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A utilização de recursos públicos pelas

Organizações Não-Governamentais

Arthur Maciel Motta

Sumário
Introdução. 1. Administração Pública. 2. Ter-
ceiro Setor. 3. Organizações Não-Governamen-
tais (ONGs). 4. Emprego de recursos públicos
pelas ONGs. Conclusão.

Introdução
O presente artigo tem por finalidade
analisar as organizações não-governamen-
tais (ONGs) em face do emprego de recur-
sos públicos. Busca-se, com a pesquisa,
responder qual é a relação ideal que deve
ser estabelecida entre o Poder Público e as
ONGs, a fim de – mantendo e dinamizando
a utilização de entidades sem fins lucrativos
como entes em colaboração do Estado – fa-
cilitar o controle dos gastos e propiciar um
emprego de recursos públicos com mais
efetividade e transparência.
Este estudo possui alta relevância so-
cial e política para a sociedade brasileira.
Trata-se de um tema que tem permeado os
principais jornais e revistas, com manche-
tes que apontam para grandes desvios de
dinheiro público efetivados por entidades
do Terceiro Setor.
Além disso, é tema de inquestionável
repercussão econômica, pois a utilização
de ONGs, como entidades em cooperação
Arthur Maciel Motta é advogado e assessor
do Senador Eduardo Matarazzo Suplicy, é com o Poder Público, enxuga a máquina
mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo estatal, com clara economia de recursos,
Centro Universitário de Brasília. na medida em que reduz, de forma maciça,

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o número de órgãos governamentais que No segundo capítulo, que finaliza o
seriam necessários para desenvolver todas estudo dos conceitos doutrinários básicos
as atividades públicas não estatais. para o tema, discorre-se sobre o Terceiro
O despertar para o assunto veio com a Setor – por ser o campo em que se espraiam
leitura das repetidas reportagens sobre a as ONGs –, falando sobre a sua conceitua-
malversação dos recursos públicos pelas en- ção básica e sobre a prestação de serviços
tidades do Terceiro Setor e, particularmente, públicos em parceria com suas entidades,
pelo acompanhamento – de certa forma, discutindo os pormenores das Organiza-
com alguma proximidade – do trabalho de- ções Sociais (OS), das Organizações da So-
senvolvido pela Comissão Parlamentar de ciedade Civil de Interesse Público (OSCIP)
Inquérito (CPI) instalada no Senado Federal, e dos Convênios Administrativos.
em março de 2007, para averiguar possíveis As organizações não governamentais
desmandos realizados pelas ONGs no perí- (ONGs) são tratadas no terceiro capítulo.
odo compreendido entre 1999 e 2007. Apresenta-se um conceito, para prosse-
Espera-se que a CPI, apesar das dificul- guimento do trabalho, as características, o
dades, adote saídas para o foco da questão, histórico e a situação atual vivida por elas
qual seja, o de criar procedimentos que no Brasil. É o capítulo que mostra a estru-
facilitem o controle dos gastos das ONGs e tura fática existente, julgada necessária para
permitam o emprego dos recursos públicos adentrar no âmago da questão, que será
por essas entidades com a necessária trans- discutida no capítulo seguinte.
parência para a sociedade brasileira. O capítulo quatro, que finaliza o de-
Assim, cresce de importância a análise senvolvimento do escrito, utiliza-se dos
dos caminhos percorridos pelas ONGs ao conhecimentos doutrinários dos dois
longo da história deste país, bem como primeiros capítulos para criticar os dados
das correções de rumo necessárias para apresentados sobre as ONGs no terceiro
que estas entidades sejam mais eficientes e capítulo. Nesse entrechoque, discute-se o
respeitadas pela sociedade brasileira. melhor processo de transferência de recur-
A metodologia escolhida para o traba- sos públicos para as ONGs e, singelamente,
lho é a dogmática instrumental, por ser o apresenta-se uma proposta de marco legal
modelo mais adequado para o tema, uma para o Terceiro Setor.
vez que a pesquisa terá como foco a mídia, Assim, inicia-se a discussão do tema, en-
a doutrina, a legislação e a jurisprudência veredando pelas possíveis falhas do proces-
brasileira. so de transferência de recursos estatais para
O assunto desenvolve-se em quatro as entidades sem fins lucrativos do Terceiro
capítulos, sendo o primeiro dedicado à Setor, mas sem perder o foco que deve estar
Administração Pública. Neste capítulo, sempre voltado para a importância do tra-
apresentam-se os princípios da Adminis- balho social das ONGs no estabelecimento
tração que servirão de base para a proposta de uma nação mais digna, humana, igua-
de se adotar um procedimento licitatório litária nas oportunidades e dirigida para o
simplificado quando da aplicação de recur- desenvolvimento sustentável.
sos públicos pelas ONGs. Discute-se, ainda,
sobre o serviço público como um conceito 1. Administração Pública
administrativo indeterminado, que varia,
no decorrer do tempo, para cada cultura 1.1. Princípios da Administração Pública
distinta. Finaliza-se o capítulo com a discus- A Constituição da República, no seu
são sobre as áreas de atuação estatal, que art. 37, determina que a Administração
teve como marco a Reforma do Estado de Pública – direta ou indireta – de qualquer
meados da década de noventa. dos Poderes dos Entes Federados (União,

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Estados-Membros e Municípios) obedecerá sendo agente público, induza ou concorra
aos princípios da legalidade, impessoalida- para a prática do ato de improbidade ou
de, moralidade, publicidade e eficiência. dele se beneficie sob qualquer forma direta
Além dos prescritos pela Constituição, ou indireta” – mostra, claramente, que as
a doutrina há tempos já elencava outros disposições aplicáveis aos agentes públi-
princípios (Meirelles, 2004, p. 16), que cos, no que tange aos atos de improbidade
a Lei 9.784/1999, no seu art. 2o, relaciona administrativa, são extensivas àqueles que
como também aplicáveis à Administração utilizam recursos públicos em entidades de
Pública. São eles os princípios da propor- cunho privado.
cionalidade (razoabilidade), segurança jurí- Então, claro está que o agente privado
dica, motivação, ampla defesa e supremacia que utiliza recursos públicos é equiparado
do interesse público. ao agente público, respondendo perante
O primeiro passo dessa análise será, a Administração e a Justiça como se Ad-
então, o estudo dos princípios que regem ministrador Público fosse. Dessa forma,
a Administração Pública, pois eles são os agentes privados nessas condições – os
padrões pelos quais “deverão se pautar diretores de uma ONG que recebe recursos
todos os atos e atividades administrativas públicos, por exemplo – estão obrigados
de todo aquele que exerce o poder público” a observar estritamente os princípios da
(Meirelles, 2004, p. 86). Pode-se afirmar Administração Pública, seguindo o que
que os princípios aqui estudados são os preceitua o art. 4o, da Lei 8.429/1992:
fundamentos da ação administrativa, vale “Art. 4 o Os agentes públicos de
dizer, são os sustentáculos da atividade qualquer nível ou hierarquia são
pública. obrigados a velar pela estrita obser-
A aplicação dos princípios da Admi- vância dos princípios de legalidade,
nistração Pública às entidades privadas impessoalidade, moralidade e publi-
que utilizam recursos públicos é fato con- cidade no trato dos assuntos que lhe
creto e encontra-se bem definida na Lei são afetos”.
8.429/1992, que trata do enriquecimento Numa primeira análise, bastaria apenas
ilícito e da improbidade administrativa. O ao agente privado, que utiliza recursos
parágrafo único do art. 1o dessa lei estabe- públicos, respeitar – no trato com esses
lece o seguinte: recursos – os princípios da Administração
“Parágrafo único. Estão também su- Pública para que os seus atos não causas-
jeitos às penalidades desta lei os atos sem prejuízos ao Erário e fossem julgados
de improbidade praticados contra o válidos.
patrimônio de entidade que receba Com esse foco, passa-se à explanação
subvenção, benefício ou incentivo, dos aspectos de cada princípio que têm
fiscal ou creditício, de órgão público interesse com o relacionamento do Estado
bem como daquelas para cuja criação com as ONGs.
ou custeio o erário haja concorrido ou
concorra com menos de cinquenta 1.1.1. Legalidade
por cento do patrimônio ou da receita O princípio da legalidade encerra a ideia
anual, limitando-se, nestes casos, a de que a Administração deve sujeitar-se às
sanção patrimonial à repercussão do normas legais. Em curtas palavras, significa
ilícito sobre a contribuição dos cofres que o administrador deve ser escravo da
públicos”. lei, para não ficar à mercê dos homens. A
O art. 3o da Lei 8.429/1992 – quando diz atividade administrativa só é eficaz quando
que “as disposições desta lei são aplicáveis, condicionada ao atendimento da Lei e do
no que couber, àquele que, mesmo não Direito. Numa visão mais antiga, tinha-se

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que, na Administração Pública, somente ficado, a Administração só poder realizar
era permitido fazer o que a lei ordenasse; atos que a lei ordene. “Caso predominasse
na Privada, ao contrário, seria lícito fazer como significado geral do princípio da lega-
tudo que a lei não proibisse. lidade, paralisaria a Administração, porque
Hely Lopes Meirelles (2004, p. 86) en- seria necessário um comando específico
sina que a legalidade, como princípio da para cada ato editado pela Administração,
Administração, “significa que o adminis- o que seria inviável” (Medauar, 2003,
trador público está, em toda a sua atividade p. 137).
funcional, sujeito aos mandamentos da lei O terceiro significado (letra “c”) expri-
e às exigências do bem comum, e deles me uma concepção rígida do princípio da
não se pode afastar ou desviar, sob pena legalidade e corresponde à ideia de Admi-
de praticar ato inválido e expor-se a res- nistração somente executora da lei. Hoje em
ponsabilidade disciplinar, civil e criminal, dia, não se pode conceber que a Adminis-
conforme o caso”. tração somente tenha esse encargo.
O Princípio da Legalidade, sustentado O segundo significado (letra “b”) tra-
há muito pela doutrina, somente tomou duz a exigência de que a Administração
corpo na legislação pátria por meio da tenha habilitação legal para adotar atos e
lei reguladora da ação popular – Lei medidas. Essa é a fórmula que, de modo
4.717/1965 – que considera nulos os atos geral, prevalece, pois é mais consentânea
lesivos ao patrimônio público quando com a maior parte das atividades da Ad-
manchados de “ilegalidade do objeto”, que ministração Brasileira. Nesse significado, a
a mesma lei conceitua no art. 2o, “c”, e pa- Administração poderá justificar cada uma
rágrafo único, “c”: “a ilegalidade do objeto de suas decisões por uma disposição legal,
ocorre quando o resultado do ato importa ou seja, exige-se base legal no exercício de
em violação de lei, regulamento ou outro seus poderes.
ato normativo”. A partir de 1988, passou a Porém, o princípio da legalidade “não
ser mandamento constitucional, por força se exaure com o significado da habilitação
de imposição constante do caput do art. 37 legal. Este deve ser combinado com o pri-
da Constituição da República. meiro significado (letra ‘a’), no sentido de
Quanto ao modo de aplicar o princípio ser vedado à Administração editar atos ou
da legalidade, Odete Medauar (2003, p. tomar medidas contrárias às normas do
136) apresenta os clássicos significados ordenamento” (Idem, p. 138).
desse princípio:
a) a Administração pode realizar to- 1.1.2. Impessoalidade (ou Finalidade)
dos os atos e medidas que não sejam Esse princípio impõe que o Adminis-
contrários à lei; trador somente pratique o ato para o seu
b) a Administração só pode editar fim legal, qual seja, aquele que a norma
atos ou medidas que uma norma de Direito indica como objetivo do ato, de
autoriza; somente são permitidos atos forma impessoal. Nesse sentido, a finali-
cujo conteúdo seja conforme a um dade norteia o objetivo de qualquer ato
esquema abstrato fixado por norma administrativo: o interesse público.
legislativa; e Quem movimenta dinheiro público deve
c) a Administração só pode realizar ter sempre em mente esse objetivo – o inte-
atos ou medidas que a lei ordena resse público –, não podendo afastar-se dele,
fazer. sob pena de invalidação do ato por desvio
Observa-se, dessa enumeração, que o de finalidade, conceituado na Lei da Ação
vínculo da Administração com a lei vai Popular como o “fim diverso daquele pre-
aumentando a ponto de, no último signi- visto, explícita ou implicitamente, na regra

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de competência” do agente (Lei 4.717/1965, desprezou a ordem institucional e,
art. 2o, parágrafo único, letra ‘e’). embora movido por zelo profissional,
A Lei 9.784/1999, que regula o processo invade a esfera reservada a outras
administrativo no âmbito da Administra- funções, ou procura obter mera van-
ção Federal, ao fazer referência ao princí- tagem para o patrimônio confiado à
pio da finalidade, afirma que o processo sua guarda”.
administrativo deve observar critério de Hoje em dia, o princípio da moralidade
“interpretação da norma administrativa da administrativa é pressuposto de validade
forma que melhor garanta o atendimento de todo ato da Administração, sendo ferido
do fim público a que se dirige” (art. 2o, de morte sempre que o ato escapa da finali-
parágrafo único, XIII). dade de concorrer para o bem comum.
Como o princípio da finalidade exige
que o ato seja sempre praticado com finali- 1.1.4. Publicidade
dade pública, “o agente administrativo fica O princípio da publicidade obriga a di-
impedido de praticá-lo no interesse próprio vulgação oficial de todo ato para que tenha
ou de terceiros” (Meirelles, 2004, p. 81). conhecimento público e inicie seus efeitos
A prática de um ato administrativo que vise externos. Por esse princípio, as leis, os atos,
apenas a satisfazer interesses particulares os contratos e convênios administrativos
é vedada pelo princípio da finalidade. O que produzem efeitos jurídicos fora dos
agente público que ignora esse princípio órgãos ou entidades que os emitem exigem
realiza o ato com desvio de finalidade, publicidade para terem validade perante as
que caracteriza uma das modalidades mais partes e terceiros.
deploráveis de abuso de poder. A publicação dos atos administrativos é
obrigatória no Brasil desde o Decreto 572,
1.1.3. Moralidade de 12 de julho de 1980 (Meirelles, 2004,
Segundo a Lei 9.784/1999, o princípio p. 92). No caso das leis, o art. 1o da Lei de
da moralidade significa “atuação segundo Introdução ao Código Civil (LICC) determi-
padrões éticos de probidade, decoro e boa- na que somente entrem em vigência, salvo
fé” (art. 2o, parágrafo único, IV). Assim, esse disposição contrária, 45 dias após sua pu-
princípio impõe que o Administrador, ou blicação oficial. Os contratos, como não são
todo aquele que utiliza recursos públicos, atos normativos, podem ter sua publicação
ao atuar, não despreze o elemento ético de em resumo, mas dela necessitam como
sua conduta. O ato administrativo, além condição indispensável para sua eficácia,
de obedecer à lei jurídica, deverá cumprir conforme descreve o parágrafo único, do
os princípios éticos que regem as relações art. 61, da Lei 8.666/1993.
humanas. Além de assegurar seus efeitos exter-
Dessa forma, além de decidir entre o nos, o princípio da publicidade dos atos e
legal e o ilegal, o conveniente e o inconve- contratos administrativos, dos convênios
niente, o oportuno e o inoportuno, o agente e dos termos de parceria visa a propiciar o
administrativo terá que se defrontar com a controle pelos interessados diretos e pela
opção entre o honesto e o desonesto. Nem população em geral. A publicidade, ana-
tudo que é legal, conveniente e oportuno lisada como princípio da Administração,
é honesto. À luz dessas ideias, Hely Lopes abrange toda a atuação do Estado, seja sob o
Meirelles (2004, p. 88) ensina que: enfoque da divulgação oficial de seus atos,
“Tanto infringe a moralidade admi- seja facilitando o conhecimento da conduta
nistrativa o Administrador que, ao interna de seus agentes.
atuar, foi determinado por fins imo- Além de esculpido no art. 37 da Cons-
rais ou desonestos como aquele que tituição da República, o princípio da

