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Considerações sobre a verdade matemática


Cícero Antônio Cavalcante Barroso

Resumo: Este artigo é um ensaio sobre a natureza da verdade matemática. Na primeira parte,
investigo os tipos de enunciados a que se podem aplicar a propriedade de ser verdadeiro, e
examino as condições de aplicação da propriedade em cada caso. Na segunda parte, para
explicar a natureza da verdade matemática, procuro determinar a qual tipo de enunciados
pertencem os enunciados matemáticos.
Palavras-chave: verdade, tipos de enunciados, enunciados matemáticos

Abstract: This paper is an essay about the nature of the mathematical truth. In the first part, I
inquire by the statement types that can be said to have the property being true, and I examine
the applying conditions of that property in each case. In the second part, in order to explain
the nature of the mathematical truth, I try determining to what type of statements the
mathematical statements belongs.
Keywords: truth, statement types, mathematical statements

Parte 1: Tipos de enunciado e tipos de verdade

Comumente concebe-se a verdade de um enunciado ou (1) como algo que depende dos fatos
do mundo, ou (2) como algo que depende de convenções linguísticas. Por exemplo, a verdade
de “Russell era galês” depende do fato de Russel ser galês. Per contra, a verdade de “nenhum
solteiro é casado” depende unicamente das convenções lingüísticas que regulam o uso das
palavras “solteiro” e “casado”. Doravante, chamarei os enunciados do tipo (1) de “enunciados
descritivos” e os enunciados do tipo (2) de “enunciados normativos”. Um esclarecimento
sobre a verdade matemática dependerá do tipo a que pertencem os enunciados matemáticos.

Enunciados descritivos

Enunciados descritivos são como os enunciados “Russell era galês” e “Sócrates era cantor”.
Tais enunciados mencionam coisas que supostamente existem no mundo real e afirmam ou
negam que, no mundo real, essas coisas têm certas propriedades e/ou relações. Quando um
enunciado descritivo assevera algo que acontece no mundo real, o enunciado é verdadeiro,
caso contrário, o enunciado é falso.


Professor da Universidade Federal do Ceará (Campus Cariri). Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

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Deve-se entender “mundo real” como “mundo não fantasiado”. Isso certamente não é
uma definição de “mundo real”, mas é o suficiente para nos dar a intuição que precisamos
aqui.
Há enunciados descritivos de muitos tipos. Há os que descrevem o passado, os que
descrevem o presente, e até os que descrevem o futuro. Há também os que parecem fazer
descrições por atacado. Esses merecem uma atenção especial aqui.
Enunciados nomológicos são aqueles que descrevem leis. Pelo fato de muitas vezes se
apresentarem em forma de generalizações universais, tais enunciados podem dar a impressão
de que suas condições de verdade consistem na existência de séries de fatos com aspectos
recorrentes. Por exemplo, “todo homem é mortal”, que é um desses enunciados, parece
descrever a mortalidade dos elementos da série de todos os homens. Todavia, se pensamos
que o aspecto recorrente dessa série não ocorre por coincidência, devemos considerar que
nosso enunciado não descreve diretamente a série, mas, em primeiro lugar, uma certa lei que
determina a conjunção constante dos homens com a mortalidade. Se tal lei existe, o nosso
enunciado é verdadeiro, senão é falso. Quando os enunciados nomológicos enunciam leis da
física é mais fácil perceber que eles não são descrições de séries, mas de leis. Por exemplo, o
enunciado “todo espelho côncavo reflete uma imagem invertida” seria verdadeiro ainda que
todos os espelhos côncavos do universo fossem despedaçados, ou seja, seria verdadeira ainda
que a propriedade de ser um espelho côncavo não fosse instanciada.
Um caso especial de enunciados nomológicos é o das regras de inferência. Uma regra
de inferência é um enunciado que diz que se algo é dado, algo mais deve ser inferido. Em
geral, elas expressam as leis que regem um sistema formal. Tais leis têm em comum a
seguinte forma: “se tais e tais enunciados pertencem à teoria, então tais e tais outros
enunciados também pertencem”. Contudo, pode haver regras de inferência que são simples
instruções de como obter enunciados a partir de outros. Em tais casos, as regras não serão
enunciados descritivos.
Uma das principais funções da linguagem é a função descritiva. Os instrumentos
descritivos povoam toda a linguagem natural, por isso é comum encontrarmos filósofos que
reduzem a questão da verdade à questão da verdade dos enunciados descritivos, mas esse é
um grande erro. A noção de verdade muda totalmente se lidamos com enunciados normativos.

