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Material de Estudo do Ilé Ifá Ajàgùnmàlè Olóòtọ́ Aiyé

Uma interpretação naturalística do conceito yorùbá do Orí

Adébọ́lá Babatúndé Ékanọ́lá1

Tradução de Mário Filho2

Resumo
Orí é um conceito central na concepção de personalidade humana em língua yorùbá.
Dizem que os yorùbás (Nigéria) acreditam que a personalidade de cada indivíduo é um Orí
predeterminado. O autor mostra que os relatos disponíveis de Orí constituem uma
explicação inadequada desse determinismo - o que é popularmente traduzido como destino
- no pensamento yorùbá. Em vez da predeterminação espiritualista da personalidade
implícita na ideia de destino, ele oferece uma interpretação naturalista dos conceitos
yorùbá de Orí. Para isso, ele analisa criticamente o mito yorùbá da criação da pessoa
humana, argumentando que esse relato não deve ser considerado literalmente, mas deve ser
entendido metaforicamente. Além disso, ele argumenta que um sentido plausível no qual
os indivíduos podem ser considerados livres, o que ainda é consistente com o conceito
yorùbá de Orí, é que cada pessoa tem o poder de introduzir uma nova energia ou fazer um
esforço de vontade de transcender fatores ambientais ou hereditários que possam restringir,
obrigar ou predispor a ele a fazer ou não certas coisas.

Abstract
Orí is a central concept in yorùbá-language conception of human personality. The yorùbá
(Nigeria) are said to believe that the personality of each individual is predetermined Orí.
The author shows that the available accounts of Orí constitute an inadequate explanation of
this determinism - what is popularly translated as destiny - in yorùbá thought. In place of
the spiritualistic predetermination of personality implied in the idea of destiny, he offers a
naturalistic interpretation of the yorùbá concepts of Orí. In order to do so, he critically
analyses the yorùbá myth of the creation of the human person, arguing that this account is
not meant to be taken literally but has to be understood metaphorically. Furthermore, he
argues that a plausible sense in which individuals may be said to be free, which is still
consistent with the yorùbá concept of Orí, is that each person has the power to introduce a
new energy or to make an effort of the will to transcend environmental or hereditary
factors that may want to constrain, compel or predispose him or her to do or not to do
certain things.

1
Prof. do Departamento de Filosofia da Universidade de Ìbàdàn, Nigéria.
2
Mário Alves da Silva Filho é Sacerdote afro-religioso. Dirigente do Templo Espiritual Caboclo Pantera
Negra e do Ilé Ifá Ajàgùnmàlè Olóòtọ́ Aiyé. Bacharel, Mestre e Doutor em Ciências Policiais de Segurança e
Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança; Especialista em Políticas Públicas de Gestão em
Segurança Pública, Especialista e Mestre em Ciência da Religião (PUC/SP), Especialista em História da
África e do Negro no Brasil pela UCAM/RJ. Professor do Programa de Pós Graduação (Mestrado e
Doutorado) do Centro de Altos Estudo em Segurança. Endereço eletrônico: ezezide@gmail.com

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Material de Estudo do Ilé Ifá Ajàgùnmàlè Olóòtọ́ Aiyé
Introdução
Orí é um conceito central na linguagem yorùbá no que tange à concepção da
personalidade humana3. Os yorùbá dizem acreditar que a personalidade de cada indivíduo
é predeterminada pelo Orí. Neste paper, pretendo mostrar que as definições existentes
sobre Orí constituem uma explanação inadequada de seu determinismo – que é
popularmente traduzido como destino – no pensamento yorùbá. Em lugar da
predeterminação espiritual da personalidade imbricada na idéia de destino, gostaria de
oferecer uma naturalista e humanista definição de Orí.

O mito da Criação
Uma das versões yorùbá para a criação do homem defende que o corpo humano
(ará) foi moldado por Òrìṣà-nlá (uma das deidades no sistema religioso tradicional yorùbá -
Òṣàlá) de barro. Após ter sido moldado é que o corpo sem vida é infundido com o ẹ̀mí
(vida ou sopro de vida) por Olódùmarè (Deus Supremo). O corpo (ará), nessa fase, é
vivificado e enviado a Àjàlá (deidade responsável pela confecção do Orí) para selecionar
um Orí4.
O ato de selecionar um Orí na casa de Àjàlá possui três aspectos importantes5:
- Supõe-se ser uma livre escolha. Todos seriam livres para escolher qualquer Orí
disponível na “fábrica” de Àjàlá;
- O Orí selecionado determina, final e irreversivelmente, o curso de vida e a
personalidade de seu possuidor;
- Cada indivíduo ignora o conteúdo ou qualidade do Orí escolhido, isto é, a pessoa
que faz a escolha não sabe se o destino que acompanha aquele Orí é bom ou mau.
Outros termos usados para simbolizar o Orí incluem:
- Àkúnlẹ̀yàn: aquele que é escolhido ajoelhando-se;
- Ìpín-Orí: aquele que é atribuído;
- Àyànmọ́: aquele que é escolhido ou afixado por si mesmo; e
- Àkúnlẹ̀gbà: que é recebido ajoelhado.
Além da definição citada anteriormente para a determinação do destino feito
através da escolha do Orí na casa de Àjàlá, existem outras versões da crença yorùbá para a
determinação do destino. Uma dessas versões afirma que foi Olódùmarè quem conferiu o
destino a cada um, o qual é duplamente selado, mais tarde, por Oníbodè (o guardião do