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publicidade permeia outros dispositivos “O princípio da eficiência vem sus-
constitucionais, com destaque para o inciso citando entendimento errôneo no
XXXIII, do art. 5o, que estabelece que todos sentido de que, em nome da eficiên-
têm direito a receber dos órgãos públicos cia, a legalidade seja sacrificada. Os
informações de seu interesse particular, ou dois princípios constitucionais da
de interesse coletivo ou geral, ressalvadas Administração devem conciliar-se,
aquelas cujo sigilo seja imprescindível à buscando esta atuar com eficiência,
segurança da sociedade e do Estado. Maria dentro da legalidade”.
Sylvia Zanella Di Pietro (2008, p. 75), ao
comentar esse dispositivo, afirma: 1.1.6. Proporcionalidade (ou Razoabilidade)
“O que é importante assinalar é que Nas palavras de Celso Antônio Bandei-
o dispositivo assegura o direito à ra de Mello (2007, p. 107), “este princípio
informação não só para assuntos de enuncia a ideia de que as competências
interesse particular, mas também de administrativas só podem ser validamente
interesse coletivo ou geral, com o que exercidas na extensão e intensidade pro-
se amplia a possibilidade de controle porcionais ao que seja realmente deman-
popular da Administração Pública”. dado para o cumprimento da finalidade
de interesse público a que estão atreladas”.
1.1.5. Eficiência
Assim, os atos cujos conteúdos extrapolem
A Reforma Administrativa, consubs- o necessário para alcançar seus objetivos
tanciada na Emenda Constitucional 19, de ficam maculados de ilegitimidade.
1998, acrescentou o princípio da eficiência Odete Medauar (2003, p. 143) aponta
aos princípios da Administração Pública para uma distinção que alguns autores
relacionados no art. 37 da Constituição. A fazem entre proporcionalidade e razoabili-
partir desse ponto, a eficiência é o princípio dade. Esta teria o sentido de coerência lógica
que, de modo geral, orienta toda a atuação nas decisões e medidas administrativas, o
da Administração Pública. sentido de adequação entre meios e fins;
O princípio da eficiência, no dizer de àquela, associa-se o sentido de amplitude ou
Hely Lopes Meirelles (2004, p. 94), “exige intensidade nas medidas adotadas, sobretu-
que a atividade administrativa seja exercida do nas restritivas e sancionadoras. Por fim,
com presteza, perfeição e rendimento fun- julga que o melhor é englobar o sentido de
cional”. Não basta que a atividade seja rea- razoabilidade no princípio da proporciona-
lizada dentro da legalidade, mas exige-se o lidade, definindo-o da seguinte forma:
satisfatório atendimento das necessidades “O princípio da proporcionalidade
dos membros da comunidade. consiste, principalmente, no dever de
O termo eficiência traz a ideia de uma não serem impostas, aos indivíduos
ação que produza resultados de modo rá- em geral, obrigações, restrições ou
pido e preciso. Eficiência, segundo Odete sanções em medida superior àquela
Medauar (2003, p. 142), “contrapõe-se a len- estritamente necessária ao atendi-
tidão, a descaso, a negligência, a omissão – mento do interesse público, segundo
características habituais da Administração critério de razoável adequação dos
Pública brasileira, com raras exceções”. O meios aos fins”.
emprego de ONGs, para a consecução de Neste raciocínio, o princípio aplica-se
serviços públicos, encaixa-se nessa possível a todas as atividades administrativas, no
falta de eficiência da Administração em sentido de que sejam tomadas decisões
determinadas áreas. Mas, é bom que se equilibradas, com avaliação adequada da
frise bem o pensamento de Odete Medauar relação custo-benefício, incluído aí o custo
(Idem): social.
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O princípio da proporcionalidade, im- de lei no âmbito da Administração Públi-
plícito na Constituição da República, pode ca”. A existência do princípio justifica-se
ser chamado de princípio da proibição de pelo fato de ser comum ocorrer mudança de
excesso, pois “objetiva aferir a compatibi- interpretação de determinados dispositivos
lidade entre os meios e os fins, de modo a legais, afetando situações consolidadas na
evitar restrições desnecessárias ou abusivas vigência da orientação anterior. Como essa
por parte da Administração Pública, com possibilidade de mudança é inevitável,
lesão aos direitos fundamentais” (Mei- gerando insegurança jurídica, a regra veda
relles, 2004, p. 91). Por outro lado – e que a aplicação seja retroativa.
isso é muito importante –, ele não pode ser Observa-se, no entanto, que Hely
usado como instrumento de substituição da Lopes Meirelles (2004, p. 91) visualiza a
vontade da lei pela vontade do agente ad- possibilidade de que o interesse público
ministrativo e, mais ainda, deve-se apoiar prevalecente poderá estar precisamente “na
nos valores do homem médio, como ensina conservação do ato que nasceu viciado mas
Hely Lopes Meirelles (2004, p. 91): que, após, pela omissão do Poder Público
“Não é conforme a ordem jurídica a em invalidá-lo, por prolongado período
conduta do administrador decorrente de tempo, consolidou nos destinatários a
de seus critérios personalíssimos ou crença firme na legitimidade do ato”.
de seus standards pessoais que, não Contudo, para o presente estudo, a
obstante aparentar legalidade, aca- análise deste princípio – em cotejo com o
be, por falta daquela razoabilidade princípio da legalidade, outro subprincí-
média, contrariando a finalidade, a pio do Estado de Direito – considera, com
moralidade ou a própria razão de ser prevalência, os ensinamentos obtidos das
da norma em que se apoiou”. conclusões de Maria Sylvia Zanella Di Pie-
tro (2008, p. 85):
1.1.7. Segurança jurídica “O princípio [da segurança jurídica]
O princípio da segurança jurídica, se- tem que ser aplicado com cautela,
gundo J. J. Gomes Canotilho (1991, p. 384), é para não levar ao absurdo de im-
“uma das vigas mestras da ordem jurídica, pedir a Administração de anular
sendo um dos subprincípios básicos do atos praticados com inobservância
próprio conceito de Estado de Direito”. Ele da lei. Nesses casos, não se trata de
foi inserido no ordenamento jurídico pátrio mudança de interpretação, mas de
pelo art. 2o, da Lei 9.784/1999, que regula ilegalidade, esta sim a ser declarada
o processo administrativo no âmbito da retroativamente, já que atos ilegais
Administração Pública Federal: não geram direitos”.
“Art. 2o A Administração Pública obe-
decerá, dentre outros, aos princípios 1.1.8. Motivação
da legalidade, finalidade, motivação, O princípio da motivação passou,
razoabilidade, proporcionalidade, nesses últimos tempos, por uma evolução
moralidade, ampla defesa, contra- bem interessante para se comentar. Num
ditório, segurança jurídica, interesse primeiro momento, fazia-se a distinção
público e eficiência”. entre ato administrativo vinculado, que
Segundo afirmação de Maria Sylvia carecia de motivação para ser legitimado,
Zanella Di Pietro (2008, p. 84), que partici- e ato administrativo discricionário, que
pou da comissão de juristas que elaborou o podia ser praticado sem motivo declarado.
anteprojeto da Lei 9.784/1999, “o objetivo Nessa linha, Celso Antônio Bandeira de
da inclusão desse dispositivo foi o de vedar Mello define o princípio da motivação da
a aplicação retroativa de nova interpretação seguinte forma:

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“O dito princípio implica para a Ad- va presente em ambas as categorias.
ministração o dever de justificar seus A sua obrigatoriedade se justifica
atos, apontando-lhes os fundamentos em qualquer tipo de ato, porque se
de direito e de fato, assim como a trata de formalidade necessária para
correlação lógica entre os eventos e permitir o controle de legalidade dos
situações que deu por existentes e a atos administrativos”.
providência tomada, nos casos em Na Lei 9784/1999, o princípio da moti-
que este último aclaramento seja ne- vação está previsto no caput do art. 2o, no
cessário para aferir-se a consonância inciso VII do seu parágrafo único e no art.
da conduta administrativa com a lei 50. Este último dispositivo apresenta um
que lhe serviu de arrimo”. rol de situações nas quais seria obrigatória
Assim, o administrador público justi- a motivação, mas a doutrina considera
fica sua ação administrativa, apontando que esse rol é meramente exemplificativo,
os fatos que dão origem ao ato e os pre- conforme esclarece Maria Sylvia Zanella Di
ceitos jurídicos que autorizam sua prática. Pietro (2008, p. 83):
Para os atos administrativos oriundos do “No entanto, tem-se que considerar
poder discricionário, “a justificação será a enumeração contida no dispositivo
dispensável, bastando apenas evidenciar a como o mínimo a ser necessariamente
competência para o exercício desse poder observado, o que não exclui a mesma
e a conformação do ato com o interesse exigência em outras hipóteses em que
público” (Meirelles, 2004, p. 95). a motivação é fundamental para fins
Com isso, surge a teoria dos motivos de- de controle da legalidade dos atos
terminantes, que se funda na consideração administrativos”.
de que “os atos administrativos, quando
tiverem sua prática motivada, ficam vin- 1.1.9. Supremacia do interesse público
culados aos motivos expostos, para todos A superioridade do interesse público
os fins jurídicos” (Idem, p. 193). Mesmo os sobre o privado é inerente à atuação es-
atos discricionários, se forem motivados, tatal, na medida em que a existência do
ficam vinculados a esses motivos como Estado Moderno justifica-se pela busca do
causa determinante de seu cometimento interesse geral. Por força dessa posição,
e se sujeitam ao confronto da existência e “reconhece-se à Administração a possibili-
legitimidade dos motivos indicados. “Ha- dade de revogar os próprios atos inconve-
vendo desconformidade entre os motivos nientes ou inoportunos, conquanto dentro
determinantes e a realidade, o ato é inváli- de certos limites, assim como o dever de
do” (Tácito, 1954, p. 78). anular os atos inválidos que haja praticado.
Hoje, pela moderna teoria, o princípio É o princípio da autotutela dos atos admi-
da motivação exige que a Administração nistrativos” (Mello, 2007, p. 93).
Pública indique os fundamentos de fato e Numa visão ponderada da questão, Luís
de direito de todas as suas decisões, confor- Roberto Barroso (2005, p. 7) – resgatando a
me discorre Maria Sylvia Zanella Di Pietro antiga bipartição do interesse público em
(2008, p. 82): primário e secundário, engendrada por
“Ele [Princípio da motivação] está Renato Alessi e introduzida no Brasil por
consagrado pela doutrina e pela Celso Antônio Bandeira de Mello – iden-
jurisprudência, não havendo mais tifica “o primeiro com a razão de ser do
espaço para as velhas doutrinas que Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele
discutiam se a sua obrigatoriedade promover: justiça, segurança e bem-estar
alcançava só os atos vinculados ou social. Já o segundo, é caracterizado como
só os atos discricionários, ou se esta- o interesse da pessoa jurídica de direito

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público que seja parte em uma determinada citivo, que exige o monopólio da força
relação jurídica”. física, considerado de Hobbes a Max
Desse modo, entende-se que o interesse Weber como o caráter fundamental
público secundário jamais desfrutará de do Estado, o poder jurisdicional (não
supremacia a priori e abstrata em face do apenas o poder de fazer leis, pelo fato
interesse particular. Gustavo Binenbojm de as normas jurídicas poderem ser
(2006, p. 101) afirma que, “se ambos entra- produzidas pelo costume ou pelos
rem em rota de colisão, caberá ao intérprete próprios juristas, mas o de aplicá-las,
proceder à ponderação adequada, à vista ou seja, o poder de julgar a razão e a
dos elementos normativos e fáticos rele- sem-razão, o justo e o injusto) e o po-
vantes para o caso concreto”. der de impor tributos, sem os quais o
Quando a lei dá à Administração pode- Estado não pode desenvolver nenhu-
res para agir, isso ocorre em atendimento ma de suas funções essenciais.
ao interesse geral, que não pode ceder a O Estado tem esses poderes porque
interesses particulares. Por via de conse- é indispensável que ele desenvolva
quência, explica Maria Sylvia Zanella Di certas funções. E as funções que
Pietro (2008, p. 70): correspondem a tais poderes são as
“Se, ao usar de tais poderes, a autori- funções mínimas do Estado, quer
dade administrativa objetiva prejudi- dizer, as funções sem as quais o Es-
car um inimigo político, beneficiar um tado não será mais Estado. Todas as
amigo, conseguir vantagens pessoais outras funções que o Estado moderno
para si ou para terceiros, estará fa- se tem atribuído, desde a função de
zendo prevalecer o interesse indivi- providenciar o ensino até a função
dual sobre o interesse público e, em assistencial, caracterizam o Estado
consequência, estará se desviando da não enquanto tal, mas certos tipos
finalidade pública prevista na lei. Daí de Estado”.
o vício do desvio de poder ou desvio Assim, o que define a incidência de um
de finalidade, que torna o ato ilegal”. ou outro ramo jurídico é a atividade desen-
volvida. Quando o Estado explora atividade
1.2. Serviço público como conceito econômica – e, portanto, privada, por força
administrativo indeterminado do art. 170 da Constituição – o faz no regime
Como o Estado é criação do Direito, são privado; quando presta o serviço postal –
as normas jurídicas que definem suas ativi- que é estatal, conforme dita o art. 21, inciso
dades. O ordenamento jurídico de cada país X, da Constituição – se sujeita ao direito
é livre para decidir se uma atividade per- público. Porém, Carlos Ari Sundfeld (1992,
tencerá ao Estado (sendo regida pelo direito p. 75) apresenta uma importante ressalva:
público) ou aos particulares (regulada pelo “A afirmação de que o Estado, em da-
direito privado). No entanto, há poderes das hipóteses, submete-se ao direito
que devem estar sob o controle direto do privado, há de ser tomada com caute-
Estado – coagir, julgar e impor tributos – las. Mesmo ao desenvolver atividade
sob pena de não existir Estado, como ensina econômica, o ente governamental
Norberto Bobbio (1994, p. 178): dever observar algumas normas
“Quem já teve certa familiaridade com típicas do direito público, como as
a história da formação do Estado mo- de licitação, concurso público para
derno sabe que os poderes principais seleção de empregados, controle do
dos novos ordenamentos políticos que Tribunal de Contas e outras mais. O
fazem deles um Estado no sentido Estado, como um Midas, publiciza
moderno da palavra são o poder coer- tudo o que toca”.

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 213


Para o Estado que palmilha pelo di- relacionamento com outros Estados ou com
rigismo econômico, uma gama maior de entidades internacionais; o das atividades
atividades será alçada à condição de serviço de controle social, que se destinam a regular
público. Por outro lado, se o Estado valoriza a vida em sociedade, com a utilização do
a livre iniciativa e a liberdade econômica, os poder de coerção; e o das atividades de ges-
particulares desenvolverão essas atividades tão administrativa, que têm por finalidade
livremente, apenas seguindo as regras pró- criar utilidades em favor do corpo social
prias de cada setor da economia. Nessa situ- por força direta da ação estatal.
ação, o Poder Público atua apenas de forma
subsidiária, quando imprescindível por 1.3.1.2.1. Relacionamento internacional
relevante interesse coletivo ou imperativo Esta atividade consiste no estabele-
de segurança nacional, conforme art. 173 cimento e manutenção de vínculos com
da Constituição, já exposto anteriormente. entidades internacionais e com Estados
Odete Medauar (2003, p. 338) caracteriza estrangeiros. Engloba, também, a defesa
bem essa ideia da seguinte forma: contra invasões do território nacional. Se-
“Saber quando e por que uma ativi- gundo Carlos Ari Sundfeld (1992, p. 79):
dade é considerada serviço público “Trata-se de atuação exclusiva do
remete ao plano da concepção políti- Poder Público, que nela expressa a
ca dominante, ao plano da concepção soberania da sociedade, não admitin-
sobre o Estado e seu papel. É o plano do delegação a particulares. Pertence
da escolha política, que pode estar à União (CF, art. 21, I a IV). É regida
fixada na Constituição do país, na lei pelos direitos constitucional e inter-
ou na tradição”. nacional público”.
1.3. Áreas de atuação estatal 1.3.1.2.2. Atividades de controle social
1.3.1. Antes da Reforma do Estado dos anos 90
Estas atividades ordenam o comporta-
Até meados da década de 90, o conjunto mento dos indivíduos, com o intuito de que
de atividades desenvolvidas pelo Estado estes, além de não prejudicarem os interes-
era classificado, conforme ensina Carlos ses da coletividade, ajam para realizá-los.
Ari Sundfeld (1992, p. 78), em dois grandes Basicamente, dividem-se em três grandes
grupos: o das atividades instrumentais e o áreas: a legislativa, a judiciária e a de ad-
das atividades-fim. As primeiras serviam ministração ordenadora.
ao aparelhamento do Estado e as últimas A mais importante atuação do Estado
justificavam a sua própria existência. nesse setor é a legislativa. Por ela, editam-
1.3.1.1. Atividades instrumentais se normas legais regulando o exercício dos
direitos e o cumprimento dos deveres do
Entre as atividades instrumentais, são Estado e dos particulares.
citadas: a captação de recursos financeiros, O segundo grupo de atividades voltadas
com destaque para a cobrança de tributos; ao controle social diz respeito à atuação do
a gestão desses recursos; a escolha de agen- Judiciário na solução de conflitos, defesa dos
tes públicos; e a obtenção – por meio de direitos, anulação de normas, privação de li-
aquisição, produção e construção – de bens berdade ou de bens particulares, bem como
indispensáveis ao suporte das atividades na execução material de suas decisões.
do Estado. A terceira área está voltada para as
atividades da administração ordenadora,
1.3.1.2. Atividades-fim
a cargo da Administração Pública, desti-
As atividades-fim são classificadas em nadas à aplicação das leis reguladoras do
três grupos distintos: o das atividades de exercício dos direitos dos particulares. Da

