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br/600211-o-novo-capitalismo-da-pos-pandemia
IHU Online - 23 junho 2020
Insiste-se em que a pandemia nos coloca em uma situação inteiramente nova. E que a
tarefa e decifrar a magnitude e natureza dessa mudança. A crise como ponto de inflexão.
A questão não deixa de ser um mal-entendido. Sobretudo, para nós que, há anos,
trabalhamos com a ideia de um corte maior na dinâmica histórica do capitalismo
mundial.
Nesta perspectiva, pode-se afirmar: o novo que advém em matéria de economia política,
com a crise do coronavírus, compreende-se mais cabalmente ao se inscrever no marco
de uma mudança de estrutura do capitalismo mundial que vem ocorrendo há pelo
menos quatro décadas.
Sendo assim, é possível compreender a crise atual como um momento em que certos
elementos de estrutura que existiam de um modo potencial começam a ser efetivamente
reais. A emergir como efeitos de uma nova dinâmica de estrutura.
Consumidor
A nova estrutura do capitalismo mundial responde a mudanças de natureza profunda
em suas coordenadas espaço-temporais.
Produção e finanças
Do ponto de vista espacial, as mudanças também não são poucas. A transformação
histórica na dinâmica mundial de acumulação se expressa neste plano como uma
nova divisão internacional do trabalho, que tende a diferenciar entre um polo que conta
com um planejamento público e uma organização empresarial que permite comandar o
trabalho complexo e outro polo que, diante de sua impossibilidade de conferir para si
essas condições, consegue apenas comandar trabalho simples, isto é, um trabalho de
reprodução que se realiza sobre a base de conhecimentos já existentes, produzidos no
polo dominante da estrutura.
Por um lado, estas intervêm facilitando a mobilização de capitais necessária para colocar
em marcha o processo de reestruturação global, diferenciando os investimentos em
escala de processos simples daqueles que promovem os processos produtivos de maior
complexidade.
Por outro lado, governam a dinâmica da renda, tanto na captura de parte do valor
produzido, como no desdobramento de circuitos de acumulação que operam por fora da
esfera produtiva.
Aceleração
Se a novidade que emerge com o coronavírus fica melhor compreendida no marco do
que há de novo no próprio capitalismo, talvez a figura que melhor permita abordar este
fenômeno seja a de uma aceleração de efeitos.
Digital
Ao mesmo tempo, há efeitos que caminham em outra direção. O consumo de produtos
através de dispositivos digitais dispara exponencialmente. Nada totalmente novo. Mas
ocorre uma aceleração: consumo de conteúdos culturais via “streaming”, redes sociais e
meios de comunicação, sistemas de compra on-line, provedores de serviços financeiros
digitais, plataformas de consumo massivo, de distribuição e de transporte, e uma longa
lista.
Concorrência
A liderança econômica mundial se joga, principalmente, neste terreno. Os Estados
Unidos são o país que está na vanguarda. Mas a China ameaça. O restante, incluído a
Europa, vem ficando para trás, longe da disputa principal.
Pirâmide
Do ponto de vista da política econômica, ao menos em sua dimensão estratégica, é
preciso distinguir entre o que ocorre na parte de cima da pirâmide e o que acontece na
base.
Do ponto de vista dos países que ficaram fora do jogo da alta economia mundial, a tarefa
fundamental é o planejamento de um projeto produtivo que permita a adoção das forças
produtivas mais potentes de nossa época, para construir capacidades de inovação de
tipo secundária, isto é, complementares às inovações fundamentais.
Esta via é a que permitiria escapar da dinâmica regressiva que está associada à
produção de commodities primárias e industriais ou às fases mais elementares das
indústrias de alta tecnologia. O eixo desse projeto é constituído pelo desenvolvimento de
uma infraestrutura de formação e de pesquisa articulada com estruturas organizacionais
que permitam escapar do comando produtivo dos gigantes empresariais do mundo. E,
sobre esta base, ir construindo um projeto de crescente autonomia em relação aos
principais centros produtivos e financeiros mundiais.
A passagem de uma escala de planejamento nacional a outra de tipo regional parece ser
um requisito inescapável, ao menos para os países que não contam com um tamanho
continental.
Trabalho
Um segundo conjunto de implicações surge ao assumir uma perspectiva de crítica à
economia política. Neste sentido, é evidente que o desenvolvimento do novo
capitalismo não é em absoluto contraditório com as novas formas de exploração e de
precarização do trabalho, não só nas atividades periféricas da atividade produtiva, como
também nas centrais.
A forma cadeia expressa essa dualidade: o mais avançado da época (a inovação de ponta
mundial) se ajusta às formas brutais de redução de custos que implicam um retrocesso
em uma longa história de lutas pela conquista de direitos sociais. E, ao mesmo tempo, os
mecanismos financeiros e legais que se desdobram nesta época, permitem uma obscena
acumulação de riqueza em paraísos fiscais e outros espaços sombrios da economia
mundial, em um processo que tende a ampliar as desigualdades existentes.
A crítica não pode deixar de considerar a relação de cada um de nós com o dispositivo de
interação social que se impõe nesta época como núcleo central da força produtiva
emergente.