3
Wándé Abímbọ́lá, Ifa: An Exposition of Ifa Literary Corpus (Ibadan, Nigeria: Oxford University Press,
1976), 96-115
4
Olusegun Gbadegesin, "Destiny, Personality and Ultimate Reality of Human Existence: A yorùbá
Perspective," in Ultimate Reality and Meaning, vol. 7, no. 3 (1984): 173-188; E. B. Ìdòwú, Olódùmarè: God
in yorùbá Belief (London: Longman Ltd., 1962), 169-186.
5
Wándé Abímbọ́lá, Ifa, cited; Olufemi Morakinyo, "The yorùbá Àyànmọ́ Myth and Mental Health Care in
West Africa," in Journal of Culture and Ideas, vol. 1, no. 1 (1983): 87.

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portão entre o céu e a terra).6 No entanto todas as versões disponíveis concordam que o
destino é determinado pelo Orí, escolhido ou imposto sobre a pessoa, também concordam
que antes das pessoas chegarem no Aiyé (mundo), através do nascimento, estas são
totalmente ignorantes do tipo de destino que as espera.

Uma análise crítica do Mito


Nossa proposta é nos concentrarmos na versão do mito criacional que sustenta que
o Orí é selecionado na casa de Àjàlá. Nosso objetivo é ver quais implicações filosóficas
derivam a partir dele, já que outras versões do mito podem trazer diferentes implicações
filosóficas. Muitos dos estudiosos que escrevem sobre o conceito yorùbá da personalidade
humana parecem aceitar uma versão ou outra da definição mítica da criação dos seres
humanos como descrição do que acontece antes do nascimento de cada pessoa. Alguns
filósofos africanos sequer usam o mito criacional como uma premissa primária da qual
muitas conclusões sobre a natureza e o significado da vida humana derivam.
Essas definições míticas são sujeitas, geralmente, a duas críticas. A primeira é que
elas levam consequências incompatíveis, enquanto a segunda é que elas não podem ser
compreendidas literalmente, mas através de um entendimento alegórico. A seguir
apresentamos alguns problemas decorrentes da interpretação literal da versão do mito
criacional de Àjàlá:
- A maneira pela qual os yorùbá dizem perceber a relação entre o Orí em uma mão,
e o destino e a personalidade individual em outra, pode não ser consistentemente segura
para algumas pessoas. Por exemplo, uma pessoa deformada fisicamente teve seu destino e
personalidade determinada por seu corpo deformado e não por uma escolha pré-natal do
Orí. Na cultura yorùbá pessoas como os abúkè (corcunda), aro (aleijado), afin (albino) e
àràrá (anão) são todos chamados de eni-Òrìṣà (pessoa especial aos Òrìṣà). São-lhe negadas,
por força de suas deformidades físicas, todas as oportunidades que são geralmente abertas
às pessoas normais. Não lhes é permitido, por exemplo, a função de chefes de família,
chefes de aldeia, ou reis. Após a morte, não podem se tornar ancestrais porque não são
enterrados no lugar da tumba familiar, mas na floresta má7.
Ainda, em sociedades que não possuem regras estabelecidas pelas quais as
deformidades físicas são tratadas, aqueles que as possuem continuam a ter grandes
limitações por causa de suas enfermidades. Um aleijado, por exemplo, nunca poderá
aspirar a ser o velocista mais rápido, o melhor nadador ou melhor jogador de futebol.
Neste diapasão, nós podemos dizer que um anão não pode estar destinado, pelo seu corpo
deformado, a ser um velocista, um nadador, ou futebolista. Parece-nos inaceitável atribuir
pelo menos alguns dos aspectos do destino de um anão à escolha pré-natal do Orí, porque a
deformidade que o limita e molda seu destino é um aspecto de seu corpo o qual, indo pelo
mito da criação yorùbá, foi formado antes da criação do Orí.

