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BOLETIM

Comissão
de Direitos
Humanos
UNIVERSAIS E INTERDEPENDENTES 1ª edição | maio de 2020

Psicologia A luta
e democracia antimanicomial
no Brasil é também uma
reflexões luta antirracista
interseccionais
sobre
desigualdades,
cuidado e trabalho
em tempos de
coronavírus pg. 6
Neoliberalismo,
trabalho e
desemprego:
impactos

8
psicossociais em
tempos de Covid-19

14
pg.

pg.

O enfrentamento

20
às violências
sexuais contra
crianças e
pg.
26/05/2020 WhatsApp Image 2018-02-17 at 20.02.42.jpeg
adolescentes
28/05/2020 IMG-20171210-WA0006.jpg

na perspectiva
interseccional:
RIA BERNARDES.jpg https://mail.google.com/mail/u/2/
26/05/2020 IMG_20200520_150713_234.jpg

contribuições da
Psicologia para as
políticas públicas

pg.

Depoimentos
25
© 2019 Conselho Federal de Psicologia
FICHA CATALOGRÁFICA

É permitida a reprodução desta publicação, desde que sem alterações e citada a fonte.
Disponível também em: www.cfp.org.br
1ª edição - 2020
Projeto Gráfico | Agência Movimento
Diagramação | Agência Movimento
Revisão | MC&G Design Editorial

Referências bibliográficas conforme ABNT NBR


Direitos para esta edição — Conselho Federal de Psicologia: SAF/SUL Quadra 2, Bloco
B, Edifício Via Office, térreo, sala 104, 70070-600, Brasília/DF
(61) 2109-0107 E-mail: ascom@cfp.org.br/www.cfp.org.br
Maio de 2020

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
BOLETIM - UNIVERSAIS E INTERDEPENDENTES | 1ª edição
EXPEDIENTE

Coordenação Geral/CFP
MIRACI MENDES Coordenadora Geral
Gerência de Relações Institucionais
DANIEL ARRUDA MARTINS Gerente
MARÍLIA MENDES DE ALMEIDA Assessora
BRUNA DUTRA GALVÃO Técnica Administrativa
Gerência de Comunicação
LUANA SPINILLO Gerente
RAPHAEL GOMES Assessor

Para esta edição do Boletim foram entrevistadas e entrevistados:


ANE CAROLINE ALVES DA SILVA VICENTE
Militante para o direito das mulheres.
DANIELE CRISTINE CAVALCANTI RABELLO
Psicóloga doutora pela UFPE, psicóloga clínica e hospitalar e docente de
graduação e pós-graduação, conselheira da atual gestão do CRP 02.
SHIRLENE QUEIROZ DE LIMA
Presidente da Federação Nacional dos Psicólogos (FENAPSI) e membro
titular da Comissão de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde-CISM.
MARIA LUIZA MOURA OLIVEIRA
Psicóloga, Ms. Psicologia Social, ex-presidenta do CONANDA, Integrante
do Observatório Latinoamericano e caribenho sobre tráfico de pessoas.

Para esta edição do Boletim foram colhidos depoimentos de:


JEFFERSON WILLIAM CANDIDO DO NASCIMENTO
Psicólogo Hospitalar
LUIZ PAULO RIBEIRO
Psicólogo, Doutor em Educação, Professor da Faculdade de Educação da UFMG
MARCIA HESPANHOL BERNARDO
Psicóloga e professora universitária aposentada. Tem grande experiência de
atuação no campo da Saúde do Trabalhador no SUS e várias pesquisas na
área de Psicologia Social do Trabalho com foco na vivência de trabalhadores.
MONIQUE PRADA
Trabalhadora sexual, escritora, feminista, co-editora do projeto MundoInvisivel.
ORG e membro da Articulação Nacional de Profissionais do Sexo.
Autora de PutaFeminista, publicado em 2018 pela Editora Veneta.
VITÓRIA BERNARDES
Psicóloga membro da Comissão de Direitos Humanos do CFP.

