Você está na página 1de 2

19/02/2019 Boechat e suas contribuições para o declínio civilizatório dos brasileiros — Rede Brasil Atual

Número 149,

LALO LEAL

Boechat e suas contribuições para o


declínio civilizatório dos brasileiros
Na forma dos histriônicos e populares apresentadores de programas policialescos,
jornalista comentava notícias sem se importar com a qualidade do debate político
no país

por Laurindo Lalo Leal Filho publicado 16/02/2019 16h24, última modi cação 17/02/2019 13h00

DIVULGAÇÃO BAND

Passados alguns dias da morte do jornalista Ricardo


Boechat e das manifestações que se seguiram, já dá
para falar do caso com mais distanciamento e
aprofundar algumas re exões. A surpresa do fato
dramático gera quase sempre uma unanimidade de
respostas emocionadas, enaltecendo as virtudes da
vítima, o que é compreensível nesse tipo de
acontecimento. A mídia padroniza a cobertura das
mortes de pessoas públicas com a indefectível sucessão
de depoimentos elogiosos de amigos, colegas,
admiradores e autoridades. Críticas esparsas, neste caso,
surgiram nas redes sociais.
Boechat: in uência no comportamento social e na forma como
Por aqui busco dois outros caminhos para tratar do os grupos e classes se organizam no Brasil
assunto: a importância do jornalista na sobrevida dos
meios de comunicações eletrônicos tradicionais, o rádio e a televisão, e a repercussão do conteúdo por ele
difundido no atual clima político-cultural vivido pelo país.
A morte do rádio já foi anunciada algumas vezes mas ele segue vivo. A televisão não o derrotou como
muitos previam. A tecnologia ajudou com o transistor que o tornou portátil e com a ampliação do uso da
frequência modulada (FM), favorecendo a qualidade da recepção. Mas foi no conteúdo que o rádio mostrou
sua resistência ao deixar as grandes orquestras e os programas de auditório para a TV passando a se

https://www.redebrasilatual.com.br/revistas/149/boechat-e-o-declinio-civilizatorio 1/2
19/02/2019 Boechat e suas contribuições para o declínio civilizatório dos brasileiros — Rede Brasil Atual

apoiar no tripé música, notícia e esporte. Com a internet, ao invés de sucumbir ao concorrente que surgia
com igual ou maior agilidade, a ela incorporou-se ampliando globalmente sua possibilidade de audiência.
Não pode fugir, é claro, da lógica capitalista e das mazelas que cercam a legislação da radiodifusão no
Brasil. A concentração dos meios fez com que, com raras exceções, as emissoras passassem a ser
controladas por interesses políticos, econômicos e religiosos, não excludentes. Com essa limitação
estrutural o rádio conservou a audiência de públicos tradicionais em regiões isoladas, de eis seguidores
matinais – um dos seus horários nobres – e a recepção em automóveis e caminhões pelo país.
Boechat entra aqui. Ocupou um espaço quase em extinção no rádio, o de dar e comentar notícias de forma
muito pessoal e aparentemente sem nenhuma restrição. Diferenciava-se tanto dos “especialistas” de
outras emissoras noticiosas, quase sempre enfadonhos, como dos direitistas extremados, e se aproximava,
na forma, dos histriônicos e populares apresentadores de programas policialescos. Lembrava um pouco o
apresentador Vicente Leporace (1912-1978) que, na mesma emissora e praticamente no mesmo horário,
lia e comentava as notícias dos jornais do dia no seu “O Trabuco”, entre 1962 e 1978. Foi a recuperação de
um formato de rádio bem sucedido no passado mas que desaparecera.
Na TV a situação é um pouco mais complexa. Por aqui não tivemos um telejornalismo marcado pela gura
do âncora, como na Europa e nos Estados Unidos. O modelo nativo foi o do apresentador, limitado à
leitura das notícias. A censura estatal da ditadura cívico-militar (1964-1985) e a patronal em todos os
tempos impediu a formação de jornalistas capazes de ler e interpretar o noticiário nos limites e na
linguagem da televisão. Os que se aventuraram a isso tornaram-se meros propagandistas das posições
políticas o ciais ou dos interesses empresariais dos patrões. Vindo da mídia impressa, Boechat
surpreendeu ao se adaptar à televisão e conseguiu se aproximar dos modelos de âncora menos
pan etários, tanto na forma como no conteúdo. Ainda assim imposições patronais limitavam, por exemplo,
o tratamento de notícias referentes aos movimentos sociais, especialmente aqueles relacionados ao
campo. O agronegócio e a pecuária são muito in uentes na empresa em que trabalhava.
Ai entra a questão dos conteúdos difundidos pelo jornalista nos dois veículos. Ela não se restringe a
problemas políticos ou empresariais, vai além. Entra na esfera do comportamento social e da forma como
os grupos e classes se organizam no Brasil neste momento histórico. A informalidade do discurso, tão
atraente para a audiência, acabava muitas vezes descambando para um desprezo perigoso de valores
civilizatórios duramente conquistados pela sociedade.  Ao invés de tentar elevar, ainda que sensivelmente,
a média geral de civilidade, Boechat fazia o contrário, jogava para baixo.
Mandar alguém, por mais ignóbil que seja, “chupar uma rola” em rede nacional, não contribui em nada
para melhorar a convivência entre os seres humanos. Ou mandar a ex-presidenta Dilma fazer uma “visita
íntima” ao ex-presidente Lula apenas favorece a desquali cação do debate político, já tão precário no
Brasil. São contribuições perniciosas para o uso cada vez mais disseminado de uma linguagem chula e
para o tiroteio verbal inconsistente, frequentes nas redes sociais mas não apenas nelas.
A mídia, ao criminalizar com denodo a política, fez com que essa atividade caísse, com poucas exceções,
nas mãos de aventureiros e criminosos. Boechat, infelizmente, deu sua contribuição para isso.

https://www.redebrasilatual.com.br/revistas/149/boechat-e-o-declinio-civilizatorio 2/2

Você também pode gostar