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"Psicologia Das Raças" e Religiosidade No Brasil: Uma Intersecção Histórica
"Psicologia Das Raças" e Religiosidade No Brasil: Uma Intersecção Histórica
RESUMO
Não tardou para que afirmasse a sua situação de superioridade diante do diferente,
idéia que continuaria existindo nos séculos posteriores sob as mais diversas
formações discursivas. Neste período, serão comuns as tentativas de
“domesticação” do homem que, acreditava-se, estava em seu estado mais
rudimentar.
Até o final do século XVIII não havia o conceito de raça propriamente dito como o
entendemos hoje em seus parâmetros científicos, porém, a idéia de superioridade e
inferioridade humana, dimensões inerentes ao conceito, já eram uma constante.
É impossível estabelecer um marco inicial com clareza das teorias raciais. Eram
comuns as idéias sobre superioridade entre povos orientais e na Grécia antiga.
Segundo Mosca (1975 : 290) os gregos da antigüidade julgavam-se superiores aos
bárbaros e a todos os povos diferentes em relação à sua civilização.
Tão logo inicia-se no século XIX a noção da “igualdade intrínseca entre os homens”,
proclamada principalmente por Rousseau (Mosca, 1975) e Diderot (1974) no século
XVIII, começa a entrar em declínio, paralelamente às metas de colonização e
exploração dos novos territórios, sobretudo na América Latina e África. Se para os
iluministas a corrupção moral advinha do meio, para muitos filósofos do século XIX
a “imoralidade” só poderia ser uma mácula natural das civilizações inferiores .
O termo raça aparece pela primeira vez na obra de Georges Cuvier (Mosca, 1975) ,
nos primeiros anos do século XIX. Além de verificar as diferenças humanas, Cuvier
agrupava-as em categorias e classificava os grupos étnicos seguindo o modelo
epistemológico comum às ciências do período, como a botânica, geologia etc.
É difícil encontrar um filósofo do século XIX que não tenha examinado a questão
racial, mesmo que superficialmente. Fichte, por exemplo, no seu Discursos à Nação
Alemã, procurava restituir a auto-confiança do povo alemão derrotado por
Napoleão na batalha da Prússia, buscando justificar o fracasso de tal sorte que não
colocasse em risco a credibilidade na pureza racial do seu povo (Mosca, 1975).
Hegel, na sua Filosofia da História, publicada em 1837, conferia ao povo alemão a
nobre missão de guiar a humanidade para o desenvolvimento civilizatório ideal, tal
a superioridade do povo de sua nação.
Com relação ao Brasil, poderíamos chamar a atenção para a obra do conde Joseph-
Arthur Gobineau, também embaixador da França no país no final do século
passado. Seu escrito mais conhecido é o Ensaio Sobre a Desigualdade Das Raças
Humanas, clássico da literatura racista mundial, publicada em quatro volumes entre
1853 e 1855. Nessa obra, o autor procura demonstrar que todos os acontecimentos
vividos pela humanidade são produtos das lutas entre raças superiores e inferiores
e dos cruzamentos ocorridos entre elas (Raeders, 1996). Além disso, classificava os
grupos étnicos de acordo com as suas condições materiais e posição na pirâmide
social: o poder da nobreza seria uma conseqüência direta de suas raízes arianas; a
burguesia descenderia dos mestiços, mas ainda assim seria portadora de
qualidades das “raças fortes”; e finalmente o escravo, descendente dos grupos
semíticos e negros.
“Uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de meter
medo…” (Raeders, 1996; Skidmore, 1976 : 46. ).
Os povos que não seguissem esse padrão tenderiam a desaparecer por injunção
natural. Evidentemente, a miscigenação estava fora da ordem natural da evolução
e por isso poderia condenar as nações mestiças à “degradação” e “corrupção
moral”.
Com efeito, para identificarmos um próximo momento da interpretação das
relações raciais, surgem outros sistemas teóricos menos fatalistas, mas não menos
racistas, que procuravam oferecer uma solução para o problema da questão racial
humana. Seria possível reverter o processo degenerativo e conduzir a humanidade
para uma melhor configuração racial, argumentavam os darwinistas sociais. Entre
os filósofos mais conhecidos nessa direção estão Herbert Spencer e Francis Galton,
dois pensadores centrais no início da psicologia quantitativa.