Enunciados normativos:

Enunciados normativos são enunciados que estabelecem como devemos fazer algo.
Eles podem estabelecer como devemos usar palavras e nesse caso correspondem aos

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enunciados que os escolásticos chamavam de “definições nominais” (e.g., “todo solteiro é não
casado”). Eles podem estabelecer como fazemos para conviver adequadamente em sociedade
e nesse caso correspondem aos preceitos da ética e do direito. Eles podem estabelecer as
diretivas segundo as quais algo deve ser construído ou executado e nesse caso correspondem a
regras de construção. Doravante, gostaria de examinar mais de perto esses diferentes tipos de
enunciados nominais, com exceção dos preceitos éticos e jurídicos.
Uma definição nominal estabelece uma convenção sobre o uso de expressões da
linguagem. Tais definições não são verdadeiras por razões externas à linguagem, mas por
serem dadas como um padrão de verdade. Nesse sentido, uma definição nominal cria uma
verdade. Por exemplo, quando dizemos que “triângulo é o polígono de três lados”, esse
enunciado não é verdadeiro por causa de certas figuras. Pelo contrário, é em razão do
enunciado criar uma verdade que figuras de três lados são chamadas de “triângulos”. O
enunciado cria uma nova forma de categorizar a realidade, cria algo que é ser um triângulo.
Uma definição nominal pode ser dada numa sentença, como no caso da definição de
triângulo acima, sendo chamada por isso de definição explícita, ou pode ser dada através de
um conjunto de sentenças, sendo chamada por isso de definição implícita ou sistêmica.
Assim, por exemplo, a geometria de Euclides pode ser considerada uma definição implícita
dos conceitos de ponto e reta, e o grande romance de Cervantes pode ser considerado uma
definição implícita de Dom Quixote e Sancho Pança.
Quando digo que uma definição nominal é um padrão de verdade quero dizer, em
primeiro lugar, que elas são dadas como verdadeiras e, em segundo lugar, que elas servem
como referência para aferirmos o valor veritativo de outros enunciados. Por exemplo, quando
Cervantes escreveu As aventuras do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, ele nos
deu a definição segundo a qual nós podemos julgar se uma afirmação sobre Dom Quixote é
verdadeira ou falsa. Por exemplo, se eu digo que Dom Quixote era apaixonado por Dulcinéia
Del Toboso, minha afirmação é verdadeira. Mas se eu afirmo que Dom Quixote nunca foi
derrotado pelo Cavaleiro da Branca Lua, isso é totalmente falso.
É claro que às vezes a narrativa de Cervantes não basta para decidir todas as questões
sobre Dom Quixote. Por exemplo, o enunciado “Dom Quixote teve catapora na infância” não
pode ser derivado do romance de Cervantes, nem a sua negação. Destarte, tal enunciado não
será nem verdadeiro nem falso.
Uma vez que a verdade de uma definição nominal é criada por convenção, tais
definições podem ser apropriadamente chamadas de verdadeiras a priori. A mesma
qualificação cabe a todos os enunciados que derivam unicamente de definições nominais.

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Por outro lado, não é adequado afirmar que definições nominais são verdades
analíticas. Um enunciado analítico é um enunciado cuja verdade depende unicamente do
significado dos seus termos. Com as definições nominais ocorre o contrário. A postulação da
definição cria o significa dos termos. É adequado, porém, dizer que os enunciados derivados
das definições nominais são analíticos, pois os significados estabelecidos por estas definições
são condição suficiente para garantir a verdade daqueles enunciados.
Um outro tipo de enunciado normativo que quero examinar aqui é o das regras de
construção. Uma regra de construção é uma definição nominal que é interpretada como uma
instrução para a realização de uma ação ou tarefa. Em geral, tais instruções terão a forma de
sentenças imperativas, como se vê nos livros de culinária ou nos manuais de instalação de
máquinas eletrônicas, mas também, freqüentemente, podem assumir o modo assertivo. Um
exemplo famoso de Austin é o enunciado “está muito quente aqui”, que, em certo contexto,
pode ser interpretado como um pedido para que alguém abra uma janela. De modo geral,
sempre que um enunciado da forma assertiva puder ser interpretado como uma instrução, ele
pode ser considerado uma regra de construção (pense em alguém que descreve um terceiro
para um retrato falado, ou nas bem-aventuranças do Sermão do Monte). Em particular, como
tentarei mostrar, certos axiomas matemáticos podem ser considerados regras de construção,
embora apareçam na forma assertiva.
Regras de construção têm a mesma característica veritativa das demais definições
nominais. Elas são verdadeiras por convenção, ou, melhor ainda, são doadoras de verdade.
Elas doam verdade para os enunciados que se derivam delas.

