criatura era um mecanismo sem emoções? Não, ele havia sido
subjugado, aguardando, avaliando ele. . .Ele correu à frente.
— Não! Nissa disse. — Deixe-o!
Mas uma força como ele jamais havia visto correu por seu corpo
e ele salto à frente — em um pulo que desafiou a gravidade,
impulsionando-o para a bocarra central da criatura. Essas mudanças
não parecem tão ruins, Nissa. Mais do que tudo, elas são úteis.
Suas unhas, brilhando como metal, eram tão afiadas, suas mão
eram tão afiadas, que ele abri caminho cortando a monstruosidade-
mãe. Ele afastou uma tira de carne, e libertou seu phyrexiano. A
criatura aprisionadora, partida em dois, tremeu com em uma agonia
de morte gosmenta. Seus batimentos arteriais diminuíram conforme
ela morria. Suas crias se espalharam e fugiram.
O brutamontes centauro phyrexiano cambaleou adiante e caiu,
prostrado em gratitude, aos pés de Lukka.
A Errante havia cortado um pedaço de tecido branco de suas
vestes para fazer um curativo no antebraço de Nissa. Uma das
criaturas sanguessuga devia ter arrancado um pedaço de carne.
171
— Você tem forças para continuar? Ele tentou ser
simpático. Apenas os sobreviventes merecem viver. Os fortes têm o direito de
matar os fracos. O dever.
— Nós devíamos transplanar para fora daqui — Nissa disse.
— Nós estamos quase alcançando o centro do labirinto — disse
Lukka.
Nissa olhou para ele com severidade. — Nós estamos
tentando sair. Para a superfície.
Lukka franziu a testa. Ele não conseguia se lembrar de quando
seus objetivos haviam mudado. Eles mudaram? Ele sentiu como se
estivesse vindo nesta direção o tempo todo. Ele ponderou sobre
isso, olhando para seus braços e mãos. O problema, é claro, de enfiar
suas mãos em criaturas para lutar era que ele tinha marcas de
mordida em todo seu corpo. Ele não havia percebido na hora, e
agora elas não doíam. Elas já haviam começado a cicatrizar, crostas
grossas enegrecidas se formando sobre cada ferida.
— O que você acha? Lukka por fim, questionou a Errante. —
Você tem mantido contato com os outros planeswalkers? —
Devemos recuar?
A Errante hesitou, e então balançou a cabeça. — Vi muito deste
plano enquanto estive tentando me manter estável. — Uma das
coisas que eu vi foi Vorinclex.
Lukka coçou uma crosta de ferida. Quando ela caiu, sob a ferida
ele viu um movimento semelhante ao de um verme. Abaixo disso,
sua ulna brilhou... como metal. Ele se maravilhou com o ferimento
até o osso que sequer doía.
— Vorinclex — Nissa repetiu.
— Sim — a Errante disse. — Estamos próximos. Vocês estão
próximos. Mais ainda, acho que Vorinclex se recuperou de sua
jornada até Kaldheim. Precisamos derrotá-lo antes que ele
machuque mais alguém.

172
— Não é isso que viemos fazer aqui — disse Nissa. —
Precisamos encontrar os outros.
Dessa vez, Lukka concordou com ela. — Não é parte da missão.
— É uma oportunidade — a Errante disse — e então, com um
brilho de luz, ela transplanou para longe involuntariamente.
Nissa parecia estar pensando. — Não sei se conseguiríamos
encontrar os outros, mesmo que tentássemos. Se matarmos um dos
aliados de Norn, entretanto, podemos dar a eles uma chance melhor.
Lukka considerou. Chegar assim tão perto e não atacar. . .bem,
seria covardia. — Você está certa. Assim como a Errante. Vamos
derrotar Vorinclex.
Nissa o analisou, como se estivesse mensurando seu valor como
aliado. — Qual é o caminho?

Foi se tornando mais fácil conforme eles se aproximavam do


centro do labirinto — ou ele estava desguardado ou algo maior e
mais predador tinha devorado as monstruosidades menores. O
grosso sussurro das vozes, todas ininteligíveis, era tão alto que
tornou impossível pensar.
Lukka ficou imaginando porque Nissa não demonstrou nenhum
sinal de perturbação. Talvez ela fosse mais durona do que ele
pensava.
Os cílios alinhados às paredes do labirinto ondularam-se como
se movidos por uma corrente invisível em direção ao medalhão
central. Na câmara de Vorinclex, os cílios se tornaram mais longos,
grossos e pálidos, um branco amarelado brilhante, e o chão se
afundou em um buraco cavernoso que lembrava a boca de uma
estrela do mar. Ele ouviu um clangor metálico, e o som
inconfundível de lâmina contra lâmina, seguido pelo deslizar duro
de um bloqueio. Então, ele os viu.
Vorinclex enfrentava uma elfa phyrexiana sob os crânios
monstruosos que se penduravam do teto. A elfa parecia fundida a

173
placas de metal cor de cobre e não precisava de uma espada. Seu
braço era a lâmina. Glissa. Esse era o nome dela. Ele a encontrara,
brevemente. Vorinclex se agigantou sobre ela, quase quatro metros
de metal, ossos e carne gotejante. Ele desceu seus braços
musculosos sobre Glissa, como se tentando prendê-la ao chão com
suas garras enormes. Glissa girou para o lado com uma risada
ecoante, os fios de cobre de seu cabelo contorcendo-se e fluindo ao
seu redor.
Lukka não sabia dizer se eles estavam lutando ou brincando.
Glissa flanqueou Vorinclex, levando a lâmina que era seu braço
em direção ao seu ombro peludo, e Vorinclex a encontrou,
bloqueando seu golpe novamente. Lukka nunca havia visto uma
expressão tão alegre de combate. Os dois dançavam — quase como
se flutuassem — ao longo dos cílios pálidos e que se balançavam no
chão.

Arte por: Krharts


Nissa agarrou o punho dele. Ela sussurrou — nós dois podemos
derrotar Vorinclex. Talvez. Mas Vorinclex e Glissa.
— Há dois deles e dois de nós — disse Lukka.
Nissa respondeu com um olhar severo. — Kaya disse que ela mal
conseguiu encarar Vorinclex sozinha.

174
— Nós conseguiremos.
— Você está me ouvindo? Nissa sibilou.
— Nós também temos um aliado. A abominação phyrexiana.
Sem outra palavra, Lukka investiu. Nissa, atrás dele, deixou
escapar palavrões que fariam até mesmo Chandra corar. Mas ela
segui logo atrás dele, exatamente como ele sabia que ela faria. Ela
não deveria deixar um aliado encarar um combate sozinho.
Lukka se lançou contra Glissa enquanto Nissa enfrentou
Vorinclex.
Glissa girou, com um sibilo, e se defendeu com as garras de suas
mãos. Lukka não precisava de uma arma para atacá-la. Ele tinha suas
próprias garras. Ele trocou golpes com Glissa, e ela sorriu. Eles se
equivaliam perfeitamente. Ele não havia se sentido assim por anos,
não desde sua última grande luta de treinamento com os Gibões de
Cobre. Glissa parecia sentir o mesmo, e ele pode ouví-la rindo —
rindo de pura alegria.
Mas então Lukka cambaleou.
Glissa se lançou à frente, pronta para atravessá-lo com seu braço-
espada. Como se ele fosse deixar! Ele não queria que essa luta
terminasse.
Ele usou seu eludha. Seu aliado phyrexiano se lançou ao
combate. Junte-se a mim ele disse, sedento por seu poder, por sua
força. O phyrexiano fluiu até ele. Suas gavinhas se contorceram para
dentro de seu corpo. As raízes dentro dele brotaram para recebê-las.
Ele pode sentir o phyrexiano se mover para dentro dele e
então tornar-se ele. Sua pele se partiu, como se estivesse madura
demais, mais do que pronta para a mudança. Seu corpo se dobrou
para a frente, como uma flor desabrochando, suas costelas se
abriram conforme o phyrexiano se alojou dentro dele, seus braços
se tornando os braços dele.
Ele estava pronto para servir até o final. Para perder sua vida para
salvá-lo. Quanta lealdade. Ele pertencia a ele, obediente e submisso
de todas as formas.
175
A espinha dele se tornou sua espinha, e ele agora estava sob as
pernas dele, maior do que Glissa. Ele ainda tinha seus braços, mais
afiados e destros, mas os braços do phyrexiano agora formavam um
segundo par de braços com maior alcance. Ele sempre sentiu que
sua arma era parte dele — e agora era verdade. Ele apunhalou Glissa
e ela saltitou para trás sob os cílios com uma risada cristalina e
encorajadora.

Arte por: Chase Stone


A disputa de Lukka com Glissa o trouxe mais e mais próximo de
Nissa e Vorinclex. Nissa não estava se saindo mal. O pretor sangrava
icor por uma dúzia de cortes em seu corpo.
— Pegue... a elfa — Vorinclex falou com a voz arranhada.
Nissa olhou para ele. Então, ela olhou novamente, enojada e
horrorizada. Ela recuou. Ela estava em menor número, e sabia disso.
Lukka avançou sobre Nissa. Ele era um com o brutamontes
centauro, e, combinados, eles eram ambos mais poderosos. Nissa
recuou cautelosamente, raiva e medo sobrepujando o horror em sua
expressão. Finalmente, ela o temia. O respeitava.
Era assim que deveria ser. O mais forte triunfando sobre o mais fraco. A
vida é assim. É isso que viver significa. Ele aprendeu essa lição bem
quando seu vínculo foi revelado e seu povo se voltou contra ele. Ele
sempre soube que queria ser aquele que batia, não aquele que
176
apanhava, porque só existem dois tipos de pessoas nesse
mundo. Existem aqueles que aceitam, e aqueles que resolvem. Nissa
continuou recuando decididamente em direção à passagem que eles
usaram para entrar na câmara de Vorinclex. Nissa mantinha a espada
erguida, protegendo se de um golpe dele. Parecia que ela estava
pensando, tentando decidir se ficava no Labirinto do Caçador ou
transplanava dali. Ele precisava agarrá-la agora, antes que ela
escapasse. Ele ergueu suas mãos e avançou contra Nissa, revelando
nitidamente — ele não precisava de uma arma, ele era a arma.
A Errante piscou de volta à existência entre ele e Nissa, e
instintivamente ergueu a espada em um bloqueio. Suas mãos
bateram contra ela, mas ela aparou o golpe, rilhando os dentes
contra seu peso e forçando-o a recuar.
— Lukka? Então, a fúria de batalha dela também se transformou
em confusão. — Nissa, corra!
Nissa respondeu com um olhar dolorido e furioso.
E então correu.
— Pelos Nove Infernos, não isso — a Errante disse e piscou
novamente.
Glissa sorriu para ele, o mecanismo visível em sua mandíbula e
bochechas revelando sua beleza bruta. Ele havia merecido isso. Ele
sempre soube que era diferente, devido a sua habilidade de se
vincular a animais. Ele sempre soube que era melhor. Ele poderia
voltar para casa e não haveria um monstro no plano que poderia
desafiá-lo agora.
Ele finalmente se tornara ele mesmo, aquele que ele deveria ser.
— Pare — disse Glissa, e Lukka parou, aguardando mais
instruções. — Encontre a elfa, Lukka. Mas não a mate. Nova
Phyrexia terá um uso para ela na guerra que esta por vir.
Ao seu lado, ele ouviu a risada baixa e rosnada de Vorinclex,
sentiu o prazer sofrido que Glissa tirava de sua confiança e percebeu
que ele mesmo estava sorrindo. O Labirinto do Caçador era enorme,
belo e terrível — e era hora de caçar.
177
UM HOMEM DE PARTES
Reinhardt Suarez

A menos que tenham recebido outras ordens, todos os


habitantes da Basílica Alva percorriam trilhas predeterminadas por
seus postos. Aspirantes circulavam por entre as torres vertebrais
como sangue correndo por artérias. Cada passo era um convite aos
axiomas das Gravuras Prateadas — a palavra de Elesh Norn escrita
em metal e carne — para agarrá-los com espasmos de um delírio
compulsivo. Muito acima, os anjos, em peregrinações silenciosas
por entre areais enevoados, voavam com asas de cartilagem em
retalhos. Daquela posição vantajosa, o movimento constante dos
aspirantes não era uma montagem de milhares, mas sim o trabalho
manual de um grande movimentador; a confecção de um único
sigilo divino, contorcendo-se no antro umbilical da existência. Nos
pátios inferiores da catedral de Elesh Norn, chanceleres envoltos em
penas encharcadas de óleo e rastejantes estavam em êxtase colérica
dentro e fora do Grande Anexo. Eram como larvas ensaboadas
proclamando a sabedoria de sua amada Mãe das Máquinas.
Isentos desses ciclos intermináveis estavam aqueles escolhidos
entre as legiões blindadas da Hoste de Alabastro para guarnecer as
ruas que davam acesso à catedral. A função deles, diferente da de
outros na Basílica Alva, era de permanecer imóvel, de forma perfeita
e inumana, pois eram o olhar nunca pestanejante da própria Mãe.
Desgraça seria do legionário que desviasse desta normativa por um
mero esfregar de uma mancha em sua armadura.
Então, não foi surpresa para Tezzeret que os centuriões gêmeos
à frente do portão não mexeram um músculo com a ruptura da
178
Ponte Planar, que então irrompeu em uma grande fenda à frente
deles. Ele estava, mais uma vez, no amaldiçoado plano de Nova
Phyrexia. O endosqueleto carbonizado de Rona jazia em seus
braços.

Arte por: Camille Alquier


— Devo ver a Mãe — falou rispidamente aos guardas. As
energias da Ponte Planar devoravam sua carne como uma revoada
de aves carniceiras. Nenhum deles se moveu ou reconheceu sua
presença. — Ela está aqui ou está no núcleo? Ainda sem resposta.
— Responda-me, malditos!
— Traga-o até nós — vociferou alguém. A voz dela. — Envie a
outra a Jin-Gitaxias para recondicionamento. Com isso, os guardas
deram um passo para o lado, um tomando o corpo de Rona e o
outro acompanhando Tezzeret na longa marcha pelo pátio interno.
Um murmúrio constante preenchia a área, assim como o incenso
débil, doce e levemente acre do braseiro no centro. Lá havia um
fervor que Tezzeret não notara antes. Eram instantes cheios de
emoção antes de um ritual sacrificial.
A jornada de Tezzeret chegou ao fim dentro de uma câmara
sustentada por porcelana quase-óssea sobressaltada das paredes, um
conjunto de costelas que se uniam no centro, formando uma
corrente de altos degraus que davam no trono de Elesh Norn. Um

179
par de animarcas gigantescos parou de trabalhar no fundo da
caverna para observar a chegada de Tezzeret por entre os espaços
intercostais.
— Honorável Mãe — disse ele, ajoelhando-se.
— Não chamamos você — disse Elesh Norn. A voz dela era tão
alta que parecia explodir de dentro de sua cabeça. — Por que
abandonou Dominária?
— Nossas forças foram sobrepujadas — iniciou Tezzeret.
— Não é possível. Nosso alcance é onipresente.
— De fato, Mãe. Mas. . .houve traição. Rona, aquela com quem
cheguei...
— Uma das lacaias de Sheoldred — disse Elesh Norn. Havia um
tom de julgamento na voz dela. Elesh Norn levantou-se do trono e
começou a descer os degraus. — Sheoldred, aquela que é uma
apóstata a nossos olhos! As forças dela entraram em embate
conosco em um fulgor incessante de poder. Que desrespeito à nossa
misericórdia, apesar das transgressões passadas dos tanos. . .Tal
sacrilégio nos enche de pesar.
Tezzeret quase cambaleou para trás. Sheoldred? Após os eventos
de Dominária, Tezzeret fora convencido de que Sheoldred havia
dobrado o joelho. Um animal de estimação selvagem e obstinado,
mas ainda um animal. Ele já havia planejado culpar Rona por seu
fracasso. A traição de Sheoldred foi um detalhe delicioso que dava
mais credibilidade à sua história inventada.
— Rona cumpriu perfeitamente sua parte no plano de Sheoldred,
enganando até mesmo a mim. Fomos vencidos quando nossas
tropas se voltaram contra nós.
— E os planeswalkers? Perguntou Elesh Norn.
— Escaparam.
— E você não os seguiu? A sombra de Elesh Norn era como
uma torre à sua frente. Em reflexo, os ombros dele recuaram,