Dessa forma, Galton justificava que deveria haver uma maior proteção e incentivos
materiais para reprodução dos melhores indivíduos, física e mentalmente (Schultz,
1996). Esses exemplares raciais deveriam legar suas boas qualidades aos
descendentes, garantindo a boa descendência. Essa estratégia ficou conhecida
como eugenia positiva.
Por outro lado, a ciência galtoniana tinha um forte apelo propagandístico, pois
pretendia também levar para a população o conhecimento científico necessário para
bem conduzir a sua própria evolução. Como escolher um bom parceiro para o
casamento, um bom exemplar racial, evitar o álcool, prevenir doenças infecciosas
etc. eram estratégias centrais no combate contra a má descendência e a
decadência racial. Galton não se cansava de tomar o seu próprio exemplo para
justificar a sua tese da herança das qualidades mentais, afinal, em sua família,
havia dois homens eminentes, seu primo Charles Darwin e ele próprio, procurando,
destarte, comprovar que entre as boas famílias a probabilidade do aparecimento de
grandes personalidades era maior.
A partir de 1870, as teorias raciais ganham força nas elites brasileiras, as quais
subitamente apresentaram-se como aliadas aos projetos desenvolvimentistas, no
planejamento da consolidação da identidade e primazia nacional. Aqui encontraram
um terreno fértil para as mais variadas especulações, inclusive no âmbito das
ciências psicológicas, visto a “grande e perigosa miscigenação racial” presente no
país.
Assim como nos outros países do mundo, no Brasil os saberes psicológicos vinham
ostentando uma posição central no ideal da consolidação da nacionalidade, visto os
seus objetivos pedagógicos e médicos, em suas respectivas ações disciplinares e
higienizadoras. Segundo Massimi (1990), as preocupações com as questões
psicológicas da população brasileira como princípio básico para condensação da
nacionalidade já estavam seladas no país antes mesmo do surgimento da psicologia
como disciplina autônoma, cientificamente orientada.
Nesse sentido, entre as diversas ações requisitadas aos saberes psicológicos, para
contribuir com a nacionalidade brasileira inclui-se fundamentalmente a higienização
mental. As práticas higienistas objetivavam avaliar a qualidade mental das
diferentes raças que compunham a nação, tomando como base os estudos
apresentados na Europa e E.U.A. com suas próprias populações.
O Brasil era visto tanto pelos médicos brasileiros quanto estrangeiros como um
enorme laboratório racial, para os mais pessimistas como um enorme hospital, tal o
caminho “degenerativo” que o país vinha trilhando. Esboçavam uma inquietação
específica com a situação do estado de São Paulo, importante centro agrícola que
recebia grandes contingentes de imigrantes em busca de trabalho, provenientes de
países europeus e asiáticos ou mesmo de outros estados brasileiros. Nesse período,
primeiros anos do século XX, começaram as preocupações médicas com a sanidade
corporal e mental desses novos habitantes - no caso dos europeus e asiáticos - e
com a população afro-descendente, há pouco tempo na condição formal de
“cidadãos”, com final do regime escravo em 1888.
Nesse mesmo trabalho os autores não atribuíam grande importância aos fatores
ambientais como gênese das psicopatologias, mas também não ofereceram
nenhuma outra explicação para o fenômeno, mesmo que hipotética. Um fenômeno
inerente à raça? Era a questão deixada à deriva.