6
E. B. Ìdòwú, Olódùmarè, 174
7
E. B. Ìdòwú, Olódùmarè, 174-175

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Apesar das alegações que os yorùbá creem que a escolha pré-natal determina,
finalmente, o destino e a personalidade do homem (usado genericamente) na terra, Ìdòwú,
Mákindé, e Gbádégesin argumentam que os yorùbá acreditam que há alternativas pelas
quais um Orí ruim pode ser mudado para melhor e um Orí bom pode ser mudado para pior.
Eles afirmam que os yorùbá tem uma opinião de que um mau Orí pode ser melhorado por
meio da consulta a Ọ̀rúnmìlà (uma deidade do pensamento tradicional yorùbá), ètùtù
(sacrifício) e trabalho duro. Reciprocamente, um Orí originalmente bom também pode ser
alterado para mau por ações de pessoas maldosas (tais como Àjẹ́), preguiça ou mau-
caráter8.
A alegação que o destino pode ser alterado parece incoerente com a ideia yorùbá de
predestinação, a qual se baseia na crença que a escolha pré-natal do Orí determina, final e
irreversivelmente, o destino de e a personalidade de cada ser humano. A opinião de que
esse destino é irreversível se reflete em muitos provérbios e ditos yorùbá. Por exemplo, os
yorùbá frequentemente dizem que aquilo que o Orí veio adquirir deve ser definitivamente
alcançado9. Outros provérbios yorùbá aludem à inalterável natureza do destino:
Àkúnlẹ̀yàn ni àdáyé bá, àkúnlẹ̀yàn pin, àdáyé tan ojú nro ni. Àyànmọ́ o
gbógun (Nós nos ajoelhamos e escolhemos uma parte, nós entramos no
mundo e não estamos contentes. Aquilo que é afixado não pode ser com
sabão)10
Além disso, indo pela definição de destino como “o que tem que acontecer não
pode ser mudado ou controlado”11, parece improvável que aquilo que é predestinado possa
ser alterado. Consequentemente, é contestável que uma crença consistente na predestinação
seja sinônima de fatalismo, que é o ponto de vista de que tudo o que acontece é inevitável e
não pode ser de outra forma.
Ironicamente, no entanto, muitas das definições existentes do sistema de crença
yorùbá sugerem que os yorùbá se amparam nessas crenças incompatíveis. Dizem acreditar
que uma seleção pré-natal do Orí determina a personalidade individual e o curso da
existência e, também, que o destino do homem pode ser afetado negativa ou
positivamente12. Enquanto alguns estudiosos tentam explicar como os yorùbá podem
aferrar-se consistentemente nessas crenças aparentemente contraditórias, outros têm
recorrido a uma interpretação fatalista da ideia yorùbá de destino. Em uma interpretação
fatalista, Abímbọ́lá, por exemplo, afirma categoricamente que nem mesmo os deuses
podem mudar o destino humano. Mákindé, apoiando a interpretação de Abímbọ́lá, afirma
que o melhor que os deuses poderiam fazer, em relação ao destino humano, seria,

8
Wándé Abímbọ́lá, Ifa.
9
M. Akin Mákindé, "An African Concept of Human Personality: The yorùbá Example," in Ultimate Reality
and Meaning, vol. 7, no. 3 (1984): 197-198; Olusegun Gbadegesin, Destiny, Personality and Ultimate
Reality; E. B. Ìdòwú, Olódùmarè.
10
E. B. Ìdòwú, 171
11
E. O. Odùwọlé, "The Concepts of Orí and Human Destiny," in Journal of Philosophy and Development,
vol. 1, nos. 1 and 2 (1996): 48.
12
A. S. Hornby, Oxford Advanced Learners Dictionary (Oxford: University Press, 1974).

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meramente, guiar sua realização13. Disso implica que os humanos não são agentes livres,
mas estão, simplesmente, agindo dentro de um roteiro previamente escrito. Dessa forma,
eles não podem ser moralmente responsáveis por seus atos.
Para evitar a implicação acima, Mákindé rejeita a interpretação fatalista e introduz
sua débil concepção de Orí, que o vê como uma mera potencialidade14. Ele afirma que o
Orí escolhido no céu é apenas uma potencialidade que precisa fazer algumas coisas antes
que seja atualizado. Por isso, necessita trabalhar duro, consultar Ọ̀rúnmìlà que lhe indicará
os sacrifícios necessários de forma que um Orí potencialmente bom seja trazido a sua
fruição ou um Orí potencialmente mau seja melhorado.
O problema com a concepção de Orí feita por Mákindé, como uma mera
potencialidade, parece ser incompatível com a idéia de predestinação, a qual ele busca
defender. Predestinação, como bem observado pelo mesmo Mákindé, “pressupõe que uma
posição ocupada na terra, bem como as atividades que levaram ou que possam levá-lo a
uma posição tal já foram pré-ordenadas no céu e a situação não poderia ser ou ter sido
outra”15. Isso sugere que todas as coisas identificadas como obrigatórias para realizar uma
boa potencialidade do Orí ou melhorar uma ruim são, realmente, como parte do
cumprimento de seu destino, quer as atividades do dia-a-dia ou aquelas que tenham sido
pré-ordenadas para um indivíduo específico; quando um indivíduo trabalha duro ou
consulta o oráculo de Ọ̀rúnmìlà, antes de ser bem-sucedido na vida, ele está meramente
seguindo o seu destino. Ele não teria trabalhado duramente ou se consultado com o oráculo
de Ọ̀rúnmìlà se isso já não lhe tivesse sido pré-ordenado. Dessa forma, as ações ou
omissões, as quais Mákindé classifica como atos de livre vontade em seu esforço em tornar
a crença yorùbá na predestinação coerente16, devendo ser, realmente, classificada como
parte daquilo que foi pré-determinado. Essas ações podem ser descritas como livres
somente se desistirmos completamente da noção de determinismo pré-natal. Dessa forma,
parece-nos que a noção de livre arbítrio e predestinação não podem, coerentemente, ser
usadas, em conjunto, num discurso sobre o conceito yorùbá de Orí.
Essencialmente, predestinação equivale a fatalismo, enquanto que uma
predestinação não realizada equivale à negação da predestinação. Ou nós afirmamos que
há predestinação, no sentido de que tudo aquilo que acontece a um indivíduo ou qualquer
passo que ele dá na vida são meramente manifestações de seu destino, ou nós afirmamos
que não há, em absoluto, predestinação. Portanto, como Mákindé possui uma débil
concepção de Orí, retrata os yorùbá como incoerentes com sua crença na predestinação,
acrescenta que eles não crêem realmente na predestinação, mas aparentam crer.
Adicionalmente, Mákindé não se apercebe que dizer que alguma coisa está
predestinada é completamente diferente de dizer que há um potencial para uma coisa ou