214 Revista de Informação Legislativa


mesma forma que a jurisdicional, é sempre “Os particulares exploram os serviços
uma atividade de aplicação de normas su- sociais independentemente de qual-
periores, mas – ao contrário daquela – pode quer delegação estatal. Tais serviços
operar de ofício, independentemente de se desenvolvem, portanto, em setores
provocação. não reservados ao Estado, mas livres
aos particulares. Daí uma importante
1.3.1.2.3. Atividades de gestão administrativa consequência: quando prestados pelo
Nesta classificação, incluem-se nas ativi- Poder Público, submetem-se ao regi-
dades de gestão administrativa: a prestação me de direito público; quando pres-
de serviços públicos; a prestação de serviços tados pelos particulares, sujeitam-se
sociais; a emissão de moeda e a administra- ao regime de direito privado. Tal
ção cambial; as atividades de fomento, as dualidade se justifica, porquanto os
culturais, as de pesquisa na área da ciência serviços sociais são, ao mesmo tem-
e da tecnologia e as desportivas. po, atividade estatal e atividade dos
Os serviços públicos, como vistos até particulares”.
meados da década de noventa, importam a A emissão de moeda e a administração
“criação de utilidades ou comodidades fruí- cambial são atividades que geram uma
veis direta e indiretamente pelos particula- utilidade social, que beneficia as pessoas
res, em setores reservados exclusivamente de modo indireto e coletivo. São atividades
ao Estado” (Sundfeld, 1992, p. 81). que, ligadas à própria existência e unidade
A Constituição elenca os serviços pú- do Estado, são desenvolvidas pela União
blicos, dividindo-os entre as pessoas po- (CF, art. 21, VII e VIII).
líticas. À União compete a maior parcela, Dentro do campo das atividades de
conforme se depreende da leitura do art. gestão administrativa, nessa classificação
21; aos Municípios, cabem os serviços de anterior à Reforma do Estado dos anos
interesse local, incluído o de transporte noventa, pode-se citar: a atividade de fo-
coletivo (art. 30, V); e aos Estados toca a mento, isto é, de concessão de benefícios
competência residual, qual seja, os serviços aos particulares para que adotem determi-
não reservados à União ou aos Municípios nados comportamentos pretendidos pelo
(art. 25, § 1o), além da distribuição de gás Poder Público; a realização de atividades
canalizado (art. 25, § 2o). culturais; a implementação de pesquisas na
Os serviços sociais são, à semelhança área de ciência e tecnologia; e a promoção
dos serviços públicos, “atividades cuja de atividades desportivas.
realização gera utilidades ou comodidades
que os particulares fruem direta e indivi- 1.3.2. Reforma do Estado dos anos 90
dualmente. No entanto, diferenciam-se Num curto retrospecto histórico, veri-
daqueles por não serem exclusivos do fica-se que, entre os anos 30 e 60 do século
Estado” (Sundfeld, 1992, p. 83). Incluem XX, o Estado foi um importante fator de
os serviços de educação (CF, art. 205 a 208 e desenvolvimento econômico e social dos
210 a 214), saúde (CF, art. 196 e seguintes) povos. Sua atuação foi mesmo decisiva no
e assistência social (CF, art. 203 e 204; 226, período que se seguiu à quebra da Bolsa de
§ 8o; e 227, § 1o). A prestação dos serviços Valores de Nova Iorque, em 1929, e no pe-
sociais é dever inafastável do Estado, mas ríodo posterior à Segunda Grande Guerra,
o objetivo do constituinte originário ao ou- nos idos 1945.
torgar tais competências ao Poder Público A partir dos anos setenta, a situação
não foi a de reservá-las, mas a de obrigar tomou outro rumo. Em razão das crises
o seu exercício, como comenta Carlos Ari do petróleo, do processo de globalização
Sundfeld (1992, p. 37): da economia e, principalmente, do cresci-

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 215


mento distorcido do Estado, este entrou em do Estado; e a produção de bens e serviços
crise e se transformou na principal causa para o mercado”.
de redução das taxas de crescimento, do As atividades exclusivas do Estado,
aumento da taxa de inflação e da elevação que o caracterizam como clássico ou li-
das taxas de desemprego. beral, são atividades monopolistas (pois
Fruto disso, surgem, como resposta a não permitem a concorrência), nas quais
esse quadro, a onda neoconservadora e o poder do Estado é exercido. Trata-se do
as reformas voltadas para a primazia do poder de definir as leis do país, poder de
mercado. Em certo momento, os neoliberais impor justiça, poder de manter a ordem, de
imaginaram que teriam como resultado o defender o país, de representá-lo no exte-
Estado mínimo. Entretanto, no início dos rior, de policiar, de arrecadar impostos, de
anos noventa, verificou-se a inviabilidade regulamentar as atividades econômicas e
da proposta neoliberal de Estado mínimo de fiscalizar o cumprimento das leis.
e, com isso, partiu-se para o caminho que Não obstante, além dessas atividades,
se julgou mais conveniente: a reconstrução há uma série de outras que lhe são tam-
do Estado. bém exclusivas correspondentes ao Estado
Nessa nova fase, o Estado – realizador Social. São atividades que “envolvem direi-
apenas de suas tarefas clássicas de garantia tos humanos fundamentais que qualquer
da propriedade e dos contratos – assume, sociedade deve garantir a seus cidadãos”
também, o papel de garantidor dos direitos (Pereira, 1997, p. 23). Podem-se citar as
sociais e de promotor da competitividade atividades de formular políticas na área eco-
na sua respectiva área de jurisdição. Com nômica e social; de realizar transferências
isso, torna-se necessário estudar a distinção para a educação, a saúde, a assistência so-
das atividades exclusivas de Estado dos cial, a previdência social, a garantia de uma
serviços sociais e científicos, bem como renda básica de cidadania – bandeira de lu-
a definição de uma propriedade pública tas do Senador Eduardo Matarazzo Suplicy
não-estatal entre a propriedade estatal e a (PT/SP) –, o seguro desemprego, a defesa
privada. do meio ambiente, a proteção do patrimô-
Nesse caminho, torna-se valioso definir nio cultural, o estímulo às artes. Apesar de
três processos de criação e transformação essas atividades não serem intrinsecamente
de instituições, que visavam a aumentar a exclusivas, são assim consideradas, dado o
governabilidade do país: a privatização, volume dos recursos financeiros que envol-
que é o processo de transformar uma vem nas suas transferências.
empresa estatal em privada; a publiciza- Conforme se verá na sequência, a Refor-
ção, que é o processo de transformar uma ma do Estado adotada pelo país em meados
organização estatal numa organização pú- da década de 90 cria, para melhor definir,
blica não-estatal; e a terceirização, definida uma nova classificação – serviços não exclu-
como o processo de transferir para o setor sivos – entre as atividades exclusivas e as
privado os serviços auxiliares ou de apoio de produção de bens e serviços para o mer-
do Estado. Com isso, pode-se apresentar os cado, além de desmembrar as atividades
componentes básicos da Reforma do Estado exclusivas em duas categorias: atividades
que, segundo Luiz Carlos Bresser Pereira típicas (ou exclusivas propriamente ditas)
(1997, p. 18,19), levariam ao Estado Social- e núcleo de atividade estratégica.
Liberal do século XXI.
Quando dessa análise, Luiz Carlos Bres- 1.3.2.1. Núcleo de atividades estratégicas
ser Pereira (1997, p. 22) distinguia três áreas O núcleo de atividades estratégicas
de atuação estatal: “as atividades exclusivas identifica-se com as funções indelegáveis
do Estado; os serviços sociais e científicos do Estado, atinentes aos poderes Legisla-

216 Revista de Informação Legislativa


tivo, Executivo e Judiciário, ao Ministério ou Terceiro Setor que, basicamente, explora
Público, à Presidência da República e aos as áreas de saúde, educação, assistência
demais órgãos de direção, execução e social e cultura. Com a Reforma do Estado,
consulta que integram as pessoas estatais ocorre a implementação da transferência de
responsáveis pelo planejamento e pela boa parte desses serviços, que saem da alça-
formulação das políticas públicas. da do Poder Público para serem executados
Por definição, a propriedade, no núcleo por entidades em colaboração.
estratégico (e nas atividades exclusivas Interessante notar que se o seu finan-
do Estado), deverá ser estatal. O núcleo ciamento, em grandes proporções, é uma
estratégico, além dos instrumentos tradi- atividade exclusiva do Estado – seria muito
cionais – aprovação de leis pelo Congresso difícil garantir educação fundamental e
Nacional; definição de políticas públicas saúde pública gratuitas contando apenas
pela Presidência da República e pela cúpula com a caridade da sociedade civil –, mas
dos Ministérios; e emissão de sentenças a sua execução, em si, pode ser compar-
e acórdãos pelo Poder Judiciário –, conta tilhada com entidades privadas, pois são
com dois novos instrumentos: o contrato “atividades competitivas, que podem ser
de gestão e o termo de parceria. controladas não apenas através da admi-
nistração pública gerencial, mas também e
1.3.2.2. Atividades exclusivas de Estado principalmente através do controle social
As atividades exclusivas de Estado, e da constituição de quase-mercados” (Pe-
também chamadas de próprias ou típicas, reira, 1997, p. 25).
são os serviços nos quais o Estado age como Nessa linha de raciocínio, não há razão
regulamentador, fiscalizador ou fomenta- para que essas atividades permaneçam
dor das políticas públicas. Determinadas dentro do Estado. Por outro lado, não se
atividades – como diplomacia, polícia justifica que sejam privadas – voltadas
judiciária, arrecadação e fiscalização de tri- para o lucro e o consumo privado – pois
butos, procuradoria fazendária, regulação são atividades fortemente subsidiadas pelo
de setores de infraestrutura – compõem o Estado. Por isso, a Reforma do Estado nessa
rol das funções típicas de Estado. área não implica privatização, mas publi-
Por razões de segurança e de sobera- cização, ou seja, transferência para o setor
nia nacionais, as atividades exclusivas de público não estatal.
Estado não podem ser privatizadas nem No setor de serviços não exclusivos do
terceirizadas. Devem ser desempenhadas Estado, a propriedade deverá ser, em prin-
por pessoas jurídicas de direito público, cípio, pública não estatal. Não deverá ser
precipuamente por órgãos, autarquias ou estatal, porque não envolve o uso do poder
fundações. do Estado. Por outro lado, não deve ser pri-
Na reforma do Estado, as atividades vada, porque pressupõe transferências de
exclusivas de Estado devem, naturalmen- recursos do Estado. Assim, a propriedade
te, permanecer dentro do Estado. Nessa deve ser pública, para justificar os subsídios
reforma, pode-se distinguir, verticalmente, recebidos do Estado. O fato de ser pública
no seu topo, o núcleo estratégico e, horizon- não estatal, por sua vez, implicará a necessi-
talmente, as secretarias formuladoras de dade de a atividade ser controlada de forma
políticas públicas, as agências executivas e mista: pelo mercado e pelo Estado.
as agências reguladoras. Por tudo isso, verifica-se que o espaço
público é mais amplo que o estatal. Em
1.3.2.3. Serviços não exclusivos princípio, todas as organizações sem fins
Os serviços não exclusivos são aqueles lucrativos são ou devem ser organizações
desenvolvidos pelo setor público não estatal públicas não estatais. “São ou devem ser

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 217


porque uma entidade formalmente públi- a do Estado que, na área econômica,
ca sem fins lucrativos pode – na verdade pode ser a de distribuir renda”.
– tê-los. Nesse caso, trata-se de uma falsa Com a promulgação da Emenda Cons-
entidade pública. São comuns casos desse titucional 19, de 1998, que modificou a
tipo” (Idem, p. 26). redação do § 1o do art. 173 da Constituição
Nessa linha, retira-se a interpretação da República, a exploração de atividade
de que a propriedade pública se subdivide econômica pelo Estado ficou ainda mais
em estatal e não estatal. As instituições de restrita.
Direito Privado – como as organizações não Assim, a privatização – segundo a filo-
governamentais – voltadas para o interesse sofia da Reforma do Estado – é a melhor
público e não para o consumo privado não alternativa quando a instituição pode gerar
são entidades privadas, devendo ser classi- todas as suas receitas da venda de produtos
ficadas como públicas não estatais. e serviços e o mercado tem condições de
assumir suas atividades. Quando isso não
1.3.2.4. Produção para o mercado acontece, volta-se ao domínio do Terceiro
Essa área, também chamada de Quarto Setor, abrindo-se espaço para o público
Setor, refere-se às atividades de cunho eco- não estatal.
nômico – produção e circulação de bens e
1.3.3. A crise financeira
serviços – que o Estado realiza por força do
mundial de 2007/2008
texto constitucional. No bojo da Reforma do
1.3.3.1. Antecedentes
Estado, empreendida no país pelo Governo
Fernando Henrique Cardoso, a titularidade Como antecedentes dessa grande crise
de grande parte das empresas públicas financeira que ainda abala o mundo nos
passou para a iniciativa privada. dias correntes, deve-se registrar os choques
A atividade de produção para o merca- dos preços do petróleo ocorridos em 1973
do, exceto no modelo comunista, foi sempre e 1979, com o consequente esgotamento do
operada por empresas privadas. Entretanto, ciclo de expansão do período posterior à
no século passado, o Estado interveio nessa Segunda Grande Guerra.
área, principalmente nos setores industrial, Naquela época, a economia mundial vi-
de infraestrutura e mineração, para suprir via sob o chamado Sistema Bretton Woods
a falta de investimentos do setor privado e de gerenciamento econômico internacional,
para auferir elevados lucros que poderiam fruto das conferências de mesmo nome que
ser realizados. Sobre essa interferência do estabeleceram, em 1944, as regras para as
Estado, escreve Luiz Carlos Bresser Pereira relações comerciais e financeiras entre os
(1997, p. 24): países mais industrializados do mundo.
“Ficou definitivamente claro que a Preparando-se para reconstruir o capita-
atividade empresarial não é própria lismo mundial enquanto a Segunda Guerra
do Estado, já que pode ser melhor e Mundial ainda grassava, 730 delegados de
mais eficientemente controlada pelo todas as 44 nações aliadas encontraram-se
mercado do que Administração. em Bretton Woods, nos Estados Unidos,
Além de o controle do Estado ser para a Conferência Monetária e Financeira
ineficiente quando comparado com das Nações Unidas.
o mercado, o controle estatal tem Definindo um sistema de regras, ins-
ainda o inconveniente de submeter tituições e procedimentos para regular a
a operação das empresas a critérios política econômica internacional, os plani-
políticos muitas vezes inaceitáveis, e ficadores de Bretton Woods estabeleceram
a confundir a função da empresa, que o Banco Internacional para a Reconstrução
é a de ser competitiva e ter lucros com e Desenvolvimento (BIRD) e o Fundo Mo-
218 Revista de Informação Legislativa
netário Internacional (FMI). Essas organi- 1.3.3.2. Cronologia da crise
zações tornaram-se operacionais em 1946,
No período compreendido entre os anos
depois que um número suficiente de países
de 2001 e 2006, ocorreu um fenômeno que
ratificou o acordo.
os economistas denominaram de bolha
As principais disposições do sistema
imobiliária. Nesse período havia uma
Bretton Woods foram, primeiramente, a
abundância de crédito nos Estados Unidos,
obrigação de cada país adotar uma política
com juros que giravam em torno de 1% ao
monetária que mantivesse a taxa de câmbio
ano, implicando intensa liquidez no mer-
de suas moedas dentro de um determinado
cado. Com esse grande volume de dinheiro
valor indexado ao dólar – mais ou menos um
fácil circulando, a classe média americana
por cento – cujo valor, por sua vez, estaria
percebeu que era um bom negócio hipote-
ligado ao ouro numa base fixa de 35 dólares
car suas próprias casas – financiadas ainda,
por onça e, em segundo lugar, a provisão
em sua grande maioria – e, com o dinheiro
pelo FMI de financiamento para suportar
conseguido a juros baixos, injetar capitais
dificuldades temporárias de pagamento.
no mercado de ações, visando a receber
Esse sistema chegou à exaustão, ao final
dividendos maiores que os pagos às em-
da década de 70, com a crise do Estado de
presas de hipoteca. Com isso, a médio ou
Bem-Estar Social, pelo recrudescimento do
longo prazo, teriam um patrimônio maior
fenômeno da estagflação, definida como
em ações que o valor pago nas prestações
uma situação típica de recessão, ou seja,
das hipotecas.
diminuição das atividades econômicas e
Com isso, avolumou-se a quantidade
aumento dos índices de desemprego, com
de créditos bancários de alto risco, ou
crescimento de inflação. A estagflação asso-
subprimes, que incluíam desde emprésti-
lou o mundo durante a década de 1970, de
mos hipotecários até cartões de créditos e
um lado pelo superaquecimento das econo-
aluguéis de carros, e eram concedidos, por
mias dos países desenvolvidos, a partir da
ganância do rendimento fácil, a clientes
excessiva expansão de procura agregada, o
sem comprovação de renda e com histórico
que levou a pressões inflacionistas; de outro
ruim de crédito. As taxas de juros eram pós-
lado, pela redução da oferta agregada, a
fixadas, isto é, determinadas no momento
partir das restrições impostas pelos países
do pagamento das dívidas. Por essa razão,
produtores de petróleo, perdas de safras e
com a elevação gradual da taxa de juros nos
redução das atividades em setores que de-
Estados Unidos, muitos mutuários ficaram
pendem do petróleo como matéria-prima,
inadimplentes, isto é, sem condições de pa-
ou simplesmente como complemento,
gar as suas dívidas aos bancos. É o estouro
levando ao desemprego.
da bolha imobiliária ou crise do subprime.
Como consequência da ruptura do Sis-
Em síntese, a crise do subprime é a crise
tema Bretton Woods, o mundo vivenciou a
financeira desencadeada no fim de 2006 e
supressão das restrições à livre movimen-
início de 2007, a partir da quebra de insti-
tação do capital e a desregulamentação
tuições de crédito dos Estados Unidos, que
geral da economia, gerando a expansão e
concediam empréstimos hipotecários de
posterior integração do Sistema Financeiro
alto risco, arrastando vários bancos para
Mundial com a difusão à escala global das
uma situação de insolvência e repercutindo
políticas e processos de autorregulação dos
fortemente sobre as bolsas de valores de
mercados1.
todo o mundo.
Inicialmente, a crise teve amplitude
1
Dados colhidos de palestra proferida pelo Sena-
dor Aloizio Mercadante (PT/SP) para os membros da limitada a instituições dos Estados Unidos.
Liderança do Bloco de Apoio do Governo no Senado Em fevereiro de 2007, o Banco HSBC regis-
Federal em 20/11/2008. tra uma perda de US$ 10 milhões. A crise do