180
causando rompantes de dor da Ponte Planar, fazendo ele se sentir
tonto.
— Eu teria feito isso, Mãe — disse ele com os dentes cerrados.
— Mas eu precisava avisá-la a respeito da cobra em nosso meio. Eu
estava. . .preocupado.
Norn estava perto o bastante para se inclinar para frente, com
um braço estendido, e levantar o queixo de Tezzeret com o dedo.
— Você nos ama, não é mesmo?
Uma estocada bem feita de seu braço afiado poderia empalar a
cabeça dela ou decepá-la. Seria a doçura daquele ato válida perante
o inferno que ele enfrentaria após? Morte? Se ele tivesse sorte.
Tortura? Ainda assim, era preferível comparado ao que suspeitava
que realmente aconteceria. O estreitar e retorcer de seu corpo e
mente, a vitória do óleo sobre seu espírito tenaz, o fim dele e o
começo de sua servidão infindável. Como Tamiyo. Como Juba
D'ouro. Tezzeret fechou os olhos e pediu que seu coração se
acalmasse, concentrado no som da própria respiração.
— Que criança não ama sua mãe? — disse ele, olhando para cima
outra vez.
— Conte-nos então, criança. Conte-nos sobre o inimigo.
— Encontramos a nova líder dos planeswalkers. Ela atacou Rona
com sua arma aterrorizante. Tezzeret viu a ira de Elesh Norn dar
lugar à apreensão. — O nome da líder é Elspeth Tirel. Tezzeret
deixou o nome perdurar. Em outras circunstâncias, observar a Mãe
das Máquinas com medo genuíno seria um raro prato a ser
saboreado. Porém, a Ponte Planar extraía qualquer prazer que ele
pudesse ter sentido.
— A arma...
— Uma lâmina branca brilhante — disse Tezzeret. — Como o
fragmento de uma estrela. Não tínhamos resposta, assim como não
a temos quando ela chegar à Nova Phyrexia. Você deve concordar
que isto é uma inevitabilidade.
— Estaremos prontos — disse Norn em tom baixo.
181
— Nenhum de nós está pronto. Entretanto, ela desistira da
vantagem da surpresa. Devemos aproveitar a oportunidade... —
outra onda de dor desceu sobre Tezzeret, forçando-o a cair de
joelhos em falsa penitência. — A bênção que me foi prometida —
disse ele, agarrando seu peito. — Com um corpo de aço negro,
posso ser seu escudo invencível. Acredite em mim como acredito
em você, Mãe; e juntos, mesmo a poderosa general do inimigo não
poderá nos dominar.
A visão de Tezzeret ficou turva. Ele ficara tempo demais sem o
tratamento em Kuldotha, e estava agora no limiar da vida e a morte,
dependendo da piedade — e credulidade — do ser que mais odiava
no Multiverso. Que oportuno ele se encontrar nessa situação
novamente. E também enfurecedor. Ele caiu de costas no chão,
incapaz de se concentrar em algo além do fogo elétrico invisível que
tomava seu corpo.
— Você carregou um grande fardo por nós — disse Elesh Norn,
acariciando as bochechas de Tezzeret com a garra. — É hora de
recompensar sua fé. Promessa é promessa. O sorriso assombroso e
doentio de Elesh Norn foi a última coisa que ele vira antes de perder
a consciência.

O ar era frio, úmido, e cheirava a óleo. Os olhos de Tezzeret se


abriram. Cabos tentaculares estavam amarrados ao redor de suas
pernas e braços, trancando-o. Uma esfera iridescente pairava sobre
sua cabeça. Pinças de mercúrio endurecido saíam das laterais como
pernas de uma aranha mecânica.

182
Arte por: Sarah Finnigan
— Procedimentos de estabilização bem-sucedidos. Indivíduo
retomando consciência.
Jin-Gitaxias. Tezzeret fez força para entender o máximo possível
de seus arredores. Ele reconheceu as minúcias penumbrosas do
laboratório de Jin-Gitaxias, uma panóplia de tanques em estase que
preservavam partes da história do plano. Uma traje metálico
rotineiramente vestido por agentes neuroques. Um prisma de cinco
lados do tamanho de um punho brilhava com uma luz amarela que
escorria do centro como um sol escurecido. Os restos de um
pequeno cubo negro flutuavam, dissecado como um animal sob
estudo.
— Por quanto tempo eu dormi? perguntou Tezzeret. A voz dele
estava rouca e sua boca seca.
— O bastante para a tarefa a mim delegada. — disse Jin-Gitaxias,
aparecendo à vista. Ele parou por um instante para investigar a
tábula em sua mão; um dispositivo que usava para monitorar a
integridade de seus aparatos laboratoriais, e então girou seu pescoço
para encarar Tezzeret. — Embarcar em projetos em cima da hora é
imprudente. E em um momento complicado como este. A discrição
de Elesh Norn, de grosso modo, é longe do aceitável.

183
Estava acontecendo. Enfim, sua recompensa. Tezzeret teria se
sentido mais exaltado, não fosse pelo fato de estar preso ao assento
onde Tamiyo fora aberta e esfolada como uma fruta madura, seus
órgãos removidos e substituídos por glândulas que nadavam em icor
oleoso, um fígado ácido e ossos de metal negro. Ao vislumbrar o
renascimento dela como phyrexiana, Tezzeret jurou que não teria o
mesmo destino, e que morreria antes de se sujeitar aos experimentos
insanos de Jin-Gitaxias. Porém, galantear a morte não era o mesmo
que enfrentá-la.
A porta na outra extremidade do laboratório se abriu com um
deslize quase imperceptível. Apinhados, diversos rastejantes com
tentáculos puxavam uma plataforma flutuante, semelhante àquela
que Tezzeret usara para escoltar o corpo desmembrado de Karn até
o jardim de Elesh Norn. Entretanto, nesta plataforma, jazia algo de
muito mais importância a ele — o prêmio há muito almejado. Listras
de ouro giravam em torno da superfície preta como azeviche.
Um corpo de aço negro. Frio. Indestrutível. Invencível. Algo
surgiu no peito de Tezzeret, superando até mesmo a queimação
constante da Ponte Planar em sua carne. Era esperança? De forma
alguma. Tal desilusão era suficiente para simplórios; para Tezzeret,
não havia utilidade. O que ele tinha era clareza. Não havia nada
melhor que o desespero para renovar a convicção de alguém — para
fortalecer a vontade.

184
Arte por: Zezhou Chen
— Há custos no manuseio do aço negro — proferiu Jin-Gitaxias
em sua monotonia emblemática. — Após a forja do metal, ele deve
ser moldado na configuração desejada imediatamente. A celeridade
com a qual é feita a moldagem requer, inevitavelmente, padrões mais
negligentes em outras áreas. Urabrask perdoa tais desperdícios, mas
eu não o faço.
— Estou bem ciente — disse Tezzeret, por dentro zombando de
Jin-Gitaxias, fingindo entender algo que era evidente que não havia
compreendido. Tezzeret viu o bastante na região de Urabrask para
saber que o metal era minerado e moldado de forma bem distante
da tradicional. Forjar aço negro consiste em forjar a realidade ao
redor de onde o metal viria a estar, desejando que ele tome forma.
Tezzeret conjecturou que o mesmo mecanismo mágico foi uma
colisão ao acaso de rituais reunidos ao longo de incontáveis ciclos
— talvez em parte copiado da técnica dos vulshoques e em parte do
conhecimento ganho fora do plano, muito tempo atrás. Apesar do
conhecimento, todas as suas tentativas de replicá-lo falharam.
Tezzeret não gostou daquilo. Não estava confortável com sua
inabilidade de desvendar os segredos do aço negro. Mas ele
aprendeu a aceitá-la.
— Uma aula de eficiência — disse Jin-Gitaxias, acenando para
que um par de drones-lesma assistentes se aproximasse. — O
185
etherium extraído de sua carapaça será moldado e carregado,
criando uma ligadura e estabilizando sua nova forma. Os drones se
inclinaram para frente, e das cavidades no topo de suas cabeças
saíram raios concentrados de energia, direcionados ao braço
metálico de Tezzeret.
Em um primeiro momento, ele não sentiu nada, mas logo o
crescente calor irrompeu em dor lancinante onde seu braço
encontrava o ombro orgânico. Tezzeret observou a personificação
de sua própria excepcionalidade derreter como se não fosse nada.
Jin-Gitaxias recolheu-o em uma bacia e derramou o etherium
superaquecido em um canal estreito na traseira do corpo do aço
negro.
— Isto permanecerá como fraqueza nesta forma quase
impregnável, mas precauções adequadas podem mitigar o perigo a
você.
Engenhoso, pensou Tezzeret. Um artífice inferior teria tentado
inventar uma forma mais complexa de criar a ligação. Tudo para
impressionar os colegas sorridentes da academia. Mas não Jin-
Gitaxias. Ele entendia que a atração essencial dos elementos — de
se apegar aos semelhantes — era pura, inviolável, e sem paralelos.
— Agora — disse Jin-Gitaxias. — Que comece o procedimento.
A esfera operadora desceu até Tezzeret. Um anel de pinças se
fechava em torno de seu pescoço. A esfera então começou a
trabalhar, primeiro implementando microfilamentos na pele. Cada
punção parecia a estocada de uma adaga. Agulhas cirúrgicas em seu
assento fizeram o mesmo, costurando um tecido de fios de etherium
ao redor de sua coluna espinhal. Tezzeret tencionou os dedos,
cerrando-os nos punhos. Um zumbido entorpecente começou a
percorrer os fios metálicos, causando uma súbita onda de tontura
nele.
A cabeça começou a girar como se estivesse separada do corpo,
agora pouco mais do que uma massa esparsa de carne e metal
chamuscado cercando a Ponte Planar. A dor era mil vezes maior do

186
que qualquer outra que já sentira; tamanha era ela que visões
começaram a tomar sua mente — pedaços de um sonho febril
familiar que tivera quando Bolas resgatou-o da beira da morte. Um
oceano envolto em uma névoa azulada. Uma ilha de metal, grama
de estanho polido e folhas de árvores como lâminas afiadas
maculadas pela idade. Acordes lúgubres de contrabaixo em
crescentes repiques ensurdecedores — o badalar de um um relógio
colossal.
E então. . .escuridão. Silêncio.
Tezzeret abriu os olhos e deu de cara com o brilho das luzes na
placa de mármore perfurada. Funcionou? Estava vivo ou morto?
Não tinha certeza. Ele concentrou-se na ponta de seu dedo sobre a
placa, maravilhado com como a movia conforme seus comandos.
Sim, ele sentiu os músculos — se é que podiam ser chamados assim
— em seus membros explodindo com pura energia física que jamais
tivera. O mais importante: a queimação da Ponte Planar sumiu, e
sua mente parecia mais aguçada do que há meses, como se uma parte
doente de si deixasse de existir.
— Você se superou — disse Tezzeret.
— Negativo — respondeu Jin-Gitaxias — Este avanço estava
plenamente em minhas habilidades.
— De qualquer forma, minha admiração por sua perícia é sincera
— disse Tezzeret. Tão sincera quanto meu desprezo por seu plano repugnante
e tudo que existe nele. Com isso, ele ansiou entrar nas Eternidades
Cegas, desta vez um homem reforjado. Ele apreciou a ideia de punir
todos os que o prejudicaram, acumulando poder para alcançar sua
devida posição no panteão do Multiverso.
Mas ele não se moveu. Não houve a característica ruptura das
bordas universais, nem o mal-estar momentâneo que sempre
acompanhava o ato de transplanar. Tezzeret flexionou seu corpo,
mas as presilhas em seus pulsos e tornozelos eram feitos do mesmo
aço negro inquebrável que agora compunha seu corpo. Foi então
que ele percebeu uma fina incrustação de metal prateado ondulante

187
perpassando fendas pequenas na placa na qual ele estava deitado.
Ele praguejou, lembrando-se de como Karn foi impedido de se
salvar. Tezzeret caíra na mesma armadilha.
— Liberte-me já! Ele tentou transplanar outra vez, e outra vez
sem sucesso. — Está me ouvindo?
— O aço negro tem outra desvantagem — disse Jin-Gitaxias,
sem dar atenção às súplicas de Tezzeret. — A conversão para aço
nefasto requer semanas, ou até meses, de exposição ao óleo
brilhante. Com um clique das garras, o pretor chamou o orbe
operador de volta para baixo, fazendo-o pairar próximo ao seu
ombro. Ele tocou na esfera, fazendo um tentáculo escorregadio
emergir de seu ninho de apêndices. — Felizmente, foram feitos
avanços para minimizar este problema, no que se refere à tarefa em
questão. O tentáculo se desenrolou, revelando um pequeno módulo
na ponta.
O Chip de Realidade: uma nova versão pingando óleo brilhante.
— Isso não era parte do acordo com nossa Mãe! — gritou
Tezzeret. — A ira dela cairá como chuva sobre você!
— Não há como violar um acordo que já foi quebrado. Jin-
Gitaxias gesticulou na direção da parede oposta, que se abriu e
revelou um tanque de líquido azul. Dentro dele estava suspenso o
corpo de um dos principais tenentes de Urabrask. Seus braços
estavam esticados para fora de seu corpo, como uma aranha sendo
desmembrada. Ele sabia. Jin-Gitaxias sabia sobre tudo — Urabrask,
os mirranianos, os ataques iminentes. Tudo. — Tal desenrolar não
é do meu desgosto. Ele apresenta possibilidades intrigantes o
bastante para que eu o deixe ocorrer livremente.
Seu próprio movimento em busca do trono, pensou Tezzeret.
— Ainda assim, lamento não ter dado seus tecidos de comer às
minhas larvas quando nos encontramos da primeira vez. Mas, assim
como descuidos podem ser corrigidos, os traidores também podem
ser. . .Qual é a nomenclatura de Elesh Norn? Ah. Perdoados.

188
Tezzeret tentou se livrar novamente, lançando mágicas em todas
as direções possíveis. Porém, com cada encantamento, o metal
incrustado na chapa queimava, oscilando do prata para uma
opalescência brilhante, extraindo a energia da qual ele precisava para
escapar. Ainda assim, ele continuou conjurando, desesperado por
qualquer coisa que pudesse penetrar o campo amortecedor.
Algo o fez. “Planeswalker”, ele ouviu uma presença falar; uma voz
fervilhando com a fúria das forjas de Phyrexia, ainda que quase
extinta de exaustão. “Como consegue entrar em minha mente?”
Fazia muito tempo desde que Tezzeret iniciara contato com um
telemínio que ele quase esqueceu como fazê-lo. Mais um truque de
mentalista do que uma mágica verdadeira, estabelecer um elo mental
desta forma permitia ao conjurador assumir controle total de outro
indivíduo, desde permissão completa que fosse concedida. Inútil
contra um inimigo. Mas, em uma situação como aquela, era
exatamente a arma improvisada de que precisava.
“Dê-me controle, phyrexiano”, pensou Tezzeret. Sou sua única salvação,
e você é a minha. Do contrário, ambos morreremos aqui. Houve uma
resistência inicial por parte do chefe sucateiro — um reflexo natural
— que rapidamente deu lugar à psique de Tezzeret fundindo-se com
seu novo hospedeiro. Ele podia sentir a raiva pulsante da criatura;
era como uma fornalha fumegante que combinava com sua própria.
Vendo Jin-Gitaxias de pé sobre seu corpo através da parede
transparente da prisão do chefe sucateiro, Tezzeret mirou um único
golpe no vidro com o maxilar superior afiado da criatura. Ele bateu
de novo e de novo, aumentando cada vez mais o rompimento do
tanque até se explodir em uma saraivada de estilhaços.

