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Análise da obra “Água Viva” de Clarice Lispector, pelos instrumentos de Erich

Auerbach

Maria Luiza S. Fialho

Água viva, é um longo texto ficcional em forma de monólogo, que foi publicado
pela primeira vez em 1973, poucos anos antes da morte da autora, Clarice Lispector.
Neste livro, Clarice leva a extremos a insurreição formal e a desestruturação da forma
romancesca, criando um gênero híbrido, marcado pela fluidez, pela aparência inacabada
e inconclusa, produto da liberdade. Água Viva reflete bem o estilo clariceano de narrar:
o texto ficcional que constitui objeto de exame do presente ensaio mais parece uma série
de anotações. Não existe enredo em Água Viva, prevalecendo a repetição dos mesmos
temas e o desfile de imagens multifacetadas, similares ao jogo de variações existente na
música. A circularidade está presente desde a primeira até a última frase do livro: não há
começo, meio ou fim. Trata-se de um texto para ser muito mais vivido do que lido, no
qual a sensibilidade aflora constantemente, em um fluir de experiências vivenciadas de
forma intensa. Clarice rompe com o sistema, virando-o pelo avesso, revelando o
indizível, o “proibido”.
Como já citado, a autora promove a desconstrução e a desautomatização da
linguagem, ao decompor e desmontar o próprio sistema de escrita, para tentar se libertar
da náusea de viver, através da palavra expressa em neologismos, de construções
inovadoras, da busca pelo sentido perfeito e por um equilíbrio entre forma e conteúdo,
promovendo a exaltação do ser interior, do sujeito superfragmentado e da passagem da
crise psicológica à angústia metafísica. A narrativa é sobretudo pautada por movimentos
internos,
Clarice estabelece uma forte relação entre a pintura e a literatura: é como se ela
precisasse captar o presente ultrapassando os limites da linguagem. A personagem é
uma pintora que escreve a alguém e fala constantemente de pintura, fazendo com que a
respiração de um traço ou de uma pincelada estejam concretamente na obra, marcas
físicas de um trabalho. A música vibra também por trás de seu texto. Há um cansaço em
relação à palavra, essa palavra que nunca a satisfaz.
Sendo assim, neste livro Clarice Lispector também faz um relato narrativo de
sua vida como pintora, onde ela mesma se pergunta e responde sobre suas telas e as
críticas: “quando estranho uma pintura é aí que é pintura”. Há inúmeras passagens no
livro que exemplificam a forma de pintar, sofrida e dolorida, que metaforiza o próprio
escrever de Clarice, sempre buscando dizer o indizível, ou seja, como a pintura era vista
num primeiro olhar ou leitura.
Traz uma linguagem que não se perde no tempo; ao contrário, é ricamente
metafórica, em que coisas, ações e emoções do dia-a-dia se transformam em grandiosas
digressões indagadoras sobre o sentido da existência e da vida. Seguindo a linha de
características introspectivas de seus livros, Clarice cria, em Água viva, uma obra
singular, verdadeiro relato íntimo que projeta em flashes, como num caleidoscópio,
verdadeiros resumos de estados de espírito em tom de confidência, onde a subjetividade
sobrepuja o factual e a narradora é responsável pela cadência do texto.
Água Viva apresenta um discurso onde os vazios são produzidos pela interrupção
da coerência textual; esses espaços funcionam como instrumentos impulsionadores da
consciência imaginativa do leitor; no entanto, a autora utiliza um recurso técnico de
produção de texto que direciona a articulação entre o discurso linear e um outro discurso
que, mesmo embutido no texto principal, se manifesta em dissonância com as unidades
temáticas.
O tema da obra é o instante, seu tema de vida. Como num exercício profundo,
fala da tentativa de captar a quarta dimensão do “instante-já”, que de tão fugidio não o é
mais porque agora tornou-se um novo instante-já, que também não é mais. Cada coisa
tem um instante em que ela é. O que se fala, nunca é o que se fala, e sim outra coisa.
Gira em torno de nascimento, amor, liberdade, solidão, espelho, vida secreta, prece,
escuridão, morte.