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 219


crédito hipotecário havia provocado uma mercados falharam em sua autorregulação
crise de confiança geral no sistema financei- – ter que reassumir determinadas áreas de
ro, bem como a falta de dinheiro disponível atuação, agindo diretamente, controlando
para saque imediato pelos correntistas dos ou regulando a conduta dos particulares
bancos (crise de liquidez). cujas atividades tenham repercussão direta
Na sequência, ocorre a falência da finan- na população mais carente.
ceira New Century Financial e, entre agosto
de 2007 e setembro de 2008, as intervenções 2. Terceiro Setor
no Banco Northern Rock, nas agências finan-
2.1. Conceito e características
ceiras de empréstimos pessoais e hipotecá-
2.1.1. Conceito
rios Fannie Mae e Freddie Mac, e a falência
do Banco Lehman Brothers. As ações da AIG, Terceiro Setor, segundo Paulo Modes-
a maior seguradora dos Estados Unidos, to (1998, p. 56), é o “conjunto de pessoas
caíram 60% e as maiores montadoras de jurídicas privadas de fins públicos e sem
automóveis do país – GM, Ford e Chrysler – finalidade lucrativa, constituídas volun-
recorreram aos cofres públicos, como ultima tariamente, auxiliares do Estado na per-
ratio, para evitar a iminente falência. secução de atividades de conteúdo social
Em outubro de 2008, a crise econômica relevante”. Daí, retira-se que ele não deve
toma proporções globais, com o travamento ser confundido com “setor terciário”, que
do crédito e a retração da liquidez interna- é como, nas ciências econômicas, costuma
cional. Segundo a revista Carta Capital, edi- ser designado o setor de serviços, ou seja, o
ção 523, de 21/11/2008 , a partir do estouro conjunto de produtos da atividade humana
da bolha imobiliária, as perdas registradas que satisfazem uma necessidade da popu-
das instituições financeiras foram de US$ lação, sem assumir a forma de um bem ma-
580 bilhões, a estimativa total das perdas do terial. Como exemplo de serviços, pode-se
mercado financeiro foi de US$ 2,8 trilhões e a citar o ensino, os transportes, o comércio,
desvalorização patrimonial nas bolsas de va- as comunicações e a diversão.
lores foi de US$ 32 trilhões. Com isso, ocorre A expressão Terceiro Setor é utilizada
uma intervenção coordenada dos bancos em contraposição à ideia de que o primeiro
centrais, as economias avançadas entram em setor é constituído pelo Estado, incapaz
recessão e os países emergentes sofrem uma de promover sozinho o bem-estar social,
desaceleração no seu crescimento. e de que o segundo setor é formado pelo
Apesar de o Brasil figurar entre os pri- mercado, que se interessa apenas pela pro-
meiros países que conseguiram “sair da cri- dução de bens e serviços que dão retorno.
se”, em final de 2009, vários ensinamentos No dizer de Athayde Motta (1994, p. 108),
podem ser retirados dos momentos difíceis “enquanto o mercado existe para gerar
vividos. Para o tema em questão, fica a ideia lucro e o Governo para prover a estrutura
da necesidade de um controle judicioso dos essencial para a aplicação da lei e da ordem
gastos públicos, pois não há fontes de recur- e a promoção do bem-estar geral, o Terceiro
sos externos com dinheiro fácil a financiar Setor existe para prover algum serviço ou
projetos de pouco retorno econômico ou alguma causa”.
social. É hora de aplicar os recursos públicos Para o Programa Comunidade Solidária
segundo prioridades claras e acompanha- (1998, p. 60), conduzido pela professora
das de controle transparente efetuado pelo Ruth Cardoso, de saudosa lembrança, o
próprio Estado com o suporte da sociedade conceito de Terceiro Setor inclui:
civil. Vislumbra-se a necessidade de o Esta- “o amplo espectro das instituições fi-
do – contrariando a teoria neoliberal, que se lantrópicas dedicadas à prestação de
desfez com essa crise financeira, na qual os serviços nas áreas de saúde, educação

220 Revista de Informação Legislativa


e bem-estar social. Compreende tam- por serem pessoas privadas que colaboram
bém as organizações voltadas para com o Estado no desempenho de atividade
a defesa de grupos específicos da não lucrativa. Por isso, o Poder Público
população, como mulheres, negros e dispensa a elas especial proteção, conce-
povos indígenas, ou de proteção ao dendo-lhes algumas benesses do seu poder
meio ambiente, promoção do esporte, de império, como na esfera tributária, por
cultura e lazer”. exemplo. Não abrangem as entidades da
Administração indireta; trata-se de pessoas
2.1.2. Características privadas que exercem função estatal (em-
Como uma das limitações ao poder de bora não exclusiva de Estado), como as de
tributar da União, dos Estados, do Distrito amparo aos hipossuficientes, de assistência
Federal e dos Municípios, é vedado – con- social, de formação profissional.
forme o art. 150, inciso VI, letra “c”, da O desempenho das atividades prote-
Constituição da República (CR) – instituir tórias por entidades que colaboram com o
impostos sobre “patrimônio, renda ou Estado faz com que as mesmas se coloquem
serviços dos partidos políticos, inclusive próximas ao Estado, paralelas a ele, como
suas fundações, das entidades sindicais dos escreve Maria Sylvia Zanella Di Pietro
trabalhadores, das instituições de educação (2007, p. 250):
e de assistência social, sem fins lucrativos, “Em todas essas entidades do terceiro
atendidos os requisitos da lei”. setor, estão presentes os mesmos tra-
É interessante destacar que essa veda- ços: são entidades privadas, instituí-
ção, consoante o previsto no § 4o do art. das por particulares; desempenham
150, da CR, compreende “somente o patri- serviços não exclusivos do Estado,
mônio, a renda e os serviços relacionados porém em colaboração com ele; se
com as finalidades essenciais das entidades receberem ajuda ou incentivo do Es-
nelas mencionadas”. tado, sujeitam-se a controle pela Ad-
No tocante ao financiamento da seguri- ministração Pública e pelo Tribunal
dade social, a Constituição declara, no art. de Contas. Seu regime jurídico é de
195, § 7o, que “são isentas de contribuição direito privado, porém parcialmente
para a seguridade social as entidades bene- derrogado por normas de direito
ficentes de assistência social que atendam público”.
às exigências estabelecidas em lei”.
Ao tratar da Assistência Social, a Cons- 2.2. Prestação de serviços públicos em
tituição estabelece, no art. 204, as diretrizes parceria com entidades do terceiro setor
para a execução das ações governamentais A partir da Reforma do Estado, imple-
realizadas com recursos do orçamento da mentada no Brasil em meados da década
seguridade social. Da leitura, verifica-se de noventa, a prestação de boa parte dos
que a Constituição da República reconhece serviços não exclusivos do Estado, como
a importância da colaboração da iniciativa os de saúde, educação, assistência social e
privada na execução de tarefas considera- cultura, passou a ser executada por entes
das eminentemente públicas, bem como em colaboração. É o caso, por exemplo, das
consolida, segundo Emile P. J. Boudens Organizações Sociais (OS), que pactuam
(2000, p. 2), “uma longa tradição de incen- contratos de gestão com a Administração,
tivos às associações que, de forma desinte- as Organizações da Sociedade Civil de
ressada e sem visar ao lucro, se dedicam às Interesse Público (OSCIP), que celebram
causas humanitárias”. termos de parceria com o ente estatal, os
As entidades do Terceiro Setor, também contratos de concessão ou de permissão, as
chamadas de paraestatais, caracterizam-se parcerias público-privadas e os convênios

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ou as transferências voluntárias. Desses, – transformando-as em organizações so-
serão apresentados os que mais de perto ciais, mas o instituto, como um todo, “vem
dizem respeito à atuação das organizações gerando dúvidas e críticas, em virtude,
não governamentais. principalmente, da preocupação com a
Num apanhado geral do Plano Dire- preservação do patrimônio público e com
tor da Reforma do Aparelho do Estado, a gratuidade e universalidade de acesso a
verifica-se que o Programa Nacional de serviços públicos nas áreas citadas” (Me-
Publicização origina-se do pressuposto de dauar, 2003, p. 108).
que os serviços prestados por entidades O art. 2o da citada “Lei das OS” – Lei
do Terceiro Setor são mais eficientes, pois 9.637/1998 – apresenta os requisitos para
enfatizam os resultados em relação aos que a pessoa jurídica interessada receba
mecanismos de controle. a qualificação de organização social. Da
leitura do dispositivo legal, verifica-se que
2.2.1. Organizações sociais ao Administrador é dado o poder discri-
A partir de 1998, com a publicação da cionário de qualificar ou não uma pessoa
Lei 9.637, as pessoas jurídicas de direito jurídica interessada como organização
privado, sem fins lucrativos, cujas ativi- social. Como se verá mais à frente, esse é
dades sejam dirigidas à saúde, ao ensino, um ponto que vai diferir as Organizações
à pesquisa científica, ao desenvolvimento Sociais das OSCIP: a qualificação como OS
tecnológico, à proteção e preservação do é poder discricionário do Administrador.
meio ambiente e à cultura poderão ser Observa-se, também, que um dos requi-
qualificadas pelo Poder Executivo federal sitos impostos é o de a entidade ter como
como organizações sociais (OS). órgão de deliberação superior um conselho
De pronto, constata-se, efetuada ligeira de administração, integrado por represen-
comparação, que o rol de atividades possí- tantes do poder público e de membros da
veis das organizações sociais – saúde, edu- comunidade, de notória capacidade profis-
cação, meio ambiente e cultura – é restrito sional e idoneidade moral.
em relação à lista de atividades possíveis A entidade qualificada como OS – decla-
das OSCIPs. rada de interesse social e utilidade pública
Interessante notar que, nesse processo para todos os fins legais – pode celebrar
de criação, é subjacente a ideia de for- contrato de gestão com o poder público,
mular contratos de gestão com entidades para a formação de parceria no fomento e
privadas, instituídas por particulares, para execução das atividades nas áreas de saúde,
desempenhar atividades não exclusivas do educação, meio ambiente e cultura. Assim,
Estado dirigidas ao ensino, à pesquisa cien- pode receber recursos orçamentários e até
tífica, ao desenvolvimento tecnológico, à bens públicos, por meio de permissão de
proteção e preservação do meio ambiente e uso, para o cumprimento dos objetivos do
à saúde. Na concepção inicial das organiza- contrato de gestão. “Dessa forma, o poder
ções sociais, a linha-mestra original – pelo público deixará de ser o executor direto de
Programa Nacional de Publicização – era atividade e serviços naquelas áreas, para
a extinção de órgãos e entidades públicas ser incentivador, fornecedor de recursos e
que desenvolviam atividades e serviços fiscal da execução” (Idem).
públicos não exclusivos do Estado e a Como característica singular das or-
absorção desses serviços e atividades por ganizações sociais, tem-se que o fomento
organizações sociais. público pode decorrer de investimentos
A União extinguiu duas instituições financeiros, de cessão de bens públicos ou
federais – a Fundação Roquete Pinto e o de cessão de pessoal. Quando a entidade
Laboratório Nacional de Luz Síncrotron privada busca ser qualificada como orga-

222 Revista de Informação Legislativa


nização social, sua finalidade precípua é, Federal e dos Municípios obedecerá
no passo seguinte, firmar um contrato de aos princípios de legalidade, impes-
gestão com o Poder Público para receber soalidade, moralidade, publicidade
repasses de recursos financeiros públicos e eficiência e, também, ao seguinte: 
e, assim, desenvolver suas atividades em (Redação dada pela Emenda Consti-
melhores condições. Ao receber recursos tucional no 19, de 1998)”.
públicos, por meio de contrato de gestão, O inciso XXI desse art. 37, ao determi-
a empresa privada reduz sua autonomia, nar que obras, serviços e compras devem
conforme ensina Roberta Fragoso Kauf- ser contratados por processo licitatório,
mann (2008, p. 3): excetua casos específicos previstos na le-
“Por meio de contratos de gestão, gislação:
são fixados objetivos que a OS deve “XXI – ressalvados os casos especifi-
alcançar, coerentes com o Plano de cados na legislação, as obras, serviços,
Governo. Dessa forma, a empresa compras e alienações serão contrata-
terá uma menor autonomia do que dos mediante processo de licitação
normalmente teria na iniciativa pri- pública que assegure igualdade de
vada, mas, por outro lado, diminui- condições a todos os concorrentes,
se o controle sobre a execução de com cláusulas que estabeleçam obri-
tais atividades, se comparado com gações de pagamento, mantidas as
os entes da Administração Pública condições efetivas da proposta, nos
Indireta”. termos da lei, o qual somente per-
O contrato de gestão estabelece uma re- mitirá as exigências de qualificação
lação entre o controle financeiro – executado técnica e econômica indispensáveis
a partir dos resultados – e o planejamento. à garantia do cumprimento das
Quando constatar o descumprimento de obrigações”.
disposições do contrato de gestão, o poder Em 1998, a Lei 9.648 acrescenta o inciso
público poderá desqualificar a entidade, XXIV ao art. 24 da Lei 8.666/1993 (Lei de
importando a reversão dos bens permitidos Licitações), permitindo a dispensa de licita-
e dos valores entregues, respondendo os ção e a contratação direta de organizações
seus dirigentes individual e solidariamente sociais pelo Poder Público:
pelos danos ou prejuízos causados por ação “Art. 24. É dispensável a licitação:
ou omissão. [...]
Na discussão do tema objeto deste XXIV – para a celebração de contra-
trabalho, duas questões saltam aos olhos: tos de prestação de serviços com as
(a) está o Poder Público obrigado a licitar organizações sociais, qualificadas no
o contrato a ser firmado com uma OS? (b) âmbito das respectivas esferas de go-
a OS precisa fazer licitação para contratar verno, para atividades contempladas
bens e serviços? no contrato de gestão”.
Inicialmente, da leitura do caput art. 37 O Supremo Tribunal Federal (STF), em
da Constituição da República, que encabeça julgamento de medida cautelar na Ação
o capítulo “Da Administração Pública”, Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1923-
verifica-se que os preceitos ali contidos MC/DF, considerou – liminarmente – que
são endereçados aos órgãos e entidades da é constitucional a dispensa de licitação
administração pública direta e indireta, não para a realização de contrato de gestão
se aplicando às OS, conforme se vê: entre o Poder Público e as organizações
“Art. 37. A administração pública di- sociais (OS).
reta e indireta de qualquer dos Pode- Com isto, a resposta da primeira per-
res da União, dos Estados, do Distrito gunta formulada, até o julgamento pelo

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STF do mérito da ADI 1923, é a de que a cação como OSCIP, ainda que se dediquem
Administração Pública não está obrigada às atividades acima expostas, os seguintes
a submeter à licitação o contrato a ser fir- entes: sociedades comerciais; sindicatos,
mado com organizações sociais. associações de classe ou de representação
Os dados colhidos e apresentados até de categoria profissional; instituições reli-
o momento levam a pensar que a resposta giosas; organizações religiosas, inclusive
para a segunda pergunta – a Organização suas fundações; entidades de benefício
Social precisa fazer licitação para contratar mútuo destinadas a proporcionar bens e
bens e serviços? – é, também, negativa. serviços a um círculo restrito de associados;
Porém, quando se faz a leitura dos artigos empresas que comercializam planos de saú-
1o e 5o do Decreto 5.504/2005 – que, em sua de e assemelhados; instituições hospitalares
ementa, “estabelece a exigência de utiliza- privadas não gratuitas e suas mantenedo-
ção do pregão, preferencialmente na forma ras; escolas privadas dedicadas ao ensino
eletrônica, para entes públicos ou privados, formal não gratuito e suas mantenedoras;
nas contratações de bens e serviços comuns, organizações sociais; cooperativas; funda-
realizadas em decorrência de transferências ções públicas; fundações, sociedades civis
voluntárias de recursos públicos da União, ou associações de direito privado criadas
decorrentes de convênios ou instrumentos por órgão público ou por fundações públi-
congêneres, ou consórcios públicos” –, cas; e organizações creditícias vinculadas
chega-se à conclusão de que a OS, quando com o sistema financeiro nacional.
utilizar recursos públicos, deve empreen- O art. 4o da Lei 9790/1999 indica algu-
der processo licitatório na aquisição de bens mas normas que deverão ser inseridas nos
e serviços. estatutos das pessoas jurídicas interessadas,
Assim, verifica-se que há um claro des- entre as quais se destacam: observância dos
compasso na legislação federal que regula princípios da legalidade, impessoalidade,
a matéria. Como isso ocorre também com moralidade, publicidade, economicidade e
as organizações da sociedade civil de in- da eficiência; adoção de práticas de gestão,
teresse público, o assunto será dissecado necessárias e suficientes a coibir a obtenção,
mais à frente. de forma individual ou coletiva, de benefí-
cios ou vantagens pessoais em decorrência
2.2.2. Organizações da sociedade da participação no respectivo processo
civil de interesse público decisório; prestação de contas de todos os
A mesma ideia de publicização, que recursos públicos e bens de origem pública
ensejou a criação das OS, deu corpo, por pelos sistemas de controle interno e externo
meio da Lei 9.790, de 1999, a uma nova (Legislativo auxiliado pelo TCU).
entidade: a organização da sociedade civil A pessoa jurídica de direito privado,
de interesse público (OSCIP). Trata-se de sem fins lucrativos, qualificada como OS-
uma qualificação atribuída pelo Ministério CIP pode celebrar termo de parceria com
da Justiça à pessoa jurídica de direito priva- o Poder Público, “destinado à formação
do2, sem fins lucrativos, cujo objeto social de vínculo de cooperação entre as partes,
contemple alguma das atividades previstas para o fomento e a execução das atividades
no art. 3o da Lei 9790/1999. de interesse público desenvolvidas pela
Da leitura do art. 2o da referida lei, de- entidade assim qualificada” (Medauar,
preende-se que não são passíveis de qualifi- 2003, p. 110). A Lei 9790/1999 definiu ex-
pressamente, no § 1o do art. 1o, o conceito
2
Diferentemente do que ocorre para as OS, a
outorga da qualificação aqui é ato vinculado. Preenchi-
de entidade sem fins lucrativos:
dos os requisitos, a pessoa jurídica de direito privado “§ 1o Para os efeitos desta Lei, consi-
interessada receberá a qualificação de OSCIP. dera-se sem fins lucrativos a pessoa