189
Arte por: Billy Christian
Tezzeret mandou o chefe sucateiro à frente, jogando Jin-Gitaxias
ao chão, derrubando o Chip de Realidade das mãos dele. Em outras
circunstâncias, o próximo passo de Tezzeret seria bater em Jin-
Gitaxias sem piedade. Para quebrá-lo. Ao invés disso, ele mandou o
chefe sucateiro adiante e o fez jogar todo o peso de seu pesado braço
metálico sobre a placa de mármore, abrindo um buraco nela. De
novo, e de novo, e de novo. Quanto mais dano era causado à chapa
— e à treliça em sua superfície — mais forte ficava a conexão de
Tezzeret à magia. Ele ergueu os braços do chefe sucateiro para um
último golpe, e foi então que uma dor invadiu suas costas — ou,
melhor dizendo, as costas do phyrexiano. Ele olhou para baixo e viu
a garra de Jin-Gitaxias projetando-se para fora do peito do chefe
sucateiro.
A mente de Tezzeret voltou ao próprio corpo a tempo de ver
Jin-Gitaxias jogar o cadáver do chefe sucateiro no chão, uma pilha
sem vida à sua frente. Nenhuma palavra veio da boca do pretor. Não
era mais hora de reflexões intelectuais; tanto o pretor quanto o
planeswalker sabiam disso. Um se moveu — Jin-Gitaxias inclinou-
se para frente em posse do Chipe de Realidade — e assim fez o
outro.
Tezzeret transplanou para longe.

190
Podridão. Escuridão. Desolação. Muitas palavras foram ditas da
Grota das Marés, o subterrâneo abandonado onde a elite de Esper
relegou a escória que os lembrava de seus pecados. Grota das Marés,
a sem coração! Grota das Marés, a impiedosa! Quanto mais vive se aqui,
mais e mais complexo é de se frasear. Grota das Marés, que empala as
caveiras dos esquecidos com espinhos de perfeição usinada! Grota das Marés,
cujas plumas do lixo amordaçam em fuligem as tóxicas esperanças dos jovens,
as súplicas ácidas dos velhos! Grota das Marés, com dentes como cacos de vidro,
ossos sem medula de sarcófagos, dados de comer à força às crianças!
Tezzeret, de joelhos, cavou entre o pavimento quebrado e extraiu
a terra abaixo. Ele levou a fuligem e a terra ao rosto, sentiu o cheiro
de sangue, dos doentes, da desesperança. Ele se reclinou e
gargalhou. Os poetas podiam sufocar com seus versos. Para
Tezzeret, havia apenas uma palavra associada à Grota das Marés que
fazia sentido a ele.
Lar.
— Ei! — veio uma voz de trás dele. Ela ecoou pelas paredes dos
edifícios condenados ao longo do beco encardido de fuligem. —
Parece que alguém encheu a cara. Não deve ter muito nos seus
bolsos, mas vamos ficar com o que tiver!
Tezzeret virou a cabeça e viu uma gangue de desordeiros da
caverna. O mais alto e mais velho estava à frente com uma faca. Ele
tinha um olhar profundo de alguém que já estivera na outra ponta
da faca antes, que fazia transações forçadas assim como os da Vectis
superior bebiam seu chá da tarde. Há muito tempo, antes dos
dragões planeswalkers, dos problemas que assolavam os planos e
dos flagelos biomecânicos, Tezzeret vestia os mesmos farrapos e
exibia a mesma carranca que esses jovens agora exibiam para ele.
— Estou em um momento de fraqueza — disse Tezzeret com
calma. — Vou permitir que vão embora.

191
— Acho que vamos dizer “muito obrigada”! — disse uma garota;
a segunda em comando, pensou Tezzeret. — O que é isso flutuando
na volta dele?
O garoto líder sorriu. — Mágica. Os ricos gastam fortunas com
isso. Ele apontou a faca na direção de Tezzeret. — Vem cá.
Entregue suas coisas e não vai se machucar.
— Não tenho nada para você.
— Eu que vou julgar se tem — disse o jovem.
— Vai me julgar? O que te faz pensar ser digno?
— Tenho uma faca, está vendo?
— Sim — disse Tezzeret. E então, com um movimento, ele se
virou, imóvel, e lançou uma mágica para animar a faca na mão do
líder. Ela se libertou do punho do garoto e se enfiou na palma dele,
quase cortando todos os seus dedos. — Entendo.
— Lich do éter! — a garota gritou, começando um debandada,
o garoto chefe segurando seu pulso enquanto corria. O bando se
espalhou, seus maiores membros pisando por cima dos menores
que estavam atrás, deixando para trás uma criança loira solitária,
empurrada na sarjeta por seus antigos colegas. O menino se
protegeu contra um prédio próximo — um que Tezzeret
reconheceu. Ele o havia trazido até a soleira de sua casa de infância,
a posição terrível na qual ele nasceu.
— Por que esse prédio está vedado com tábuas? Tezzeret
perguntou ao rapaz. — E o que houve com o homem que vivia
aqui?
— Ninguém vivia aqui, até onde eu sei.
Teria seu pai morrido? Não seria surpreendente. Quando não
estava reclamando dos outros catadores por “roubar o que era dele
por direito” ou gritando com o filho para descarregar as frustrações,
ele estava imerso em copos balbuciando para o fantasma de sua
esposa morta — a mãe de Tezzeret — antes de desmaiar em uma
poça do próprio vômito. Antes de entender a situação, um jovem

192
Tezzeret esperaria que seu pai caísse no sono, limparia a mesa e
depois o deitaria na cama e o cobriria. Imbecil. Estava apenas
permitindo que o pai exercesse sua crueldade nele. Somente quando
Tezzeret ficou mais velho, depois que aprendeu sobre o poder os
magos, ele entendeu o papel que cumpria no próprio sofrimento.
— Qual é o seu nome, rapaz?
— Estel, o jovem balbuciou.
— Venha.
Tezzeret tentou reformar seu braço na forma de uma borda
dobrada para arrancar as tábuas de madeiras, apenas para o corpo
ignorar seu comando. Ele grunhiu, percebendo que apesar de todas
as forças de sua nova forma, havia desvantagens. Com tempo, ele
pensou, enquanto arrancava as tábuas como se fossem feitas de
papel.
O lado de dentro não era muito diferente do que ele lembrava.
Dois cômodos, um contendo uma área de cozinha com uma lareira
rasa e uma mesa e o outro usado para dormir. Ambos isentos de
qualquer coisa de valor. As únicas coisas visíveis que implicavam a
existência de seu pai eram restos de metal retorcido — apenas ligas
baratas — espalhadas pelo chão e um manto pesado cheirando a
mofo e serragem.
Mas e as coisas invisíveis? Tezzeret empurrou a mesa de lado e,
contando três azulejos a partir da parede de trás, enfiou o dedo na
rachadura entre o terceiro e o quarto. Lá embaixo estava uma
pequena porta de metal trancada com um cadeado pesado.
Tezzeret arrancou a porta das dobradiças e tirou de dentro uma
pequena caixa de madeira com padrões florais marcados na tampa.
Isso era trabalho de sua mãe, o último vestígio do hobby que a dava
consolo na miséria. Ele lembrava de se agarrar à caixa na viagem
para Vectis Inferior para coletar o cadáver da mãe, como sua unha
encaixava perfeitamente nas marcas rasas do entalhe. Lembrou da
promessa dela daquela manhã para voltar com o jantar — uma
promessa, ele supunha, que ela pretendia cumprir.
193
As testemunhas contaram uma história parecida. Ela estava
mendigando quando a carroça de um mestre de guilda rico a acertou
e não parou. É claro, as autoridades não fizeram nada. Humilhação
e morte eram ocorrências comuns para pessoas como ela. Muito
depois, armado com seu treinamento de Perseguidor, Tezzeret
procurou pelo assassino da mãe, apenas para descobrir que ele havia
morrido anos atrás, pacificamente, cercado por uma família que o
amava.
Grota das Marés, cujas garras de farrapos e misérias arrastam todos para
as cinzas!
— Você sabe o que é isso? Tezzeret perguntou a Estel depois de
abrir a caixa para que ele visse. Dentro havia sucata metálica de todas
as formas — pepitas, raspas, roscas irregulares.
— Etherium — Estel respondeu, tremendo sob o olhar do
planeswalker.
— Essa quantidade ridícula vale mais do que todos os habitantes
de Grota das Marés juntos, mais do que tudo que vocês são agora e
serão no futuro. Tezzeret começou a moldar um feitiço,
murmurando palavras que ele havia aprendido há muito, como um
membro dos Perseguidores. — Seu valor é derivado de sua raridade
extrema, de sua inabilidade de ser reproduzido. Ou pelo menos é o
lhes disseram. Ele deixou sua mão cair, o etherium suspenso no ar,
e observou conforme o metal líquido se reformou em um quadrado
fino. — Aqueles em Grota das Marés precisam de pouca motivação
para brigar entre si pelas migalhas que lhe são permitidas possuir.
Ótimo para aqueles que estão acima. Nos mantém fora do caminho
deles. Letras começaram a se erguer na superfície, a mente de
Tezzeret prensando uma mensagem no metal.
Tezzeret tomou o etherium, apertou-o num cubo e colocou-o de
volta na caixa. Olhou de volta para Estel e pretendia colocá-la em
suas mãos quando trovão ribombou pelo ar, o som de portas de
metal sendo arrancadas.

194
Tezzeret se agachou, chegando do lado de fora e vendo uma
rachadura angular, crepitando com faíscas brilhantes de energia,
quebrando o teto da caverna. Havia uma coluna de material branco
atravessando-a, que inicialmente ele pensou ser um prédio da cidade
acima caindo. Mas inspecionando melhor, ele notou criaturas se
movendo na superfície da coluna, se espalhando como insetos no
nível da rua. Então ele entendeu o que estava vendo.
Metal branco como osso. Os phyrexianos haviam chegam.
— Cedo demais, Tezzeret resmungou. Agarrou o braço de Estel
e o levou para dentro do barraco. Forçou o menino a ficar com
caixa, depois notou a pequena adaga amarrada ao cinto do menino.
— Me dê sua faca.
Com uma mão trêmula, Estel sacou a faca de sua bainha.
Tezzeret a tomou e a examinou. Feitura vagabunda. Cabo solto.
Ponta lascada. Ainda assim, serviria para as mãos de Tezzeret. Um
feitiço de principiante solidificou o cabo da faca; outro trabalhou o
fio até se tornar afiado e agudo. Um último encantamento a tornou
quase-etérea, fazendo com que sua lâmina pudesse atravessar uma
espada bem forjada.
— A cisterna em Fim Indigno — disse ele. — Você a conhece?
Há uma passagem indo de lá para Vectis Superior.
— Sim. Usamos para ver os desfiles.
Como eu fazia na juventude. — Vá até lá, fique no Caminho das
Sombras, as passagens estreitas.
— Como você sabe...
— Fique quieto e ouça. Você tem que sair da cidade, pegando
suprimentos conforme os encontrar. Não pare de correr. Se algo
ficar no seu caminho, use isso. Tezzeret colocou a faca remodelada
de Ester de volta em sua bainha. — Vá para Bant.
— Bant?
Siga a costa rumo ao norte, mantendo o vento prateado nas
costas conforme vai para Valeron. Vá para o primeiro posto

195
avançado que encontrar e encontre o cavaleiro decorado com mais
sigilos. Peça uma audiência com o General-Cavaleiro Rafiq e lhe dê
a caixa. Fui claro?
O garoto assentiu, mas sua expressão era de preocupação e
confusão, exacerbada pelos gritos e berros — sem contar os rugidos
inumanos — do lado de fora. — O que está acontecendo? O que
eram aquelas coisas? Quem é você?
— Sou a pessoa que está te dando uma chance de viver — ele
disse. — Quando encontrar Rafiq, diga que um aliado de Elspeth
Tirel o enviou,
Tezzeret empurrou Estel para longe e o rapaz se virou para partir.
Mas antes de ir embora ele se voltou, assentiu e disse “obrigado”.
— Desperdício de palavras — ele cuspiu, calor se erguendo por
detrás de seus olhos.
— Mas senhor...
— Só vá! — ele gritou, fazendo Estel correr porta afora. Tezzeret
ficou de pé, o corpo tremendo. Ainda não me recuperei do implante, ele
disse para si mesmo enquanto recuperava a compostura. Se o menino
morrer, então morreu. A morte seria o destino de Estel de qualquer jeito
se ele tivesse ficado em Grota das Marés. Mas se conseguisse
sobreviver, se conseguisse avisar aos Cavaleiros de Bant que apenas
eles possuíam uma forma de se defender — uma legião de guerreiros
angelicais, como Nova Capenna um dia tivera — então Alara
poderia se tornar um atoleiro desacelerando a expansão dos
phyrexianos. Mais tempo para ele estabelecer suas redes, obter
recursos e realizar seus planos.
Tezzeret vestiu o manto do pai — um disfarce insignificante, mas
servia — e então, pelo mais breve dos momentos, olhou de volta
para o buraco imundo onde havia nascido e havia sido criado.
Salpicos de madeira podre e reboco caíram do teto conforme o ar
se enchia dos sons de massacre e desordem. Uma despedida adequada,
ele pensou enquanto entrava nas Eternidades Cegas.

196
As viagens de Tezzeret o levaram para plano atrás de plano
transformados, rasgados pelas hordas invasoras de phyrexianos.
Sabres se partindo contra carapaças cobertas de ferro, incisores
monstruosos moendo ossos e o choro quase constante pareciam
formar uma ponte entre os mundos, se misturando em uma sinfonia
ininterrupta de sofrimento.
O “grande trabalho” de Elesh Norn estava se desdobrando mais
rápido do que Tezzeret podia ter imaginado. Aranzhur. Ilcae.
Obsidias. Todos planos que continham esconderijos montados por
Baltrice, sua segunda-em-comando no Consórcio Infinito. A
existência deles — e dela, aliás — eram um dos poucos restos de
conhecimento específico que Beleren havia deixado para trás
quando limpou a mente de Tezzeret nos pântanos dos nezumi. Mas
não havia mais onde se esconder nesses planos. Haviam se tornado
meras extensões de Nova Phyrexia, flores desabrochando da Árvore
do Mundo degradada de Elesh Norn. Outros planos — Mirrankkar,
Cabralin — estavam no processo de serem consumidos. Seus
habitantes lutariam, apenas para falhar e se tornarem parte da Legião
das Máquinas.
Tezzeret não tinha escolha além de continuar correndo. Mais um
plano tinha um esconderijo que ele podia usar como refúgio,
embora fosse um lugar para onde ele estivesse hesitante de retornar.
Porém, não havia mais alternativa. Para seu alívio, não havia sinais
de invasão — pelo menos, nada óbvio — na bagunça do entardecer
nas ruas estreitas de Towashi. Não havia mais a tensão abastecida
pela agressão recente dos Insurgentes, levando o povo a voltar às
suas vidas normais e insignificantes.
Ignorantes. Gado pronto para o abate.
Não importa. A preocupação de Tezzeret era encontrar o
esconderijo, descansar e recuperar os materiais que Baltrice havia
colocado ali. Infelizmente, as camadas serpenteantes de rede que
marcam o Submundo de Towashi provaram uma barreira
formidável contra ele tanto quanto seriam contra uma horda
phyrexiano.
197
— Onde está? — Ele murmurou, emergindo de outro beco na
rua. Tezzeret ajeitou o capuz de seu manto e manteve o rosto baixo.
A vigilância estava por toda parte. Ele não era bem-vindo em muitas
partes de Kamigawa fazia muito tempo e não tinha dúvida de que
seus inimigos haviam renovado sua caçada contra ele após sua
estada mais recente no plano.
Ele continuou caminhando até chegar ao Poço do Dragão, uma
das seções inferiores do Submundo, uma área protegida do sol para
sempre por uma matriz de pontes que serviam àqueles que
trabalhavam e viviam nos arranha-céus de Towashi. Era um lugar
propício para o esconderijo. Longe dos olhos. Enterrado.
Esquecido por todos exceto pelas gangues de motoqueiros do
Submundo que obtém uma existência medíocre de crimes menores.
Um lugar que Tezzeret teria escolhido — talvez um lugar que
ele tinha escolhido mas do qual não conseguia se lembrar. Ele
colocou as mãos na coluna de suporte de uma ponte e murmurou
um feitiço rabdomântico, enviando sua mente pelo metal em busca
de uma porta com a assinatura mágica do Consórcio.
— É você,. . .ele ouviu alguém dizer, menos de um segundo antes
de sentir uma onda de eletricidade o alcançando. Tezzeret
subitamente se sentiu indefeso contra a gravidade, o peso de seu
corpo derrubando-o como uma estátua desequilibrada. Ele precisou
de todas as forças para tatear as costas, onde encontrou uma lâmina
perfurando o tecido do manto de seu pai, penetrando o etherium
mole no meio de suas costas. Um tiro de sorte — ou de azar. Uma
luz brilhante emanou, então, da escuridão, descendo sobre ele,
vindo de um drone de vigilância, seu canhão ainda fumegando do
tiro recente. Saindo da periferia estava um nezumi, jovem pela
altura, com pêlo branco manchado de cinza, diferente de muitos dos
seus pares.
— Onde ela está?
Tezzeret resmungou e tentou transplanar para ir embora. Mas
sua mente estava bagunçada demais para escapar ou conjurar

198
mágicas. Ele tocou as costas de novo, dessa vez tocando a haste da
lâmina com a ponta dos dedos.
—Tamiyo — o nezumi continuou. — Diga onde ela está. Ele
ergueu um bastão de controle, usando-o para fazer o drone descer.
— Ela está. . .morta? Com um clique, a câmara do canhão se
carregou com outro tiro, apontando para a cabeça de Tezzeret. —
Diga agora!

