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IHU Online - 23 junho 2020

O novo capitalismo da pós-pandemia


Sebastián Sztulwark*
Universidade Nacional General Sarmiento – UNGS
Argentina

A pandemia do coronavírus parece ter conquistado o que as mais aguerridas massas de


ativistas não puderam: deter, ainda que seja transitoriamente, a maquinaria capitalista.

Os antecedentes de uma crise desta magnitude remontam ao período da grande


depressão e das guerras mundiais (1914 e 1945). Momento de comoção da ordem
mundial em seu próprio centro. Como se sabe, isto é apenas uma aparência. A
maquinaria capitalista não se deteve naquele momento, nem agora. Apenas se
transforma.

Insiste-se em que a pandemia nos coloca em uma situação inteiramente nova. E que a
tarefa e decifrar a magnitude e natureza dessa mudança. A crise como ponto de inflexão.
A questão não deixa de ser um mal-entendido. Sobretudo, para nós que, há anos,
trabalhamos com a ideia de um corte maior na dinâmica histórica do capitalismo
mundial.

Nesta perspectiva, pode-se afirmar: o novo que advém em matéria de economia política,
com a crise do coronavírus, compreende-se mais cabalmente ao se inscrever no marco
de uma mudança de estrutura do capitalismo mundial que vem ocorrendo há pelo
menos quatro décadas.

Sendo assim, é possível compreender a crise atual como um momento em que certos
elementos de estrutura que existiam de um modo potencial começam a ser efetivamente
reais. A emergir como efeitos de uma nova dinâmica de estrutura.

Consumidor
A nova estrutura do capitalismo mundial responde a mudanças de natureza profunda
em suas coordenadas espaço-temporais.

Do ponto de vista histórico, assistimos a passagem de um regime de (re)produção de


mercadorias padronizadas, fabricadas com tecnologias mecânicas, a um regime de
inovação permanente a partir do desdobramento de novos meios de produção
eletrônico-informáticos.
O núcleo fundamental da concorrência capitalista mundial se orienta ao desenho de
novos produtos e à construção de um discurso que seja capaz de mobilizar o desejo do
consumidor. Um poderoso giro subjetivo sobrevém na dinâmica do capitalismo mundial.

A função empresarial adquire os traços de uma máquina linguística-comunicacional que


investe de sentidos o arsenal de mercadoria que colonizam um mundo de consumidores
crescentemente segmentado. A tarefa propriamente industrial de reprodução de bens
em grande escala, evidentemente, não desaparece e nem perde sua relevância enquanto
fonte de valor, mas se manifesta de um modo diferente que no passado: como trabalho
simples, intercambiável, sujeito às condições regressivas da precarização.

Produção e finanças
Do ponto de vista espacial, as mudanças também não são poucas. A transformação
histórica na dinâmica mundial de acumulação se expressa neste plano como uma
nova divisão internacional do trabalho, que tende a diferenciar entre um polo que conta
com um planejamento público e uma organização empresarial que permite comandar o
trabalho complexo e outro polo que, diante de sua impossibilidade de conferir para si
essas condições, consegue apenas comandar trabalho simples, isto é, um trabalho de
reprodução que se realiza sobre a base de conhecimentos já existentes, produzidos no
polo dominante da estrutura.

A novidade não está na diferenciação espacial em si (que é constitutiva do capitalismo


desde suas origens), mas na singular articulação entre seus diferentes componentes.
Mais que a forma-empresa (como padrão do novo espírito do capitalismo), o que emerge
é a forma-cadeia (segmentação e dispersão global da produção, mas centralização da
estrutura de comando sob a figura da empresa líder), enquanto dispositivo de governo
do capitalismo mundial.

Deste modo, o novo capitalismo se afirma como um sistema histórico de acumulação


que supõe uma reconfiguração radical da potência produtiva do trabalho e, ao mesmo
tempo, uma nova estrutura de comando global da produção e da apropriação de rendas.

O poder produtivo se desconcentra, mas o comando do processo produtivo e


a apropriação da renda se centralizam. É a forma cadeia. Neste marco, apresenta-se
uma nova relação entre produção e finanças.

Por um lado, estas intervêm facilitando a mobilização de capitais necessária para colocar
em marcha o processo de reestruturação global, diferenciando os investimentos em
escala de processos simples daqueles que promovem os processos produtivos de maior
complexidade.

Por outro lado, governam a dinâmica da renda, tanto na captura de parte do valor
produzido, como no desdobramento de circuitos de acumulação que operam por fora da
esfera produtiva.
Aceleração
Se a novidade que emerge com o coronavírus fica melhor compreendida no marco do
que há de novo no próprio capitalismo, talvez a figura que melhor permita abordar este
fenômeno seja a de uma aceleração de efeitos.

