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Processo: 24/20.1GDCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PENA ACESSÓRIA
EXTORSÃO
CONCURSO EFECTIVO
Data do Acordão: 13-01-2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 50.º, N.ºS 1, 2, 3, 51.º, 52.º, 152.º, N.ºS 4 E 5; 30.º, N.ºS 2 E 3, DO CP; ART. 34.º-B DA
LEI N.º 112/2009
Sumário: I – Nos termos da lei, é possível aplicar ao condenado por violência
doméstica uma pena de prisão com execução suspensa, suspensão
esta obrigatoriamente condicionada a regras de conduta de
protecção da vítima, e uma pena acessória de proibição de
contactos com a vítima.
RELATÓRIO
1.
O arguido DC foi condenado pela prática, em autoria material,
concurso efectivo e na forma consumada de:
- dois crimes de violência doméstica, nas pessoas de MF e de MG, do
art. 152º, nº 1, al. d), e nº 2, al. a), do Código Penal, nas penas de dois
anos e nove meses de prisão por cada um;
- dois crimes de extorsão, na forma continuada, dos art. 30º, nº 2, e
223º, nº 1, do Código Penal, nas penas de um ano e seis meses de
prisão por cada um.
Feito o cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena única
de cinco anos de prisão.
A execução desta pena foi suspensa por igual período de tempo,
mediante regime de prova e proibição de contacto com os pais, com
fiscalização pelos serviços de reinserçãosocial, e com a obrigação de se
submeter a um programa de tratamento eacompanhamento psiquiátrico.
O arguido foi, também, condenado nas penas acessórias de proibição de
contacto com os pais e de proibição de uso e porte de armas, por cinco
anos, e obrigação de frequentar programas específicos de prevenção da
violência doméstica, nos termos do art. 152º, nº 4 e 5, do Código Penal.
2.
O arguido recorreu, concluindo do seguinte modo:
- a proibição de contactos com os pais, determinada no acórdão
condenatório, não pode ser simultaneamente pena acessória e condição
de suspensão;
- enquanto pena acessória a proibição de contactos tem autonomia
própria e não pode ser fundamento para a revogação da suspensão;
- a questão da violência está duplamente valorada e punida, porque foi
valorada para a condenação a título de extorsão e também por violência
doméstica;
- o que consubstancia tal violência e ameaças são factos iguais para
ambos os crimes, havendo pontos de contacto e relação umbilical;
- nada mais houve do que um prolongar a ilicitude, que foi contínua e
não autonomizável, não devendo a tónica ser colocada no
preenchimento isolado dos diversos tipos legais de crime, sob pena de
violação dos princípios ne bis in idem e da culpa;
- as diversas acções imputadas radicam numa matriz comum do
contexto de violência doméstica, ilícito que consume todos os demais,
verificando-se concurso aparente;
- a decisão padece de erro e vício de contradição insanável entre a
fundamentação e decisão, pois tendo o tribunal a quo determinado que
se tratava de crime continuado e que não se tratava de crime contra
bens eminentemente pessoais, condenou o arguido por dois crimes
continuados de extorsão;
- (…);
- o acórdão violou os art. 30º, nº 2, (…) do Código Penal, (…) e os
princípios da culpa, da legalidade, tipicidade, igualdade,
proporcionalidade e da proibição do excesso, ne bis in idem, proibição
da dupla valoração, bem como das finalidades das penas e exigências
de prevenção.
3.
(…)
4.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência cumpre decidir.
FACTOS PROVADOS
5.
O acórdão recorrido julgou provados os seguintes factos:
«1- O arguido DC nasceu a 9 de Abril de 1995, estando registado como
filho de MF e MG.
2- MF nasceu a 18 de Dezembro de 1952 e MG nasceu a 9 de Abril de
1956.
3- MF e MG residem na (…).
4- MF empresário na área de Serralharia Civil, encontra-se reformado e
MG era assistente operacional no Centro Hospitalar (...) e está
aposentada há cinco anos.
5- MG tem dificuldades de saúde, nomeadamente, problemas
psicológicos relacionados com ansiedade, que se agravaram com a
conduta do arguido DC ao longo dos últimos anos, um problema nas
cordas vocais que lhe provocou dificuldades em falar, tendo
necessidade de fazer terapia da fala, e duas hérnias que lhe provocaram
dores nas costas e dificuldades em andar normalmente.