Arte por: Simon Dominic


— O que ela é pra você, rato? Tezzeret disse, com um grunhido
seco. — Você é o campeão dela? O herói chegando das trevas para
salvá-la?
— Minha mãe. Mãe. Claro. A “família” de Tamiyo, como ela
sempre matraqueava. Nunca era silencioso com ela por perto — sua
cantoria insossa, ela era uma caixa de música quebrada presa em um
ciclo eterno. Genku, meu amor, vou voltar para você. Hiroku, meu amor,
verei você de novo. Rumiyo, meu amor, vamos nos abraçar. Nashi, meu amor,
não do meu sangue, mas do meu coração.. . .Sim, Nashi. Esse era seu nome.
— Eu vi você morrer uma vez por queimar minha vila — ele disse,
seu braço tremendo, dedos posicionados nos botões do bastão de
controle. — Me diga onde ela está ou você vai morrer de novo.
Ciclo completo. Tezzeret olhou para cima e fitou os olhos do rapaz.
— Então vá em frente.
199
A mão de Nashi tremeu. — Eu juro.... . ..
— Faça! O que você está esperando, seu covarde?! Uma represa
se abriu dentro de Tezzeret. Ele tocou as costas mais uma fez,
sentindo seus dedos se alongarem e se enrolarem em torno da
lâmina cravada nas costas. Ele arrancou a lâmina e a jogou no drone
de Nashi, empurrando-o o bastante para o canhão errar por muito
seu alvo. As sombras dançaram. Nashi tentou fugir, mas Tezzeret
foi mais rápido, agarrando-o pela jaqueta de couro e erguendo-o do
chão. — Seu fracote patético! Tezzeret, novamente no controle de
suas faculdades, levantou Nashi com um braço e o jogou contra o
apoio da ponte. — O destino deu a vingança nas suas mãos e você
a desperdiçou! Poucos sequer obtém essa chance! Tezzeret ergueu
Nashi de novo e o prendeu contra a parede. O rapaz estava
machucado, áreas vermelhas surgindo no seu pêlo como sangue na
neve. — Nessa vida, você recebe o que merece! Outros tentarão
parar você, então você os para primeiro! Mate-os primeiro!
O estrondo dos motores irrompeu em volta de Tezzeret. Ele se
virou bem quando luz inundou a área, com mais de doze
motocicletas formando um semicírculo em volta dele. Sem saída.
— Deixe-o ir — ordenou a líder, uma nezumi em cima de uma
moto estilizada como um dragão.
— Não é problema seu.
— Sim, é sim... ele é um dos nossos — a líder disse. — Você está
em desvantagem numérica. Deixe-o ir ou já sabe.
Tezzeret largou Nashi diante de seus pés. Mais ameaças. Sempre
ameaças que exigiam resposta. Muito bem. Metal seria sua resposta,
brutal e precisa. Em nome do ódio. Com esse pensamento, ele
expandiu sua mágica além de si em todas as direções — em pontes
que cobriam o firmamento de ferro acima da sua cabeça, dentro do
chão para contatar depósitos de minérios abaixo deles. Talvez
notando algo errado, a líder ordenou que três dos seus descessem
de suas motos e se aproximassem.

200
Tarde demais. Tezzeret contraiu-se, fazendo as lâminas curtas
nas mãos dos capangas se moverem sozinhas, empalando seus
usuários e arrastando-os para longe da luz. O resto dos nezumi
montou nas motos de novo e ligou os motores, prontos para
avançar. Outro esforço inútil. Cada uma de suas montarias
mecânicas era um trabalho magnífico, um artefato por si só,
brilhante e poderoso e de metal. Erguendo sua mão em frente ao
rosto, com a palma para cima, Tezzeret lentamente juntou os dedos.
O entendimento atingiu os membros da gangue segundos depois,
quando suas motos começaram a tremer. Alguns tentaram pular
delas, descobrindo que o metal que carregavam — armas, fivelas,
broches nas roupas — havia se fundido nas motos, mantendo-os
presos. Não puderam fazer nada quando, de uma só vez, Tezzeret
pressionou os dedos em um punho fechado, erguendo as motos no
ar e então as chocando umas contra as outras com um estrondo
perverso. Ele olhou para a massa de metal e carne, usando sua magia
para girá-la na pouca luz do drone caído de Nashi. Gritos de dor
indescritível. Membros fraturados penetrados por hastes cromadas,
brilhando na escuridão como joias.
Uma joia falsa. Uma maldição fingindo ser tesouro. Não, o
verdadeiro poder não estava em nada disso — em juntar exércitos
ou reunir armas. Estava em sobreviver, em prosperar, em viver mais
do que todos que o atacaram. Com uma parcela de sua vontade,
Tezzeret enviou a massa de metal esmagado e corpos de volta para
o escuro, onde colidiu com uma parede distante.
Então tudo ficou quieto. Ele olhou para onde Nashi havia caído,
agachado, e segurou a cabeça do rapaz na mão. Nashi enrolou os
dedos em volta do pulso de Tezzeret, o sangue quase coagulado em
suas palmas deixando uma trilha preta e viscosa no aço negro da
pele de Tezzeret.
— Sua mãe ainda está viva.
— Viva — Nashi resmungou, a menor pista de um sorriso
surgindo em seu rosto.

201
Tezzeret assentiu. — Ela virá por você em breve. Ele se
aproximou. — E quando ela viver, você vai desejar que eu a tivesse
matado. Colocou a cabeça de Nashi no chão, gentilmente. Se
levantou e foi embora.

O esconderijo ficava atrás de uma parede falsa em uma casa de


jogos, brilhante e barulhenta, onde pessoas das classes sociais mais
baixas de Kamigawa gastavam seu dinheiro em máquinas que
prometiam riquezas mas entregavam pouco mais que luzes
brilhantes e sons de batida. Não devia ter surpreendido Tezzeret.
Baltrice sempre teve uma queda por essas frivolidades.
Do lado de dentro, ele encontrou exatamente o que esperava.
Um lugar privado para descansar. Para fazer estratégias. Para
ruminar. Os suprimentos foram bem-vindos: uma nova armadura
leve, cujas áreas da espinha e do pescoço haviam sido reforçadas
magicamente; várias denominações de moeda de vários planos
diferentes; uma lâmina de mana — uma das poucas fora da possa
da Igreja da Alma Encarnada e, por último, um pequeno cristal que,
quando segurado, projetava um padrão de luzes na parede, uma
telemetria esotérica que lembrava uma memória há muito reprimida.
Tezzeret transplanou de Kamigawa para um plano tão esquecido
que nem ele sabia seu nome. A jornada — o uso de um músculo
negligenciado que ainda tem a assinatura da prática perene — o
encontrou parado diante de um oceano de areia. Na distância se
ergueu uma colina rasa feita de metal sem emendas e emergindo de
seu topo estava uma única torre com espinhos. Um dia aquela havia
sido sua torre, sua base de operações por onde ele direcionava os
destinos de outros planos como o líder sombrio do Consórcio
Infinito.
— Manter isso longe de mim foi esperto, Beleren — comentou
Tezzeret. — Mas não mais.
Conforme Tezzeret começou sua caminhada adiante, ele
ponderou sobre a batalha rugindo através dos planos — Beleren e

202
suas forças contra Elesh Norn. Ela chegaria ao fim em breve, o
estágio quando ambos os oponentes lançariam seus ataques finais
uns contra os outros. Essa talvez fosse a parte mais importante do
jogo — e ele estava feliz de ficar fora dela. Com o tempo, um
emergiria vitorioso mas enfraquecido. Então — e somente então —
ele faria sua jogada.
Nesse meio tempo, havia muito o que reconstruir.

203
SOZINHO
Miguel Lopez

?????????
Um pequeno caranguejo caminhou sobre a mão de Teferi.
As ondas — o que ele disse?
“Acho que nosso tempo chegou ao fim”, disse Urza, apontando para um
vácuo sobre a cabeça de Teferi. “Consigo ver alguma coisa ali.”
O Destruidor de Dominária conversando com o Destruidor de
Zhalfir — sempre na sombra daquele bode, o velhote. Me pergunto
o que ele viu lá.
Levante-se. Saia da praia. Esqueça. Basta um piscar de olhos, e
tudo desapareceu. Esta é provavelmente a segunda vez que você
morre, mas seja como for, você está de volta — o que vai fazer
quanto a isso?
Uma guerra se aproxima. O que vai fazer quanto a isso?

204
Arte por: Chase Stone

Nu e sozinho, Teferi caminha para o interior da praia.


O tempo estava ameno e quente. O sol brilhava através de um
pequeno aglomerado de nuvens ou neblina no horizonte — turvo,
dourado e difuso. A memória de um sol, a forma como Teferi via a
luz em seus sonhos.
Teferi pausou no local onde a areia dava espaço à restinga e às
bordas de uma floresta na duna. O vento litorâneo estava constante.
Finos grãos de areia batiam em seus tornozelos. Havia um arco de
pedra no local, formado de uma pedra vermelha trazida de outra
região e desgastado pelos grãos de areia que o atravessaram
diariamente por tempos imemoriais. Depressões regulares na
superfície do arco podem ter sido um escrito, um idioma, uma
indicação de onde ele estava, mas o objeto estava desgastado demais
para transmitir seja o que for. Além dele havia um caminho por onde
muitos pareciam ter passado, marcado por colunas que
permaneciam em pé e tocos de outras que haviam caído.
Teferi se apoiou no arco de pedra, recuperando o fôlego. A dor
inundou os locais onde, poucos momentos atrás, só o prazer do
nada se fazia sentir. Sua respiração doía. Seus pulmões pareciam
apertados, amarrados, como se ele tivesse acabado de correr por
205
vários quilômetros. Seu corpo doía. Do seu cerne às suas
extremidades, ele se sentia apertado, como um pano molhado
retorcido para secar.
O que ele sabia? Os pensamentos de Teferi inundavam sua
mente conforme ele tentava organizá-los.
Você não está mais conectado com a Kaya. Você está inteiro, e
não é mais um espírito; isso significa que algo aconteceu no lado
deles para que você ficasse assim no seu lado. Nada planejado, nada
registrado, nada bom. Tentar voltar.
Teferi estendeu seus braços, procurou dentro de si, tentou
encontrar o movimento familiar de um Planeswalker e não
encontrou nada. Uma contorção lânguida, o espasmo de um
membro dormente. Ele se ajoelhou, virou-se e sentou. Uma onda
de pânico, náusea. Ele descansou a cabeça contra o arco e olhou
para o mar, franzindo os olhos para conseguir enxergar contra a luz
do dia e o brilho da água.
Uma névoa perdurava no horizonte. As ondas se moviam de
forma gentil, sucumbindo em vez de quebrar, alcançando a praia
onde aves marinhas e caranguejos corriam, dançando, caçador e
caça. Distante, Teferi pensou. Belo, como nada mais que existia.
Ele contemplou a luz sobre o oceano. Ele esticou os braços na
direção de um sol imaginado e pretendeu puxá-lo para baixo do
horizonte oculto, para que o dia se transformasse suavemente em
noite. O tempo não respondeu à sua vontade. Ele pousou
novamente a mão sobre o colo.
“Então foi isso", disse Teferi em voz alta, falando com o vento,
os pássaros e os caranguejos. “Eles venceram.”

A noite caiu. Teferi dormiu. O canto das cigarras soava como


serras elétricas, pesadelos. Ele sonhou com coisas das quais não se
lembrava, mas que carregaria consigo depois de acordar:
Kroog. Um campo de lama marcado por trincheiras, um rosto
encoberto de varíola olhando maliciosamente da história mais
206
sombria de Dominária, lábios de crateras com mortos reanimados,
podres e frescos, e fios sob a sua pele. Argoth, em chamas, coberta
de óleo, com elfos e humanos esmagados sob os pés de colossos de
metal, cujas serras elétricas chocalhavam os molares, assim como as
cigarras fora do seu sonho.
Coisas de que ele se lembrará quando acordar:
A pressão fria que sentiu quando o phyrexiano o apunhalou. Os
salões sombrios da Torre de Urza sob cerco o fizeram lembrar dos
salões de Tolária todos aqueles anos atrás, iluminados pela luz das
chamas, entonando um coro de agonias.
O que mais doía:
Subira não caminha mais; agora, quem faz isso é ele. Nos vemos
um dia na estrada outra vez, Subi.

Uma neblina fria invadiu a costa vinda do mar, dando calafrios


em Teferi. Ele acordou e viu que a maré havia subido. Onde antes
as ondas sucumbiam, elas agora quebravam. Sob a luz do luar, um
tom azul escuro prateado preenchia o céu.
Teferi se levantou. Não havia nenhuma lua. Ainda assim, a luz
azul clara iluminava o horizonte. Estranho, mas ele precisava se
mover. Ir para algum lugar mais para o interior, mais quente. Seguir
os rastros. Onde há pessoas, há esperança — as pessoas comem,
dormem, riem. É necessário ter algumas roupas também, ele
pensou, conforme se abraçava para espantar o frio. Ele esfregou os
braços para gerar um pouco de calor e seguiu o caminho rumo ao
interior. A floresta da duna o protegia contra os ventos mais
intensos. Quanto mais ele caminhava, mais quente ficava a noite, e
mais imóvel ficava o ar. O odor envolvente de madeira podre,
mangue, vida e morte.
Atravessando a floresta da duna, Teferi chegou a um chaparral
dominado por árvores baixas de copas largas. Os insetos e o vento
enchiam o ar da noite, com um zumbido tão predominante que mais
parecia silêncio. Pela luz enevoada do luar sem luas, ele conseguia
207
ver a paisagem desaparecendo à distância, com silhuetas negras
quebrando o horizonte em uma fronteira irregular — montanhas,
baixas e antigas, muitos quilômetros à frente.
O caminho continuava, um pouco mais definido. A areia clara
brilhava como um feixe de luz sob o luar, uma fita que se estendia
por mais uma dezena de metros pela grama antes de abrir espaço
para um caminho de cal, sulcado por trilhos de carrinhos, com veios
secos erodidos pela chuva.
Teferi se agachou e estendeu a mão sobre a areia. Sua mão pairou
sobre uma velha pegada e, com um gesto lento e circular, ele
alcançou o próprio tempo, resgatando a história do pó.
Havia pessoas por aqui no passado. A praia além da floresta de
duna costumava ser um lugar feliz, onde as famílias passavam longas
tardes relaxando em frente ao mar gentil. As crianças corriam e
gritavam com alegria por esse caminho, pulando conforme
passavam sob o arco vermelho, esperando, um dia, serem altas o
suficiente para bater a mão no seu zênite. Os pais vinham atrás,
carregando carrinhos ou bolsas leves onde armazenavam os
suprimentos do dia: provisões secas e frias, águas, mantas, histórias
escritas, cestas caso encontrassem mexilhões ou pegassem peixes
pequenos, moedas para regatear com os vendedores que
patrulhavam o litoral.
Teferi fechou os olhos. Com sua outra mão, ele fez um círculo
maior. Lançando uma rede mais larga, ele voltou às ondas fortes e à
beira d’água. Visões o invadiam como memórias, como sonhos.
Barcos de pesca longos com cores intensas outrora dominavam
a praia. No fim da tarde, a maior parte dos pescadores já tinha
regressado com suas pescas e se dirigido até os mercados do interior.
Alguns relaxavam na praia na presença de amores e amigos; outros
ficavam para trás, livrando-se das cracas ou pintando os cascos
curvados de seus barcos com tinta fresca. Grandes redes
esvoaçavam das torres de secagem. Alguns dos trabalhadores e
pescadores dormiam aqui durante seus dias de folga, na sombra de

208
seus barcos de casco para cima, com a chuva leve e o aroma
oceânico de suas redes que secavam.
Mais uma rotação. Trazendo o passado para mais perto.
Menos famílias vinham aqui. Aquelas que vinham, caminhavam
juntas, próximas, e alguns dos pais traziam armas antigas — adagas,
cajados de madeira rígida envolta de metal. Os barcos não tinham
cracas, e sua pintura estava manchada pelo sol. Já fazia tempo que
os pescadores não os levavam para o mar; os cascos mais antigos
começavam a rachar. As redes, penduradas para secar,
esbranquiçaram, enrijeceram, ficaram quebradiças. Os pescadores
não carregavam mais suas redes, pois não precisavam delas. O medo
dos pescadores era o mesmo que o medo dos pais, e era o medo de
Teferi, o mesmo que se contorcia na base do seu crânio, aquela voz
interna que sussurrava: tenha medo do mar. Tenha medo da noite.
Tenha medo do que você não consegue ver.
Mais uma rotação. Mais perto.
Medo. O zumbido dos insetos do presente se misturava com o
quebrar das ondas do passado e os horríveis gritos carregados pelo
vendaval marítimo. Cataclismo. O chão tremia sob o estouro. O
chão alcançava o alto, vascolejante, movendo-se.
Mais um.
Vazio. A chuva caía sobre as ondas que quebravam contra os
flancos das dunas.
Mais um.
A praia regressou. A água estava imóvel como um vidro. Uma
brisa suave agitou a grama da duna, e desapareceu.
Mais um.
Na outra extremidade do caminho, nas bordas de onde a
memória de Teferi falhava e a escuridão se tornava absoluta, um fio
de névoa sondava o caminho à frente. Ele se retorcia e, em seguia,
desaparecia, dissipado por um vento desapercebido.