13
M. Akin Mákindé, "A Philosophical Analysis of the yorùbá Concept of Orí and Human Personality," in
International Studies of Philosophy, vol. XVII, no. 1 (1985): 57.
14
M. Akin Mákindé, An African Concept, 198
15
M. Akin Mákindé, An African Concept, 198
16
M. Akin Mákindé, A Philosophical Analysis, 58.

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outra. Por exemplo, uma pessoa pode ter um potencial para ser um bom advogado, um
político proeminente, ou um distinto acadêmico sem, contudo, tornar-se qualquer uma
dessas coisas. Mas, quando dizemos que uma pessoa é predestinada a se tornar alguém, nós
não estamos dizendo que ela tenha, meramente, um potencial. Ao contrário, estamos
dizendo que tornar-se alguém é inevitável e que não pode ser de outra maneira. Portanto, é
um erro definir predestinação como uma mera possessão de potenciais.
Outra dificuldade decorrente da explicação mítica da natureza e origem do homem
encontra-se na área do livre-arbítrio e da responsabilidade moral. O mito afirma que a
seleção pré-natal do Orí é uma livre escolha, em virtude de que uma pessoa pode ser
responsável moralmente por sua personalidade e pelo curso da sua vida. Mákindé, no
entanto, argumenta, convincentemente, que não há livre-arbítrio na seleção do Orí na casa
de Àjàlá17. Seu argumento é assim esboçado: primeiro, todas as escolhas são preferenciais;
segundo, os tipos de Orí, bom ou mau, são desconhecidos às pessoas que os selecionam;
terceiro, se um indivíduo sabe os tipos de Orí que existem, ele ou ela preferirá o bom ao
ruim, portanto, a seleção pré-natal alegada não é um livre-arbítrio; e, por último, nós,
certamente, não podemos esperar que ninguém seja moralmente responsabilizado pela
qualidade do Orí selecionado, ou pelas consequências que dela possam advir.
O argumento anterior de Mákindé parece estabelecer que a noção de livre-arbítrio e
responsabilidade moral não pode ser unida em qualquer discurso a respeito do conceito
yorùbá do Orí. Mas, desde que o yorùbá, em seus afazeres quotidianos, entenda a
responsabilidade moral e livre-arbítrio em conjunto com a crença na seleção pré-natal do
Orí, precisamos fazer novas tentativas para identificar o sentido em que essas noções e
crenças podem ser unidas.
Isso nos leva a uma tentativa diferente de conciliar as noções de livre arbítrio,
responsabilidade moral e determinação pré-natal do destino por Olúṣẹ́gun Ọladipọ.18 Ele
concorda com a visão de que o destino humano é determinado por uma seleção pré-natal
do Ìpín-Orí depois de ser "duplamente selado" tanto por Olódùmarè quanto por Oníbodè.19
Ele, no entanto, descreve o Orí, simbolizando o destino, como uma "aliança ou acordo com
Olódùmarè sobre o que uma pessoa pretende se tornar no mundo".20 Orí é visto como "uma
série de eventos acordados em uma aliança com Olódùmarè".21 Concebido dessa maneira,
Ọladipọ argumenta que é significativo e consistente para os yorùbá dizer que o destino de
uma pessoa pode ser mudado por qualquer uma das várias maneiras que identificamos
anteriormente.22 O que ele está dizendo, em essência, é que um acordo anterior entre uma
pessoa e Olódùmarè, que foi duplamente selado por Olódùmarè e Oníbodè, ainda pode ser
alterado sob certas condições.

17
M. Akin Mákindé, A Philosophical Analysis, 63-66
18
Olúṣẹ́gun Ọladipọ, "Predestination in yorùbá Thought: A Philosopher's Interpretation," Oríta, vol. XXIV,
no. 1-2 (June and Dec. 1992): 36-50
19
Olúṣẹ́gun Ọladipọ, Predestination, 37.
20
Olúṣẹ́gun Ọladipọ, Predestination, 41.
21
Olúṣẹ́gun Ọladipọ, Predestination, 41.
22
Olúṣẹ́gun Ọladipọ, Predestination, 2-43.