6- MF igualmente apresenta problemas de saúde, nomeadamente,
diabetes para o que toma medicação, problemas cardíacos, e de
locomoção devido ás dores que tem nos ossos, e encontrava-se
debilitado física e psicologicamente.
7- O arguido sofre de problemas psicológicos, tendo crises de
ansiedade, foi seguido no Centro Hospitalar e Universitário de
Coimbra, onde já esteve internado no serviço de psiquiatria, por várias
vezes.
8- Quando não tomava a medicação o arguido tornava-se instável
emocionalmente e agressivo em relação aos seus pais, para o que
contribuiu, também, o consumo de haxixe e marijuana.
9- Aos 18 anos de idade, o arguido ingressou no Serviço Militar como
voluntário, onde cumpriu 3 anos, após o que rescindiu o contrato.
10- Após sair do Exército, o arguido voltou a morar em casa dos pais.
11- O arguido teve diversos empregos mas não se fixou em nenhum,
razão porque tem dependido economicamente dos seus pais.
12- Durante os últimos quatro anos, desde data indeterminada de 2016,
em numero que não foi possível contabilizar, o arguido vem exigindo
dinheiro aos pais.
13- O arguido exigiu dinheiro aos pais, invocando que precisava de
comprar tabaco ou outras despesas, ao mesmo tempo que lhes dizia que
iria pôr fogo à casa onde viviam ou partir o carro deles, se não lhe
dessem dinheiro, que não tinha medo deles, que um dia os mataria, e
que não tinha medo de ir preso.
14- Assim, tanto a mãe, como o pai, lhe entregavam as quantias em
dinheiro que o arguido pretendia por terem medo que o mesmo
concretizasse tais afirmações.
15- No dia 3 de Julho de 2019, no envolvimento de uma discussão, o
arguido, munido de um tubo de ferro, desferiu com o mesmo uma
pancada num dos braços e mão de MF.
16- Na mesma data, disse aos pais que iria partir a viatura automóvel de
marca Kia, dos mesmos, porque estes recusaram entregar-lhe os 10
euros que o arguido lhes exigiu.
17- Nesse dia, o arguido foi levado ao Serviço de Urgência do CHUC
onde foi examinado e registado o consumo de canabis e referidos
“traços desadaptativos de personalidade com baixa tolerância à
frustração e impulsividade”.
18- Em dia não concretamente determinado de Agosto de 2019, na casa
onde todos moravam, o arguido disse aos pais que poria fogo à
habitação dos mesmos, e que partiria tudo o que tinha á frente, sendo
que, munido de um martelo, fez menção de partir o pára-brisas do
veiculo destes.
19- Na mesma altura, o arguido apelidou o pai de “cobarde” e disse à
mãe para “meter na cona” umas bolachas que a mesma lhe tinha dado.
20- Entre 09 e 19 de Agosto de 2019, o arguido DC esteve internado no
Centro de Responsabilidade Integrado de Psiquiatria do CHUC devido
a “alterações de comportamento com elevada impulsividade e
agressividade heterodirigida”, apresentando “consumo regular de
canabinoides e esporádico de outras substâncias psicoactivas,
nomeadamente anfetaminas”.
21- Desse internamento, o arguido teve alta com diagnóstico de
“perturbação depersonalidade”.
22- Em Setembro de 2019, o arguido deixou de residir em casa dos
pais.
23- Em meados de Janeiro de 2020, o arguido voltou para casa dos
pais, retomando o mesmo tipo de comportamentos.
24- Desde então, o arguido, por diversas vezes, no interior da casa onde
todos moravam, disse aos pais as seguintes palavras “eu mato-vos e
pego fogo a esta merda toda”, e desferiu empurrões nos mesmos.
25- Por volta do dia 20 de Janeiro de 2020, no interior da residência, o
arguido desligou o aquecedor que a mãe estava a utilizar, na sala, e
começou a “dizer palavrões” para uma pessoa com quem esta falava ao
telefone.
26- A mãe pediu-lhe para sair daquela divisão ao que o arguido lhe
retorquiu “o quê que tu queres caralho?”, frase que repetiu muitas
vezes.
