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Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA

Direito e ideologia: o direito como fenômeno ideológico

Law and ideology: law as an ideological phenomenon.

Henrique Garbellini Carnio


Mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Resumo: o termo ideologia possui uma variedade de significados que se constituíram


historicamente, dentre esses significados, ao invés de forçá-los a uma teoria geral da
ideologia, pode-se reforçar alguns desses conceitos e aproveitar deles o que possuem de
valioso pelo próprio fio histórico que os constituíram. Portanto, o escopo do presente artigo é
aproveitar essa construção da ideologia e procurar entender o Direito como fenômeno
ideológico. O Direito como uma criação humana, como produção da linguagem se encontra a
todo o momento com a ideologia e desse encontro cabe uma reflexão filosófica dos contornos
e potencialidades do próprio Direito enquanto fenômeno ideológico.

Palavras-chave: Direito, Ideologia, fenômeno ideológico, ideologia representativa,


porosidade ideológica.

I INTRODUÇÃO.

Historicamente, nem no passado, nem nos tempos atuais houve a proposição de uma definição
única do termo ideologia, isso porque o próprio termo “ideologia” tem toda uma série de
significados convenientes e nem todos compatíveis entre si.

A palavra ideologia possui uma grande riqueza de significados, sendo inútil e até mesmo
pejorativo sintetizá-la em um único conceito, conforme expõe Terry EAGLETON, a palavra

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ideologia é por assim dizer, um texto, tecido com uma trama inteira de diferentes fios
conceituais, que é traçado por divergentes histórias, sendo importante determinar o que há de
valioso em cada uma delas e o que pode ser descartado ao invés de se criar algo como uma
grande Teoria Global da Ideologia. 1

Dentre essa variedade de significados, cabe então a análise direcionada para o sentido da
ideologia que corresponda à proposta do trabalho e que sirva de base para o entendimento do
Direito como fenômeno ideológico.

O termo ideologia foi inicialmente criado por Destut de TRACY, que publicou em 1801 um
livro chamado , para o autor a ideologia é o estudo científico das idéias
e as idéias são resultado da interação entre organismo vivo e a natureza, o meio ambiente.

Após alguns anos, Destutt de TRACY e seu grupo de enciclopedistas entram em conflito com
Napoleão, ganhando o termo um sentido pejorativo, uma vez que Napoleão o utilizava para
demonstrar que eles, ideologistas franceses, eram ultrapassados, sem nexo político ou contato
com a realidade, que viviam num mundo especulativo. Paradoxalmente, ao passo em que
Destutt e seu grupo queria fazer uma análise científica materialista da ideologia, foram
chamados por Napoleão no sentido de especuladores metafísicos, sendo essa, diríamos, por
força ideológica, a maneira de se utilizar o termo na época. 2

Já em meados do século XIX, Karl MARX, que encontra a palavra em folhetins e jornais
ainda usada em termos napoleônicos passa a utilizá-lo a partir de 1846 em sua obra chamada
A Ideologia Alemã. Nessa obra o termo se refere a ideologia equivalente à ilusão, falsa
consciência, como um conjunto de crenças, trazendo a idéia de que o ideólogo é aquele que
inverte as relações entre a idéia e o real 3. Esse conceito, após, é ampliado por MARX
passando a abranger as formas ideológicas através das quais os indivíduos tomam consciência

1
Cf. EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Tradução de Silvana Vieira e Luís Carlos Borges. São
Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo, 1997, p. 15.
2
Cf. LÖWY, Michael. Ideologia e ciência social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Editora
Cortez, 1985, p. 13.
3
Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 531 e 532.

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da vida real, para ele a ideologia é um conceito pejorativo, um conceito crítico que implica
ilusão 4.

Mesmo depois de MARX o conceito contínua sua trajetória no marxismo, restando mais claro
e combatente o sentido da ideologia como um conceito de algo ilusório, enublecedor da
realidade, espectral, a ideologia representativa.

A IDEOLOGIA REPRESENTATIVA

O sentido representativo da ideologia, a ideologia como representação, é aquele causador do


efeito de enublação, obnublante, ilusório, formador de uma consciência inerte ou
desenvolvida a partir do erro, da simulação do auto-engano.

O paradoxo que envolve o efeito da ideologia representativa, segundo Slavoj ZIZEK, se


apresenta como sendo a própria forma de escravização a ela, portanto deve-se separar a
ideologia da problemática representativista, a ideologia é distinta da ilusão 5.