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Devo dizer que o esforço de Ọladipọ para conciliar a crença na predestinação é
bastante atraente. Parece ser muito compatível com as crenças yorùbá na liberdade dos
seres humanos e em serem moralmente responsáveis. No entanto, ele precisa esclarecer o
que se entende por "destino sendo duplamente selado". Se isso significa algum tipo de
aprovação ou ratificação, então eu concordaria que o destino pode ser alterado, assim como
qualquer parte de um acordo pode alterar posteriormente alguns aspectos do contrato ou
até anulá-lo completamente. Mas parece que o real significado do destino vai além de um
acordo ou convênio. Quando dizemos que algo é predestinado, não estamos apenas
dizendo que foi acordado ou que está incluso em uma aliança pré-natal. Em vez disso, a
principal alegação é que algo não pode ser evitado, não importa o que alguém tente fazer.
Acredito que é na tentativa de sustentar a inevitabilidade do que quer que tenha sido
predestinado que a ideia de destino sendo "duplamente selada" por Olódùmarè e Oníbodè é
introduzida. Esse selo, na minha opinião, não é apenas um tipo de aprovação ou
ratificação, mas um meio de garantir que o destino seja irrevogável, certo e sem
possibilidade de mudança.
Como corretamente apontado por E. O. Odùwọlé23, o fato de que o destino é
inalterável é ilustrado em “Os deuses não são os culpados” de Ọlá Rótìmí.24 Nesse livro,
vemos Ọdẹwálé eventualmente matando seu pai e se casando com sua mãe, como foi
predestinado, apesar de todos os esforços feitos para impedir a realização desses eventos.
De fato, Abímbọ́lá parece estar certo ao afirmar que é simplesmente porque as pessoas
acham bastante difícil aceitar um destino ruim que fazem sérias, mas infrutíferas, tentativas
de retificá-lo ou alterá-lo.25 Mesmo consultas com oráculos e a oferta de sacrifícios
relevantes não podem trazer nenhuma mudança no destino humano. O melhor que eles
podem alcançar, de acordo com Abímbọ́lá, é que "todo homem seria capaz de percorrer o
caminho já traçado para ele sem se preocupar com o mato"26. Da mesma forma, virtudes
como trabalho duro e bom caráter são incapazes de mudar um destino até então ruim. Na
melhor das hipóteses, eles parecem ser meros meios pelos quais os destinos são cumpridos.
Os yorùbá têm muitos provérbios que descrevem a natureza inalterável do destino. Alguns
destes foram mencionados anteriormente. Um provérbio yorùbá afirmando que um bom
destino nunca pode ser mudado ou pervertido por agentes do mal é ọmọ ar'aiyé kò le pa
kádàrá dá wọn kan le fa ọwọ́ àgó s’ẹ́yìn ni (agentes malévolos nunca podem alterar ou
perverter um bom destino, o pior que podem fazer é atrasar seu cumprimento).
A análise acima do relato de Ọladipọ sugere, ao contrário de sua própria conclusão,
que o destino é alterável. Uma implicação disso é que os yorùbá parecem ser irracionais,
porque, embora reconheçam que o destino é inalterável, eles ainda seguem em frente,
fazendo esforços para mudá-lo. Outra implicação é que a noção de livre arbítrio e crença

23
E. O. Odùwọlé, The Concepts of Orí, 48.
24
Ọlá Rótìmí, The Gods Are Not to Blame (Oxford: Oxford University Press, 1975).
25
Wándé Abímbọ́lá, Ifa, 63.
26
Wándé Abímbọ́lá, Ifa, 63.

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na responsabilidade moral dos humanos é injustificável e infundada dentro do contexto da
cultura yorùbá.
No entanto, antes de aceitarmos essa conclusão, vamos tentar transcender o mito
para ver se podemos chegar a uma explicação naturalista mais plausível da ideia yorùbá de
Orí e predestinação. Nosso pressuposto, nesse esforço, é que o relato mítico yorùbá da
criação humana não deve ser tomado literalmente, mas entendido metaforicamente.

Uma interpretação naturalista dos conceitos yorùbá de Orí


É cediço que os yorùbá creem que cada pessoa é composta de ará, emi e Orí (corpo,
espírito e cabeça espiritual). Outros elementos espirituais identificados em alguns relatos
do sistema tradicional de pensamento yorùbá são Ọwọ́ e ẹsẹ̀ (mão e perna espirituais).
Também é aceito que os yorùbá creem que os indivíduos exercem o livre arbítrio e são
moralmente responsáveis por muitas de suas ações.
Normalmente, os yorùbá reconhecem que um indivíduo é livre para fazer ou não
fazer certas coisas. Por exemplo, os yorùbá concordam que cada indivíduo é livre para
decidir se deve ou não roubar, dizer a verdade ou ser gentil com as pessoas. Mas eles
também reconhecem que, em alguns casos, os indivíduos podem não ser livres para fazer
ou não fazer algumas coisas. Por exemplo, os yorùbá concordariam que um cego não é
livre para ajudar alguém a ler uma carta, assim como um aleijado não é livre para salvar
uma criança que se afoga. E é assim porque eles são capazes de distinguir entre as áreas
nas quais as pessoas são livres e as áreas nas quais elas não são livres, sabendo que as
pessoas são consideradas moralmente responsáveis apenas pelas ações que são livres para
realizar ou não realizar.
No entanto, parece que ninguém é livre em sentido absoluto, mesmo nas áreas em
que a liberdade pode ser exercida. Isso ocorre porque vários fatores externos sobre os quais
as pessoas não têm muito controle e dos quais frequentemente não têm consciência, afetam
ou influenciam frequentemente o modo de suas ações e personagens. Estes podem ser
classificados em dois tipos: fatores de hereditariedade e fatores ambientais. Os fatores de
hereditariedade incluem todas as propensões inatas comuns a uma raça ou família, como
certas características físicas, doenças, hábitos e assim por diante. Os fatores ambientais
incluem inundações, terremotos, secas e várias mudanças climáticas. Os chamados fatores
socioambientais são os acontecimentos na sociedade que podem influenciar os indivíduos,
seja no nível de ações específicas, seja no nível de disposições e caracteres. A guerra, por
exemplo, geralmente predispõe as pessoas à violência de uma maneira que elas podem não
estar predispostas quando a sociedade está em paz. Da mesma forma, condições
econômicas adversas podem levar algumas pessoas a vícios como prostituição, roubo e
assalto à mão armada.
O fato de que atos humanos, características e disposições não são produtos de
escolhas absolutamente livres sugere que a prática de elogiar e culpar as pessoas é
realmente sem sentido e injustificável. Isso ocorre porque o sistema de moralidade