209
No passado, o caminho tinha um batimento próprio: os passos
daqueles que se dirigiam ao mar e daqueles que voltavam para casa.
Wrenn teria chamado isso de canção, pensou Teferi. Ele ficou de pé
e encerrou sua mágica. O odor de cronomancia desapareceu. Teferi
olhou para trás. O caminho também era um corpo. Um corpo que
ele conhecia, esticando-se rumo a um horizonte distante, além do
qual não havia nada. Um vácuo, empíreo, separado do tempo e de
tudo mais que há.
Zhalfir. Quase quatrocentos anos depois, ele estava novamente
em Zhalfir.

Zhalfir
Quilômetros à frente, o caminho simples que Teferi encontrara
se transformava em uma larga estrada de pedra ligando horizonte a
horizonte, paralelamente ao litoral. Sem a brisa marítima, a noite
agarrava-se ao calor do dia. Uma grama alta delineava a estrada, e o
canto dos insetos impedia qualquer pensamento.
Teferi, sem grande orientação, virou-se à esquerda e começou a
caminhar.
Horas mais tarde, conforme a alvorada se aproximava, uma
algazarra de carros e cascos o despertou. Teferi havia escolhido um
local próximo à estrada para dormir, e, agora, não conseguia.
Castigado pela dor, ele se aproximou, usando um arbusto espesso
como cobertura, e viu uma caravana seguindo pelo caminho.
Era um comboio de dez vagões, cada um puxado por um
pequeno grupo de animais dóceis — bois ou búfalos. Os
caravanistas viajavam na parte superior dos vagões, em bancos
cobertos, usando roupas leves em camadas e mantas em tons
terrosos de verde e vermelho. Seu comportamento era calmo, ainda
que cansado. Muitos traziam canecas fumegantes de café ou uma
bebida quente qualquer. Teferi palpitou que aquele seria o turno
diurno, tendo despertado há menos de uma hora para assumir os
postos de seus compatriotas que, agora, descansavam nos carros
210
altos e cobertos de lonas, entre caixas e sacos de mercadoria que
transportavam. Ele aguardou, observando enquanto os vagões
dianteiros passavam e aferindo os guardas armados que viajavam na
parte de trás, alguns dormindo sentados, amarrados às vigas de
suporte dos vagões para não rolarem estrada afora. Aqueles guardas
não eram os akincis de que Teferi se lembrava — suas armaduras
não eram uniformes, suas armas não eram de ferro puro e eles
usavam mantas não tingidas. Provavelmente se tratavam de
mercenários itinerantes, contratados pelos caravaneiros a baixo
custo.
O estômago de Teferi rosnou. Ele se deu conta de que estava
tremendo. Esfomeado, cansado, com sede, perdido — ele estava
sozinho. Ele precisava de ajuda, ele precisava arriscar a confiança.
Teferi deixou mais um vagão passar e, em seguida, foi para a
estrada.
“Olá”, disse Teferi à caravaneira que se aproximava. Ele levantou
a mão e acenou.
A caravaneira gritou, despertando seu co-piloto repentinamente.
Ele pulou, agitando os braços e arremessando a xícara de café de
sua companheira para as alturas. Os bois que puxavam o carro
permaneceram inabalados, felizes em parar por alguns instantes. O
touro que liderava o bando bufou, virou a cabeça na direção de
Teferi e piscou.
A comoção fez com que toda a caravana parasse. Gritos de
“pare!” e “atacar!” foram proferidos de ambos os lados da fila de
vagões e, acompanhados de uma grande cacofonia, os guardas
saíram de seus postos, alguns emaranhando-se em suas cordas de
dormir e a maior parte movendo-se com velocidade suficiente para
render Teferi na ponta de suas lanças em menos de um minuto.
“Quem é você, peladão?” Uma das guardas gritou. Ela era uma
mulher de voz ríspida com aproximadamente a mesma idade de
Teferi, vestindo uma armadura usada mas bem cuidada. Uma gola
de pele sobre uma manta azul real remendada indicava que ela já

211
tinha sido membro de um bando de guerra. Provavelmente a líder
do grupo, então. Assim como o restante de seus guardas, ela
apontava sua lança para o peito de Teferi.
“Um viajante”, disse Teferi. “Fui atacado por bandidos”, mentiu
Teferi. “Dois dias atrás, perto da costa. Eles pegaram minhas
roupas, meus alimentos e me abandonaram à própria sorte. Vocês
têm alguma coisa para me ajudar, por favor?”
A líder dos guardas relaxou. “Bandidos”, disse ela, acenando para
que seus compatriotas baixassem a guarda. “Alguém dê um manto
para ele. Perto da costa? Não se preocupe, viajante. Eles não o
incomodarão mais. Nós tratamos daquele grupinho de traidores na
noite passada.”
“Vocês trataram?” Teferi perguntou. Ele escondeu bem sua
surpresa. Um dos guardas lhe entregou um manto sobressalente.
Teferi colocou-o, aproveitando o momento para observar um
pouco melhor os guardas. Muitos traziam curativos nos membros,
nos flancos e na cabeça. A luta havia sido dura.
“Eles estão cada vez mais ousados", disse a líder dos guardas
enquanto fazia uma careta. “As pessoas não conseguem viver sob
uma espada suspensa. Elas ficam furiosas. Esfomeadas. Sem
estômago para sacrifícios.”
“Os tempos estão difíceis”, concordou Teferi. Sem estômago
para sacrifícios? Ele se perguntou quanto tempo havia passado para
eles — momentos ou anos?
A líder olhou para baixo, com firmeza, considerando suas
próximas palavras. “Não encontramos ninguém vivo do seu grupo",
disse ela. Direta, logo ao ponto. “Seus corpos estão no último carro.
Estamos levando-os de volta a Kiingal. Você pode vir conosco e
falar por eles.” A líder dos guardas acenou. Tomada a decisão, ela
deu um assobio curto e súbito: de volta ao trabalho. Conforme a
caravana retomou a viagem, ela começou a caminhar, ordenando
que Teferi a seguisse.

212
Teferi entrou na fila, segurando o manto para que não se abrisse.
O sol já tinha nascido por completo, trazendo consigo o calor do
dia.
“Você parece familiar”, disse a líder dos guardas. “Eu sou Eshe.
De onde você é? Qual é o seu nome?”
“Sefu”, mentiu Teferi novamente. “Eu sou de Kipamu. Tenho
um rosto familiar”, disse Teferi, sorrindo. “Isso faz de mim um bom
comerciante. Todos confiam em um amigo.”
“É verdade.”
Eshe e Teferi caminharam em silêncio, mantendo um ritmo
firme e confortável ao lado dos grandes carros.
“Você não perguntou a respeito dos mortos.”
“Os mortos?”
“Seus companheiros”, disse Eshe. “Quantos eram mesmo?”
Caramba. Teferi não conseguia virar a cabeça e conformar, pois o
carro estava longe demais. Em vez disso, trabalhado com agilidade,
ele canalizou uma mágica menor e buscou a resposta na memória de
Eshe. Vidência nunca fora o seu forte. Dentre a velha guarda das
Sentinelas, a leitura de mentes era da competência de Jace. Abrir as
portas do íntimo de um indivíduo, como se fosse uma enciclopédia
— Teferi não se sentia confortável invadindo esse lugar privado,
arriscando puxar a corda errada e desfazer o quebra-cabeças que era
a mente humana. Além disso, ele sentia que era algo errado, uma
invasão. Mas era um mal necessário. Ele estava desesperado, e o
tempo estava contra todos eles.
Um breve zumbido em seus ouvidos. O aroma acre de mato
queimado. Um grito singular, interrompido por uma lança com
lâmina de folha.
“Dez”, disse Teferi, enquanto a memória se esvaía.
“Dez mortos?” Eshe balançou a cabela. “Que tragédia. Mas não
se preocupe", disse ela. “Cuidaremos bem de você.”

213
Na manhã seguinte, a caravana parou, a um dia de viagem de
Kiingal.
“Formem fila, formem fila”, urgiram os guardas, ordenando que
os caravaneiros se enfileirassem na lateral da estrada. “Corram, pode
haver bandidos”, gritaram, admoestando os mercadores de olhos
cansados.
Teferi entrou na fila juntamente com os caravaneiros,
balançando um pouco enquanto buscava demonstrar a atenção que
os guardas demandavam. Havia sido uma noite de sono
entrecortado, mesmo quando seus pesadelos terminaram. Ele
bocejou, respondendo à caravaneira que estava ao seu lado,
tremendo com a força do seu próprio bocejo.
“Esta é uma manhã normal?” Teferi perguntou à caravaneira.
“Não”, disse ela. Ela tremia — não de frio, pois era uma manhã
quente, mas de medo. “Não confie nesses bandidos", disse ela,
sussurrando, falando rapidamente. “Eles mataram nossos guardas e
ocuparam seus lugares. Eles estão planejando vender nossas
mercadorias para —"
“Silêncio", sussurrou Eshe. A caravaneira pulou, surpresa. Eshe
olhou entre os dois.
Os olhos de Teferi encontraram o olhar de Eshe e, naquele
momento, ele compreendeu. Ela olhava para ele com puro ódio,
com reconhecimento. Ela sabia quem era ele.
“De volta para a fila, Sefu”, disse Eshe para Teferi. “Não se mexa
mais.”
Teferi acenou e voltou para a fila. O que aconteceria em seguida
ainda não estava escrito. Poderia haver uma forma de sair dessa
situação que não fosse apenas uma colisão. Ele ficou em silêncio e
aguardou.
Os guardas ficaram do lado oposto dos caravaneiros, em
inferioridade numérica mas munidos de armas e armaduras,
esperando Eshe terminar sua lenta revisão dos prisioneiros. Ela
caminhava com uma precisão firme.
214
“Escutem-me", disse Eshe, conforme chegava ao fim da fila. Sua
voz ecoava pelo trecho solitário de estrada, sobrepondo-se ao
zumbido matutino de insetos, clara e nítida. “Vocês foram pacientes
conosco. Simpáticos conosco, apesar da forma como tratamos
vocês. Agora, peço a vocês mais uma ação de caridade: entre vocês,
existe um traidor.”
Os caravaneiros arriscaram trocar olhares preocupados entre si.
"Zhalfir está em guerra", Eshe continuou. Ela se virou e
começou a caminhar, lentamente, pela fila de caravaneiros reunidos.
“Estamos em guerra há gerações. Primeiro, houve a Guerra de
Miragem; depois, a Guerra de Keld. Agora, temos esta longa espera.
Preparação para a Guerra Phyrexiana, a defesa de Dominária contra
as hordas de Yawgmoth. Nossos campos, nossas cidades, nossas
terras, nossos povos — assombrados pela guerra, geração após
geração.” Eshe parou ao lado de uma das caravaneiras. Sem olhar,
ela apontou em sua direção. “Você”, disse ela. “Quantos membros
da sua família você perdeu?”
“Três durante a Guerra de Miragem", disse a caravaneira,
balbuciando enquanto arrancava as palavras de sua garganta seca
pelo medo. “Minha mãe, minha avó e meu avô.”
“E você?” Eshe apontou para a caravaneira seguinte.
“Dois, quando os keldonianos atacaram", disse ela. “Meu marido
e meu irmão.”
“Você?”
“Meu irmão, minha irmã e ambas as minhas filhas para os
exércitos de Kaervek na Guerra de Miragem. E eu fui ferido em
Tefemburu."

215
Arte por: Daarken
Eshe acenou. Ela aproximou-se do último caravaneiro,
temporariamente debelada. Encostando sua testa na dele, ela
sussurrou-lhe algo baixo e privativo. Em seguida, ela beijou sua testa
e se afastou. Ela olhou para os seus companheiros bandidos,
apontou na direção deles e, em seguida, voltou-se para os
caravaneiros.
“Cada um de nós aqui está ligado pelo nosso luto”, disse Eshe.
“Somos irmãos e irmãs na perda, na fome e no medo.”
Teferi olhou para baixo, para a terra vermelha sob os seus pés
descalços. Sem lágrimas. Não era a sua hora de chorar.
“Zhalfir sozinha, nós sozinhos, paramos todas as armas que
estavam apontadas em nossa direção.” A voz de Eshe tremia de
emoção. “Não importa o número de mortos, não importa o quão
temível era o inimigo.”
Silêncio. Eshe bateu a base de sua lança contra a poeira da
estrada, um ritmo que servia para acalmar, para estabilizar corações
inquietos. Ela caminhou os passos necessários para chegar até
Teferi.
“Sozinhos”, disse Eshe. Todos os demais sons pareciam ter se
calado naquela quente manhã. “Um de nós aqui não sofreu essa dor.