Conclusão da parte 1:

As considerações anteriores mostram que diferentes tipos de enunciados são verdadeiros por
diferentes razões. Insistir que a noção de verdade deve ser sempre a mesma, quer tratemos
com enunciados descritivos, quer tratemos com enunciados normativos, implica em incorrer
em um de dois erros comuns: 1. ou diremos que enunciados normativos são verdadeiros por
correspondência e daí logo teremos que fazer suposições absurdas, tais como a de que
números existem no mesmo sentido que cidades. 2. ou diremos que enunciados normativos
não são verdadeiros nem falsos, o que pode ser o caso para alguns tipos de enunciados
normativos, mas certamente não para as definições nominais e os enunciados derivados delas.

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Parte 2: Os enunciados matemáticos e a verdade matemática

Para entender qual a natureza da verdade matemática, é preciso investigar de que tipo são os
enunciados matemáticos. Para restringir um pouco essa investigação, vou limitar-me a
examinar o caso dos enunciados da aritmética, assumindo que exame semelhante poderá ser
feito para outras teorias matemáticas.
A aritmética foi criada para substituir os ábacos, ou seja, ela foi desenvolvida para
servir de instrumento de contagem. Mas como exatamente a aritmética nos ajuda a contar? No
início, contar significava estabelecer uma relação biunívoca entre as coisas de um conjunto e
as contas (beads) de um cordão, por exemplo. Depois se percebeu que a mesma coisa podia
ser feita usando-se símbolos no lugar de contas. Pode-se conceber que a aritmética preservou
essa conquista, que ela nos ajuda a contar fornecendo-nos bons símbolos de contagem e
dizendo-nos como devemos operar com eles. Essa é uma visão instrumentalista da aritmética.
Algumas pessoas acreditam que a aritmética trata não apenas de símbolos, mas de
entidades não físicas que povoam um tipo de realidade matemática. Essas entidades seriam os
números. A tarefa da aritmética seria a descrição desses números e de suas relações. Esse
entendimento é curioso, já que, em um certo sentido, ele despreza a genial idéia dos antigos
algebristas árabes de que os nossos instrumentos de contagem podem ser puramente sintáticos
e torna o nosso método de contagem mais próximo do método abacista, já que números
funcionariam como contas, ainda que sejam contas não físicas. Muitas vezes a questão da
verdade é usada para defender esse entendimento. A situação seria assim: no fundo, no fundo,
não precisamos de números para contar, só precisamos de símbolos (numerais), mas
precisamos de números para que os enunciados matemáticos tenham um conteúdo veritativo.
Colocando as coisas dessa forma, é possível cogitar que se pudéssemos garantir o
conteúdo veritativo dos enunciados matemáticos sem a postulação de números, poderíamos
nos aproximar de novo de uma concepção mais instrumentalista da aritmética. Ora, se os
enunciados matemáticos (ou pelo menos alguns) puderem ser interpretados como enunciados
normativos, nosso problema estará resolvido, pois tais enunciados não precisam descrever
nada para terem um conteúdo de verdade.
Gödel se opunha a uma interpretação não realista dos enunciados matemáticos, e um
argumento que ele usava se apoiava na idéia de que tais enunciados deveriam respeitar o
princípio do círculo vicioso. A primeira versão do princípio do círculo vicioso, tal como
Russell a formulou, diz o seguinte: “Nenhuma totalidade pode conter membros definíveis
somente em termos desta totalidade”. No modo de ver de Gödel, se os enunciados