Os filósofos frankfurtianos, HORKHEIMER e ADORNO, entendem que “os que sucumbem


à ideologia são exatamente os que ocultam a contradição, em vez de acolhê-la na consciência
de sua própria produção” 6.

Esta produção da ideologia predispõe uma postura crítica diante do próprio velamento do
sentido ideológico representativo.

Contudo, a credulidade, a aversão à dúvida, a temeridade no responder, o vangloriar-


se com o saber, a timidez no contradizer, o agir por interesse, a preguiça nas
investigações pessoais, o fetichismo verbal, o deter-se em conhecimentos parciais:
isto e coisas semelhantes impediram um casamento feliz do entendimento humano

4
LÖWY, Michael, op cit. p. 12.
5
Cf. ZIZEK, Salvoj. O Espectro da Ideologia in Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto,
1996. Em alusão ao desenvolvimento do exposto o autor assim continua: “Eis aí uma das tarefas da crítica pós
moderna da ideologia: nomear, dentro de uma ordem social vigente, os elementos que à guisa de ficção, isto é de
narrativas utópicas de histórias alternativas possíveis, mas fracassadas – apontam para o caráter antagônico do
sistema e, desse modo nos alienam da evidencia de sua identidade estabelecida”.
6
Cf. HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 19.

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com a natureza das coisas e o acasalaram, em vez disso,a conceitos vãos e


experimentos erráticos: o fruto e a posteridade de tão gloriosa união pode-se
facilmente imaginar. 7

Na verdade esta postura ideológica representativa se fortifica, se (re)cria e se relaciona com a


inauguração do Estado Liberal, o que faz com que os autores frankfurtianos alertem que
“neste país, não há nenhuma diferença entre o destino econômico e o próprio homem...na
consciência dos homens, a máscara econômica e o que está debaixo dela coincidem nas
mínimas ruguinhas. Cada um vale o que ganha, cada um ganha o que vale”. 8

A produção desse ambiente ideológico se promove no contexto da experiência vivencial dos


seres humanos envoltos numa rede formada pelo capitalismo religiosamente exercido.

Como, então, superar, ir além deste ambiente ideológico representativo, há possibilidade de


um exercício para a desmistificação ideológico-representativa?

Na verdade, esta formação espectral da ideologia representativa, deve ser observada na


resolução do impasse da “antinomia da razão crítico-ideológica”, ou seja, a ideologia não é
tudo, há um lugar do qual se possa denunciá-la e tal lugar tem que permanecer vazio, não
pode se desvirtuar por uma realidade determinada, pois a partir do momento em que se cede a
essa tentação se volta à ideologia 9.

O problema do sentido representativo da ideologia está situado num locus composto, há a


necessidade do ser humano se predispor criticamente e essa própria predisposição já apresenta
um sentido ideológico, no entanto além-representativo.

Com isso deve-se retomar um dos significados do termo ideologia, aquele em que ela é aquilo
que confere certa posição a um sujeito 10, ou seja a postura intelectual, crítica, emancipadora já
predispõe uma ideologia, de qualquer maneira a ideologia está relacionada aos atos humanos.

7
Ibidem, p. 19.
8
Ibidem, p. 197.
9
Cf. ZIZEK, Salvoj. O Espectro da Ideologia in Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto,
1996.
10
EAGLETON, Terry, op cit p. 15.

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Esse conceito é extremamente importante e deve ser observado em contraposição ao sentido


ideológico-representativo 11.

Todo essa complexidade da significação da palavra ideologia, ganha uma certa organização
sociológica, muito importante para o presente estudo, dada por um famoso sociólogo, Karl
MANNHEIM em seu livro Ideologia e Utopia.

Para MANNHEIM, ideologia é um conjunto das concepções, idéias, teorias, que se orientam
para a estabilização, ou legitimação ou reprodução, da ordem estabelecida, ou seja, todas as
aquelas doutrinas que consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente
servem à manutenção da ordem estabelecida, enquanto que as utopias ao contrário são aquelas
idéias, concepções, teorias que aspiram uma outra realidade, uma realidade ainda inexistente,
têm, portanto, uma dimensão crítica ou de negação da ordem social existente. As utopias têm
uma função subversiva, crítica e até mesmo revolucionária.