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA
XVIII PLENÁRIO

XVIII Plenário | Gestão 2019-2022

Conselheiras(os)
ANA SANDRA FERNANDES ARCOVERDE NÓBREGA Presidente
ANNA CAROLINA LO BIANCO CLEMENTINO Vice-Presidente
FABIÁN JAVIER MARIN RUEDA Secretário
NORMA CELIANE COSMO Tesoureira
ROBENILSON MOURA BARRETO Secretário Região Norte
ADINETE SOUZA DA COSTA MEZZALIRA Suplente Região Norte
ALESSANDRA SANTOS DE ALMEIDA Secretária Região Nordeste
MARIA DE JESUS MOURA Suplente Região Nordeste
MARISA HELENA ALVES Secretária Região Centro Oeste
TAHINA KHAN LIMA VIANEY Suplente Região Centro Oeste
DALCIRA PEREIRA FERRÃO Secretária Região Sudeste
CÉLIA ZENAIDE DA SILVA Suplente Região Sudeste
NEUZA MARIA DE FÁTIMA GUARESCHI Secretária Região Sul
MARINA DE POL PONIWAS Suplente Região Sul
ANTONIO VIRGÍLIO BITTENCOURT BASTOS Conselheiro 1
ANA PAULA SOARES DA SILVA Conselheira Suplente 1
MARIA JURACY FILGUEIRAS TONELI Conselheiro 2
ISABELA SARAIVA DE QUEIROZ Conselheira Suplente 2
IZABEL AUGUSTA HAZIN PIRES Suplente
KATYA LUCIANE DE OLIVEIRA Suplente
LOSILEY ALVES PINHEIRO Suplente
RODRIGO ACIOLI MOURA Suplente

Comissão de Direitos Humanos do CFP


MARIA DE JESUS MOURA
ELIANE SILVIA COSTA
ANDRÉA FERREIRA LIMA ESMERALDO
ARTHUR FERNANDES SAMPAIO
CINTHIA CRISTINA DA ROSA VILAS BOAS
CLAUDIA ANDRÉA MAYORGA BORGES
EMATUIR TELES DE SOUSA
FILIPPE DE MELLO LOPES
IOLETE RIBEIRO DA SILVA
JAQUELINE GOMES DE JESUS
JEANE SASKYA CAMPOS TAVARES
TATIANA LIONÇO
THAYANARA SOUSA SILVA
VITÓRIA BERNARDES FERREIRA

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
MAIO
DATAS COMEMORATIVAS

01/05 13/05
Dia Nacional da
Dia Mundial Luta contra a
do Trabalho Discriminação Racial

18/05
Dia Nacional da Luta
Antimanicomial

Dia Nacional
do Combate ao Abuso
e à Exploração
Sexual de Crianças
e Adolescentes

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
EDITORIAL

Psicologia e
democracia
no Brasil
reflexões
interseccionais sobre
desigualdades, cuidado
e trabalho em tempos
de coronavírus

AUTOR:
Comissão de Direitos
Humanos do Conselho
Federal de Psicologia.

S abemos que a luta pela democracia se


constrói e se faz no presente. Para con-
tribuirmos com os processos de transfor-
cratização seja o compromisso a partir do
qual nos lançamos à tarefa de construção
de memória coletiva, sobretudo asseguran-
mações sociais na lógica da necessária do a vocalização da perspectiva de grupos
reparação das injustiças, faz-se necessá- sociais historicamente vilipendiados em
rio considerar o passado, de modo a nos seus direitos no passado, mas também no
posicionarmos agora sobre o futuro que presente do nosso país. Precisamos refletir
almejamos. Neste presente em que nos en- o papel da Psicologia nas lutas contemporâ-
contramos, marcado por uma pandemia, a neas, de modo a atualizar nossas práticas
incerteza sobre o futuro é evidenciada, mas profissionais e nossas práticas científicas
também podemos reconhecer que nossa de formalização de conhecimentos. Rede-
participação, incluindo a produção de senti- mocratizar é voltar a atenção e reconhecer o
dos sobre o que se passa conosco, é decisi- que rompeu ou rompe a condição democrá-
va para sinalizar direções de futuro. Nunca tica, para avançarmos na consolidação da
sabemos ao certo como será o nosso futuro, democratização de nossa sociedade.
porém temos a certeza de que queremos e Desde o início da década de 1980, o
devemos fazer reflexões críticas sobre a his- Sistema Conselhos de Psicologia reconheceu
tória do nosso país e as nossas vidas. que suas práticas não devem ficar restritas à
A Comissão de Direitos Humanos, do normatização do exercício profissional e das
Conselho Federal de Psicologia (CDH/CFP), técnicas psicológicas, mas assumiu o com-
na gestão 2020-2022, propõe que a redemo- promisso de contribuir para a qualificação do