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matemáticos não são descritivos, o que eles fazem exatamente é definir os membros de uma
totalidade com base na mesma totalidade. Por exemplo, quando o primeiro axioma da
aritmética de Peano afirma que existe um natural que é diferente do sucessor de x, para todo x
natural, ele está infringindo esse princípio porque está definindo o 0 com base numa
referência à totalidade dos naturais. A definição assim se torna uma petição de princípio.
No entanto, parece que há mais de uma forma de interpretação não realista dos
enunciados matemáticos. Por exemplo, pode-se argumentar que o primeiro axioma da
aritmética não é uma mera definição do 0, mas que ele é uma instrução componente do
procedimento que constrói os naturais. Esse procedimento sempre geraria uma série com
início, e a esse início, podemos, em um segundo momento, chamar de “zero”. Essa, de fato, é
a minha sugestão, gostaria de esclarecê-la.
Antes de tudo, gostaria de esclarecer que, sempre que me referir aos axiomas da
aritmética de Peano (PA), estarei me referindo aos seguintes enunciados:

1. ∃ x∀y(x≠ Sy)
2. ∀x∀y(x≠ y→Sx≠ Sy)
3. ϕ (0)∧∀x(ϕ (x)→ϕ (Sx)) → ∀xϕ (x)
4. ∀x(x+0=x)
5. ∀x∀y(x+Sy=S(x+y))
6. ∀x∀y(x.0=0)
7. ∀x∀y(x.Sy=x.y+x)

Se a aritmética nos ajuda a contar apenas nos dotando com símbolos e nos dizendo
como devemos operá-los, é preciso que haja um procedimento de geração desses símbolos.
Chamarei a um tal procedimento de Pnat. Para que Pnat cumpra o seu propósito, a saber, o de
produzir um instrumento de contagem eficiente, ele deve obedecer a certas diretivas. Na
minha opinião, os axiomas 1 e 2, junto com a presunção de que sucessor é uma função, fazem
o papel dessas diretivas. Nesse sentido, o que os primeiros axiomas da PA fazem é definir (ou
impor condições) a Pnat. De modo específico, teremos que Pnat é um procedimento de
construção de naturais se e somente se Pnat: (a) produz séries com início e (b) produz séries
lineares, ou seja, séries que não se bifurcam nem para a direita nem para a esquerda 1. Se
quisermos adotar uma interpretação instrumentalista da aritmética, deveremos interpretar 1

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Escrevo “séries” no plural porque assumo que, cada vez que alguém conta, uma série de naturais é utilizada
para fazer a contagem. Pnat não gera nada por si mesmo. Pnat é um instrumento que alguém utiliza para gerar uma
série de símbolos de contagem. Além disso, como os contadores são pessoas com uma existência finita, a série
completa dos naturais nunca é gerada.

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como uma condição para (a) e 2 como uma condição para (b) (a sentença
∀x∀y(Sx≠ Sy→x≠ y) também é uma condição para (b) e de fato é assumida por PA, embora
não seja relacionada como axioma).
Vistos por essa ótica, os axiomas 1 e 2 de PA são típicos exemplos de definições
nominais usadas como regras de construção. Eles determinam qual deve ser a estrutura básica
de uma série gerada por Pnat e, nesse sentido, eles podem ser considerados os axiomas básicos
da aritmética. Interpretados dessa forma, eles não transgridem a primeira versão do princípio
do círculo vicioso. De fato, eles não definem membros de uma totalidade, eles definem as
bases necessárias para construir a totalidade.
Uma série de Pnat é uma série que serve para contar, mas contaremos de forma mais
eficiente se acrescentarmos aos nossos axiomas básicos as definições de algumas operações
que incrementam o nosso poder de contar. Tais definições são as da soma e a da multiplicação
(e tantas mais quanto acharmos conveniente). Para gerar alguns enunciados muito úteis, será
conveniente também introduzir o nosso conhecido axioma da indução de primeira ordem, e
assim completamos a axiomatização de PA. Ora, já sabemos como interpretar os dois
primeiros axiomas, eles são definições construtivas. Mas quanto aos outros axiomas, como os
interpretaremos? Para responder a tal pergunta, é preciso sempre ter em mente que a
aritmética é um instrumento de contagem.
Os símbolos que chamamos de “naturais” nos auxiliam a contar da mesma forma que
as contas (beads) faziam no passado. Para contarmos um agrupamento de coisas, ligamos
biunivocamente cada coisa a um de nossos símbolos, começando com o símbolo “1” e daí por
diante. Quando acabamos de fazer as ligações, se terminamos no símbolo “p”, então dizemos
que há p coisas no agrupamento. Se separarmos esse agrupamento em dois novos
agrupamentos, poderemos contar também as coisas de cada um desses agrupamentos, e
diremos que no primeiro há, digamos, “m” coisas, e no segundo há, digamos, n coisas.
Acontece que parece haver uma importante lei sobre os agrupamentos de coisas que poderia
ser expressa assim: “há sempre uma bijeção entre as coisas separadas e as mesmas coisas
juntas”. Em razão de tal lei, sempre que juntamos um agrupamento de m coisas com um
agrupamento de n coisas, obtemos um agrupamento de p coisas. Essa lei é de suma
importância para nossa prática contábil e deve ser expressa na aritmética. De fato, é isso que
nossa definição da soma faz. Os axiomas 4 e 5 são, portanto, enunciados descritivos, mais
especificamente, enunciados nomológicos. O símbolo “+” denota a operação real de juntar
coisas. É preciso notar, porém, que tais enunciados não descrevem propriedades de números,