Do ponto de vista do consumo, a primeira coisa que aparece é um efeito de retração.


Com exceção dos lugares em que se vendem os produtos considerados essenciais, a cena
é a de uma desolação no resto dos canais tradicionais de comércio. A máquina, em parte,
efetivamente se detém. E começa a emergir uma inquietante pergunta: uma vez
superado certo nível mínimo, consumir menos não gera certa satisfação?

Uma possível resposta, ao menos em alguns segmentos de consumidores, poderia ser


uma maior distância crítica em relação aos objetos que o mercado oferece. Nesse marco,
a máquina capitalista de inovação permanente se veria impulsionada a produzir um
novo axioma: o desenvolvimento de uma maior complexidade linguística-
comunicacional que seja capaz de fechar a brecha aberta por esta mudança reflexiva e
sua demanda por uma nova ordem contextual para sua prática de consumo.

A máquina se alimenta de big data e utilizando as ferramentas da inteligência artificial,


acelera seu ajuste para uma melhor compreensão do consumidor e suas necessidades
mais íntimas.

Digital
Ao mesmo tempo, há efeitos que caminham em outra direção. O consumo de produtos
através de dispositivos digitais dispara exponencialmente. Nada totalmente novo. Mas
ocorre uma aceleração: consumo de conteúdos culturais via “streaming”, redes sociais e
meios de comunicação, sistemas de compra on-line, provedores de serviços financeiros
digitais, plataformas de consumo massivo, de distribuição e de transporte, e uma longa
lista.

A pandemia estimula massivamente a assumir de um modo abrupto uma pauta


de consumo digital sem a qual é cada vez mais difícil interagir socialmente, seja para
trabalhar, aprender ou simplesmente para fazer “algo produtivo” com o nosso tempo
livre.

A proliferação de conteúdos (o desenho e a comunicação no centro da experiência do


consumo) e a emergência de meios de produção e de comunicação digitais convergem
em um potencial que já estava presente há décadas, mas que agora, com o
distanciamento social e as restrições para a circulação das mercadorias e dos
consumidores pelo espaço físico da cidade, ganha um salto, uma aprendizagem social,
massiva, compulsiva e generalizada que coloca em jogo e torna realidade o crescimento
exponencial dos modelos de negócios baseados no consumo digital.

A máquina capitalista não para, muda. E os efeitos potenciais da nova estrutura se


tornam realidade.
Técnica
Do ponto de vista da esfera produtiva, é preciso analisar tanto a dinâmica que a inovação
nos novos meios de produção adquire neste tempo, como também a difusão desses
dispositivos ao resto do sistema produtivo.

No novo capitalismo, este processo de criação de novos meios produtivos está


intimamente vinculado à criação de técnicas (cada vez mais baseadas na ciência) e ao
desenvolvimento de desenhos dominantes, isto é, desenhos que conseguem se constituir
como dominantes aos olhos do consumidor através das técnicas (sempre melhoradas)
da comunicação empresarial.

Progresso da técnica e construção de um público são as peças-chave da engrenagem


produtiva desta época. Constituem a base para o desenvolvimento de mercadorias que
são úteis para produzir outras mercadorias. Mas, além disso, e como índice de novidade,
técnica acrescentada e desenho dominante se expressam em uma série de dispositivos
maquínicos de produção que não são artefatos, eletromecânicos, mas, ao
contrário, plataformas digitais, espaços para a interação social, que constituem a base
fundamental para organizar e desempenhar o trabalho produtivo nesta época.

Concorrência
A liderança econômica mundial se joga, principalmente, neste terreno. Os Estados
Unidos são o país que está na vanguarda. Mas a China ameaça. O restante, incluído a
Europa, vem ficando para trás, longe da disputa principal.

A pandemia, ao provocar um colapso dos meios tradicionais de interação social,


provoca um aumento de uma magnitude inusitada da demanda potencial desses
produtos. Por exemplo, no primeiro trimestre deste ano, a Netflix aumentou em 15,8
milhões a quantidade de assinaturas pagas. O dobro do que tinha previsto. E o valor de
suas ações no mercado, no mesmo período, aumentou 34%.

A guerra contra o inimigo invisível do coronavírus se torna a guerra visível pela


liderança mundial da inovação. A soberania nacional, que tradicionalmente estava
associada à fortaleza do complexo industrial-militar, agora também é disputada em
outros terrenos, como no da indústria cultural e no do complexo farmacêutico-sanitário.

A difusão destes novos meios de produção tem fortes repercussões


nos países periféricos. Por um lado, porque a generalização desta potência produtiva
emergente gera uma tendência à superprodução nas indústrias (ou etapas de indústrias)
de menor complexidade. Por outro, porque se produz um efeito de obsolescência das
inovações existentes.