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pressupõe que as pessoas façam escolhas livres. Para salvar a moralidade, no contexto
yorùbá, da acusação de falta de sentido, precisamos identificar, com precisão, como as
pessoas podem ser consideradas genuinamente livres de uma maneira que seja consistente
com o conceito yorùbá de Orí. Uma opção é dizer que um indivíduo só é livre quando não
é obrigado a fazer ou é impedido de fazer certas coisas. Ou seja, quando ele está livre de
restrições externas. Moritz Schlick é um defensor dessa visão e afirma que "atos livres são
atos sem compelimentos".27 Portanto, ele vê todos os problemas de livre arbítrio e
responsabilidade moral como pseudoproblemas.
No entanto, um sentido mais plausível em que os indivíduos podem ser
considerados livres, consistente com o conceito yorùbá de Orí, é que cada pessoa tem o
poder de introduzir uma nova energia ou fazer um esforço de vontade para transcender
fatores ambientais ou hereditários que podem querer restringir, obrigar ou predispor essa
pessoa a fazer ou não certas coisas. Por exemplo, ainda encontramos algumas pessoas
abraçando e praticando os ideais do pacifismo em situações de guerra, apesar da tendência
geral à violência. Da mesma forma, apesar de a pobreza predispor as pessoas a vícios como
roubo e prostituição, ainda está aberta às pessoas pobres a opção de roubar ou tornarem-se
prostitutas.
Embora o termo vontade seja ambíguo e bastante problemático, para o nosso
objetivo atual, ela significa os poderes mentais manifestados ao escolher entre duas ou
mais alternativas. Um exemplo pode ser útil para esclarecer isso: suponhamos que Joseph,
um indivíduo, esteja ciente de duas coisas: primeiro, a forte convicção de que é sempre
moralmente correto dizer a verdade; segundo, é o desejo igualmente forte de continuar
vivendo na casa em que viveu a vida toda. Suponhamos, ainda, que esse segundo desejo
seja incompatível com sua profunda convicção de que ele sempre deve dizer a verdade,
porque a única maneira de continuar vivendo nesta casa é prestar juramento. C. A.
Campbell descreve uma situação como a "situação de tentação moral". 28 No exemplo
acima, mesmo que o desejo de José de morar na casa em questão seja mais forte do que o
desejo de dizer a verdade, resta a escolha de ele exercer ou não algum esforço de vontade
que lhe permita dizer a verdade. Se ele decidir contar a verdade, sua ação pode ser
corretamente descrita como livre, porque ele poderia ter mentido. Da mesma forma, sua
decisão de mentir seria livre, porque ele poderia ter dito a verdade.
Em essência, fatores ambientais e de hereditariedade podem determinar a natureza
da situação na qual as decisões são tomadas29, mas os indivíduos ainda podem exercer seu
livre arbítrio ao permitir ou não permitir que fatores de hereditariedade ou ambientais
ditem suas decisões e ações. No caso de Joseph, citado, o desejo de continuar morando na
casa e o desejo de dizer a verdade constituem pelo menos alguns aspectos da situação

27
Moritz Schlick, "Freedom and Responsibility," in P. R. Struhl and K. J. Struhl, Philosophy Now (New
York: Random House, 1972), 150.
28
C. A. Campbell, "In Defense of Free Will," in P. R. Struhl and K. J. Struhl, Philosophy Now, 140.
29
C. A. Campbell, "In Defense of Free Will," in P. R. Struhl and K. J. Struhl, Philosophy Now, 141-2.