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e sim uma lei do mundo empírico. Pode-se dizer que existe uma realidade matemática, mas
ela não é feita de números, ela é feita de leis.
Por outro lado, a definição da multiplicação é apenas um incremento formal. Os
axiomas 6 e 7 são definições nominais do símbolo “.”. De fato, apesar de que a operação da
multiplicação se aplica à realidade, ela não parece estar fincada na realidade. A operação de
multiplicar depende essencialmente da operação de somar, ela não pode existir de forma
independente; pelo menos não no mundo de nossa experiência ordinária.
Só com esses axiomas, nosso instrumento já possuiria um grande poder de contagem,
mas é possível incrementar a dinâmica inferencial de nosso sistema. É preciso notar que nós
não determinamos o que Pnat é, determinamos apenas o que Pnat deve fazer. Pnat é um
procedimento recursivo e isso significa que Pnat obedece à lei própria dos procedimentos
recursivos. É essa lei que expressamos através do axioma da indução. Esse axioma é, logo,
um tipo de enunciado nomológico; especificamente, é um tipo de regra de inferência.
Em suma, nem todos os nossos axiomas são enunciados normativos. 1 e 2 são regras
de construção. 3, 4 e 5 são enunciados nomológicos e 6 e 7 são definições nominais puras.
Inúmeros desentendimentos sobre o modo adequado de interpretar os enunciados da
aritmética provêm da desconsideração das diferenças existentes entre os tipos de enunciados
em que se enquadram os axiomas de PA.
A questão da verdade é prejudicada na mesma medida. Ser verdadeiro para 1 e 2 não é
o mesmo que ser verdadeiro para 3, 4 e 5, e ser verdadeiro para 6 e 7 também não é o mesmo
que ser verdadeiro para o resto dos axiomas. Porém, com o que já sabemos sobre as condições
de verdade dos diversos tipos de enunciados, não será difícil determinar o que significa ser
verdadeiro para cada axioma de PA.
Os dois primeiros axiomas de PA são definições nominais usadas como regras de
construção, logo são verdadeiros por convenção. Eles servem para especificar como deve ser
o nosso procedimento de geração de naturais Pnat. Pode-se dizer que eles são verdadeiros
porque Pnat faz o que eles estabelecem que deve ser feito. Vale lembrar que esse é um sentido
não realista do predicado “verdadeiro”, por isso ele pode parecer estranho. Pode ser mais
intuitivo pensar assim: a afirmação de que 1 e 2 são enunciados verdadeiros equivale a
afirmação de que 1 e 2 são padrões de verdade. Também é importante notar que, embora
convencionais, essas diretivas não são arbitrárias, elas têm um propósito: prover-nos um
instrumento de contagem adequado, o que Pnat de fato é.
O axioma 3 é um enunciado nomológico que descreve uma lei vigente nas séries
indutivas, logo ele será verdadeiro se Pnat é um procedimento recursivo. Ora, para obedecer a