Deste modo, as atividades produtivas relativamente maduras, mas rejuvenescidas a


partir da adoção de novos dispositivos digitais e do desenvolvimento de capacidades de
desenho e comunicação, se apresentam como o espaço de concorrência possível para
aqueles países e regiões que ficaram fora da briga pela liderança mundial. Ainda não é
muito fácil perceber como a pandemia afeta a dinâmica deste processo. Mas não se
deveria descartar um efeito inicial de desaceleração da adoção, seguido de uma
tendência sustentada à difusão acelerada.

Pirâmide
Do ponto de vista da política econômica, ao menos em sua dimensão estratégica, é
preciso distinguir entre o que ocorre na parte de cima da pirâmide e o que acontece na
base.

No ponto mais alto da concorrência capitalista mundial vem ocorrendo um sustentado


processo de monopolização das capacidades produtivas necessárias para promover a
inovação permanente nos meios de produção mais avançados desta etapa histórica. Seu
reverso é a centralização do comando produtivo mundial e da capacidade para apropriar
rendas. A financeirização lubrifica produtivamente o processo e, ao mesmo tempo, gere
o destino dessas rendas para terrenos protegidos.

A implicação fundamental, neste nível de análise, remete à necessidade de uma


regulação da acumulação econômica, em nível mundial, que opere em um duplo
sentido: por um lado, que potencialize o efeito “difusão” dos novos meios de produção,
diminuindo as barreiras de propriedade intelectual que bloqueiam a circulação pública
do conhecimento. Por outro, uma regulação financeira e fiscal que permita um amplo
processo de redistribuição econômica e social. Trata-se, como se vê, de uma instancia de
negociação global que como tal ainda não existe. Mas que a própria crise estimula a
imaginar e a construir.

Do ponto de vista dos países que ficaram fora do jogo da alta economia mundial, a tarefa
fundamental é o planejamento de um projeto produtivo que permita a adoção das forças
produtivas mais potentes de nossa época, para construir capacidades de inovação de
tipo secundária, isto é, complementares às inovações fundamentais.

Esta via é a que permitiria escapar da dinâmica regressiva que está associada à
produção de commodities primárias e industriais ou às fases mais elementares das
indústrias de alta tecnologia. O eixo desse projeto é constituído pelo desenvolvimento de
uma infraestrutura de formação e de pesquisa articulada com estruturas organizacionais
que permitam escapar do comando produtivo dos gigantes empresariais do mundo. E,
sobre esta base, ir construindo um projeto de crescente autonomia em relação aos
principais centros produtivos e financeiros mundiais.

A passagem de uma escala de planejamento nacional a outra de tipo regional parece ser
um requisito inescapável, ao menos para os países que não contam com um tamanho
continental.

Trabalho
Um segundo conjunto de implicações surge ao assumir uma perspectiva de crítica à
economia política. Neste sentido, é evidente que o desenvolvimento do novo
capitalismo não é em absoluto contraditório com as novas formas de exploração e de
precarização do trabalho, não só nas atividades periféricas da atividade produtiva, como
também nas centrais.

A forma cadeia expressa essa dualidade: o mais avançado da época (a inovação de ponta
mundial) se ajusta às formas brutais de redução de custos que implicam um retrocesso
em uma longa história de lutas pela conquista de direitos sociais. E, ao mesmo tempo, os
mecanismos financeiros e legais que se desdobram nesta época, permitem uma obscena
acumulação de riqueza em paraísos fiscais e outros espaços sombrios da economia
mundial, em um processo que tende a ampliar as desigualdades existentes.

A crítica não pode deixar de considerar a relação de cada um de nós com o dispositivo de
interação social que se impõe nesta época como núcleo central da força produtiva
emergente.

A contraface deste imenso aumento potencial da produtividade social é a irrupção dos


novos meios de produção eletrônico-digitais, não só na instância do processo de
trabalho, como também na esfera dos hábitos básicos de nossa vida cotidiana. É a
presença do mais alheio, mais exterior a nós mesmos (a pulsão capitalista de
acumulação sem limite) no âmbito de nossa própria intimidade. A fervorosa adesão a
este novo modelo de consumo e produção é o que é preciso ser capaz de pensar.
Sobretudo, quando os efeitos deste processo tendem a se acelerar.

* coordenador da área de pesquisa de Economia do Conhecimento, da Universidade


Nacional General Sarmiento - UNGS, e membro do Conselho Nacional de
Investigações Científicas e Técnicas - CONICET, Argentina, em artigo publicado
por Página/12, 21-06-2020.

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