Diante desta proposta, nota-se que ideologia e utopia são duas formas de um mesmo
fenômeno que se manifesta de duas maneiras distintas, podendo se expressar num primeiro
caso ideologicamente em outro utopicamente. Assim, MANNHEIM utiliza esse fenômeno em
relação às classes sociais como “ideologia total”.

Deste modo, o conceito de ideologia se abre em dois sentidos, o primeiro; ideologia total
como conjunto de idéias, formas de pensar relacionados à posições sociais de grupos ou
classes; e ideologia em sentido estrito, que é a forma conservadora que essa ideologia total
pode tomar, em oposição à forma crítica que ele chama de utopia. 12

11
Com isso não estamos querendo criar um maniqueísmo entre uma ideologia melhor ou pior, mas justamente
demonstrar a acepção do conceito de ideologia nas relações humanas e o quão é importante a concretização de
um postura ética comprometida com a sociedade. Essa questão é tão importante que como será discorrido no
próximo tópico essa postura ética no Direito se relaciona com seu sentido epistemológico, a palavra episteme em
seu sentido original se refere à postura, postura ética.
12
É a partir desta conceituação que Michel LÖWY cria um termo que se refere ao mesmo tempo tanto à
ideologia quanto à utopia, visão social de mundo. Para ele as visões sociais de mundo seriam todos aqueles
conjuntos estruturado de valores, representações, idéias e orientações cognitivas unificados por uma perspectiva
determinada, por um ponto de vista social, de classes sociais determinadas. Cf. LÖWY, Michael. Ideologia e
ciência social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Editora Cortez, 1985, p. 13.

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Portanto, Karl MANNHEIM, partindo de uma concepção particular para uma total de
ideologia, demonstra que um grupo reunido de indivíduos tende a forçar a modificação do
mundo envolvente da natureza e da sociedade, ou, procura perpetuá-lo sob uma dada
condição, sob um determinado aspecto e é a direção desta vontade de mudar ou conservar que
explica o aparecimento de seus problemas e de sua forma de pensar. 13

Tal conceito admite dois aspectos que são antagônicos, o primeiro transformador e o segundo
conservador, de maneiro que ambos atuam nas formações sociais específicas como fator de
legitimação.

Sobre as formações sociais específicas como fator de legitimação ideológica, continuando


numa análise marxista, é preciso entender consequentemente o sentido de produção social da
ideologia, que como demonstra Marilena CHAUÍ é produzida em três momentos
fundamentais 14:

a) se inicia como um conjunto sistemático de idéias de uma classe em ascensão cuidando para
que os interesses desta legitime a representação de todos os interesses da sociedade por ela.
Neste momento se está assim legitimando a luta da nova classe pelo poder.
b) no segundo momento se espraia no senso comum, ou seja, passa a se popularizar, passa a ser
um conjunto de idéias e conceitos aceitos por todos que são contrários à dominação existente.
Neste momento as idéias e valores da classe emergente são interiorizados pela consciência de
todos os membros não dominantes da sociedade.
c) uma vez assim sedimentada a ideologia se mantém, mesmo após a chegada da nova classe
ao poder, que é então a classe dominante, os interesses de todos que eram os não dominantes
passam a ser negados pela realidade da nova dominação.

Essa produção da ideologia se dá em relações de poder na esfera social, é a partir deste


aspecto que se pode abordar o sentido de ascensão ideológica.

O poder da ideologia se apresenta nesta produção. István MÉSZARÓS, enfaticamente,


observa que por óbvio as ideologias dominantes da ordem social estabelecida desfrutam de
uma importante posição privilegiada em relação a todas as variedades de “contraconsciência”,
fazendo valer os mecanismos auto-reprodutivos da sociedade, tendo como apoio principais

13
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
14
CHAUÍ, Marilena de Souza. O que é ideologia? 14 ed. Brasília: Editora Brasiliense, 1984, p. 119.

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instituições econômicas, culturais e políticas, portanto a ideologia, neste sentido, tem forte
potencial de transformação ou des-truição social. 15

Enfim, a ideologia é necessária, sua necessidade se apresenta no sentido natural de sua


formação de seu acontecimento, daí a importância da superação constante do seu sentido
representativo não enganado por uma impossível des-ideologização, nisso reside o potencial
transformador, emancipador social da ideologia.