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moral em que Joseph se encontra. Mas a decisão real de mentir ou dizer a verdade em
busca de um dos dois desejos incompatíveis é uma função de seu livre arbítrio.
Na minha opinião, é como um indivíduo exerce seu livre arbítrio, que se manifesta
em suas várias escolhas e ações livres, que determina sua personalidade, ou seja, o caráter
(Ìwà) de cada pessoa é formado em virtude de seus atos passados de livre escolha e é em
reconhecimento disso que os yorùbá elogiam e culpam as pessoas por seus bons e maus
caráteres. Por exemplo, um ladrão habitual pode ser responsabilizado por seus vícios de
roubar, porque faz parte de seu caráter, em razão de seus atos passados de roubador.
Portanto, os yorùbá têm a forte convicção de que Ọwọ́ ẹni la fí ń tún ìwà ẹni ṣe (usamos
nossas mãos ou fazemos esforços individuais para melhorar nossas características).
Dado o entendimento acima de como os indivíduos poderiam ser considerados
livres, apresentarei agora um entendimento naturalista alternativo dos conceitos yorùbá de
Orí e destino. Para começar, deixe-me abordar rapidamente a crença yorùbá na
determinação pré-natal do Orí e do destino. Sou da opinião de que os fatores hereditários e
ambientais, que influenciam as situações em que as pessoas se encontram, existem antes e
independentemente do nascimento dos indivíduos que afetam, contribuem para a visão
yorùbá de que determinados aspectos da vida humana são determinados no céu, antes do
nascimento. Mas parece não haver boas razões para apoiar a tese pré-natal yorùbá. Em vez
de sustentar que existe uma escolha pré-natal do Orí que determina o destino, a
personalidade e o curso da vida inteira, argumento que a ideia de um Orí escolhido não
passa de uma combinação de todos os vários atos de livre escolha feitos por um indivíduo
até qualquer momento específico em sua vida.
Três fatores-chave parecem ser vitais na determinação do curso de vida de uma
pessoa: fatores hereditários, fatores ambientais e caráter. A relação entre os dois primeiros
fatores e o terceiro é tal que, na formação do caráter, cada pessoa tem a opção de permitir
ou não que os fatores de hereditariedade e ambientais ditem a decisão e as ações
particulares que formarão o caráter.
Por caráter, entendemos a qualidade distintiva de uma pessoa ou os modos
peculiares pelos quais cada pessoa manifesta sua existência.30 É formado em virtude dos
vários atos anteriores, de escolhas feitas pelo indivíduo e é o que, em grande parte,
determina o destino das pessoas. Tomemos como exemplo um fumante habitual que
desenvolve câncer de pulmão como resultado do vício de fumar. Esse vício constitui parte
do caráter do fumante, em virtude do qual faz sentido argumentar que ele ou ela estará
predestinado a desenvolver câncer de pulmão. Portanto, pode-se dizer do fumante habitual
em questão que é seu Orí desenvolver câncer de pulmão. Passando por isso, a afirmação de
Moses Oke de que "o caráter de um homem é o seu destino" é bastante plausível.31
Pelas considerações feitas, o que os yorùbá descrevem como uma escolha do Orí é
realmente feita por indivíduos durante o curso da existência humana, por meio dos diversos
30
A. S. Hornby, Oxford Advanced Learners Dictionary, 139.
31
Moses Oke, "Awolowo Metaphysics," in O. Olasope et al., eds., Obafemi Awolowo: End of an Era (Ile-Ife:
Obafemi Awolowo University Press Ltd., 1988), 267.

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atos de escolhas, não por qualquer escolha pré-natal no céu. Isso implica que o conceito de
Orí é significativo apenas em um sentido retrospectivo. É apenas com o benefício da
retrospectiva que podemos plausivelmente dizer que um indivíduo está predestinado a ser
uma coisa ou outra, ou que um evento está predestinado a ocorrer. Antes de um evento
ocorrer, não acho que os yorùbá diriam que está predestinado a ocorrer, exceto se, por
alguns poderes especiais, eles tiverem algumas ideias para o futuro. Antes da ocorrência
dos eventos, o melhor que se pode dizer é que, dada a maneira como uma pessoa vive, se
comporta ou manifesta seu caráter, é provável que ela acabe dessa ou daquela maneira. É
somente quando tais previsões acontecem que os yorùbá diriam, com alguma medida de
autenticidade, que os eventos foram predestinados.
É interessante notar que várias religiões e culturas do mundo concordam com a
visão de que alguns indivíduos são capazes de prever com precisão eventos futuros. A
religião tradicional yorùbá não é diferente, pois seus praticantes geralmente consultam o
oráculo de Ifá para conhecer o futuro de seus filhos. Isso, na língua yorùbá, é descrito
como conhecer o ikọ́sẹ̀ w’aiyé ou o ẹsẹ̀nt’aiyé (colocar os pés no mundo) de uma criança.32
Tudo o que o oráculo faz é prever o tipo de vida que a criança terá, bem como os principais
eventos que ocorrerão em sua vida. Os esforços subsequentes para evitar a ocorrência de
alguns eventos desagradáveis revelados, pelo que sabemos, acabariam como esforços
infrutíferos e inúteis. Tais esforços podem ser comparados aos esforços para cuidar de um
indivíduo doente com uma doença incurável. Assim como os parentes não gostariam de
deixar um paciente incurável sem fazer nada para aliviar sua dor e talvez com expectativa
de que a doença desapareça milagrosamente, os yorùbá também fazem esforços infrutíferos
para alterar um destino predito.33
Voltando ao nosso discurso sobre a relação entre destino e caráter, minha posição é
que o caráter de uma pessoa, produto de atos passados de livre escolha, é que determina o
seu próprio destino na Terra. Existem várias sugestões dessa visão nos escritos de Ìdòwú.34
Segundo ele, Ọ̀rúnmìlà disse:
Ìwà nìkàn ló sọ̀ro o.
Ìwà nìkàn ló ṣòro.
Orí kan kìí 'burú l'ótu Ifẹ̀.
Ìwà nìkàn ló ṣòro

Caráter é tudo que é necessário


Caráter é tudo que é essencial
Não há nenhum mau Orí na cidade de Ifẹ̀
Caráter é tudo que é necessário