224 Revista de Informação Legislativa


jurídica de direito privado que não sem fins lucrativos não remunerar seus
distribui, entre os seus sócios ou dirigentes para serem abarcadas pela não-
associados, conselheiros, diretores, tributação de impostos não vale para as
empregados ou doadores, eventuais OSCIP e OS.
excedentes operacionais, brutos ou Uma questão que sempre se apresenta é
líquidos, dividendos, bonificações, se a OSCIP deve cumprir os dispositivos da
participações ou parcelas do seu lei de licitações ou apenas deve se submeter
patrimônio, auferidos mediante o a regulamento próprio, por ela publicado,
exercício de suas atividades, e que os que observe os princípios norteadores da
aplica integralmente na consecução Administração Pública. A resposta a essa
do respectivo objeto social”. indagação vem da leitura do art. 14 da Lei
O termo de parceria – instrumento 9.790/1999:
jurídico de fomento e gestão das relações “Art. 14. A organização parceira fará
de cooperação entre entidades privadas publicar, no prazo máximo de trinta
e o Estado – “tem o objetivo de imprimir dias, contado da assinatura do Termo
maior agilidade gerencial aos projetos e de Parceria, regulamento próprio
realizar o controle pelos resultados, com contendo os procedimentos que
garantias de que os recursos estatais sejam adotará para a contratação de obras
utilizados de acordo com os fins públicos” e serviços, bem como para compras
(Kaufmann, 2008, p. 2). com emprego de recursos provenien-
Para escolher a OSCIP que firmará o tes do Poder Público, observados os
termo de parceria, a Administração Pública princípios estabelecidos no inciso I
pode lançar mão de concurso de projetos, do art. 4o desta Lei”.
com base no Decreto 3.100/1999 (art. 23 e Ao compulsar o inciso I do art. 4o da ci-
seguintes), que regulamenta a Lei das OS- tada lei, verifica-se a imposição de a OSCIP
CIPs (Lei 9.790/1999). O art. 11 desta Lei observar os princípios da Administração,
determina que a fiscalização das atividades conforme se vê:
das OSCIPs é realizada pela Administração “Art. 4o Atendido o disposto no art.
Pública, pelo Conselho de Políticas Públicas 3o, exige-se ainda, para qualificarem-
e pelo TCU. se como Organizações da Sociedade
No que tange às limitações ao poder de Civil de Interesse Público, que as
tributar, é vedado à União, aos Estados, pessoas jurídicas interessadas sejam
ao Distrito Federal e aos Municípios ins- regidas por estatutos cujas normas
tituir impostos sobre patrimônio, renda expressamente disponham sobre:
ou serviços das instituições de educação I – a observância dos princípios da
e de assistência social, sem fins lucrativos, legalidade, impessoalidade, morali-
atendidos os requisitos da lei (art. 150, VI, dade, publicidade, economicidade e
“c”, da Constituição da República). da eficiência;”.
O art. 12 da Lei 9.532/1997, que regula Da decisão contida no Acórdão
esse dispositivo constitucional, considera 1777/2005-Plenário, do Tribunal de Con-
“imune a instituição de educação ou de tas da União, publicada no Diário Oficial
assistência social que preste os serviços da União de 22/11/2005, retira-se que as
para os quais houver sido instituída e os OSCIPs “submetem-se ao Regulamento
coloque à disposição da população em ge- Próprio de contratação de obras e serviços,
ral, em caráter complementar às atividades bem como para compras com emprego de
do Estado, sem fins lucrativos”. recursos provenientes do Poder Público,
Segundo a dicção do art. 34 da Lei observados os princípios da legalidade,
10.637/2002, a imposição de as entidades impessoalidade, moralidade, publicidade,

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economicidade e da eficiência”, não se apli- ou das pessoas mais carentes (Service to the
cando aos “Termos de Parceria celebrados People).
entre a Administração Pública Federal e as O verdadeiro serviço social, o trabalho
OSCIPs as normas relativas aos Convênios, social puro sem fins lucrativos, é feito por
especificamente a IN 01/97-STN”. poucos abnegados que, em boa parte das
Dessa análise, verifica-se que a OSCIP vezes, estão ligados, de uma forma ou de
não está obrigada a cumprir os ditames outra, à causa que defendem. No Brasil,
do processo licitatório imposto pela Lei como regra geral, os membros das entida-
8.666/1993. Ela submete-se apenas aos des filantrópicas que dão suporte às crian-
princípios gerais da Administração Pública ças com Síndrome de Dawn, por exemplo,
e estabelece, em regulamento próprio, os são parentes de crianças que possuem a
procedimentos que adotará para contra- doença; as associações de excepcionais
tação de obras e serviços com emprego de são formadas, em sua maioria, por pais de
recursos provenientes do Poder Público. crianças excepcionais; as que socorrem as
Todavia, com a publicação do Decreto crianças com câncer são integradas, lugar-
5.504, em agosto de 2005 – como se viu comum, por pais e parentes de crianças que
quando do estudo das organizações sociais possuem ou possuíram a doença.
–, as obras, compras e serviços realizados Tirando a vertente religiosa, que pela
pelas OS ou pelas OSCIPs com recursos re- fé leva o homem a trabalhos belíssimos
passados pela União devem ser contratados em prol dos irmãos necessitados, faz-se
mediante processo licitatório estabelecido necessário um impulso valorativo que, em
pela Lei de Licitações. detrimento de qualquer vantagem pessoal
Com base no art. 4o desse mesmo de- visível, leve o ser humano a realizar ser-
creto, o Ministro do Planejamento, Orça- viços úteis em benefício de pessoas ou de
mento e Gestão e o Ministro da Fazenda grupos de necessitados. Isso, no mais das
publicaram a Portaria Interministerial 217, vezes, somente ocorre com educação. O
de 31/07/2006 (alterada, em maio de 2007, homem precisa ser educado para servir.
pela de número 150), na qual determinam O ponto ideal seria, numa visão, a rea-
que os processos licitatórios que envolvam lização do amor mais puro, porque aquele
repasse voluntário de recursos públicos que dá sem qualquer necessidade de retor-
sejam efetivados por meio de pregão, no, seja em proteção, amizade, sexo, dinhei-
preferencialmente na forma eletrônica, ro, vai, na direção do humilde, do doente,
excetuando as OS e as OSCIPs dessa obri- do excepcional, do sofrido e do necessitado,
gatoriedade. com a mesma leveza que volta para o peito
Pelo que se vê, tantas idas e vindas na de onde saiu, sem carga, sem contrapeso,
legislação mostram um descompasso na sem cobrança. O amor de Deus! O homem
tentativa de enquadramento das entidades precisa ser educado a exercitar esse amor,
sociais como realizadoras, como entes em para dele tirar os grandes benefícios que só
colaboração, de boa parte dos serviços não o ato de servir proporciona.
exclusivos do Estado, como os de saúde, O ponto fulcral é o de que todo cidadão
educação, assistência social e cultura. Por deve ter consciência de que é importante
que isso acontece? Uma hipótese bem para ele o desempenho de um serviço
palpável é a de que a Reforma do Estado – social que beneficie a comunidade. Se a
aplicada, no País, pelos neoliberais –, neste vertente altruísta, que se supõe existir em
aspecto, veio antes do costume: a sociedade cada um, é de difícil despertar, que seja
brasileira não aprendeu a valorizar, ainda, criada e mantida – como bem faz os Es-
o trabalho social despendido pelas pessoas tados Unidos – a valorização, para todos
em benefício da Nação (Service to the Nation) os fins, da importância do trabalho social

226 Revista de Informação Legislativa


que cada um efetivamente realiza para o colocadas nas esquinas do interior, estão
bem da Nação ou dos mais fracos de seu os dizeres que valem para quase tudo:
país e, num segundo plano, para o bem do “Neighborhood watching!”3
mundo inteiro. Uma pessoa desempregada, por exem-
No interior dos Estados Unidos, nos plo, com algum desequilíbrio não acom-
Estados do Kansas e do Missouri, por panhado, que tenta várias vezes, mas não
exemplo, a sociedade foi educada para consegue trabalhar; que não é ajudada pelo
realizar um trabalho benemérito em prol Estado, por seus vizinhos ou pelas pessoas
de todo o conjunto. É tanto que, como abastadas do lugar; que, pelo contrário, é
exemplo, o sujeito pouco gregário (ou sem motivo de escárnio de todos no seu bairro,
tempo para se preparar) passa o domingo pode, um dia, matar até o Presidente da
pela manhã, no mínimo, limpando as ro- República, como o fez Lee Harvey Oswald,
dovias que circundam o lugar onde vive em 22/11/1963, em Dallas, no Texas.
para, ao final, se cobrado, poder dizer que Uma vez estabelecida a cultura da
despende parte do seu tempo em benefício necessidade de ser gregário, fica muito
da coletividade. mais fácil existir uma pletora de entidades
Há uma cobrança social. A pessoa, para que realmente sejam sem fins lucrativos,
ser bem aceita no convívio em sociedade, estabelecidas para operar em proveito dos
não basta ser endinheirada ou possuir necessitados e que, a partir desse grande
títulos de estudo; mais que isso, precisa número de entidades com reais vocações de
demonstrar com ações que é sensível aos bem servir, possam disputar e acompanhar,
problemas que afetam os que de alguma porque interessadas no bem do próximo
forma possam ser discriminados: os porta- ou do País, a distribuição e a aplicação
dores de deficiência, os negros, os pobres, de recursos públicos pelas entidades do
os que moram nas periferias próximas aos Terceiro Setor.
cursos d’água, os estrangeiros, os idosos, Esse passo é que faltou ao Brasil: prepa-
os encarcerados e as crianças de qualquer rar e mobilizar a população para a impor-
natureza. Recentemente, acrescentou-se tância do trabalho da sociedade civil em
a preocupação com as questões relativas prol da Nação e dos irmãos necessitados.
à proteção dos diversos ecossistemas do Por isso, a existência desse descompasso
mundo. na legislação que trata das entidades filan-
Num ambiente cultural como esse pin- trópicas. Para esse tipo de trabalho des-
tado, no qual os valores sociais são apreen- centralizado, a honestidade de propósitos
didos e estimulados, todos estão engajados da entidade é de fundamental importância
com as necessidades dos seus semelhantes. para a consecução dos objetivos sociais
Veja-se, por exemplo, a estupenda ajuda desejados. Essa parece ser a pedra de toque
financeira proporcionada pela sociedade que precisa ser considerada: valorizar o
civil norte-americana ao povo do Haiti, por cidadão que trabalha abnegadamente em
ocasião do terremoto de 12 de janeiro de prol dos seus semelhantes e punir com
2010. Talvez, auxílios como esse ocorram rigor os que desviam os recursos públicos
não porque as pessoas sejam bondosas, ou privados.
infelizmente, mas porque isso lhes faça A possibilidade de qualificação de en-
bem. Em teoria, tem-se que a pessoa pode tidades, inicialmente, como Organizações
não servir, mas em algum momento ela Sociais, por meio da Lei 9.637, de maio de
será cobrada por isso. Há, na cultura norte- 1998 e, posteriormente, como Organizações
americana, um grande respeito à liberdade da Sociedade Civil de Interesse Público,
das pessoas, mas as falhas são cobradas de 3
Em bom português: a vizinhança está de olho
forma contundente. Em placas de trânsito, em você.

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 227


pela Lei 9.790, de maio de 1999, vislumbra- Setor se transforme num campo fértil para
va que as atividades sociais e científicas de as investidas de um bom número de pesso-
responsabilidade do Estado fossem execu- as, de intenções duvidosas, que objetivam
tadas por entidades públicas não-estatais apenas desviar recursos públicos para si ou
sem fins lucrativos. Para tanto, o Governo para as agremiações que integram.
Federal dispensou-as da realização de lici-
tação, alterando a Lei 8.666, de 1993. 2.2.3. Convênios administrativos
Mas, em 2005, em face dos desvios de Convênio administrativo é o ajuste cele-
rumo que foram detectados, teve que dar brado por entidades públicas de qualquer
um passo atrás, determinando, por meio espécie ou realizado por essas entidades e
do decreto presidencial 5.504, que todas outras de direito privado, para a consecu-
as entidades que realizam obras, compras, ção de objetivos comuns dos convenentes.
serviços ou alienações com emprego de Convênio, por definição apresentada pelo
recursos públicos devem fazê-lo mediante Tribunal de Contas da União (2008, p. 15),
processo de licitação pública regido pela portanto mais específica para este trabalho:
Lei de Licitações. “É o acordo, ajuste ou qualquer
Porém, no biênio 2006/2007, como tal outro instrumento que discipline a
postura não funcionou a contento, o Go- transferência de recursos financeiros
verno, numa contramedida de sua decisão dos Orçamentos da União visando à
anterior, por meio de portarias interminis- execução de programa de governo,
teriais dos Ministérios do Planejamento e da envolvendo a realização de projeto,
Fazenda, permitiu que as entidades filan- atividade, serviço, aquisição de bens
trópicas que tenham regulamentos próprios ou evento de interesse recíproco, em
e respeitem os princípios da Administração regime de mútua cooperação, e tenha
Pública possam fazer uso do dinheiro pú- como partícipes, de um lado, órgão
blico sem a realização de licitação. da administração pública federal di-
Ao que tudo indica, o Governo claudica, reta, autarquias, fundações públicas,
não percebendo a lacuna original, pois ado- empresas públicas ou sociedades de
ta lei geral em detrimento de lei especial, economia mista, e, de outro, órgão ou
altera conteúdo de lei por meio de decreto entidade da administração pública
e modifica a letra de decreto por intermé- estadual, distrital ou municipal, di-
dio de portaria. Do discorrido, verifica-se reta ou indireta, ou ainda, entidades
que o cerne da questão está em mudar a privadas sem fins lucrativos”.
mentalidade social do país e, num segundo Como sempre, vale colacionar a lição
momento, punir com competência, tocando de Hely Lopes Meirelles (2004, p. 386), no
no bolso daqueles que desviam o dinheiro caso sobre as diferenças entre contrato e
público repassado para emprego em ativi- convênio:
dades sociais. “No contrato há sempre duas partes
Como se vê, a sociedade brasileira re- (podendo ter mais de dois signatá-
cebeu uma tarefa – assumir a execução da rios), uma que pretende o objeto do
maior parte das responsabilidades do Esta- ajuste (a obra, o serviço etc), outra
do no campo social e científico – sem estar que pretende a contraprestação cor-
devidamente preparada para cumpri-la. As- respondente (o preço, ou qualquer
sim, o espaço aberto pela legislação – que, outra vantagem), diversamente do
por hipótese, não considera o despreparo que ocorre no convênio, em que não
cultural da população para a realização, há partes, mas unicamente partícipes
com desprendimento, de trabalhos sociais com as mesmas pretensões. Por esta
sem fins lucrativos – propicia que o Terceiro razão, no convênio a posição jurídica