IDEOLOGIA E DIREITO

O Direito como uma criação humana, como produção da linguagem se encontra a todo o
momento com a ideologia e desse encontro cabe uma reflexão filosófica dos contornos e
potencialidades do próprio Direito enquanto fenômeno ideológico.

Para tanto, resta ainda identificar o sentido da ideologia num ponto de vista individual, a partir
do indivíduo, reforçando a questão da necessidade da ideologia e da ascensão ideológica,
anteriormente expostos.

Hans BARTH em sua obra Veritá e ideologia, anuncia que a ideologia no século XX tem
como base quatro pressupostos que se relacionam pelo sentido da atividade espiritual humana
em íntima correlação com a atividade econômica, que formam de algum modo a maneira
como o indivíduo orienta-se no mundo, predispõe-se ao mundo e tranforma-o, (re)cria-o 16.

Atualmente a criação do Direito está muito relacionada e muito pressionada pela realidade
vivencial (experiencial/existencial) que a sociedade presencia, as questões processuais se
estruturam em modelos e atitudes utilitaristas, caracteristicamente representadas por um
individualismo ideológico-representativo.

15
MÉSZARÓS, István. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo,
2004, p. 233.
16
BARTH, Hans. Veritá e ideologia. Bologna: Societá editrice el Mulino, 1971, pp. 347 e 348.

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Segundo Ovídio Baptista da SILVA a ideologia, de um ponto de partida individualista deve


ser observada sob dois aspectos; o primeiro refere-se à atribuição aos nossos opositores à
condição de ideológicos, na suposição que predispomos de um “Ponto de Arquimedes”, como
se houvesse o acesso privilegiado à verdade absoluta e o segundo como que uma
conseqüência do primeiro, de que o “outro” não aceitasse nossa idéia por não conseguir
atingir a nossa verdade, o que a determinaria como implicitamente válida, permanecendo
como única 17.

Esta postura, “é a marca do pensamento conservador. Tudo o que questiona a “realidade”,


construída pelo pensamento conservador, é ideológico, no sentido do irreal, pois a visão
conservadora supõe que nosso “mundo” seja o único possível.” 18

O direito está tomado pelo pensamento conservador e nele nitidamente a ideologia em seu
sentido representativo tem grande força e se alastra por questões teóricas e científicas até
questões práticas do cotidiano.

Esse aspecto negativo, no entanto, é um dos pontos de partida para o entendimento do Direito
como fenômeno ideológico, tendo em vista o que se propôs como a necessidade da ideologia,
deve-se entender que as ideologias “não são superficiais, irrelevantes ou nefastas...não se
pode apenas visualizar seu aspecto negativo de distorção e com isso descartar sua função e
minimizar sua operacionalidade, ainda que sob novas roupagens e rotulações nos horizontes
do atual estágio das sociedades pós-industriais e globalizadas” 19.

A formação epistemológica jurídica é construída em formação e relação com a ideologia.


Raymond BOUDON se refere aos efeitos epistemológicos no conhecimento científico, de
maneira que “não somente o conhecimento científico está ao abrigo das crenças não
demonstradas, como não poderia existir sem elas” 20, ou seja, seu objetivo é demonstrar que a
ideologia se desenvolve mesmo no coração do trabalho científico.

17
Cf. SILVA, Ovídio Baptista da. Processo e Ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro, Forense,
2004, p. 9.
18
Ibidem, p. 9.
19
Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2000, p. 189.
20
BOUDON, Raymond. A ideologia ou a origem das idéias recebidas. Tradução de Emir Sader. São Paulo:
Editora Ática, 1989, p. 188.

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A questão que vem à tona diante de realidade da ideologia no estudo científico é que desde as
discussões dos modelos levantadas por POPPER, KUHN e FEYERABEND, atrás disso, há,
sobretudo, um efeito epistemológico, ambientado pela ideologia 21.

Um interessante exemplo sobre o sentido ideológico do Direito é observado na obra de Karl


MARX em sua contribuição para a teoria epistemológica do Direito, ao tratar sobre a
dogmática jurídica com o caso, por ele analisado, sobre o roubo de lenhas.

Sua idéia nasce a partir de um caso concreto, de um projeto de lei que passaria considerar
como crime de roubo a colheita de pedaços de madeiras caídos na floresta à beira do rio Reno
e previa coma pena pagamento de multa ou trabalhos forçados prestados ao dono da floresta,
por quem praticasse tal ato.