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
exercício profissional por meio do acompa- das lutas para a garantia de direitos sociais
EDITORIAL

nhamento crítico das questões sociais e polí- e para a criação de melhores condições so-
ticas do país. Isso é fazer política, no sentido ciais e políticas para a classe trabalhadora.
de tomarmos posição a partir de nossa escuta A responsabilidade do cuidado, diante da
da sociedade, mas também da análise crítica fragilidade de nossa democracia, significa
de nossa história, marcada por desigualdades olhar para nossa história e dar-lhe sentido
estruturais. Política aponta para práticas de crítico, de modo a não reincidir nas práticas
gestão da vida em vários espaços, bem como violentas e autoritárias que marcam nossa
se refere às relações de poder e de forças que história oficialmente, seja na colonização
são exercidas a todo momento na sociedade. escravista, seja no regime ditatorial, seja na
Esses posicionamentos e práticas, ao longo banalidade do mal ainda presente no encar-
das últimas décadas, resultaram na constitui- ceramento massivo da população negra.
ção de uma Psicologia brasileira plural, que O modo como a CDH/CFP compreende
se exerce em inúmeros campos de trabalho, que pode participar ativamente deste pro-
que tem um lugar de destaque nas políticas cesso de redemocratização é acompanhando
sociais e que assume um compromisso pela as lutas históricas, o que propomos realizar
mudança e a transformação psicossocial. progressivamente, por meio da considera-
O Brasil, construído como país a partir ção de diferentes aspectos das desigualda-
de um processo de colonização, permanece des brasileiras expressados nas datas co-
ainda hoje caracterizado por práticas de vio- memorativas mensais. Sem a pretensão de
lência e de opressão marcadas pelo racismo esgotar a complexidade de tais questões, o
e pela desigualdade econômica, de modo que vimos aqui propor é um convite à leitura
que podemos compreender que o processo de reflexões, sempre parciais, que sinalizam
de democratização não se consumou. Soma- para dimensões da vida social que merecem
-se a este cenário a desigualdade de gênero, a nossa consideração coletiva e o nosso em-
a desigualdade no acesso das pessoas com penho no cuidado diante das injustiças.
deficiência a variadas dimensões da vida Para coletivizar as reflexões sobre os
social e institucional, bem como as vulne- desafios que se apresentam para a redemo-
rabilidades às violências determinadas pela cratização do país, dois dos artigos produ-
idade (infância, adolescência e velhice), mas zidos para este boletim contaram, por meio
também pela regionalidade (com prejuízo de de concessão de entrevistas, com a partici-
comunidades não-urbanas na garantia de pação direta de colaboradoras, assim como
seus direitos sociais). A redemocratização, os depoimentos foram escritos por convida-
portanto, é um projeto e não uma condição das(o), sendo a maioria profissionais de Psi-
suficientemente consolidada, diante do qual cologia, de modo que apresentamos nossos
nos mobilizamos e nos comprometemos. agradecimentos pela colaboração.
A Psicologia, neste fazer político, pode Por fim, ressaltamos que a redemocra-
ser compreendida como parte das disputas tização é um projeto em direção não ao que já
de sentido sobre a gestão da vida. Isso sig- fomos um dia, mas que almeja a democracia
nifica que nos cabe propor significados para plena. Logo, ela depende de nos mobilizar-
o exercício do cuidado, que compreende- mos e nos comprometermos com a defesa
mos inclui boas condições de trabalho e de do bem comum, com o igual direito de todas
saúde, incluindo a de profissionais de nossa as pessoas terem sua voz considerada, suas
categoria. A conjuntura atual sinaliza que a condições de vida visibilizadas, para virem a
defesa da democracia é parte constitutiva acessar os bens socialmente construídos.

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
A luta antimanicomial
é também uma luta antirracista
AUTORAS:
Eliane Silvia Costa
Jeane Saskya Campos Tavares.