228 Revista de Informação Legislativa


dos signatários é uma só, idêntica O acesso aos recursos pela organização
para todos, podendo haver apenas que vai aplicá-los pode-se dar de duas
diversificação na cooperação de cada formas: numa primeira hipótese, por pro-
um, segundo suas possibilidades, posta ou projeto formulados pela própria
para a consecução do objetivo co- organização, diretamente ao ministério
mum, desejado por todos”. ou à entidade que disponha de recursos
O convênio distingue-se do contrato aplicáveis ao objeto pretendido 6; numa
de repasse, por ser este “o instrumento segunda, o ministério ou a entidade federal
administrativo usado na transferência dos detectam as necessidades locais ou desejam
recursos financeiros, por intermédio de ins- implementar programas federais na região.
tituição ou agente financeiro” (Tribunal Neste último caso, os municípios são con-
de Contas da União, 2008, p. 15). No tatados para que efetivem sua participação
contrato de repasse, contratante é o órgão ou no programa.
entidade da administração pública direta ou No que tange à regulamentação, os
indireta que pactua a execução de programa, convênios celebrados até 14 de abril de
projeto atividade ou evento, por intermédio 2008 sujeitam-se às disposições da Instru-
de instituição financeira federal (mandatá- ção Normativa da Secretaria do Tesouro
ria); contratado é o órgão ou entidade da Nacional (IN/STN) 1/1997, com suas alte-
administração pública direta ou indireta, rações. Após esta data, as normas relativas
de qualquer esfera de governo, com a qual a às transferências de recursos da União
administração federal pactua a execução de mediante convênios, contratos de repasse
contrato de repasse. Não há, portanto, assi- e termos de cooperação são as dispostas no
natura de contrato de repasse que envolva Decreto 6.170/2007 (com as alterações cons-
órgãos da administração pública e entidades tantes dos Decretos 6.329/2007, 6.428/2008
privadas sem fins lucrativos. e 6.497/2008); bem como as dispostas na
Quanto à origem dos recursos, as Portaria Interministerial 127/2008 (Minis-
dotações orçamentárias destinadas aos tério do Planejamento, Orçamento e Gestão
convênios e aos contratos de repasse são, – Ministério da Fazenda – Ministério do
basicamente, alocadas no Orçamento-Geral Controle e da Transparência); e, ainda, com
da União (OGU) de duas formas: a primeira a aplicação supletiva da IN/STN 1/97, na-
é pela contemplação nominal do Estado, quilo que não for incompatível com os dis-
do município ou da ONG, por meio de positivos constantes do novo ordenamento
proposta do Executivo ou de emenda à inaugurado pelo Decreto 6.170/2007.
peça orçamentária, de autoria de deputado Esse decreto, que instituiu o Sistema
federal ou de senador4; na segunda, não há de Gestão de Convênios e Contratos de
a contemplação explícita, mas o programa Repasse (Siconv) e o Portal de Convênios
orçamentário destina recursos para a região do Governo Federal7, tem como um dos
onde se localiza o pretendente e prevê a objetivos garantir maior transparência
aplicação por meio de órgão ou entidade es- aos atos de gestão, pois possibilitaria o
tadual, municipal ou não governamental5. acompanhamento pela sociedade de todo o
processo, desde a apresentação da proposta
4
Ao ser aplicada a Lei Orçamentária, já haverá
previsão dos recursos para a consecução do objeto
pelo interessado até a análise, celebração
proposto na emenda. A liberação dar-se-á de acordo
com o planejamento do Poder Executivo, observadas 6
Após análise da necessidade e da viabilidade do
as disponibilidades orçamentárias. objeto proposto, das informações cadastrais do propo-
5
Identifica-se essa previsão pelas seguintes nente e da sua regularidade, o ministério ou a entidade
modalidades de aplicação: 30 – governo estadual; 40 poderão aprovar o convênio e liberar os recursos.
– administração municipal; e 50 – entidade privada 7
Disponível em: <www.convenios.gov.br>.
sem fins lucrativos. Acesso em: 12 dez. 2009.

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 229


e liberação de recursos pelo concedente, ções públicas não estatais – ONPEs”. Não
bem como a prestação de contas on-line da obstante a assertiva de Bresser Pereira, mas
execução física e financeira do convênio. não há como alterar um termo consagrado
A partir de 1o de setembro de 2008, todo mundialmente.
o processo de credenciamento, cadastra- Para o prosseguimento deste estudo,
mento e apresentação de propostas passou entende-se que o melhor conceito de orga-
a ser realizado por intermédio do Portal de nizações não governamentais é o de que são
Convênios do Governo Federal. entidades públicas não estatais, sem fins
Tudo parece bem encaminhado, porém lucrativos, caracterizadas juridicamente
um estudo mais apurado mostra que a re- como associações ou fundações, que atuam
gulamentação confeccionada para regular como instituições do Terceiro Setor, com
as atividades das entidades do Terceiro foco na melhoria das condições de vida do
Setor – formada basicamente por decretos e ser humano, no incremento da cultura e da
portarias – peca pela ilegalidade e apresen- ciência ou na preservação do meio ambien-
ta pontos falhos, sendo que o xis da questão te saudável para gerações futuras.
parece ser mesmo a falta de o Congresso
Nacional estabelecer um marco regulatório 3.2. Características
para a legislação que abarque as entidades Para bem caracterizar as organizações
públicas não estatais. não-governamentais, faz-se necessário
discorrer sobre alguns tópicos de Direito
3. Organizações Não Governamentais Constitucional e de Direito Civil. Primeira-
(ONGs) mente, julga-se importante retirar do texto
constitucional o inciso XVII do art. 5o: “é
3.1. Conceito plena a liberdade de associação para fins
Consultando a Resolução ECOSOC8 lícitos, vedada a de caráter paramilitar”.
31/1996, de 25 de julho de 1996, verifica-se Do Código Civil, retira-se que pessoa é o
que, para a Organização das Nações Unidas ente ao qual a lei atribui a possibilidade de
(ONU), ONG pode ser qualquer entidade ser tornar sujeito de direito, personificando
que, não fundada por Estados ou por a possibilidade de auferir direitos e cumprir
acordo entre Estados, tenha como foco as obrigações. As pessoas são classificadas em
questões humanitárias, o desenvolvimento físicas ou jurídicas, sendo que estas podem
da ajuda aos necessitados e o desenvolvi- ser definidas como as unidades de pessoas
mento sustentável. (físicas ou jurídicas) ou de patrimônios, que
Organizações não governamentais são, visam à consecução de certos fins, desde
na definição de Takeshy Tachizawa (2004, que lícitos, reconhecidas pela ordem jurí-
p. 18), “entidades de natureza privada dica como sujeitos de direito. Os requisitos
(não públicas), sem fins lucrativos, juridi- para a existência da pessoa jurídica são a
camente caracterizadas como associações organização de pessoas ou de bens, a lici-
ou fundações”. Luiz Carlos Bresser Pereira tude de propósitos e a capacidade jurídica
(1997, p. 27) considera que essas entidades reconhecida pela lei.
são impropriamente chamadas de não O Código Civil de 2002 (Lei 10.406/2002),
governamentais, provavelmente porque diferentemente do que fazia o Código
“os cientistas políticos nos Estados Uni- de 1916, distingue as associações das
dos geralmente confundem Governo com sociedades. De acordo com o art. 981 do
Estado. É mais correto falar em organiza- novo estatuto, as sociedades consistem
na união de pessoas físicas ou jurídicas –
8
ECOSOC – Conselho Econômico e Social das normalmente em número reduzido – que,
Nações Unidas reciprocamente, se obrigam a contribuir

230 Revista de Informação Legislativa


com bens ou serviços para o exercício de característica própria das sociedades e das
atividade econômica, partilhando entre si associações, mas de um acervo de bens
os resultados. As associações, em face do que, por meio de autorização legal, adqui-
prescrito no art. 53 do mesmo diploma, re a faculdade de agir no mundo jurídico.
constituem-se pela união de pessoas físicas Devem observar, em tudo, as finalidades,
ou jurídicas – habitualmente em número em regra imutáveis, a que visou o seu ins-
maior de indivíduos – que se organizam tituidor – que tanto pode ser pessoa física
para fins não econômicos, normalmente quanto pessoa jurídica – cuja vontade deve
unindo-se com objetivos altruístas, religio- ser sempre preservada (art. 62 do Código
sos, morais ou de interesse geral. Civil).
Pela lei, a sociedade, seja ela simples, Como as sociedades e associações, as
seja ela empresária, procura alcançar lucros fundações nascem de um ato constitutivo,
e distribuí-los a seus sócios, sendo constitu- adquirindo, quando de caráter privado,
ída por pessoas que se unem com o objetivo personalidade jurídica perante o Registro
de conseguir para si benefícios materiais, de Civil de Pessoas Jurídicas. Por envolverem
modo que, por sua finalidade, tem caráter nítido interesse social na sua atividade, as
privado e as anima um interesse econômico fundações, independentemente de serem
particular. A sociedade, em síntese, exerce destinatárias de verbas públicas, devem
atividade econômica com fito de lucro. sofrer fiscalização do Ministério Público,
Por seu turno, a associação não pode ter por meio das Provedorias ou Curadorias de
proveito econômico imediato, o que não im- Fundações (art. 66 do Código Civil).
pede, contudo, que determinados serviços Tudo isso foi dito com a finalidade de
que preste sejam remunerados e que bus- identificar onde estão situadas as ONGs.
que auferir renda para o preenchimento de Nessa busca, constata-se que, no ordena-
suas finalidades. As vantagens econômicas mento jurídico pátrio, não há dispositivo
que alcançar jamais devem ser destinadas que preveja a existência de organizações
a seus associados, mas, sim, à comunidade não governamentais, o que confirma o
como um todo ou, pelo menos, parte dela. conceito emitido por este trabalho. O Ter-
Resumidamente, a associação não exerce ceiro Setor, no Brasil, é formado apenas por
atividade econômica, nem visa a lucros. associações e por fundações privadas, estas
Apesar dessas diferenças, as sociedades em número bem reduzido. As associações
e as associações possuem pontos comuns: e fundações, se desejarem e cumprirem os
consistem num agrupamento de pessoas; passos regulamentares, podem ser qualifi-
são criadas por meio de ato constitutivo – cadas como Organizações Sociais (OS) ou
contrato social para as sociedades e estatuto como Organizações da Sociedade Civil de
social para as associações – escrito, público Interesse Público (OSCIP).
ou particular; e adquirem personalidade
jurídica com o registro do ato constitutivo 3.3. Histórico
no órgão de registro competente: Registro Tem-se presente que grupos de pessoas
Civil de Pessoas Jurídicas, para as socie- que se aglutinavam, nos Estados Unidos da
dades simples e associações e Registro América, em torno de causas sociais, foram
Público de Empresas Mercantis, a cargo muito importantes para os movimentos
da Junta Comercial, para as sociedades contra a escravidão e a favor do voto das
empresárias. mulheres.
As fundações, por outro lado, caracte- Sabe-se que, ao término da Segunda
rizam-se pela atribuição de personalidade Guerra Mundial, os países vitoriosos
jurídica a um patrimônio. Elas não se decidiram instituir a Organização das
originam de um aglomerado de pessoas, Nações Unidas (ONU), com a finalidade

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 231


de “manter a paz e a segurança, coordenar comerciais. É tanto que, atualmente, o
a solução de problemas internacionais de mês de janeiro, que marca a convenção do
natureza econômica, social, cultural ou Fórum Econômico Mundial, em Davos, na
humanitária e promover o respeito pelos Suíça, marca também a realização, em outro
direitos humanos” (ENCICLOPÉDIA, canto do globo, do Fórum Social Mundial,
1987, p. 8293). A Carta de criação da ONU, que é um encontro de representantes de
assinada em 26 de junho de 1945, na cidade milhares de ONGs de todo o mundo. Um
de São Francisco, nos Estados Unidos da fórum preocupado com a economia e o
América, faz referência, no artigo 71 do desenvolvimento dos países; outro, com os
capítulo X, que trata do Conselho Econô- mais necessitados e o meio ambiente.
mico e Social, ao termo “organizações não No cenário mundial, o papel das ONGs
governamentais”: é considerado fundamental quando se fala
“ARTIGO 71 – O Conselho Econômi- em proteção ao meio ambiente. Para os bra-
co e Social poderá entrar nos entendi- sileiros, o tema está muito presente quando
mentos convenientes para a consulta se lembra da realização, no Rio de Janeiro,
com organizações não governamen- da ECO 92. Naquela oportunidade, foi re-
tais, encarregadas de questões que digida a Agenda Global 21, construída de
estiverem dentro da sua própria forma consensuada, com a contribuição de
competência. Tais entendimentos governos e instituições da sociedade civil
poderão ser feitos com organizações de 179 países, em um processo que durou
internacionais e, quando for o caso, dois anos e culminou, conforme se disse,
com organizações nacionais, depois com a realização da Conferência das Nações
de efetuadas consultas com o Mem- Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvi-
bro das Nações Unidas no caso”. mento (CNUMAD), no Rio de Janeiro, em
Em 27 de fevereiro de 1950, por intermé- 1992, também conhecida por Rio 92.
dio da Resolução 288 do Conselho Econômi- Além da Agenda 21, resultaram desse
co e Social, foi criado o Comitê das Organi- mesmo processo quatro outros acordos: a
zações Não-Governamentais, composto de Declaração do Rio, a Declaração de Prin-
dezenove membros, eleitos por quatro anos, cípios sobre o Uso das Florestas, a Con-
sendo cinco membros da África, quatro venção sobre a Diversidade Biológica e a
da Ásia, dois da Europa Ocidental, quatro Convenção sobre Mudanças Climáticas. O
da América Latina e Caribe e quatro da programa de implementação da Agenda
Europa Oriental e outros Estados. Entre as 21 e os compromissos para com a carta de
missões básicas do Comitê, podem-se citar princípios do Rio foram reafirmados du-
a triagem e a certificação de organizações rante a Cúpula de Johanesburgo, ou “Rio
não-governamentais como entidades de +10”, realizada em 2002.
consulta da ONU, bem como a execução de A Agenda 21 traduz em ações o conceito
tarefas estabelecidas pelo Conselho Econô- de desenvolvimento sustentável, fortale-
mico e Social das Nações Unidas. cendo, em seu art. 27, papel das organiza-
Assim, as organizações não-gover- ções não governamentais como parceiras
namentais – associações civis formadas para um desenvolvimento sustentável.
sem interferência dos Estados, dotadas No Brasil, Takeshy Tachizawa (2004,
dos mais elevados valores humanos – fo- p. 25) afirma que as ONGs começaram a
ram admitidas no cenário de um mundo existir nos anos do regime militar e foram
carente porque, existindo com ênfase na criadas “à medida que se fortaleceu o cam-
ajuda humanitária e no desenvolvimento po das associações civis, a partir dos anos
sustentável, seriam o contraponto em face setenta”. A Associação Brasileira de Orga-
dos interesses capitalistas das sociedades nizações Não Governamentais (ABONG)

232 Revista de Informação Legislativa


registra que a maior parte das ONGs é de Ainda segundo o IBGE, o total de em-
fundação recente. pregados assalariados das instituições sem
Desse histórico, pode-se constatar que a fins lucrativos cresceu 80% desde 1996 e já
ONU e as principais nações do globo têm representa mais que o triplo do número
no trabalho das ONGs um braço atuante e de servidores públicos federais. Em 1996,
respeitado para a realização das atividades o número de empregados assalariados
públicas de cunho não estatal. A impressão das ONGs era de 1.039.900; em 2002, esse
de que as ONGs existem somente porque os número chegou a 1.541.300; em 2005, pas-
Estados são incapazes de dar cumprimento sou para 1.709.200; e, finalmente, em 2008,
às suas funções precípuas nas áreas sociais esse número atingiu a marca de 1.877.100
e do meio ambiente não cabe mais nos dias empregados assalariados. Observa-se que
atuais. Mesmo que países como o Brasil é um número expressivo, movimentando
conseguissem cumprir suas atribuições uma parcela considerável da economia
constitucionais, precisariam de ONGs para nacional.
a consecução de suas atribuições no campo O salário médio dos empregados das
social. ONGs, segundo o IBGE, é de R$ 1.577,00
(mil quinhentos e setenta e sete reais). A
3.4. Situação atual Revista Época chega a estimar em R$ 35
A análise da situação atual por que pas- bilhões o total da folha de pagamentos
sam as ONGs parte da hipótese de que, no mensal dos trabalhadores assalariados
tocante às obrigações sociais impostas pela das fundações e das associações sem fins
legislação ao Estado, o planejamento e o lucrativos em 2008. O que se nota é que,
controle das ações devem ser centralizados, nesses últimos doze anos, a influência das
mas a execução precisa ser descentralizada. organizações sem fins lucrativos aumentou
O Estado, em princípio, não tem como cum- de forma significativa no Brasil. Elas estão
prir eficientemente suas atribuições sociais presentes em quase todos os campos de
sem lançar mão do trabalho das entidades atividades, movimentam cifras bilionárias
do Terceiro Setor. Isto posto, vai-se às ques- e geram milhares de empregos. A análise
tões de fundo referentes ao tema. da expressão “sem fins lucrativos” parece
Segundo a Revista Época, de 11/08/2008, bem subjetiva, considerando o que se vê
as ONGs “se tornaram uma das áreas de nos dias de hoje.
maior vigor, dinamismo e inovação da As ONGs desempenham múltiplas ativi-
sociedade contemporânea”. Tendo como dades. As áreas em que as ONGs brasileiras
fonte o Instituto Brasileiro de Geografia concentram seu trabalho, segundo o IBGE,
e Estatística (IBGE)9, pode-se afirmar que são: 24,8%, como congregações religiosas;
houve um crescimento vertiginoso do 17,8%, na defesa de direitos11; 17,4% em as-
número de ONGs: em 1996, eram 107.300; sociações patronais e profissionais; 13,9%,
em 2002, passaram para 275.900; em 2005, na cultura e recreação12; 11,6%, na assistên-
chegaram a 338.200; e, em 2008, atingiram a cia social; 5,9%, na educação e pesquisa;
marca de 400.500 ONGs registradas no Bra- 1,3%, na saúde; 0,8%, no meio ambiente e
sil10. Destas, 85% são associações sem fins proteção animal; 0,1%, na habitação; e 6,4%
lucrativos e 15% são fundações privadas. em outras atividades. Esses números, numa

9
Todos os dados citados como retirados do IBGE 11
Do total de ONGs da área de defesa de direi-
estão disponíveis em: <www.ibge.gov.br/home/ tos, metade são centros e associações comunitárias,
estatistica/economia/fasfil/2005>. Acesso em: 16 um terço são associações de moradores e apenas
jan. 2009. 10% são entidades de defesa de grupos específicos
10
A cada dia, são criadas, em média, 57 ONGs no e minorias.
país, segundo a Revista Época, de 11/08/2008. 12
Inclui associações esportivas e clubes.