216
Ele fugiu. “Mas ele está de volta”, disse ela. Eshe ergueu seu braço,
apontando para Teferi. “Aqui está Teferi, o traidor.”
Os caravaneiros e os guardas começaram uma grande comoção,
gritando e arquejando com a revelação. Todas as demais ordens
foram esquecidas. Os caravaneiros se afastaram de Teferi enquanto
os guardas se aproximaram, sacando suas armas. Alguns
caravaneiros também foram em sua direção, batendo os punhos.
Quando o agarraram, Teferi não resistiu. Ele simplesmente ergueu
suas mãos.
“Eshe, por favor.”
“Não”, disse Eshe. Ela levantou sua lança, juntou suas forças e,
com um impulso, atacou seu coração.
“Pare”, disse Teferi, e o tempo obedeceu.
Ele suspirou. Cuidadosamente, ele se soltou dos caravaneiros
presos no tempo que o haviam contido e agachou, exausto. Ele
sentou-se.
“Não dormi bem na noite passada", murmurou Teferi. “Eshe,
você consegue me ouvir?” Ele perguntou. Ele olhou na direção de
Eshe, que não estava necessariamente congelada, mas se movia com
uma lentidão quase imperceptível, presa no impulso do próprio
golpe. Ela não parecia estar ciente. Um murmúrio baixo saía de sua
garganta — seu grito de assassinato, desacelerado.
“Certo.” Teferi fez um gesto, desenhando um arco preguiçoso
com seu dedo. O ataque de Eshe acelerou novamente, e Teferi
ouviu seu grito voltando à velocidade normal. A confusão começou
a tomar conta do seu rosto conforme seus olhos finalmente
avisaram sua mente de que Teferi havia desaparecido.
“Aqui", disse ele.
Eshe ouviu-o minutos depois. A confusão estava se
transformando em fúria, mas, agora, ela estava olhando para ele.
Teferi viu-a lutando contra o tempo desacelerado, tentando mudar
a direção de sua lança, tentando atacar com sua lâmina em um corte
feio porém funcional.
217
“Eu me apaixonei por uma caravaneira em certa ocasião", disse
Teferi. “Seu nome era Subira. Assim como você, ela também
pensava que eu era um assassino quando me conheceu. Um idiota.
Ela pensava muitas coisas a meu respeito. Mas ela foi compassiva
comigo. Ela me escutou”, disse Teferi. Ele olhou para cima, não
para Eshe mas sim para o céu, escondendo suas lágrimas. “Ela me
escutou quando eu não merecia ser escutado. Nós nos amamos e,
juntos, criamos uma família.” Ele limpou suas lágrimas. “Ela não
perdeu ninguém quando eu fiz com que Zhalfir desaparecesse. Ela
cresceu nas estradas, assim como toda a sua família havia feito por
várias gerações. Zhalfir era apenas uma história para ela. " Ele
estremeceu. O que ele diria a seguir era doloroso, mas ele precisava
ouvir a si próprio dizê-lo.
“Eu acho”, disse Teferi, sentindo a frieza e a espessura de cada
palavra na boca, “que eu permiti que o amor dela me absolvesse da
grande dor que causei a vocês. A dor que eu causei a Zhalfir, ao
nosso lar. Subira me aceitou, o que necessitou de muita graça. Mas
sua aceitação, seu amor —” Teferi balançou a cabeça. “Um amor
como esse salva uma alma, mas não cura isto.” Teferi afundou os
dedos no chão vermelho, puxou dois punhados de terra, e observou
enquanto ela escorria de seus dedos. A cor pintou a palma de suas
mãos, suas unhas. Ela nunca sairia. “Ela faleceu antes que eu
conseguisse encontrar uma forma de corrigir isto.”
A lança de Eshe finalmente virou, com o fio para cima. A arma
estava a quase um metro de distância, e Teferi poderia detê-la com
apenas um gesto. Ele não estava em perigo mas, ainda assim, Eshe
lutou. Ele limpou as palmas das mãos no manto que havia recebido,
esticou-as e segurou a lâmina da lança.
“Não posso ser perdoado", disse Teferi. “Só posso fazer o que é
certo.” Ele apertou a lâmina, permitindo que cortasse as palmas de
suas mãos. Seu sangue, vermelho intenso, escorreu pelos seus
braços, caiu pelo seu cotovelo e se misturou com a terra. Zhalfir
nele, ele em Zhalfir, e o custo era a dor. “Eu amava-a, assim como
amava esta terra”, disse ele. “E eu protegerei Zhalfir, aconteça o que

218
acontecer a seguir. Esta é a minha promessa. É assim que consertarei
as coisas.”
Será que Eshe conseguiria ouvir a dor em sua voz? Presa naquele
momento, tentando matar o Destruidor de Zhalfir, um homem
desesperado vindo do futuro dizendo a ela que sua guerra não
terminaria aqui. Os ecos de sua mais recente experiência com Urza
ainda estavam presentes em sua memória; ele se perguntou se as
formas escuras do lado de fora do lago onde eles haviam nadado
estavam olhando para dentro agora. Se suas mentes vastas e
imperscrutáveis estavam sintonizadas com este momento. Se elas
também invadiriam este local e o enviariam para outro lugar.
Mais tarde, Teferi pensou. Phyrexia, novamente, está em
primeiro lugar.
“Eshe, vou interromper esta mágica”, disse Teferi. “Mas preciso
que você me prometa que me deixará ir embora.” Ter sua presença
conhecida em Zhalfir era inevitável agora. Tudo o que Teferi
poderia fazer era ganhar um pouco de tempo antes que as
autoridades viessem à sua procura. Este grupo pode ser composto
por bandidos e prisioneiros, mas levar notícias de sua chegada
poderia causar uma tempestade que apagaria suas transgressões —
ou causaria tumulto suficiente para que eles escapassem no clamor.
O lamento de Eshe continuava. Teferi libertou a lança e ficou de
pé, olhando para suas palmas cortadas. Ele deu alguns passos para
trás da posição onde estava, distante dos caravaneiros que o haviam
detido e mais longe ainda do alcance da lança de Eshe. Ele levantou
as mãos e conjurou uma temível luz azul, um canal de mana bruto
que irritava o nariz e arrepiava os cabelos da nuca — esta era a presa
exposta, o núcleo crepitante de um incêndio, algo profundo e
primordial que não tinha relação com nenhuma arte, apenas com
um poder cru e abrasador. Uma demonstração, só por garantia.
Teferi permitiu que o tempo voltasse ao seu curso normal.
Eshe terminou seu grito, que se transformou de fúria em
lamento. Ela deu um passo para trás, afastando a ponta de sua lança

219
dele. Teferi agitou suas mãos para se livrar do poder azul, que
regressou à terra.
“Eshe, obrigado.”
“Vá embora", disse Eshe. O suor reluzia sobre sua pele negra, e
ela arquejou devido ao esforço de lutar contra sua mágica. Ela fez o
possível para recuperar o fôlego, e seus braços tremeram.
Teferi levantou suas mãos, com as palmas abertas na direção
dela. Eshe não piscou, mas muitos dos caravaneiros e guardas
fugiram, escondendo-se atrás dos vagões.
“Não há nada mais que você possa nos dizer”, disse Eshe. “Vá
embora.”
Teferi acenou. Ele se levantou, lentamente, e começou a se
afastar. Eshe não olhou para ele. Ela fixou os olhos no chão onde
ele estava sentado, na terra mexida onde ele havia retirado punhados
de solo.
Teferi foi embora, correndo pela estrada, sozinho. Depois de um
longo tempo, Eshe e sua caravana partiram na direção oposta,
juntos.

Para outro lugar.


Teferi dormiu e sonhou.
Existe uma grande corrente de acontecimentos, forjada
primeiramente em fogos distantes e há muito extinguidos. Todas as
coisas estão vinculadas a esta corrente e viajam por sua extensão,
mas elas viajam para trás, capazes de ver apenas a corrente que já
passou, e não a que virá. Teferi se lembrou de que tentou explicar
isso a Urza enquanto estavam juntos, mas articular a realidade é
difícil. Talvez ele tivesse conseguido resumir tudo isso um pouco
melhor antes de ter desistido de sua centelha pela primeira vez.
A maior parte dos seres desta grande massa viva de criaturas
espalhadas pelo tempo e pelo Multiverso nunca teriam o luxo da
revelação ou do testemunho, e muito menos a chance de manipular
220
a própria história de acordo com a sua vontade; Teferi abriu mão de
sua centelha e, em seguida, restaurou-a — o poder que ele tinha à
sua disposição poderia perfeitamente ser divino, O tempo era seu,
sozinho.
Seja como for, esta corrente era feita de muitas mãos, e um grupo
exclusivo de indivíduos se encontrava no momento certo da história
para deixar sua marca. Quanto mais descemos na corrente, mais
apagadas se tornam essas marcas. Sendo assim, o inverso também é
verdade: quanto mais nos aproximamos da borda crua da corrente,
mais clara é a marca de quem a marcou. As assinaturas daqueles que
forjaram um elo, entrançaram uma conexão ou forçaram uma
diversão, todas brilhando, resfriando como se tivessem sido
trabalhadas no ferro.
Teferi, sonhando, observou a corrente que agitava no núcleo do
seu ser. Sem dor alguma, só uma linha infinita, estendendo-se para
baixo, para baixo, para baixo até a escuridão do passado, com seu
nome estampado em cada elo.

Zhalfir, meses mais tarde


A água do rio era fria e cristalina, trazendo o frescor acolhedor
da pequena cadeia montanhosa de Teremko. Mesmo após a luz do
sol ter diminuído, o plano vasto conservava o calor do dia.
Teferi trabalhava, nu até a cintura, caminhando pelo rio no ponto
médio de uma longa fila de trabalhadores, todos com as calças
enroladas na altura do joelho, transportando juntos uma rede fina
por toda a extensão da curva longa e rasa do rio. Por trás do último
pescador, o leito do rio afundava, chegando até a profundeza
conforme o corpo d’água alcançava a margem oposta, onde a
corrente esculpia a marga arenosa. Esta era a rede final do grupo, a
última do dia.
Minutos e horas se misturavam. Todos os momentos se
convergiam em um só: a água balbuciante em torno de suas pernas
era um ribombo distante do poderoso rio. A corrente suave era a
221
corda áspera em suas mãos. Transportado no ritmo da canção
simples cantada pelos demais, com sua voz acrescentada. A canção
em seus lábios era o ar no pulmão de seus companheiros que
também puxavam a corda áspera, que viravam as costas para a
corrente suave, que também ouviam o ribombo distante e a água
balbuciante do rio.
Trabalho, compartilhado, tempo, compartilhado. A beleza estava
no rio, na simplicidade do trabalho, na labuta dos braços que
puxavam, das gargantas que cantavam, das mãos que manipulavam
a rede confeccionada por artesãos habilidosos muitos anos atrás,
transportando peixes gordos e prateados do rio cristalino e frio. A
esperança estava nas mãos que puxavam as fibras, nos dedos
habilidosos que costuravam, nos braços queimados pelo sol que
puxavam a corda ao longo do tempo. Uma rede que abrangia
centenas de vidas em um troço contínuo de tempo e trabalho para
produzir, no fim de tudo, vida.
“Moldador”, chamou-o a trabalhadora ao seu lado. Por toda a
extensão da fila, sob o ritmo da canção, pequenas conversas eram
conduzidas. Assim como o rio, a canção era repleta de espirais e
turbilhões. “Quando a guerra chegar, você marchará com os clãs de
guerra ou ficará aqui na vila?”
“Eu ficarei”, disse Teferi. Ele grunhiu e colaborou com a sua
seção para transportar a rede, mão sobre mão. “Mas eu atendo as
ordens da rainha. Para onde ela disser que eu devo ir, eu irei.”
“Você vive como esses peixes”, disse a trabalhadora. “Eu me
juntarei aos akincis quando a guerra chegar, assim como a minha
irmã.”
Teferi olhou para ela. Ela era jovem e pintava seus ombros para
garantir sua força. O que ela havia aprendido no trabalho guiaria sua
lança, sacaria seu arco.
“Quantas irmãs você tem?”
“Três", disse o trabalhador. “Neema, Kani e Amana.”
“E qual é o seu nome?”
222
“Oyana. E eu sei quem é você”, disse Oyana. “Você é uma
pessoa quieta, mas não precisa dizer nada para que saibamos quem
você é. Você deveria falar mais.”
Teferi sorriu. Era bondoso da parte dela sugerir que ele falasse
mais, mas ele sentia que já tinha falado o suficiente. Manter-se quieto
era prudente e penitente.
“Os outros dizem que você veio até a nossa vila para se
esconder”, disse Oyana. “Kani me disse que cuspiram em você e o
amaldiçoaram quando você foi para a cidade. Não consigo imaginar
as pessoas belas de lá fazendo uma coisa dessas, mas Kani também
disse que as pessoas belas da cidade falam com as bocas fechadas.”
Teferi grunhiu. Ele nunca havia reparado nisso.
“Minha irmã Neema já estava a serviço do General Mageta
quando a rainha urgiu que eles se preparassem. Kani, Amana e eu
teríamos que ficar aqui, fazendo isso”, disse ela, enquanto
transportava uma seção da rede. “Agora, todas nós temos idade
suficiente para lutar, e este trabalho me deixou mais forte.” Oyana
ficou de pé e flexionou os músculos. “Quando regressarmos, estarei
na linha de frente, e vou mostrar para toda Dominária quem somos
nós e quem são eles.”
Teferi se curvou para puxar a extensão seguinte da rede,
enrolando-a.
“Zhalfir está pronta", disse Oyana. Agora, ela falava com uma
vez firme, chamando a atenção dos outros trabalhadores por perto.
“Eu estou pronta. Meus irmãos e minhas irmãs estão prontos. Os
phyrexianos não conseguirão nos enfrentar.”
Os outros trabalhadores murmuraram seu consentimento,
alvoroçados, ascendendo juntamente com o som do rio.
“Então você não tem motivos para ficar quieto", disse Oyana ao
Moldador. “Você é o pai de Zhalfir, Nossas crenças foram moldadas
por você. Nossas terras foram movidas por você. Fale com sua boca
aberta, Teferi.”

223
Teferi agarrou a extensão seguinte de rede e não disse nada. Ele
trabalhava, consciente do olhar de Oyana que o seguia, dos olhares
de todos os trabalhadores que o seguiam, do sol que se punha e da
água em torno de suas pernas que passava de fresca para fria. Ele
sentia a ira invadindo os olhares de alguns dos trabalhadores, mas a
maior parte deles estavam curiosos, observando-o como alguém
observaria uma criatura rara, majestosa e perigosa.
“O que foi isso?” Oyana perguntou. Embora os outros
trabalhadores tivessem regressado ao seu trabalho diligente, Oyana
continuava na mesma posição. Ela estava observando Teferi,
aguardando uma resposta. Ele não sabia se sua pergunta era porque
ela o tinha ouvido, ou se sua voz, silenciosa há tanto tempo, tinha
sido perdida nas profundezas do rio.
“Ninguém está pronto", repetiu Teferi. “Ninguém consegue
detê-los. Nem mesmo os mais destemidos.”
Oyana deu um passo para trás. Ela franziu a testa, olhou para
Teferi de cima para baixo e balançou a cabeça. Ela foi embora.
Teferi regressou ao trabalho.
A jusante, onde os peixes pulavam e dançavam, o rio dobrava,
levando com ele gramas altas, árvores largas, terras e o horizonte.
Montanhas distantes capturavam a luz do sol que se punha, com os
cumes chamejando intensamente para desafiar o fim do dia, e as
dobras já escuras conforme a noite se aproximava. As nuvens acima
marcavam o céu nos tons fortes e quentes do verão. Auge do verão,
sem teto sobre o plano. E, além do céu, um vazio. Uma cegueira
empírea que os escondia de todos os terrores que existiam além.
Olhando para cima, Teferi só conseguia ver o vácuo por trás do
céu, como a superfície de uma pedra sob uma fina camada de tinta
— o trabalho de obscurecimento ainda não concluído. Ele sorriu.
Teferi estava em casa.

Teferi e os pescadores regressaram à vila no pôr do sol, com a


longa rede enrolada sobre seus ombros como o cadáver de uma
224
cobra colossal. Eles carregavam com eles suas presas e tochas para
iluminar o caminho. As conversas eram escassas — com o cair da
noite, os trabalhos do dia pesavam sobre eles, e suas mentes estavam
concentradas em se alimentar, ver suas famílias e descansar.
A vila se misturava com a terra, uma disposição ordenada de lares
de tijolos de argila e longas construções comunitárias com tetos
chamativos. Celeiros, fornalhas, fumeiros, forjas frias, curtumes,
currais públicos — este era um ponto de encontro para os
fazendeiros, pescadores, caçadores e forrageadores que viviam na
região, satélite de uma cidade que ficava a uma dezena de
quilômetros a oeste. Um templo achatado, pequeno e abobadado
era a única construção que se destacava das demais: o salão dos
credos. Ao contrário dos demais lares e construções, que se
misturavam com a pastagem, o salão dos credos desejava ser notado.
Ele ocupava uma posição central na vila, um humilde templo para
os cinco credos de mágica, uma fé e uma filosofia que guiavam
Zhalfir e um local onde membros de qualquer credo poderiam
descansar enquanto atravessavam o continente.