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1 e 2, Pnat tem de ser recursivo e, por conseguinte, 3 é verdadeiro. Poder-se-ia pensar que 3
também é uma diretiva para a construção de Pnat, sendo por isso uma definição construtiva.
Mas o fato é que Pnat pode ser construído com base em 1 e 2 apenas. Nesse sentido, 1 e 2 são
condições também para 3, embora não sejam suficientes para provar 3. O elemento que falta
para gerar 3 não é resultado de uma construção, é um elemento da realidade, é uma lei.
Os axiomas 4 e 5, como vimos, são enunciados nomológicos que, juntos, equivalem a
dizer que: “sempre há uma bijeção entre as coisas juntas e as mesmas coisas separadas”. Eles
são verdadeiros se essa lei se mantém na realidade ou, pelo menos, na realidade de nossa
experiência ordinária.
Os axiomas 6 e 7, como todo enunciado nominal, são verdadeiros por convenção. Eles
apenas regulam o uso do símbolo “.”.
Uma vez especificadas as condições de verdade dos axiomas de PA, resta tratar da
questão da verdade dos enunciados aritméticos em geral. Em outras palavras, é preciso
determinar quais as condições de verdade dos enunciados notados em linguagem aritmética.
Quais serão as condições de verdade de um enunciado aritmético que é teorema de PA? E, o
que pode ser ainda mais difícil de responder: quais as condições de verdade de um enunciado
aritmético que não é teorema de PA?
A primeira questão é simples. A prova de um teorema TeoX deve indicar quais as suas
condições de verdade. Por exemplo, se um axioma k é premissa de TeoX, então as condições
de verdade de k são também condições de verdade de TeoX, e isso não diz nada mais do que
diz o teorema da correção para a lógica de primeira ordem.
É claro que alguns teoremas de PA serão novas definições nominais, como uma
definição de número primo, por exemplo. Nesse caso, a verdade do teorema não dependerá da
verdade dos axiomas, nem tampouco a sua teoremicidade. Contudo, há uma dependência das
novas definições em relação às definições básicas, além da dependência simbólica óbvia.
Podemos ilustrá-la assim: se tomarmos a definição de primo como uma regra de construção
para um procedimento de decisão PRI que responde “sim” quando um natural é primo, então
PRI necessariamente deverá recorrer (chamar) a Pnat para ser formulado. E, de modo geral,
qualquer procedimento que implementar uma diretiva baseada em uma nova definição, deverá
recorrer a Pnat como sub-rotina.
Nesse ponto, quero abrir um parênteses para chamar a atenção para o fato de que,
nessa concepção da aritmética, enunciados aritméticos existenciais sempre podem ser
interpretados em termos de procedimentos capazes de produzir o que se diz que existe. Por
exemplo, o enunciado “existem pelo menos três primos”, pode ser interpretado assim: dado

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um procedimento PRI, se PRI é um procedimento de decisão para primos, então PRI retorna
“sim” mais de três vezes.
Agora vem a questão que se poderia considerar a mais difícil: quais as condições de
verdade dos enunciados aritméticos que não são teoremas de PA? Bem, na minha opinião, se
um enunciado p não é teorema de PA, ou é porque ¬p é teorema de PA, e nesse caso p será
falsa, ou porque p é uma definição nominal, como a definição de ser primo, por exemplo, e
nesse caso, p é verdadeira por convenção. Assim, por essa concepção, todo enunciado
aritmético seria ou verdadeiro ou falso, mesmo que não saibamos disso. A sentença G, por
exemplo, pode ser interpretada como uma definição nominal da propriedade de “ser o ponto
fixo da indemonstrabilidade”.
Essa interpretação da verdade aritmética implica numa interpretação não usual do
primeiro teorema da incompletude aplicado a PA. Embora seja correto que PA não prova nem
G nem ¬G, na hipótese de sua ω -consistência, ainda é possível dizer que PA é completa no
seguinte sentido: dado um enunciado aritmético p, se a verdade de p é determinada pelas
condições de verdade dos axiomas de PA, então p é teorema de PA. De fato, G não depende
das condições de verdade dos axiomas de PA para ser verdadeira, depende apenas de si
mesma.

Conclusão da segunda parte:

Acredito que em outras partes da matemática, a discussão sobre o conteúdo veritativo dos
enunciados deve se apoiar em considerações semelhantes a que teci nos parágrafos anteriores
sobre a aritmética. O que é imprescindível é fazer um exame do tipo de enunciados a que
pertencem os axiomas da teoria. Com isso, será possível explicar quais as condições de
verdade para cada tipo de enunciado.

Bibliografia:

BENACERRAF, Paul. “Mathematical truth”, in Philosophy of mathematics: selected


readings, Cambridge: Cambridge University Press, 1985.

CHATEAUBRIAND, Oswaldo. Logical forms. part 1: truth and description. Campinas, São
Paulo: UNICAMP, 2001 (Coleção CLE, v.34)

SHAPIRO, Stewart. Thinking about mathematics. Oxford: Oxford University Press, 2000.

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