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 233


primeira análise, colocariam em dúvida a de 2006, sobre a malversação de recursos
mística existente de que as ONGs atuam públicos por parte de um grande número
pesadamente nas áreas de saúde, educação de ONGs. O fato é que a utilização de con-
e defesa das minorias. No Brasil, parece que vênios, entre o poder público e instituições
isso não ocorre com tanto vigor. privadas sem fins lucrativos, no repasse de
Outro ponto que merece atenção é a ori- recursos para a consecução de objetivos
gem do dinheiro utilizado pelas ONGs. O comuns, tem-se verificado como um dos
repasse de recursos públicos para as ONGs principais caminhos para o desvio da verba
é realizado, na sua quase totalidade, por pública. A Revista Veja, edição 2057, de 23
intermédio de convênios. Como se disse, de abril de 2008, ao apresentar matéria do
“convênios administrativos são acordos jornalista Diego Escosteguy, intitulada “a
firmados por entidades públicas de qual- fraude documentada”, sobre “o desvio de
quer espécie, ou entre estas e organizações milhões de reais em Brasília”, estampa:
particulares, para realização de objetivos de “As organizações não-governamen-
interesse comum dos partícipes” (Meirel- tais (ONGs) ficaram conhecidas nos
les, 2004, p. 386). Então, os convênios têm últimos tempos como um instrumen-
como característica básica a coincidência de to eficaz de roubar dinheiro público.
interesses dos participantes, cujo acordo Sem observar critérios elementares de
visa à consecução de um objetivo comum. boa gestão, o governo federal despe-
Apesar de ter um ponto comum com o jou, nos últimos cinco anos, doze mi-
contrato, qual seja, o acordo, o convênio, lhões de reais nos cofres dessas enti-
por se caracterizar por uma comunhão de dades. Em vez de grandes resultados
interesses entre os participantes, não possui sociais, as ONGs vêm encabeçando
a hipótese de remuneração como forma uma infinidade de escândalos”.
de contraprestação. Segundo o Portal da No dia 26 de julho de 2007, a repórter
Transparência da Controladoria-Geral da Mylena Fiori, da Agência Brasil, apresentou
União13, foi repassada mediante convênio matéria acerca da mudança de regras sobre
para entidades do Terceiro Setor, no perío- convênios federais com estados, municípios
do de 01/01/1996 a 26/07/2008, a vultosa e ONGs. Ao entrevistar o Ministro Paulo
quantia de R$ 212.852.476.973,68 (duzentos Bernardo, do Planejamento, Orçamento e
e doze bilhões, oitocentos e cinquenta e dois Gestão, ouviu dele que “o Governo Fede-
milhões, quatrocentos e setenta e seis mil, ral repassa anualmente, por convênio, R$
novecentos e setenta e três reais e sessenta 12,2 bilhões para estados e municípios e
e oito centavos). R$ 3 bilhões para ONGs e outras entidades
Considerando esse movimento fi- privadas”.
nanceiro, fica o entendimento de que o O Brasil possui 26 estados, 1 distrito
conhecimento das contas dessas entidades federal e 5.564 municípios14. Assim, esse
é importante para o país, pois – como se conjunto, que com a União compreende
viu – elas desempenham funções públi- a organização político-administrativa do
cas, independentemente de usarem ou Estado Brasileiro, recebeu do Executivo
não recursos públicos. Quanto à origem Federal, em 2007, aproximadamente, 12
do dinheiro aplicado pelas ONGs, a falta bilhões de reais repassados por convênios.
de controle, no mínimo estatístico, é uma No mesmo período, as organizações não
lacuna que precisa ser tamponada. governamentais e outras entidades priva-
A origem deste estudo é a sequência de das receberam três bilhões de reais, ou seja,
matérias publicadas pela imprensa, a partir o equivalente a ¼ do montante repassado
13
Portal da Transparência. Disponível em: <www. 14
IBGE. Disponível em: <www.ibge.gov.br>.
portaltransparencia.gov.br>. Acesso em: 2 dez. 2009. Acesso em: 22 jul. 2009.

234 Revista de Informação Legislativa


para todos os estados e municípios do país. de segurança nacional, sobretudo daquelas
Somente considerando esses dados iniciais, que são atuantes na região amazônica”
já se tem boa justificativa para avaliar o em- (BRASIL, 2001).
prego de recursos públicos pelas ONGs. Pela ementa do requerimento, nota-se
O grande volume de recursos aplicados que o objetivo maior dessa CPI girava em
e os casos de desvio de dinheiro público torno de quesitos ligados à segurança na-
levam à projeção de um foco de luz sobre cional. Não obstante isso, em seu relatório,
como deve ser a relação administrativa apresentado na conclusão dos trabalhos,
entre o Poder Público e as organizações não a comissão já vislumbrava a necessidade
governamentais. de aprofundamento na análise do fluxo
A fim de realizar um diagnóstico sobre de recursos do governo para as ONGs,
as ONGs, foram instaladas no Senado Fe- conforme se vê:
deral, no período compreendido entre 2001 “Um benefício adicional do trabalho
e 2010, duas Comissões Parlamentares de da Comissão foi alcançado ao se es-
Inquérito (CPI). Um bom caminho para essa clarecerem vários aspectos relativos
pesquisa é enveredar pelo trabalho dessas ao quadro legal em que se definem as
comissões parlamentares de inquérito, lem- ONGs, ao entrecruzamento de ideais
brando – para análise a seguir – que o ser- e objetivos que interligam ONGs e so-
viço público “é todo aquele prestado pela ciedade em geral e ao relacionamento
Administração ou por seus delegados, sob entre ONGs e Poder Público.
normas e controles estatais, para satisfazer Quanto a este último aspecto, emer-
necessidades essenciais ou secundárias da giram informações e apreciações im-
coletividade, ou simples conveniências do portantes no que se refere ao controle
Estado” (Meirelles, 2004, p. 319). Esse exercido pelo Poder Público sobre as
conceito, como se viu, varia em função das ONGs, ou a falta dele, e no que tange
conveniências políticas, sociais, econômicas ao considerável fluxo de recursos
e culturais de cada comunidade, em cada governamentais para as ONGs.
momento histórico. Esses temas, não obstante terem
Este artigo, pelo já exposto, adota como gerado, neste relatório, algumas
correta a definição de que as ONGs são propostas concretas, merecem apro-
entidades públicas não estatais. E, mais, fundamento adicional por parte de
que não se pode perder a ideia de que a estudiosos em geral e do Senado, em
prestação de serviços públicos deve ser feita particular”.
por meio de licitação, segundo o prescrito No bojo de suas conclusões, a CPI apre-
no art. 175 da Constituição da República sentou, em 19/02/2003, um projeto de lei,
(CR), pois “incumbe ao Poder Público, na o PLS 7/2003, dispondo sobre o registro, a
forma da lei, diretamente ou sob regime fiscalização e o controle das organizações
de concessão ou permissão, sempre atra- não-governamentais. Esse projeto, aprova-
vés de licitação, a prestação de serviços do no Senado na forma de um Substitutivo
públicos”. da Comissão de Constituição, Justiça e
A primeira CPI funcionou, no Senado Cidadania, foi remetido para a Câmara dos
Federal, nos anos de 2001 e 2002. Sua mis- Deputados em 30/06/2004. A justificativa
são precípua foi a de “apurar denúncias do projeto é o próprio relatório da CPI
veiculadas pela imprensa a respeito da (BRASIL, 2004).
atuação irregular de organizações não- Dele, retira-se que é inegável que as
governamentais em território nacional, bem organizações não-governamentais defen-
como apurar a interferência dessas organi- dem ideias e representam valores muito
zações em assuntos indígenas, ambientais e importantes para o país. Na maioria dos

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 235


casos, concluiu a CPI, essas entidades atu- grandes e reiteradas preocupações da CPI
am legalmente, de boa-fé, e prestam bons era justamente encontrar meios de coibir
serviços. Apesar disso, constatou também desvios de finalidade na atuação de muitas
a Comissão Parlamentar de Inquérito que organizações não-governamentais em suas
o processo de fiscalização dessas entida- parcerias onerosas com o Poder Público,
des, que têm nos recursos públicos uma ávidas muitas vezes em lançar mão de
expressiva fonte de receita, não estaria verbas públicas, especialmente por meio
funcionando a contento. A própria CPI de convênios, para escapar à licitação e sem
foi criada a partir de inúmeras denúncias submeter-se a edital público para seleção
de irregularidades no funcionamento e dos melhores projetos e, ainda, sem atenção
aplicação dos recursos públicos por essas à qualificação mínima obrigatória.
organizações. Para equacionar essa situação, o Substi-
Ao analisar a matéria, a CPI identi- tutivo consagra a exigência de qualificação
ficou falhas graves, que precisavam ser das organizações não-governamentais
urgentemente corrigidas, quais sejam: são como OSCIPs para toda transferência de
vagos, incompletos e, em alguns casos, recursos públicos realizada com o propó-
indisponíveis os cadastros e estatísticas sito de fomentar atividades de interesse
sobre essas entidades. Os procedimentos e público. Ressalva, entretanto, aquelas já
instrumentos legais e administrativos para qualificadas como Organização Social,
controle desse segmento de atividades por Entidade Beneficente de Assistência Social,
parte do Poder Público são débeis, díspares Entidade de Apoio a Universidade Federal
e confusos; e falta um consenso sobre o que ou detentoras do Título de Utilidade Públi-
seja exatamente uma organização não go- ca Federal antes da vigência da futura lei.
vernamental. É preciso, portanto, distinguir O substitutivo proposto não altera o
claramente quem é quem no universo do regime de imunidade constitucional esta-
Terceiro Setor, estabelecer normas claras belecido pelo art. 195, § 7o, da Lei Maior,
de acesso aos fundos públicos e delimitar em favor das entidades beneficentes de
o âmbito de ação das organizações não assistência social. Tal artigo continua regu-
governamentais. lado pelo art. 55 da Lei 8.212, de 1991, que
O Substitutivo aprovado no Senado dispõe sobre o plano de custeio da seguri-
procura tratar das preocupações expostas dade social. Revoga, entretanto, o art. 18 da
no relatório final da CPI. Nele, determina- Lei 9.790, de 1999, que obriga as entidades
se a criação de um Cadastro Nacional de qualificadas como OSCIP a abdicarem de
Organizações Não-Governamentais, a ser outras qualificações legais.
administrado pelo Ministério da Justiça. Na Câmara dos Deputados, o projeto,
Todas as ONGs atuantes no País deverão que deu entrada em 30/06/2004, passou a
nele se inscrever. Para tanto, deverão tramitar como PL 3877/2004, sendo distri-
fornecer informações sobre as atividades buído pela Secretaria-Geral da Mesa para
que pretendem desenvolver e sobre suas três comissões: Trabalho, Administração
respectivas fontes de recursos. As organi- e Serviço Público (CTASP), Finanças e
zações não-governamentais estrangeiras Tributação (CFT) e Constituição, Justiça e
deverão, ainda, pleitear no mesmo Minis- Cidadania (CCJC). Infelizmente, a matéria
tério autorização de funcionamento. não consegue ter uma tramitação regular.
A fiscalização do Ministério Público, Em quatro anos e meio de tramitação na
atualmente limitada às fundações, é esten- Câmara dos Deputados, foram aprovados
dida a todas as organizações não gover- dois requerimentos de deputados para que
namentais, que deverão prestar contas de a proposição seja instruída em mais duas
todos os recursos recebidos. O objeto de comissões: Seguridade Social e Família

236 Revista de Informação Legislativa


(CSSF) e Desenvolvimento Econômico, In- investigação de denúncias ou de evidências
dústria e Comércio (CDEIC). Ora, a instru- de fraudes, desvios de recursos públicos
ção que já estava longa, com três comissões, e irregularidades nas parcerias Estado/
ficou ainda mais demorada com a inclusão ONGs; avaliação dos procedimentos de
dessas duas comissões, pois se tem presente destinação e fiscalização da aplicação dos
que o prazo de tramitação é dilatado toda recursos repassados pelo Governo Federal
vez que uma comissão é acrescentada ao para ONGs, da regularidade da aplicação
processo. e dos resultados obtidos nessas parcerias;
Além disso, tem sido utilizado outro avaliação e aprimoramento do marco legal
artifício regimental: o apensamento de que regula a relação das ONGs com o Es-
matérias ao projeto original do Senado. tado; avaliação da renúncia fiscal derivada
Contabilizam-se onze matérias apensadas, da destinação de recursos privados para
uma de cada vez, nesse período de quatro entidades sem fins lucrativos e isenções
anos e meio. Cada apensamento implica a tributárias por elas usufruídas; e exame
retirada do processado da comissão em que do recebimento de recursos externos por
tramita, o envio para o Plenário e a espera ONGs atuantes no Brasil.
de uma brecha na pauta para a votação do Ao acompanhar os trabalhos da CPI du-
requerimento de apensamento. Com isso, rante os anos de 2008 e 2009, constatou-se
o PL 3877/2004 chega ao início de 2010 a dificuldade imposta, tanto pelo Governo
instruído apenas com parecer da CTASP, quanto pela Oposição, para que fossem
necessitando, ainda, de passar por mais aprovados requerimentos de convocação
quatro comissões e pelo Plenário da Casa. de pessoas acusadas de denúncias que
Concomitantemente, criou-se, no Sena- fossem ligadas às suas agremiações parti-
do, um campo propício para a investiga- dárias. Essa postura esvaziou a CPI. É tanto
ção, fruto do grande número de matérias que nada de produtivo foi construído no
publicadas na imprensa, de uma série de tocante à investigação de denúncias.
desvios de recursos públicos repassados Apesar disso, espera-se dessa CPI que
pelo Executivo Federal para ONGs. Assim, ela chegue ao seu termo com a confecção
em março de 2007, foi instalada a segunda de proposta de um marco legal para as
CPI, com o objetivo de “apurar, no prazo de ONGs. Salvo grave engano, o texto final
180 dias, a liberação, pelo Governo Federal, não poderá fugir muito do proposto pela
de recursos públicos para organizações não CPI de 2002, sob pena de incorrer em erro,
governamentais – ONGs – e para organiza- pois o conteúdo do Substitutivo ao PLS
ções da sociedade civil de interesse público 7/2003 parece responder, em muito boas
– OSCIPs –, bem como a utilização, por condições, aos interesses do país.
essas entidades, desses recursos e de outros
por elas recebidos do exterior, a partir do 4. Emprego de recursos
ano de 1999 até a data de 8 de novembro públicos pelas ONGs
de 2007” (BRASIL, 2007).
4.1. Transferência de recursos públicos
Essa CPI, que foi instalada em março de
para as ONGs
2007, somente teve o seu plano de trabalho
aprovado em reunião de 23 de outubro da- Segundo o TCU, o início do processo
quele ano. Esse plano de trabalho tem como de solicitação de verbas para aplicação em
diretrizes básicas: avaliação das relações Estados e Municípios, por intermédio de
do Estado com as ONGs; mapeamento da entidades sem fins lucrativos, se dá com a
transferência de recursos do Orçamento identificação das necessidades existentes
da União para entidades privadas sem na comunidade. A partir da seleção das
fins lucrativos no período de 1999 a 2006; áreas mais carentes, o interessado precisa