Arte por: Ilse Gort


Teferi entrou rapidamente na construção, reservando alguns
segundos para lavar seus pés no duto azulejado que ficava na entrada
do salão. Uma tela simples separava o espaço interno abobadado da
entrada, um defletor para reduzir qualquer luz e abafar qualquer som
225
que pudesse vir do lado de fora. Teferi respirou o incenso aromático
e levemente doce que emanava do local. Madeira de incenso
zhalfiriana, queimando no poço de mana localizado no centro do
salão de credos. Ele fechou os olhos. Um momento de reverência,
de uma dor apaziguada, de câmaras nos seus pulmões e coração se
enchendo novamente depois de estarem vazias há tanto tempo que
ele havia se esquecido de como enchê-las. Ele secou os pés.
Atravessando a tela, ele entrou no espaço principal.
A sala sob o domo tinha o formato de um pentágono, com cada
extremidade representando uma das cinco cores de mágica. No lado
oposto da entrada, havia uma parede escura com uma porta simples,
dando acesso às humildes acomodações preparadas para os
membros dos credos. Um banco baixo rodeava a sala, afastado da
decoração central: um recipiente de pedra largo e raso, com uma
forragem modesta de brasas fumegantes de madeira de incenso. O
calor tênue era também a única luz do espaço que, sob o domo,
parecia vasto, muito maior do que o exterior do poço de mana
sugeria.
Teferi se movia de forma vagarosa e silenciosa, caminhando até
a estação à esquerda da entrada. Lá, ele parou em frente ao arco do
Credo do Moldador, ajoelhou-se para pegar o recipiente pelas
bordas e encostou-o contra a própria testa. O zumbido do mana
ressoou em todo o seu corpo, um sentimento quente e familiar que
vibrava pelo poço e escoava para a grande bacia de pedra. Em algum
lugar por baixo dele, ao seu redor, através dele, havia uma linha de
força.
“Kaya", Teferi sussurrou. “Você consegue me ouvir?”
Nada. As brasas salpicavam; um tronco de madeira de incenso
desmoronou.
“Meu nome é Teferi Akosa. Sou eu quem vigia os perdidos e os
esquecidos. Sou o pai de Niambi e o marido de Subira. Eu —" Teferi
interrompeu a reza. No lado oposto da câmara, algo foi empurrado.
Ele olhou por cima da borda da tigela e viu uma jovem acólita,
fechando cuidadosamente a porta depois de passar. Ela usava uma
226
túnica branca simples, identificando-a como fiel do Credo Cívico;
aspirante a curandeira, ela havia se aproximado de Teferi logo que
ele chegara na vila, não com o intuito de aprender mas sim para
garantir que ele não caísse em ruína.
“Adia", disse Teferi, cumprimentando a acólita.
“Moldador”, murmurou Adia. Falar mais alto que isso no salão
dos gritos faria com que o locutor parecesse estar gritando. “Você
voltou. Teve um bom dia?”
“Tive um bom dia”, disse Teferi, de pé. “Pegamos muitos peixes
para a nossa cota. Os fazendeiros poderão até protestar, mas
conseguiremos cumprir as ordens da rainha e ainda teremos alguns
restantes para o comércio.”
Adia acenou. “Soldados de Kipamu vieram à sua procura.”
“Quando?”
“Pouco tempo depois de você ter saído para o rio. Eles achavam
que encontrariam você aqui.”
“Eles disseram o motivo pelo qual queriam me ver?”
“A guerra", disse Adia. Ela estendeu suas mãos, com as palmas
viradas para cima. Não havia nada mais a se dizer. A rainha ordenou
que toda Zhalfir se mobilizasse. Os cinco altos feiticeiros e o
General Mageta concordaram; como resultado, Zhalfir se
mobilizaria. Um órgão perfeito, um estado lógico e soberano, um
povo motivado a provar o seu valor e um plano a ser salvo.
Organizado, puro, um mito à espera de ser escrito, com praças
monumentais de pedestais vazios à espera das estátuas de seus
heróis, paredes nuas à espera dos mosaicos de suas grandes batalhas.
Aquele beco, aquela cidade, aquele garoto chorando, todo aquele
sangue, todos aqueles corpos, o fogo sobre tudo, a máquina de aço
vivo.
“Eu disse a eles que você tinha ido para o rio", disse Adia. “E
que você estaria de volta hoje à noite.”
“Diligente", disse Teferi, contorcendo seu rosto.
227
Adia inclinou sua cabeça — um pequeno gesto, em vez de uma
vênia grandiosa.
“Primeiro, precisarei tomar banho e comer.” Teferi passou pela
acólita, dirigindo-se ao seu pequeno quarto. “Vá encontrar os
soldados, diga a eles que eu estarei aqui. Isso é tudo. Obrigado”,
disse ele, acenando para Adia. Ele não esperou para ver se a jovem
acólita tinha ido embora. Ele precisava de alimentos, roupas limpas
e um momento para descansar. Quando Adia trouxe os soldados de
volta, nenhuma dessas coisas havia sido garantida.

“Soldados” tinha sido um eufemismo dramático. Teferi estava à


espera de um punhado de akincis seguindo um askári de médio
escalão, como patinhos em fila atrás de sua mamãe. O grupo que o
cumprimentou quando ele regressou à câmara principal do salão
estava mais próximo de um conselho de guerra. Uma dezena de
sidares musculosos em túnicas azuis adornadas e armaduras
finamente curtidas o aguardavam, guerreiros altos com espadas
preparadas para o ataque, peles sumptuosas sobre os ombros e
olhares de aço. Os sidares formavam um círculo ao redor do seu
líder, um oficial de armadura prateada reluzente que segurava um
elmo com detalhes vermelhos sob o braço.
“Planeswalker Teferi”, gritou o general, abrindo os braços. “Seu
maldito, finalmente o encontrei!”
“Eu sou apenas Teferi Akosa agora, Jabari”, disse Teferi. Ele se
permitiu um leve sorriso, aliviado por um breve momento. Se a
rainha havia mandado um carrasco, pelo menos era um amigo seu.
“Quanto tempo faz.”
“Faz mesmo?” Jabari perguntou enquanto os dois se abraçavam.
Ele deu um tapa nas costas de Teferi, apertando-o, e, em seguida,
deu um passo para trás, segurando a cabeça de Teferi. “Talvez para
você”, disse ele, apontando, “mas não para mim. Mais alguns fios
de cabelo brancos, mas não tantos quanto você.” Jabari sorriu mais
uma vez e o deixou ir. “Você voltou, mas onde está o resto do

228
plano? Nossos marinheiros continuam dizendo que não há nada
além do litoral, e nossos patrulheiros que escalam rumo à névoa não
voltam.”
“Zhalfir ainda está sozinha", disse Teferi. "Sinto muito."
“Não faça isso agora. Chega de desculpas", disse Jabari. “Ouvi
várias histórias a respeito da sua peregrinação penitente, parece
exaustiva.” Ele acenou, ordenando que seu séquito partisse, e
conduziu Teferi para fora do salão dos credos. “O grande
mendicante, sempre um passo à nossa frente. Recomponha-se.
Você é o arquimago de Zhalfir, e Zhalfir precisa de você.”
“A Rainha Wezna vai me matar.”
“Bem, sim”, acenou Jabari. “Mas só depois que você ajudar
Zhalfir.”
“Não sei se consigo", disse Teferi. “Não sei nem se consigo
ajudar a mim próprio.”
“O que você quer dizer?”
“Não sei como eu vim parar aqui. Não deveria ser possível.
Zhalfir está. . .” Teferi agitou suas mãos, à procura das palavras
certas. “Perdida. Sozinha. Como você disse: não há nada além do
litoral.”
Jabari ponderou por alguns instantes, com os braços cruzados e
o queixo rente ao peito. Ele franziu a testa, caminhou alguns passos,
parou e acenou para que Teferi o seguisse.
Teferi e Jabari caminharam juntos, afastando-se do askári do
general e do salão dos credos. A vila ao redor deles estava viva, cheia
de canções, risadas e sons de alegria. A pesca havia sido produtiva,
como Teferi pensava — suficiente para o dízimo da vila para os
esforços de guerra, e abundante para celebrar.
“Você precisa saber disso", disse Jabari, falando baixo. “Meu
askári só sabe que estamos aqui para recrutar novos soldados e levar
você até a presença da rainha, mas não sabe o motivo disso.”
"E qual é o motivo?"
229
“Você não é o único a chegar até aqui vindo de fora.”
“O quê?”
“Zhalfir não está tão sozinha assim", disse Jabari. “Velho amigo,
é assim que você nos ajudará. Venha comigo até Aku e conheça mais
um errante, como você.”
“Aku.” Memórias antigas tomaram conta de Teferi: campos de
pilares e lápides, a cidade antiga de Aku, localizada sob o lamaçal
fumegante que era o vasto pântano de Uuserk. “Não é Kaervek?”
“Não”, disse Jabari. “Trata-se de uma mulher de aparência real.
Prendemo-na no âmbar também, mas, antes disso”, Jabari estendeu
sua mão na direção de Teferi mais uma vez, tocando-o no peito para
enfatizar cada palavra. “Ela perguntou por você.”
Uma mulher de aparência real. Ele conhecia várias. Será que Kaya e
Saheeli desenvolveram alguma forma de atravessar o vácuo e chegar
a Zhalfir? Quanto tempo havia passado fora daqui? O tempo dentro
deste lugar passava de forma diferente do tempo fora daqui. Ele
sabia bem disso. Talvez elas tivessem reconstruído a âncora, talvez
tivessem encontrado Karn, ou talvez tivessem enviado outro
Planeswalker da forma como ele havia sido enviado, mas de forma
a que os dois pudessem ser puxados de volta.
“Descreva-a para mim.”
“Jovem, mas com cabelos brancos", disse Jabari. “Uma espada
fina, uma armadura de ouro elegante. Os sábios me dizem que ela
parece ser mandariana. Ah, e tem isso —” Ele olhou sobre os
ombros de Teferi e assobiou para um de seus soldados, fazendo um
gesto para que ele se aproximasse. O soldado, que estava carregando
um objeto embrulhado em tecido, correu em sua direção. Ele fez
uma vênia e ofereceu o tecido a Teferi e Jabari.
Teferi pegou o pacote em suas mãos. Ele desembrulhou-o,
revelando um primoroso chapéu de abas largas. Ele era reforçado
em ouro laqueado brilhante e verde — leve porém resistente,
equilibrando defesa e ornamento.
“Um chapéu estranho, mas bom para viajar", disse Jabari.
230
“Bom para transplanar", murmurou Teferi. Ele reconheceu a
mulher pela descrição. Não era uma errante qualquer, era a Errante.
Mais uma Planeswalker, aqui em Zhalfir. Não era Kaya e nem
Saheeli, mas outra Planeswalker que veio procurá-lo.
“Quando partimos?” Teferi perguntou.
“Amanhã”, disse Jabari. “Teremos que nos apressar. A rainha já
está lá, e ela aguarda a chegada de seu arquimago.”
“Amanhã”, repetiu Teferi. Amanhã eles partiriam rumo a Aku,
para encontrar a Errante e ver qual foi a mensagem que ela trouxe.
Que sentimento era esse? Esperança, percebeu Teferi. Esperança
momentânea, seguida por um sopro gélido de realidade: essa era
uma revelação feliz, mas não uma revelação boa. Zhalfir estar
conectada mais uma vez ao Multiverso queria dizer que Zhalfir
estava em perigo.

Na manhã seguinte, os sidares de Jabari despertaram antes da


alvorada, preparando seus carros de suprimento e suas malas
pessoais. Mais tarde, conforme o sol começava a dissipar a bruma
vaporosa da manhã, um grupo de novos recrutas — jovens que
finalmente chegaram à idade necessária para entrar em bandos de
guerra — se juntou a eles. Teferi chegou com esse grupo,
juntamente com o restante da vila. Os pescadores já haviam partido
para o rio muito antes do nascer do sol, deixando apenas uma
população silenciosa de anciões e artesões para se despedir deles.
A jornada seria longa, cruzando a Planície de Mtenda até os
platôs rochosos que faziam fronteira com Zhalfir a norte. Durante
sua juventude, Teferi conhecia os caminhos que levavam à
imponente cordilheira das montanhas Teremko, mas eles acreditava
que o caminho que eles seguiriam faria um desvio a oeste junto à
costa, cruzando a costa da Baía de Buleusi antes de voltar para o sol.
No final da estrada, encontrava-se Aki, a cidade das tumbas,
escondida nos charcos remotos de Uuserk, distante da luz de
Kipamu.

231
“Moldador?”
Teferi, que estava com a cabeça baixa, olhou para cima e viu
Adia, a acólita do poço de mana, aproximando-se com um pacote
de tecido.
“Pensei que você deveria ficar com isso", disse Adia. Ela
entregou o pacote para Teferi, com a testa ligeiramente franzida.
“O que é isso?” Perguntou Teferi, aceitando o pacote macio. Ele
desembrulhou-o, segurando a túnica à sua frente.
“A túnica do antigo Moldador, que veio antes de você.” Disse
Adia. “Ela está limpa. Eu costurei os buracos deixados pelas traças
e pelos ratos. São vestes adequadas para alguém do seu escalão. É
um modelo antigo, mas”, ela encolheu os ombros, “você também
é.”
Teferi sorriu. “Obrigado, Adia.”
“Eu vivo para servir o credo”, disse ela, sem alterar o tom de voz.
Ela fez uma vênia, ficou de pé, colocou as mãos à frente do corpo e
não olhou para Teferi.
“Eu tenho uma filha, Adia”, disse Teferi, com ternura, enquanto
embrulhava novamente a túnica. “Ela também já teve sua idade um
dia.”
“O quê?”
“Parece que você tem mais alguma coisa a dizer.”
Adia acenou.
Teferi terminou de guardar a túnica no pacote, permitindo que
Adia demorasse o tempo que precisasse.
“Se Zhalfir regressar, isso quer dizer que a guerra vai começar”,
disse Adia. “Começar de verdade. Sem mais esperas, sem mais
treinos. ‘Zhalfir sozinha’ terminará, e estaremos de volta ao mundo
real.”
“Isso é verdade”, disse Teferi.

232
Adia olhou para os lados, certificando-se de que ninguém mais
conseguia ouvi-los Todos os outros estavam engajados em
pequenas conversas: anciões despedindo-se de seus netos adultos,
recrutas entusiasmados exibindo-se para os askáris de Jabari, Jabari
falando com seus assistentes. Em meio a toda essa confusão, eles
encontraram privacidade.
“Não sei se Zhalfir regressar ao mundo é uma coisa boa, se
regressar para o mundo significa fazer com que a guerra comece...
comece de verdade”, disse Adia, falando rapidamente e com um
fôlego só, como se estivesse cuspindo um losango imundo que fora
forçada a transportar na boca. “Embora ruim, este limbo é pacífico.
As Guerras de Miragem e de Keld ceifaram membros de todas as
famílias, e essas foram guerras travadas contra pessoas, como você
e eu.” Ela olhou para Teferi. “Eu sou órfã graças à Guerra de Keld.
Eu sirvo ao Credo Cívico em razão daquilo que a guerra tirou de
mim. Acho que o nosso povo só consegue imaginar a guerra contra
Phyrexia como um teste. Um grande exame, onde eles poderão
provar sua força e mostrar a Dominária onde nasce o sol. Acho que
todos nós perdemos tanto que não conseguimos imaginar que
perderemos mais nada. Nós nos esquecemos do que a guerra leva,
mesmo quando nada mais resta.”
Teferi estendeu a mão e empurrou gentilmente Adia para o lado,
um pouco mais distante do grupo. Os recrutas estavam terminando
de se despedir, e os sidares estavam começando a formar fila.
“Pensar no custo desta guerra me deixa aterrorizada”, Adia
continuou sussurrando. “Fico doente de preocupação. Perder
significa ruína, mas o que acontecerá quando vencermos?” Ela fez
um gesto na direção dos sidares e dos recrutas. “Zhalfir passou tanto
tempo aguardando e afiando suas espadas que, quando derrotarmos
Phyrexia, descobriremos que a única coisa que sabemos fazer é
guerrear.”
Teferi não disse nada.
“O que devemos fazer?” Perguntou Adia. “O que devo fazer?”