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
A democracia só é possível numa socie-
dade de emancipados, na qual todos(as)
tenham possibilidade de julgar, escolher e
Neste mês, a Comissão de Direitos Hu-
manos do CFP convida as(os) psicólogas(os)
brasileiras(os) a refletir sobre o 13 de maio,
agir criticamente e em defesa do bem comum Dia Nacional de Luta Contra a Discrimina-
(ADORNO & HORKHEIMER, 2006). Logo, de- ção Racial, e o 18 de maio, Dia Nacional da
mocracia exige o respeito à cidadania, à liber- Luta Antimanicomial. Embora muitos pos-
dade de os sujeitos de lutarem e se apropriem sam considerar que estes são campos dis-
dos bens sociais historicamente criados. tintos de militância, na verdade, são lutas
Neste sentido, e tendo em vista a his- que se entrelaçam historicamente na defesa
tória brasileira, podemos considerar que da vida, saúde, justiça e liberdade.
o Brasil nunca foi uma democracia plena. Posto isso, vale lembrar que, no Brasil,
Constituimo-nos como sociedade de modo a formação do campo da psiquiatria teve en-
politicamente desigual e a partir da luta e tre suas bases o racismo. Como é notório, e
negociações daqueles que são cotidiana- de acordo com escritos de autoras como Ser-
mente oprimidos. ra (2011) e Santos e Silva (2018), essa área

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se constituiu utilizando a população negra perspectiva jurídica, a abolição da escrava-
como objeto privilegiado de intervenções tura impediu oficialmente a escravização da
que, longe de se constituir como formas de população negra, do ponto de vista teórico-
cuidar, entendemos como uma atualização conceitual, político-cultural, sócio-histórico,
dos métodos de tortura colonial. relacional, subjetivo, dentre outros, essa po-
O racismo tem suas raízes no período pulação continua a ser persistentemente gol-
escravista e colonial, no entanto, e não por peada pela humilhação racial.
acaso, ele foi teorizado em países europeus, Nessa direção, o racismo científico,
e prontamente incorporado em países como hegemônico desde o século XIX, legitima
o Brasil, justamente após processos de abo- diferentes ações governamentais e sociais
lição da escravatura ocorridos na América. de opressão, dentre elas, podemos destacar
Como (pseudo)ciência, as teorias racistas o processo de branqueamento da popula-
(ou o racismo científico) desempenhavam ção brasileira e o encarceramento maciço
função similar à da lei que regulamentava da população negra em prisões (AZEVEDO,
o escravismo, mas que, com a abolição, não 1987; SANTOS & SILVA, 2018) e manicô-
mais vigorava. Em outras palavras, como mios, como métodos eugênicos de forma-
“verdades científicas”, essas teorias ates- ção de uma nação (SERRA, 2011).
tavam a inferioridade do povo negro e, por Desde antes da abolição da escravatura
ampliação, as atrocidades a ele infligidas. a população negra luta. Inclusive, ela fez parte
O Darwinismo Social, que tinha na eu- do Movimento Abolicionista (ALONSO, 2012).
genia seu lastro, e o Evolucionismo Social, Igualmente, de acordo com Domingues (2007),
que estabelecia etapas fixas e predetermina- já havia Movimento Negro nos primórdios
das do desenvolvimento humano, divididas na Primeira República e no início da Segun-
da selvageria à civilização, tornaram-se re- da, mas foi em 1978 que se institucionalizou
ferências para o pensamento da época (SCH- um movimento radicalmente contra o racis-
WARCZ, 2017) e, mesmo rearranjados, conti- mo, o Movimento Negro Unificado (MNU).
nuam operantes atualmente. É por isso que, O Movimento da Reforma Sanitária
desde então, a raça branca europeia tem sido (MRS), voltado para reestruturar as políticas
considerada ideal e as demais (como a negra de saúde de modo geral, e o Movimento da
e a indígena) têm sido vistas como degene- Reforma Psiquiátrica Brasileira (MRP), des-
radas, subumanas, incivilizadas, incultas, tinado mais especificamente ao campo da
transgressoras, responsáveis pelas proble- saúde mental (AMARANTE, 1998), também
máticas nacionais... Assim sendo, a pessoa emergiram naquele mesmo contexto de di-
negra seria, por natureza, racialmente infe- tadura civil-militar para lutar pela sobera-
rior à pessoa branca do ponto de vista psico- nia popular na participação e no controle da
lógico, moral, cultural, intelectual etc. esfera política. Essas diferentes forças de or-
A despeito da categoria “raça” não ganização política, ainda que tivessem ban-
existir enquanto realidade biológica (PENA, deiras de reivindicações específicas, con-
2008), ela existe do ponto de vista social (GUI- vergiram na defesa dos direitos humanos.
MARÃES, 1999) e psicológico (SOUZA, 1983) Importante destacar que houve ampla
e, no Brasil, se relaciona diretamente com ca- mobilização da sociedade brasileira para
racterísticas fenotípicas (NOGUEIRA, 2006). debelar as desigualdades sociais existentes
Portanto, esse olhar racial que diferencia e na época, o que redundou em propostas que
hierarquiza os grupos sociais estrutura os buscaram redefinir a noção de Estado e de
mais diferentes âmbitos da vida. Logo, se na política pública e que, posteriormente, foram