27- Acto contínuo, o arguido caminhou para a mãe e abanou a mesa da
cozinha na direcção desta, fazendo menção de a agredir.
28- O arguido ainda tentou tirar o telefone à mãe, sem sucesso, quando
esta tentava ligar ao pai MF a pedir ajuda.
29- No dia 28 de Janeiro de 2020, no interior da residência, o arguido
disse a MF "és um cobarde", “não tenho medo de nada não tenho medo
de vocês", "és um velho, um porco porque me foste denunciar á GNR".
30- Depois, o arguido dirigindo-se ao pai e à mãe e disse-lhe que "os
mataria", que "não tinha medo de pegar numa faca ou numa arma",
"partia os carros, destruía tudo e punha fogo á casa", palavras que
repetiu várias vezes.
31- Por isso, MF chamou a GNR, tendo comparecido a GNR de
Cantanhede.
32- De seguida, após a intervenção da GNR, os pais convidaram o
arguido para almoçar, no sentido de o acalmar.
33- Quando ia para se sentar à mesa, o arguido disse aos pais que
"cuspia na comida e virava a mesa para cima deles", tendo o pai
questionado o denunciado "diz-me o que é que queres, para te ajudar,
para não viveres na rua".
34- O arguido respondeu que queria 600 euros, para comprar um
telemóvel e ir para França e que já não dormiria naquela casa naquele
dia.
35- Então, o arguido saiu e levou algumas coisas suas, depois do pai
lhe ter entregue 200 euros em dinheiro e um telemóvel da mãe, no valor
de 349 euros.
36- No dia 1 de Fevereiro de 2020, cerca das 22:00 horas, o arguido
DC telefonou ao pai a pedir o resto do dinheiro.
37- No dia 2 de Fevereiro de 2020, cerca 10:00 horas MF pediu a um
vizinho, para entregar o restante dinheiro ao arguido, o que aconteceu.
38- No dia 17 de Maio de 2020, o arguido registou novo episódio de
urgência no CRIP do CHUC por “agravamento da sintomatologia
depressiva e ansiosa” após desentendimento com os pais e consumo de
cocaína, álcool e canabinóides.
39- Com os referidos comportamentos, o arguido quis infligir
sofrimento físico e psíquico aos pais, no interior da casa onde
moravam, ofendendo-os na sua honra e consideração.
40- O arguido não ignorava que lhes devia respeito e consideração, por
serem seus pais e bem assim pela idade e doenças de que sofrem, do
que tinha consciência.
41- O arguido quis desenvolver os descritos comportamentos,
nomeadamente ameaças e violência contra os pais, por forma a
atemorizá-los e deixá-los na impossibilidade de resistir ás exigências
que lhes fazia, obrigando-os desta forma a entregar-lhe quantias em
dinheiro.
42- O arguido bem sabia que actuava contrariando a vontade dos
mesmos e bem assim que as quantias que recebeu não lhe eram
devidas.
43- O arguido agiu o arguido num contexto de desemprego e de adição
a consumo de estupefacientes, aproveitando-se do facto de nem sempre
os pais lhe negarem a entrega dos montantes em dinheiro que pretendia.
(…).
DECISÃO
Atento o disposto no art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., as questões a
conhecer são as seguintes:
- legalidade da determinação de proibição de contactos como pena
acessória e como condição de suspensão, porque enquanto pena
acessória tem autonomia própria e não pode fundamentar a revogação
da suspensão;
- (…);
- relação de consumpção entre os crimes de violência doméstica e
extorsão;
- violação do art. 30º do Código Penal, derivada da condenação por
dois crimes de extorsão;
- (…).
(…).
DISPOSITIVO
Pelos fundamentos expostos, na procedência parcial do recurso, decide-
se:
I – condenar o arguido DC na pena de 1 ano de prisão por cada um dos
dois crimes de extorsão cometidos;
II – condenar o arguido na pena única de 4 anos e seis meses de prisão;
III – manter, em tudo o mais, o decidido no acórdão recorrido.
Sem custas.
Elaborado em computador, revisto e assinado electronicamente – art.
94º, nº 2, do C.P.P.
Coimbra, 13 de Janeiro de 2021
Olga Maurício (relatora)