A reflexão de MARX em primeiro lugar é não aceitar simplesmente esta lei pelo fato de
apenas ter ela compatibilidade com a ordem jurídica por de emanar de um poder para produzir
tal norma. MARX com essa postura está se distanciado da postura formalista dogmática do
Direito, pela qual está lei teria validade jurídica, não aceitando como roubo de lenha a simples
colheita de galhos caídos no chão para fazer fogo, absolutamente necessário para a
sobrevivência de um camponês na Alemanha.

MARX afirma que tal prática é um atentado ao “princípio da adequação e verdade” ao qual se
deve submeter também o Direito, por mais que se utilize de ficções ou analogias para cumprir
sua função.

Um segundo ponto analisado por MARX, estritamente mais jurídico, é que se transpôs uma
medida sancionadora de direito público para o campo do direito privado, vez que a pena de
trabalhos forçados se aplica sobre a pessoa do imputado e não de seu patrimônio, a própria
multa que colocou como alternativa vai para o particular, supostamente ofendido em seu
direito de propriedade e não aos cofres públicos.

21
Nos limitaremos na proposta ideológica sem adentrar na discussão sobre o estudo científico do Direito,
evitando afastamo-nos do tema que pode ser iniciado no sentido das ciências pela leitura de Raymond
BOUDON, na obra acima referida e principalmente sobre o Direito na obra que é em seguida referida de Willis
Santiago GUERRA FILHO.

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Verifica-se nesse caso o que ele chamou de “jurisdição patrimonial”, a não defesa dos direitos
públicos em favorecimento aos direitos privados, de natureza patrimonial.

Um terceiro ponto, é de que havia um costume estabelecido de colher os galhos livremente,


logo havia um direito consuetudinário que foi desprezado, justamente pelos próprios
defensores da escola histórica do Direito, que toma o costume como fonte primária do Direito.

Essa flagrante contradição com a proposta teórica e a prática vai apontar para que MARX
realize uma crítica da ideologia, mostrando as contradições à prática de alguém e sua própria
concepção de mundo. 22

Portanto, com um exemplo jurídico, parece ser que MARX disperta para sua crítica da
ideologia, identificando claramente a sobreposição dos interesses de uma classe sobre a outra.

Este exemplo apresenta o poder da ideologia representativa como usurpadora das relações
sociais conflitando diretamente com a característica epistemológica do Direito.

A epistemologia jurídica, a tentativa do estudo científico do Direito acontece de maneira


diferente de algumas outras ciências, a proposta do estudo científico do Direito deve
necessariamente demandar uma função e atuação social direta, daí a importância de seu
entendimento enquanto fenômeno ideológico.

Como bem aponta Willis Santiago GUERRA FILHO, nas ciências em geral há uma
impossibilidade de se depurar de elementos ideológicos bem como de compromissos políticos
e sociais, segundo o autor, no direito, a ideologia “se encontra agregada ao próprio objeto,
pois a configuração de institutos jurídicos é determinada pela visão de mundo ou
mundividência (Weltanschauung) subjacente ao ordenamento jurídico, ou seja, sua ideologia,
23
no sentido empregado primeiro na obra de Destutt de Tracy.”

22
A propósito, sobre o exemplo do roubo de lenha e a realização de Marx de uma crítica da ideologia, cf.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 37-41.
23
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 112.

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Portanto, a proposta do autor se refere “a assunção de uma nova ideologia, porosa em relação
às demais, mas consciente de seu caráter ideológico... esse tipo de ideologia
“superideologia”.... deve ser utilizada como uma “prototeoria”, ou seja, “um corpo de idéias
que podem servir de ponto de partida para diferentes concepções da realidade e possibilidades
sociais.” 24

Esta porosidade ideológica potencializa o sentido de aplicabilidade do Direito, deste modo “a


hermenêutica crítica não rejeita a ideologia (...); mas exige que a ideologia do Direito não
permaneça inconsciente e que, tornando-a consciente, possa estar o jurista em condições de
questioná-la quanto aos seus efeitos na vida social...”25.