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 237


estabelecer uma escala de prioridades entre lativa harmonia dos pensadores em con-
as necessidades detectadas. siderarem tais ajustes como instrumentos
O maior volume de recursos públicos da cooperação entre Estado e sociedade,
repassados para organizações não gover- o que significaria uma ação de partícipes
namentais foi efetuado por meio de con- em pé de igualdade, que desnaturaria a
vênios. Do já exposto, verifica-se que, no viabilidade da aplicação de sanção pelo
Brasil, o convênio administrativo – longe Estado, bem com o da competitividade que
de representar um instrumental voltado pressupõe o certame licitatório.
unicamente ao consensualismo e de ser Não é difícil conceber que os acordos
técnica que se deve empregar no Estado públicos, seja convênios, contratos de ges-
Subsidiário como uma das ideais – tem tão, seja termos de parceria, avençados com
sido, em muitos casos, uma fenda aberta entidades privadas pelo ente detentor das
para grandes irregularidades que merecem verbas públicas a título de transferências
ser coibidas enérgica e urgentemente. voluntárias, comportam, certamente, um
Conforme explicitado anteriormente, procedimento prévio de seleção, na hipó-
não se está falando sobre contratos com tese de existirem várias entidades com a
nome de convênios – que já têm seu trata- mesma qualificação e vocação. E, também,
mento no sistema legal –, mas de convênios de ser possível aplicarem-se penalidades
administrativos com entidades privadas administrativas pelo descumprimento das
que podem servir de “cabides de empre- obrigações em seu bojo, sem que, contudo,
gos”, de “caixas de campanhas”, ou mesmo os interessados em ajustarem tais instru-
de maus realizadores de atividades sociais mentos se retraiam em fazê-lo. É essa a
ou de serviços que o Estado pretendia proposta quando se analisa a transferência
fomentar para atender os mais destacados de recursos públicos para as ONGs.
reclamos sociais. O TCU15 constata que são Da leitura dos jornais e revistas que
inúmeros os casos em que ficam implícitos noticiaram o tema, pode-se perceber o fato
ou explícitos laços parentais ou afetivos de a Administração ficar quase sempre a
entre os gestores e os partícipes, situações reboque da iniciativa privada ao conce-
outras em que as entidades convenentes ber quais as atividades de interesse geral
eram basicamente sustentadas pelo Erário devem ser realizadas. Não raras vezes, os
e os salários dos empregados bem maio- projetos de repercussão social e econômica
res que os vencimentos dos servidores são apresentados ao Estado pelos movi-
públicos. mentos sociais organizados ou por setores
As respostas relativas tanto ao cabimen- do empresariado nacional, não sendo fruto
to dos institutos da licitação para a cele- da expertise dos técnicos servidores públi-
bração de convênios administrativos com cos. Não se sabe se isso ocorre por falta de
entidades privadas quanto à aplicação de profissionalismo no serviço público ou por
penalidades nesta área passam, certamente, falta de cultura gerencial ou, até mesmo, se
pela eficiência do dispêndio estatal com as decorre de um atraso no desenvolvimento
atividades do Terceiro Setor e já não são social brasileiro, que chegue à formação de
novas para o enfrentamento da doutrina quem tem por encargo iniciar os projetos
brasileira, muito embora tais discussões do Estado.
não tenham sido objeto de um debate de O que se vê é que os convênios – sendo
qualidade. instrumentos de repasse de verbas para
Possivelmente, essa lacuna doutrinária entidades particulares e, especialmente,
poderá encontrar sua razão de ser na re- no caso de transferências voluntárias – são
15
TCU. Disponível em: <www.tcu.gov.br/juris- celebrados, em sua maioria, por provocação
prudencia>. Acesso em: 21 jan. 2010. dos interessados, que planejam a atividade

238 Revista de Informação Legislativa


social (educacional, assistencial, de saúde sobretudo pela indução da solidariedade e
etc) e a apresentam ao órgão da Adminis- pela promoção da integração, que produz
tração que, de posse do projeto, analisa seu entre o Estado e sociedade” (Moreira
cabimento dentro da esfera de sua compe- Neto, 2001, p. 517).
tência, opinando pela sua viabilidade ou No dizer de Alzemeri Martins Ribeiro
não e consultando sobre a disponibilidade de Britto e Perpétua Leal Ivo Valadão,
de verbas para a sua consecução. fomento é “uma atividade do Estado de es-
Não que isso seja algo a ser descartado, tímulo, incremento, incentivo de atividade
já que o voluntariado, em países mais de- particular que seja de interesse público, que
senvolvidos – como anteriormente explana- não emprega coação para o seu exercício, já
do –, tende a ser a resposta para questões que nascida no seio da sociedade”16. Silvio
de interesse mais restrito e imediato das Luís Ferreira da Rocha (2003, p. 19) aduz
comunidades, além de que o ideal de Es- que essa atividade somente “se afigura legí-
tado Subsidiário convive com a sociedade tima se a finalidade do bem comum acaso se
participando ativamente das decisões pú- encontre nela observável de maneira clara,
blicas e realizando muito dos projetos que sendo, a contrario sensu, discriminatória e
antes eram de atribuição estatal. injustificável. O fomento tem a vantagem
Porém é interessante enfatizar que isso é de não expandir a máquina estatal e, ao
uma questão de cultura, que precisa ser tra- mesmo tempo, incitar a ação da sociedade
balhada com seriedade. Veja-se o exemplo em prol de seus pares”.
dos Estados Unidos: o Presidente Barack Com relação às subvenções, tem-se que
Obama passou a tarde do dia anterior à são transferências correntes destinadas
sua posse nas cercanias de Washington, a cobrir despesas de custeio operacional
pintando escolas públicas com um grupo (serviços, aluguel, pessoal, conservação de
de voluntários, enquanto a primeira dama bens) de entidades públicas ou privadas,
– Michelle Obama – estava num centro de podendo ser sociais (para custeio de ativi-
distribuição civil de donativos, montando dades de assistência social, culturais, mé-
cestas para serem enviadas para os solda- dicas ou educacionais sem fins lucrativos)
dos americanos no Iraque e no Afeganistão. ou econômicas (para custeio de empresas
Com esse exemplo, reafirma-se que a mu- com fins lucrativos e estatais, desde que
dança cultural, no sentido de valorizar o autorizado por lei). Deve-se registrar que a
trabalho voluntário, é fundamental para sa- subvenção social deverá ser concedida sem-
near o emprego das ONGs no Brasil. Basta pre que for mais econômico para o Estado
não esquecer aquela velha frase: a palavra “repassar os recursos à iniciativa privada
convence, mas o exemplo arrasta! do que prestar diretamente os serviços, e
No caso brasileiro, fazer do fomento o seu valor, sempre que possível, deve ser
público um improviso constante, longe de calculado com base em unidades de ser-
realmente atender às vicissitudes e às ma- viços efetivamente prestados ou postos à
zelas sociais, torna-o uma atividade inócua, disposição dos interessados, obedecidos os
por não canalizar recursos preciosos para os padrões mínimos de eficiência” (Violin,
problemas prioritários. Preconiza-se, então, 2006, p. 41).
a adoção do planejamento democrático, Por fim, recolhe-se da obra de Maria
desenvolvido pelo Estado e discutido com a Sylvia Zanella Di Pietro (2007, p. 249)
sociedade, permitindo que os instrumentos que o objetivo das OS e das OSCIP é o de
de fomento “rendam os melhores resulta- “instituir parceria entre o poder público
dos, exatamente pelas possibilidades aber- e uma organização não governamental
tas de coordenação de esforços, tanto atra- 16
Disponível em: <www.pge.ba.gov.br>. Acesso
vés da cooperação, quanto da colaboração, em: 12 dez. 2009.

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qualificada pelo poder público, sob certas contribuição singela para a melhoria dos
condições, para prestar atividade de inte- mecanismos de ligação do Estado com
resse público mediante variadas formas de as entidades do Terceiro Setor é o que se
fomento pelo Estado”. A autora sintetiza propõe a seguir.
que o contrato de gestão das OS e o termo A Associação Brasileira de Organizações
de parceria das OSCIP são instrumentos Não-Governamentais (ABONG)17 defende a
praticamente idênticos, mas que recebem construção de uma legislação que “fortaleça
denominações diversas. Todavia, conside- a organização autônoma das ONGs, sem
ra mais apropriado o tratamento jurídico qualquer tentativa de restringir a liberdade
conferido ao último. de associação” e que “garanta a transparên-
Numa construção de pensamento, cia e o controle social do uso dos recursos
pode-se crer que as semelhanças que unem públicos sem nenhum tipo de discrimina-
os convênios aos termos de parcerias (ou ção” contra as entidades sem fins lucrativos.
aos contratos de gestão) dizem mais da Essa parece ser a base de raciocínio que se
atividade administrativa que lhes serve deve adotar, pois – por todos os argumen-
de conceito, sendo todos instrumentos tos já apresentados – a parceria do Estado
de fomento. Daí a necessidade de se lhes com as entidades do Terceiro Setor deve
aplicar o semelhante regime de outorga e ser incentivada e valorizada. Nesse ponto,
de penalização por faltas, a fim de manter caminha bem o texto do PL 3877/2004.
coerente e harmônico todo o regramento Tendo como premissa básica a liberdade
atinente a tais ajustes. de associação, é fundamental, por outro
Na mesma linha de pensamento, tem-se lado, que haja um cadastro centralizado,
que as diferenças entre contratos e convê- no qual estejam inscritas todas as ONGs
nios não são suficientes para afastar certas em atividade no país. Sendo a atividade
exigências contidas no sistema jurídico desenvolvida pelas ONGs de natureza
contratual público, porquanto a simples pública (não estatal), conforme se de-
participação do Estado nesses pactos atrai monstrou, deve o Estado se assenhorear,
a aplicação dos princípios que regem a ad- em detalhes, da existência e do volume
ministração pública, entre os quais, podem- – discriminado por origem – dos recursos
se destacar os já estudados: legalidade, recebidos e aplicados. A ideia de que esse
impessoalidade, moralidade, publicidade, cadastro seja estabelecido no Ministério da
eficiência, proporcionalidade, segurança Justiça é de todo interessante, porque este
jurídica, motivação, e supremacia do inte- é também o órgão responsável por emitir a
resse público. qualificação de OSCIP – não podendo negá-
Por tudo, fechando o raciocínio, en- la quando preenchidos os requisitos – para
tende-se que, na transferência de recursos as entidades sem fins lucrativos que assim
públicos para as ONGs, deve ser adotado o requererem.
o procedimento licitatório prescrito na Lei Na sequência, assume-se, assim, como
8.666/93. melhor caminho, a fixação do requisito de
que a ONG – para receber recursos públicos
4.2. Marco regulatório – seja qualificada como OSCIP. Recebida a
Analisando os casos concretos expostos qualificação de OSCIP pelo Ministério da
pela mídia – alguns deles retratados, como Justiça, a ONG pode firmar termo de parce-
exemplos, neste trabalho – e compulsando ria com o órgão público interessado. Nisso
os doutrinadores que se debruçam sobre há uma grande vantagem, pois o Estado
a matéria, verifica-se que há uma lacuna pode definir, para cada caso concreto, na
na legislação federal quando o assunto 17
Disponível em: <www.abong.org.br>. Acesso
é regular as atividades das ONGs. Uma em: 28 dez. 2009.

240 Revista de Informação Legislativa


redação do termo de parceria a ser firma- ser estabelecida entre o Poder Público e
do, os pressupostos para a realização, por essas entidades, a fim de dinamizar o seu
parte da ONG, do procedimento licitatório emprego e propiciar um controle mais
simplificado que a entidade se compromete transparente dos gastos públicos realizados
a cumprir nas aquisições de bens e serviços pelos integrantes do Terceiro Setor.
com o emprego de recursos públicos. No primeiro momento, sente-se a di-
Isso tornará mais transparente o uso do ficuldade de caracterizar o que vem a ser
dinheiro público e, mais ainda, facilitará uma organização não governamental. Para
o controle interno e externo dos gastos, prosseguimento do estudo, após analisar o
otimizando a prestação de contas que todo histórico e outras facetas de sua criação, de-
aquele que utiliza recursos públicos deve cidiu-se por apresentar um novo conceito.
cumprir, como prescreve o parágrafo único Assim, define-se ONG como uma entidade
do art. 70 da Constituição da República. pública não estatal, sem fins lucrativos, ca-
Além disso, outras medidas devem ser racterizada juridicamente como associação
adotadas pelo Estado em razão da multi- ou fundação, que atua como instituição
plicação do número de ONGs no país. É do Terceiro Setor, com foco na melhoria
necessário que haja um planejamento esta- das condições de vida do ser humano, no
tal quanto às áreas fomentáveis por via de incremento da cultura e da ciência ou na
transferências voluntárias. Isso é um pres- preservação do meio ambiente saudável
suposto para que seja saneada a utilização para gerações futuras.
do instrumental do contrato de gestão, do O emprego de organizações não go-
termo de parceria e do convênio adminis- vernamentais, como entidades públicas
trativo. A iniciativa das ONGs, apontando não estatais, em cooperação com o Poder
os pontos de maior necessidade, deve ser Público, é altamente positivo para toda a
considerada dentro de um planejamento população, pois diminui o tamanho do Es-
maior, elaborado pelo Estado. Assim, a tado, com favorável repercussão econômica
celebração de contrato de gestão, de termo para o país. A utilização de ONGs reduz
de parceria e de convênio administrativo o número de órgãos governamentais que
deve ocorrer apenas quando o fomento seriam necessários para desenvolver as
responder a uma iniciativa de interesse atividades relativas ao Terceiro Setor.
público. Infelizmente, ainda não está dissemina-
No que tange ao cumprimento dos da na população brasileira – como está em
dispositivos da Lei de Licitações, para a alguns povos de outros países – a cultura do
escolha, pelo Estado, da entidade privada voluntariado que, infundindo nas pessoas
sem fins lucrativos que vai firmar a parce- uma mentalidade mais gregária, valorize
ria, deve-se considerar como obrigatória a como imprescindível o trabalho social de
realização de certame prévio para a cele- cada cidadão. Sente-se a necessidade de um
bração de contratos de gestão, de termos de impulso valorativo que coloque o trabalho
parceria ou de convênios administrativos, social da pessoa como necessário para o
exceto no caso de manifesta singularidade seu ajustamento em sociedade. À medida
do objeto. que aumente o número de pessoas sérias
que dediquem parte do seu tempo para o
trabalho social voluntário, será mais sadio
Conclusão
o emprego de verbas públicas por associa-
O estudo que se conclui tem por objetivo ções e fundações privadas.
precípuo analisar a utilização de recursos Atualmente, a difícil fase por que passa
públicos pelas ONGs no Brasil, buscando a economia global, fruto de uma crise finan-
identificar qual é a relação ideal que deve ceira originária nos Estados Unidos, impõe

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 241


– de forma ainda mais marcante – um con- As diferenças entre contratos e convênios
trole judicioso do desembolso do dinheiro não são suficientes pra afastar o regime
público. Não há lugar para desperdícios. contratual público. A simples participação
Todo gasto público precisa ser muito bem do Estado atrai os princípios da Adminis-
planejado. Por via de consequência, o mo- tração Pública.
mento requer, também, um maior controle Disso, conclui-se que as transferências
do Estado sobre as atividades públicas não de recursos públicos para as ONGs devem
estatais que tenham repercussão sobre a seguir o procedimento licitatório previsto
população mais pobre do país. na Lei 8.666/93. As verbas públicas repas-
As atividades do Terceiro Setor devem sadas para as ONGs, por meio de convê-
ser planejadas, de forma centralizada, em nios, termos de parceria ou contratos de
cada órgão estatal que dispõe da rubrica gestão, comportam o procedimento prévio
orçamentária passível de ser aplicada por de seleção da Lei de Licitações.
entidades sem fins lucrativos. A transferên- Nota-se, com clareza, que os cadastros
cia de recursos para as ONGs deve ocorrer e estatísticas sobre as ONGs, no Brasil, são
à medida que for mais econômico para o vagos, incompletos e, em alguns casos, in-
Estado repassar os recursos à iniciativa pri- disponíveis. Assim, é forçoso abarcar como
vada do que prestar diretamente o serviço, positiva a proposta da primeira CPI do
mas não se pode fazer do fomento público Senado Federal sobre o assunto, quando ela
um improviso constante. O Estado não pode conclui pela criação de um Cadastro Nacio-
ficar à mercê da iniciativa das ONGs, deven- nal de ONGs, operado pelo Ministério da
do repassar recursos somente quando há um Justiça. Numa visão de estratégia nacional,
planejamento prévio estatal a cumprir. define-se como imperioso ter um acompa-
A explanação do tema mostra que a nhamento das atividades desenvolvidas
transferência de recursos públicos para as pelas ONGs no país, bem como esclarecer
ONGs tem-se verificado como um dos prin- sobre as fontes de recursos recebidos por
cipais caminhos de desvio da verba pública. essas entidades.
Por vezes, a malversação do recurso pú- Julga-se oportuno concluir que a ONG,
blico ocorre com a participação de agentes para receber recursos públicos, precisa ter
políticos e de servidores públicos. Disso, sido, anteriormente, qualificada como OS-
surge a necessidade de que a fiscalização CIP. Portanto, essa é a relação ideal que se
do Ministério Público sobre as fundações entende deve ser estabelecida entre o Poder
privadas, prevista no art. 66 do Código Ci- Público e a ONG que desejar implementar
vil, seja ampliada para abarcar também as suas atividades com recursos públicos.
associações que militam no Terceiro Setor. Uma vez qualificada como OSCIP, pelo
É fundamental, também, que o TCU incre- Ministério da Justiça, pode o órgão estatal
mente a realização de tomadas de contas parceiro definir, com a entidade, no termo
especiais (TCE), principalmente quando de parceria firmado, os pressupostos do
os repasses forem numerosos para uma procedimento licitatório simplificado que,
mesma entidade ou os valores transferidos seguindo os princípios da Administração
sejam vultosos. Pública, serão adotados pela ONG para a
Do estudo, constata-se a necessidade aquisição de bens e serviços. Essa medi-
premente de evolução da doutrina jurídica da tornará mais transparente a relação e
aplicada aos convênios. Primeiramente, facilitará o controle dos gastos públicos,
verifica-se que os convênios, os termos de otimizando a prestação de contas.
parceria e os contratos de gestão são instru- No tocante à legislação federal sobre
mentos de fomento semelhantes que devem ONGs, verifica-se que as lacunas e os des-
ter o mesmo tratamento administrativo. compassos existentes levam à necessidade

242 Revista de Informação Legislativa


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sf/2004/06/29062004/19999.pdf>. Acesso em: 18
– a aplicação de recursos públicos pelas
dez. 2009.
ONGs seja realizada por meio de procedi-
mento licitatório simplificado, que respeite BRITO, Azemeri Martins Ribeiro de; Perpétua Leal
claramente os princípios da Administração Ivo. Convênios Administrativos celebrados com entidades
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