Esse tipo de idéia parecia ser compartilhada por muitos outros médicos e
antropólogos. Vejamos outros exemplos:
Lucena (1940: 41-4) relata que em 1936, um jovem de 20 anos de nome João
Cícero, acreditando estar possuído pelo espírito do Padre Cícero, amealhou fiéis ao
redor de si e passou a organizar rezas e novenas. Incomodada com o fato, a polícia
convocara o jovem a depor. Alegando que o santo que o possuía não consentia o
seu comparecimento na delegacia, não deu as caras. Constantemente vigiados, um
dos crentes acabou preso por porte de arma. Temendo um ataque da polícia devido
à constante vigilância policial, os crédulos, já em número de 70 homens, armados
de facas, foices e paus, atacaram a casa do inspetor de polícia, Antônio de Melo,
que acabou morto a golpes de foice. Dirigiram-se posteriormente a Vila de Cupira,
onde o primeiro companheiro encontrava-se preso, para tentarem libertá-lo. Em
confronto com a polícia nessa localidade, quatro seguidores de João Cícero foram
mortos. (Lucena, 1940). Depois da contenda, o grupo se dispersou, o líder
desapareceu para sempre e alguns adeptos foram presos ou recolhidos ao
manicômio.
“Da mesma forma que a catechese foi uma ilusão também a repressão pura pela
sociedade falhará, devido a este choque de mentalidades”. (Ramos, 1940 : 295).
Assim como Raimundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos julgava que a mistura racial
brasileira já era fato consumado e certamente disso resultaria em algum prejuízo
cultural para o país. Restava saber o quanto representava esse prejuízo para se
traçar medidas eficientes de intervenção, para além das medidas catequéticas do
período anterior.
Segundo Prandi (1995), em 1940 a igreja católica declarou-se hostil aos cultos
afro-brasileiros, pois almejava a hegemonia religiosa no país. Contra a vontade da
igreja, a Umbanda e o Candomblé sempre funcionaram em sincretismo com o
catolicismo, incorporando alguns dos seus elementos rituais e materiais. De acordo
com Borges e Lima (1932 : 138-9):
“Assim, em geral, são todos esses ‘centros’ refugios de pobre gente ignorante que
procura neles alivio para seus males, nucleos onde pequenos psicopatas encontram
ambiente propicio para suas tendencias morbidas. De quando em vez explode um
delirio polimorfo, em geral com cambiantes de possessão, influencia; ás vezes
vagos tons persecutorios em fundo paranoide; outras de fundo mistico. Todos
curaveis pelas medidas habituais de isolamento, balneo-terapia morna, tonicos.
Muitos reincidem porque voltam á pratica. Medida definitiva seria a profilactica:
evitar a esses predispostos a cultura sistemica da imaginação, o exagero do
automatismo subliminal”. (Borges & Lima, 1932 : 145).
Impossível passar por esse assunto sem refletir sobre um caso representativo da
cultura brasileira, o episódio de Canudos. Na obra Os Sertões, de Euclides da
Cunha, há um capítulo dedicado à descrição comportamental e psiquiátrica de
Antônio Conselheiro, o principal responsável pelo levante.
Diz o autor que trata-se de um indivíduo que “pode ser incluído numa modalidade
qualquer de psicose progressiva” (Cunha 1979 : 102). De mentalidade atrasada,
estaria próximo dos tipos primitivos da espécie, pelo fato de tratar-se de um
mestiço.
Já nesta obra do século XIX, exprime-se a inquietude de nem sempre ser possível
detectar um doente mental livre, “contaminando” e impelindo as massas à revolta
patológica. Segundo o próprio Euclides da Cunha, não seria possível desvendar sua
doença mental com as técnicas psiquiátricas e antropológicas usuais naquele
momento, o que significava um enorme perigo para a ordem social.
Considerações Finais:
Após a abolição do regime escravocrata, não houve exatamente uma repressão aos
cultos afro-brasileiros. A aplicação de técnicas psicométricas no âmbito religioso
pretendia manter essas manifestações populares sob vigilância preventiva, para
que episódios de “loucura epidêmica de origem religiosa” não voltassem a ocorrer,
como em vários momentos da história do Brasil. Era uma tentativa de disciplinar os
cultos religiosos circunscrevendo-os na ordem evolutiva com a finalidade de torná-
los “mais civilizados” para o bem da soberania nacional e aprimoramento das
virtudes individuais, portanto, uma inquietação não apenas científica, mas também
política e ideológica.
Referências bibliográficas
Borges, J.C. & Lima, Denice C. (1932); Investigações Sobre as Religiões do Recife:
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