Em essência, a ideia que se está veiculando é que o bem-estar humano e o sucesso


na Terra dependem do caráter de uma pessoa. Da mesma forma, Ìdòwú afirma que "um
bom caráter é uma armadura suficiente contra qualquer acontecimento indesejável da

32
E. O. Ìdòwú, Olódùmarè, 181.
33
Wándé Abímbọ́lá, Ifa, 63.
34
E. O. Ìdòwú, Olódùmarè, 155.

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vida".35 Assim sendo, o reconhecimento do fato de que cada pessoa é livre para
desenvolver um bom ou mau caráter subjaz à prática dos yorùbá de culpar ou elogiar os
indivíduos pela qualidade ou tipo de caráter que possuem e também pelo modo como suas
vidas se desenrolam. Há um ditado yorùbá que diz Obìnrin sọ̀wànù pátá. ó lóun ò mórí
ọkọ wáyé rárá (uma mulher é desprovida de um bom caráter, porém ela reclama de não
estar predestinada a ter um bom marido).
Não obstante, a visão de que o destino é determinado pelo caráter parece ser
prejudicada pelo fato de que há ocasiões em que ocorrem acontecimentos significativos na
vida das pessoas, que não podem ser explicadas em termos do caráter dos indivíduos
envolvidos ou de suas escolhas feitas livremente no passado. Por exemplo, quando uma
pessoa que nunca fumou antes ou se envolveu com qualquer coisa que sabemos que pode
causar câncer de pulmão de repente desenvolve a doença, os yorùbá podem querer dizer
que é o destino dessa pessoa ter câncer, sem que possamos dizer que o câncer é um produto
de escolhas e hábitos do passado ou do caráter. Em tais situações, somos incapazes de
oferecer qualquer explicação plausível para a doença, exceto dizer que é o destino da
pessoa em questão ter essa experiência naquele momento. Esse é o tipo de explicação
oferecida quando eventos estranhos e, talvez, trágicos, que desafiam explicações racionais,
ocorrem.
Em tais circunstâncias, os yorùbá fazem uso de explicações em termos de destino
apenas porque não têm outras explicações racionais para o evento. Isso é semelhante à
forma como outras pessoas podem explicar eventos distantes em termos de noções como
"vontade de Deus", "acaso" ou "sorte". Ainda assim, é preciso notar que não é em todos os
casos em que os yorùbá precisam explicar os eventos que afetam as pessoas ou que eles
dão explicações em termos de predestinação. Em muitos casos, eles são capazes de dar
explicações naturais plausíveis sobre os motivos que certos eventos ocorrem ou por que
uma pessoa teve sucesso ou fracasso na vida.
Por exemplo, os yorùbá geralmente incentivam os jovens a serem diligentes e
honestos, a fim de obter sucesso em suas vidas. Assim, não é incomum os yorùbá
atribuírem o sucesso de uma pessoa a fatores como trabalho duro, resiliência e paciência,
sem qualquer referência ao destino. Da mesma forma, o fracasso é frequentemente
explicado em termos de fatores como preguiça, precipitação, tolice e impaciência. Somente
quando os yorùbá são incapazes de identificar razões empíricas por trás do sucesso ou
fracasso de um indivíduo que recorrem a explicações em termos de destino.
Por exemplo, é só quando um indivíduo, depois de fazer tudo o que é necessário
para prosperar em um empreendimento, fracassa é que os yorùbá podem dizer que ele está
predestinado a falhar no empreendimento. Mas, neste contexto, a maneira como a noção de
destino é empregada é bastante semelhante à maneira como algumas pessoas podem
simplesmente dizer que a pessoa é apenas azarada, porque elas não podem oferecer
nenhuma explicação plausível para a má sorte.

35
E. O. Ìdòwú, Olódùmarè, 155.

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De fato, o termo yorùbá para sorte é o mesmo que o termo usado para designar
destino. Quando os yorùbá querem dizer que uma pessoa tem sorte ou azar, dizem que o ṣe
oríre ou o ṣe orí burúkú (ele tem uma cabeça boa ou uma cabeça ruim). Talvez seja porque
é feita referência à cabeça quando os yorùbá estão falando sobre o destino, que algumas
das dificuldades que cercam a noção yorùbá de Orí e destino são acentuadas.
O que se está sugerido, em essência, é que há pelo menos dois sentidos nos quais os
yorùbá empregam a noção de Orí: primeiro, para significar a escolha do caráter feito por
cada indivíduo através das escolhas particulares das ações realizadas. Segundo, denotar a
falta de explicações plausíveis em uma situação desconcertante que desafia qualquer
explicação naturalista ou empírica razoável. Em tais situações, há a tendência de dizer que
o que aconteceu não pôde deixar de ocorrer porque foi predeterminado no céu. Mas, como
tentamos mostrar, essas explicações não podem ser defendidas racionalmente e são
produtos de várias consequências incompatíveis.

Original em: ÉKANỌ́LÁ, Adébọ́lá Babatúndé. A naturalistic interpretation of the yorùbá


concepts of Orí. Philosophia Africana: Analysis of Philosophy and Issues in Africa and the
Black Diaspora, vol. 9, nº 1, março 2006, p. 41-52.
Tradução realizada em Setembro de 2019.

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