233
“Teferi!” Jabari chamou-o da posição dianteira da coluna que se
formava, acenando para que se aproximasse. “Não tente fugir
sorrateiramente de novo, Planeswalker, ou vou usar você para
treinar meus batedores!”
Teferi acenou e, em seguida, colocou sua mala nas costas. Adia
não tinha se mexido. A acólita esperava por uma resposta que Teferi
não tinha. Em vez disso, ele só conseguia pensar na sua própria filha,
Niambi.
Um dia, quando Niambi era apenas uma criança, eles estavam
brincando no pátio enquanto Subira estava fora. Sorridente, livre e
destemida, Niambi começou a correr. Ela tropeçou antes que Teferi
conseguisse avisá-la e, sem se dar conta, Teferi congelou-a no
tempo, segurando-a no meio da queda.
Ele se lembrava de caminhar ao seu redor, tentando aferir cada
resultado possível de soltá-la daquele momento, do seu
congelamento temporal. Ele poderia tê-la mantido lá para sempre,
caso desejasse — e parte dele desejou isso, mantê-la daquele jeito,
segura, distante do mundo — mas ele afastou aquele pensamento
sombrio. Sua decisão foi encontrar um meio termo entre a queda e
a salvação: segurá-la.
Ele não conseguiria segurá-los agora, mas poderia estar presente
naquele momento com todos eles.
“Algumas coisas são grandes demais”, disse Teferi, “para que eu
ou você consigamos pará-las.”
“Você não", disse Adia. “Não são grandes demais para você.
Você nos mandou embora para nos proteger, então mantenha-nos
distantes. Proteja-nos, proteja Zhalfir.”
“Não consigo.” Teferi balançou a cabeça.
“Mas você fez isso!”
“Eu era uma pessoa diferente naquela época", disse Teferi. “Eu
era. . .algo mais. Algo menos. Eu era outra pessoa. Ele olhou para a
estrada. Olhou para todo o caminho, até Aku e além. “Escuta, Adia,
faz muito tempo que não venho para cá, mas durante esse breve
234
período em que estou de volta — Zhalfir não é apenas guerra. Lutar
não é tudo o que sabemos. Éramos outra coisa antes de tudo isso",
disse Teferi. “Não podemos impedir o que está por vir, mas
podemos controlar o que acontecerá depois.” Teferi fez um gesto
na direção dos soldados, dos recrutas, das terras. “Um grande terror
se aproxima, sim, mas ele só permanecerá enquanto decidirmos nos
agarrar a ele.”
“Não entendo.”
“Não estamos ligados ao nosso destino", disse Teferi. “Apenas
ao nosso passado. Não fomos sempre soldados. Não estivemos
sempre sozinhos.”
Adia levantou um dedo para responder, mas parou. Ela se
recompôs. “Que você chegue ao seu destino", disse ela. Adia não
esperou Teferi responder. Ela partiu, caminhando apressadamente
de volta para a vila. Teferi não tentou interrompê-la, apenas
observou enquanto ela abria caminho pelas fileiras de recrutas
entusiasmados. Sua túnica, branca como as nuvens, desapareceu em
meio à multidão.
No que ele pensou naquele dia, quando Niambi caiu? Não havia
busca profunda possível na sua alma que pudesse trazer Zhalfir de volta. Bom,
uma certa quantidade de busca profunda na alma o havia trazido de
volta, só para descobrir que não haviam desculpas possíveis para
corrigir aquilo que ele havia feito. Nunca seria tão fácil quanto trazer
Zhalfir de volta. Zhalfir não era apenas um nome no mapa. Era uma
nação, um povo, uma história, um futuro, e nada que ele pudesse
controlar. Nada que ele pudesse salvar por conta própria, não
importa o quanto quisesse. Não seria esse um sinal de um bom pai?
Saber que, em certas situações, não há nada a fazer além de estar
presente para o seu filho quando ele mais precisa? Ele havia
prejudicado todos eles, mas tinha a possibilidade de estar ao lado
deles agora. Ele poderia ensiná-los a se proteger da queda e mostrar-
lhes como se levanta depois.
“Teferi!”

235
“Jabari", gritou Teferi. Ele aguardou um instante. Levou os
dedos aos lábios, beijou-os, encostou-os na testa e colocou a mão
sobre coração. Um gesto antigo. Gratidão a este lugar por aquilo
que ele lhe havia dado, lhe havia ensinado.
Teferi partiu juntamente com os soldados e recrutas, marchando
ao lado deles pela longa estrada até Aku.

Aku, semanas mais tarde


A jornada até Aku não era longa, mas estava cheia de perigos.
Por sorte, Jabari e seus soldados, com a ajuda de Teferi, haviam
percorrido todo o caminho até o fim, sem perdas. Ao chegar a
cidade, antes mesmo de tomar banho ou comer, mensageiros
apareceram para buscar Teferi e Jabari.
Os salões de Aku eram acolhedores e solenes. Para que a rainha
estivesse presente, era necessário que fossem penduradas tapeçarias
nas paredes, estendidos tapetes detalhados sobre os pisos lustrosos,
carregados braseiros com madeiras de incenso fumegantes e óleos
perfumados. Embora fosse uma cidade de tumbas, Aki não era um
local menosprezado. Essas decorações serviam tanto para os vivos
quanto para os mortos: As linhagens reais de Zhalfir descansavam
aqui, e a rainha havia vindo até elas em busca de inspiração, conforto
e orientação espiritual. A solenidade era um sinal de respeito, e não
de medo. Paz, para melhor canalizar a sabedoria de um povo.
Porém, o sentimento de paz não abrangia toda a cidade. As
Tumbas de Âmbar, onde os segredos obscuros do passado eram
protegidos pelos feitiços mais fortes e os saberes mais antigos e
poderosos que os ancestrais de Zhalfir conseguiam dispensar,
emanavam uma energia inquietante. Tochas e luminólitos adicionais
foram encomendados para banir as sombras persistentes que
assombravam os corredores. Isso acontecia especialmente dentro
do domo principal das Tumbas de Âmbar, onde era possível vigiar
as ameaças mais perigosas a Zhalfir.

236
Teferi e Jabari seguiram o mensageiro pelos corredores tortuosos
do distrito central de Aku até as Tumbas de Âmbar, onde a rainha
os aguardava. Cada curva dos corredores altos e estreitos das ruas
de Aku era patrulhada por um par de guardas da rainha,
normalmente acompanhados por clérigos do Credo do Moldador
ou, mais preocupante ainda, Credo Cívico vestindo armaduras.
“Não se trata de uma mobilização normal, certo?” Teferi
sussurrou para Jabari conforme ambos passaram por um par de
clérigos, que os saudaram.
“Absolutamente não”, murmurou Jabari. “Algo deve ter
acontecido nas tumbas.”
“Talvez a rainha adie minha execução”, disse Teferi. “Estou
brincando, e não implorando”, ele acrescentou. “Só para ficar
claro.”
Jabari grunhiu, sem sorrir, e acelerou o passo.
Teferi e Jabari chegaram às Tumbas de Âmbar e encontraram um
tumulto de soldados e clérigos à entrada, com armas empunhadas.
Alguns estavam virados na direção deles, enquanto outros estavam
virados para dentro. Dois oficiais, askáris de quadros superiores,
discutiam entre si sussurrando. Suas vozes eram incompreensíveis
no corredor ecoante.
“Askáris", disse Jabari, de forma firme mas sem gritar. Sua voz
atravessou o ruído. “O que está acontecendo? A rainha está em
apuros?”
Os sidares pararam de discutir, ambos se virando para Jabari em
uníssono.
“Kaervek fugiu”, disse uma das askáris. Embora composta, seus
nervos afinavam seu rosto já austero. “Sua prisão foi estilhaçada. O
general está ferido, mas seu quadro é estável.”
“Quando?” Teferi perguntou.
“Uma hora trás, no máximo", disse a askári, limpando suor da
testa.

237
"O general Mageta foi ferido uma hora atrás?" Jabari perguntou,
chocado, enquanto seu tom de voz aumentava.
“Acabamos de descobri-lo”, disse a askári, levantando a mão
para tentar acalmar Jabari. “Ele foi ferido quando a prisão de
Kaervek se estilhaçou. Mas ele vai sobreviver... é grave, mas não é
fatal.”
“Deixem-nos passar”, ordenou Teferi. Não havia tempo para
palavras.
Os guardas se retiraram. Teferi conduziu Jabari até a câmara
central da Tumba de Âmbar, um domo escuro, vasto e isolado.
Arandelas pontuavam a parede em intervalos regulares e
regimentados, emitindo luzes tênues no seu interior. Tudo estava
vazio, mas era fácil distinguir o que antes havia no local: prisões de
âmbar.
A câmara era ancestral, e as lendas falavam de origens, mágicas e
rituais sombrios que os ancestrais de Zhalfir arriscaram empregar
para garantir que aqueles que precisassem ser trancados, assim o
ficassem, suspendendo um pêndulo de salvaguarda no ápice do
domo para servir de sistema de aviso. Os eruditos de Zhalfir
descartavam essas histórias, acreditando serem mitos e fantasias
ilusórias — mas poucos foram aqueles que visitaram o domo central
das tumbas, e todos os que o fizeram concordam que a sala tem uma
qualidade perturbadora. Um silêncio encobria a câmera que, por ser
um domo, deveria ecoar como uma sala de concertos. Um
sentimento profundo e certo de que, caso aquele lustroso pêndulo
imóvel se contorcesse, o resultado seria a ruína.
Com terror, Teferi observou que o pêndulo havia se soltado e
caído no chão polido do domo. Sua ponta estava presa no chão, e
suas grandes correntes o serpenteavam como a carcaça de uma
cobra monstruosa. O chão, brilhoso como um espelho, havia se
estilhaçado. Um líquido escuro — sangue do General Mageta,
palpitou Teferi — se juntava em uma poça perto do pêndulo,
resistindo aos esforços de um pequeno grupo de soldados que
tentavam esfregá-lo.
238
A Rainha Wezna estava em um canto, conversando com duas
figuras com túnicas, uma de cor azul celeste e a outra de preto
veludo. Uma terceira figura, vestindo uma armadura branca, estava
em outro canto, examinando ociosamente o pêndulo caído e o chão
estilhaçado. Teferi não reconheceu nenhuma das figuras com
túnicas, certamente os líderes de seus respectivos credos, mas a
rainha era inconfundível, tendo envelhecido menos uma década
séculos depois da última vez que se encontraram.
“Sua graça”, disse Jabari, curvando-se assim que ela se virou em
sua direção. “Peço sua compreensão, é que acabamos de chegar —

“Trezentos e sessenta anos", disse a Rainha Wezna, caminhando
em direção a Teferi. Ela não havia gritado, mas sim declarado, e o
domo ressoou com sua voz. “Trezentos e sessenta anos se passaram,
e continua sendo nós contra eles”, disse a rainha. “Phyrexia aguarda
em nossas fronteiras, Kaervek escapou e o General Mageta está
ferido.” Ela parou a alguns passos de distância, seguida pelos três
líderes dos credos. “E você voltou para perto de nós. Não há
punição grande o suficiente para trazer justiça às ações que você
cometeu. Me dê um motivo para eu não ordenar que minha sentença
para você seja executada neste exato momento.”
“Se você me matar", disse Teferi, “eles vencem.”
A rainha inspirou e suspirou. Acenou.
“Sidar Jabari", disse a Rainha Wezna, conversando com o velho
oficial sem tirar os olhos dos olhos de Teferi. “Os Cívicos dispõem
de um hospital no distrito do pilar. O general convalesce no local.
Encontre-o. Você será o líder do exército até que ele se recupere.”
“Sim, sua graça", disse Jabari. Teferi ouviu-o se afastando, o som
de suas botas apressadas na pedra polida.
A Rainha Wezna se virou e caminhou novamente na direção do
pêndulo caído, com as mãos cruzadas nas costas, pensando. Ela
parou perante os três magos dos credos, de costas viradas para
Teferi.
239
“Você não foi convocado por mim", disse a Rainha Wezna,
falando com Teferi. “Não posso fazer com que você pague pelos
seus crimes, maiores ou menores, ainda. Mas eu tenho meu
orgulho.” Ela se virou para encará-lo. “Eu não convoquei você
aqui.”
“Onde ela está?” Perguntou Teferi.
Colocando a mão dentro da túnica, a Rainha retirou uma
pequena bijuteria de âmbar, do tamanho da palma de sua mão, e a
arremessou na direção dele. A prisão de âmbar saltitou, quicando no
chão de pedra polida, e parou nos pés de Teferi.
Teferi se ajoelhou para pegar a prisão, segurando-a entre o dedo
indicador e o polegar. Ele levantou-a contra a luz, iluminando a
figura que estava no seu interior. Pequena, congelada no tempo,
provavelmente momentos depois de transplanar, uma guerreira no
meio de um ataque. Franzindo os olhos, Teferi viu em seu rosto um
olhar de determinação se transformando em confusão — sua testa,
enrugada, relaxava; sua boca se abria, prestes a fazer uma pergunta;
seus olhos abertos denunciavam a surpresa.
A Errante.
“Quando terminar de olhar, coloque-a no chão.” Disse a Rainha.
Teferi obedeceu. Ele colocou a prisão gentilmente no chão e, em
seguida, deu um passo para trás.
A Rainha Wezna estalou os dedos, e o líder do credo com
armadura branca deu um passo para a frente. Ele sussurrou uma
mágica silenciosa, de forma sutil e sem encenação. A prisão
começou a brilhar.
“Mais um passo para trás, arquimago”, disse ela, olhando para
Teferi sobre a luz crescente.
Teferi obedeceu, caminhando para trás conforme a prisão
começou a se dividir e brilhar. Ele protegeu os olhos, virando-se
conforme a prisão explodiu, abrindo com um barulho alto seguido,
momentos depois, de uma exalação curta, conforme a Errante
terminava o seu golpe e gritava de surpresa.
240
A Errante se recuperou, retomando sua posição e sua guarda,
com uma respiração profunda. Sua compostura estava abalada, mas
não desfeita.
“Errante”, gritou Teferi, com as mãos para cima e as palmas
viradas para fora. “Sou eu.”
“Teferi?” Ela gritou alto. A Errante observou rapidamente onde
estava, mantendo a guarda. “Onde estou? Quanto tempo faz?”
“Aku”, disse a Rainha Wezna. “Em Zhalfir. Você chegou há um
mês.”
“Um mês?” A Errante repetiu. Ela abaixou a espada, enquanto
seus olhos procuravam no espaço entre eles por algo que apenas ela
poderia ver. “Isso é impossível. Teferi, você desapareceu poucos
dias atrás!”
“A âncora falhou”, ponderou Teferi. Como? A pedra de energia
de Serra — um plano em potencial, desviado através dele — algo a
ver com o Sílex. Aquele espaço para o qual ele e Urza foram após
ele ter detonado — todo aquele potencial tinha que ser canalizado
para algum lugar, tinha que encontrar algo em que se agarrar. Acaso,
destino ou uma combinação dessas duas coisas.
“Talvez não tenhamos nem mesmo um dia", sussurrou a Errante.
Sua figura alternava, estremecendo. Ela estava perdendo suporte
naquele plano.
“O que você quer dizer?” Perguntou a Rainha Wezna.
“A invasão de Nova Phyrexia começou”, disse a Errante. Ela
olhou para a Rainha e, depois, para Teferi. “Nosso ataque foi
espalhado pelo plano, Nissa se foi — acho que chegamos tarde
demais. Não creio que possamos impedi-los.”
Um momento de frieza se seguiu. Teferi deu um passo para trás,
procurando o chão por trás dele, e se sentou. Ele segurou sua cabeça
em suas mãos. Ao seu retor, as tumbas explodiam. A Rainha gritou
ordens para os três líderes dos credos, que mobilizaram seus adidos
e tenentes antes de correr, partindo para os seus comandos. A
Errante se agachou ao lado dele e tentou contar-lhe sobre a batalha
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na Torre de Urza, a invasão em Nova Phyrexia, a árvore que crescia,
o plano desesperado, mas sua voz soluçava e sua coerência
alternava. Ela desapareceu, puxada para longe por sua centelha
instável.
Talvez fosse a acústica indescritível da câmera abobadada, ou
algum feitiço que ele havia lançado inconscientemente, mas tudo foi
ficando de lado, deslizando como um casaco pesado demais. A voz
de Jabari ecoava em sua memória. Chega de desculpas. Teferi tirou
as mãos do rosto e olhou para as suas palmas. Embora as tivesse
lavado várias vezes desde aquele dia na estrada, elas continuavam
tingidas com a terra vermelha de Zhalfir. Ele nunca conseguiria lavar
as marcas dessas terras. Ele nunca conseguiria estar sozinho.
Eshe, que havia resistido aos anos.
Oyana, que encarava o perigo com coragem.
Adia, que ansiava por construir um futuro pacífico.
Subira, a quem ele tinha amado, e que o amara de volta.
Niambi, a quem ele amava, e que o amava de volta.
Zhalfir, ao lado de quem ele se erguera, pai dos credos, pai de
uma nação.
“Não é tarde demais”, disse Teferi, com um sorriso feroz no
rosto. A sondagem do Multiverso pelos phyrexianos havia
despertado algo que suas mentes mecânicas aprenderiam a temer:
Teferi, que mostraria a eles que o sol nasce em Zhalfir.

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