Portanto, retomando a proposta ideológica de MANNHEIM e os dois estratos em que se


divide a ideologia, pode-se dizer que o Direito como fenômeno ideológico apresenta outros
dois aspectos que de certa forma derivam do antagonismo que foi demonstrado, um interno e
outro externo que se relacionam; dizer a ideologia interna do Direito é defini-lo em suas
características historicamente aceitas pelo senso comum como essenciais; dizer a ideologia
externa é vincular essa caracterização com as formas históricas dominantes do saber e atuar.

Seguindo com essa análise marxista sobre a ideologia, a seu lado e em polêmica com ela está
o estudo sistêmico-funcionalista de Niklas LUHMANN. A partir de sua concepção entende-se
que:
A análise da teoria sistêmica é uma concepção nova. Na tradição do pensamento
europeu procurou-se a medida última de avaliação nos critérios de verdade e justiça,
e ainda hoje procuramos aferir com eles os conceitos de nosso tema, questionando as
ideologias pelo seu conteúdo de verdade e o direito positivo por sua justiça26.

Portanto, para LUHMANN é descabido avaliar as ideologias por seu conteúdo de verdade,
diferentemente da abordagem que faz Talcott PARSONS e sua tendência à minimização do
papel dos conflitos na análise social, para PARSONS os conflitos sociais não passam de
distúrbios ocasionais, que são incorporados e eliminados pela organização social 27.

28
GUERRA FILHO, Willis Santiago. A filosofia do Direito aplicada ao Direito Processual e à Teoria da
Constituição. São Paulo: Ed. Atlas, SP, 2001, pp. 102 e 103.
25
Ibidem.
26
LUHMANN, Niklas. Wahrheit und ideologie, Sociologize Aufklärung, n. 8, Köln, 1970, p. 196 apud
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 110.
27
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 110.

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Jürgen HABERMAS, que principalmente na primeira fase de seu pensamento mantinha apego
à tradição marxista, apresenta sua conceituação no sentido de “para quem a verdade é algo
inseparável da sociedade que a concebe e essencialmente animada por um interesse, nem
sempre confessado, parte-se de uma concepção prévia, de certa forma considerada justa, de
organização social, o que possibilita em caso de discrepância, a denúncia ideológica ou
Ideologiekritik” 28

Em importante obra publicada originariamente em 1968, Técnica e ciência como “ideologia”


(Technick und Wissenschaft als “ideologie”), HABERMAS alcança uma boa crítica ao
positivismo quando assevera que o tecnicismo consiste em uma ideologia que tenta por em
prática, sob qualquer preço, o conhecimento técnico e a ilusão objetiva das ciências 29.

Enfim, o Direito se manifesta como fenômeno ideológico e a crítica da ideologia no Direito se


configura diante dos pressupostos críticos propostos pela Filosofia do Direito, que devem
projetar o estudo do direito, a mentalidade jurídica e o senso comum para uma justificação e
efetividade de um Estado Democrático de Direito.

BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BARTH, Hans. Veritá e ideologia. Bologna: Societá editrice el Mulino, 1971.

BOUDON, Raymond. A ideologia ou a origem das idéias recebidas. Tradução de Emir


Sader. São Paulo: Editora Ática, 1989.

CHAUÍ, Marilena de Souza. O que é ideologia? 14. ed. Brasília: Ed. Brasiliense, 1984.

COELHO, Luis Fernando. Fundamentos fenomenológicos da crítica social in O Poder das


metáforas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.

28
GUERRA FILHO, Willis Santiago, op cit, p. 109.
29
Cf. HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa: Edições 70, 2001.

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______. Teoria crítica do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Tradução de Silvana Vieira e Luís Carlos
Borges. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo, 1997.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001.

______.A filosofia do Direito aplicada ao Direito Processual e à Teoria da Constituição.


São Paulo: Ed. Atlas, 2001.

HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa: Edições 70, 2001.

HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor. Dialética do Esclarecimento: fragmentos


filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

LÖWY, Michael. Ideologia e ciência social: elementos para uma análise marxista. São
Paulo: Editora Cortez, 1985.

MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.

MÉSZARÓS, István. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São


Paulo: Boitempo, 2004.

SILVA, Ovídio Baptista da. Processo e Ideologia: o paradigma racionalista. Rio de


Janeiro, Forense, 2004.

WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 3. ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2000.

ZIZEK, Salvoj. O Espectro da Ideologia in Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Ed.


Contraponto, 1996.

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