Em Água Viva os temas nascem e se repetem num jogo de variações e fuga
análogo ao da música. Assim como a música nada mais é do que uma moldura para o
silêncio, uma maneira de tornar perceptível a ausência do som, o texto de Água Viva é
um longo adágio, um andamento lento e contínuo para além das fronteiras da palavra:
Que música belíssima ouço no profundo de mim. É feita de traços geométricos
se entrecruzando no ar. É música de câmara. Música de câmara é sem melodia. É
modo de expressar o silêncio.
Sob o aspecto da palavra como um meio de expressão do silêncio, Água
Viva talvez seja o texto mais perfeito de Clarice Lispector, pois ao mesmo tempo em
que constitui o auge do paradoxo que funda sua escrita (só através da palavra é que o
silêncio pode ser dito), também é o momento de resolução do paradoxo, através da
abdicação do desejo de relatar o mundo. O mundo, então, com tudo o que ele contém,
passa a ser, simplesmente, sem explicações:
É-se. Sou-me. Tu te és.
Conta o Gênesis que Deus plantou “um jardim ao leste do Éden”, um jardim
cheio de “todo tipo de árvores lindas de ver e que davam bons frutos para comer e, no
meio desse jardim, a árvore da vida”. “No Éden”, continua o texto dizendo, “nascia um
rio que regava o jardim e, dali se dividia em quatro braços formando rios. Naquele
jardim do Leste havia flores estranhas, dotadas de rara vitalidade: cravos agressivos,
com um perfume de algum modo mortal; eram de cor vermelha que berravam uma
violenta beleza, ou brancos que recordavam o pequeno caixão de criança defunta. Havia
também violetas introvertidas e profundas, que se escondiam para poder captar o
próprio segredo e à diferença dos cravos, não gritavam nunca seu perfume: Violeta diz
levezas que não se podem dizer. Naquele jardim podia-se ver também margaridas
alegres, de graça infantil, orquídeas antipáticas, jasmins de mãos dadas e crisântemos de
profunda alegria que falavam através de sua cor e de seu despenteado porque o
crisântemo é flor que descabeladamente controla a própria selvageria. E havia também
rosas cujo perfume é mistério doido, que quando profundamente aspirado toca no fundo
íntimo do coração e deixa o interior do corpo inteiro perfumado.
É assim que Clarice Lispector nos descreve, em seu romance Água Viva, aquela
extraordinária floração do primeiro jardim, quando as plantas respiravam livremente
seguindo seus próprios impulsos, quando havia cavalos soltos e, de noite, o cavalo
branco rei da natureza lançava para o alto ar seu longo relincho de glória, quando o tigre
lambia suas fauces após ter devorado sua presa. Havia pássaros, nos diz a autora,
naquele lugar e, como místicos, levitavam com essa leveza que dá o desprender-se do
chão para entregar-se a um ar carregado de perfumes. E também um tronco luxurioso do
qual esta mulher, que passeia por essas extraordinárias folhagens da origem, afirma que
está ligado à raiz que penetra em nós na terra.
O texto de Clarice convida a uma leitura como se esta fosse um ato de nadar ou
de deslizar sobre a água. Leitura na água porque o livro é um manancial de água viva
que brota como o pranto de um recém-nascido, com sua vitalidade e sua inocência; é
água correndo, voz escapando, abrindo sulcos no espaço do silêncio; é alento, fluído
sanguíneo circulando no incerto, no imenso organismo do Universo. O texto é uma
metáfora em si mesmo, uma metáfora que não é metáfora, mas água viva. A tentativa da
escritora não é traduzir para uma linguagem uma experiência, mas escrever com o
mesmo gesto, com o mesmo alento daquilo que quer expressar. Não há tradução, há
vida circulando em ondas, como a água e como a música, como a melodia que poderia
interpretar um quarteto de nervos.
A voz que nos fala em Água Viva, entoa uma melodia do tempo, inscrita no
silêncio ou numa dura parede de granito. Uma voz que bate ao compasso de um
coração. Uma voz que, igual que uma onda, se expande por um espaço silencioso, onde,
de tempos em tempos, consegue transformar-se em palavra, em partícula que não
tardará a dissolver-se novamente em um âmbito imenso e mudo.

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