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integradas à Constituição Federal de 1988. A
luta contra o racismo do MNU deu destaque à
reformulação das políticas trabalhistas, edu-
cacionais, de segurança pública (contra a vio-
lência policial), entre outras (DOMINGUES,
2007). Todas elas pautadas na concepção de
um país democrático, equânime.
Constituídos pelos mesmos princípios,
MRS e MRP criticaram a política governa-
mental elitista, privatizante e concentrado-
ra de renda, sustentada por um governo que
privilegiava a assistência médico-hospitalar
e manicomial. Defenderam o direito univer-
sal e inalienável de todos(as) terem acesso
às condições que viabilizassem a preserva-
ção de sua saúde, o que inclui condições de
emprego, saneamento, habitação, reforma
agrária, dentre outros direitos sociais (CE-
BES, 1979; Manifesto Bauru, 1987).
No tocante às discussões da saúde
mental, em 1987, o MRP, ao ser fortemente
inspirado pela experiência da desinstitucio-
nalização psiquiátrica italiana, transformou-
se em Movimento da Luta Antimanicomial
(MLA). Desde então, luta não apenas pelo fim
dos manicômios, mas contra a opressão es-
trutural que há no Brasil (Scarcelli, 1998).
Em seu manifesto de inauguração
(1987), reafirmando princípios já apontados
por Sérgio Arouca, na abertura da VIII Con-
ferência Nacional de Saúde, o MLA enfatizou
que saúde mental é resultante de ter liber-
dade, vida digna e explicitamente se reve-
lou contra a discriminação contra negros,
homossexuais, indígenas, mulheres. Ao lu-
tarem contra a diferentes formas de domi-
nação e ao defenderem a justiça social, MRS
e MLA reivindicam os direitos humanos (ci-
vis, sociais e políticos). Assim sendo, direito
à saúde passou a significar direito ao SUS
tanto quanto à vida digna.
Considerando que a saúde deve ser
pensada de forma integral e interseccional
lembramos que a defesa de uma sociedade
sem manicômios passa pela compreensão

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de que nos estruturamos a partir do racismo, quer dizer que seus efeitos sejam irreversí-
do classismo (desigualdade de classe social) veis nem que as pessoas oprimidas não te-
e o sexismo (desigualdade de sexo, gênero e nham recursos variados para seu enfrenta-
orientação sexual) − ideologias dominantes mento. A potência de vida amplia-se quando
que funcionam como regras tácitas ou explí- a pessoa entende criticamente como estru-
citas que desempenham funções psíquicas e turas de dominação interferem na sua pró-
sociais: diferenciam, hierarquizam e subju- pria vida e encontra apoios para tal, sendo
gam grupos sociais considerados inferiores, essa uma das funções da política pública.
assim como proporcionam privilégios para Nessa perspectiva, e como os movi-
aqueles tidos como superiores. Orientam mentos citados destacaram em sua origem,
modos de pensar, agir, interagir, sentir. realizar a reforma agrária, a titulação das ter-
Recorremos à teoria da interseccio- ras quilombolas, a regulamentação das terras
nalidade, proposta por Kimberlé Crenshaw indígenas, garantir a presença de mulheres
(1989/2002), mas que, antes dela, já contava negras e indígenas em cargos de poder, en-
com escritos de autoras como Angela Davis frentar o genocídio da população jovem ne-
(1981/2016) e seu famoso livro “Raça, clas- gra, dentre outras, deveriam ser entendidas
se e gênero”. O conceito salienta que cada por pesquisadores, gestores e profissionais da
uma dessas modalidades de opressão está área da saúde e da saúde mental como políti-
inscrita dentro da outra, é constituída pela cas de defesa da vida e dos direitos humanos.
outra e que o reconhecimento de que a do- De modo muito preocupante, vemos
minação, ao privilegiar alguns e ao golpear na atualidade aflorar um cenário próximo
outros, privilegia e fere não por uma carac- daquele dos anos de 1970/80, centrado no
terística ou por outra, mas pela integralida- autoritarismo político e no modelo assis-
de: avilta-a por ser negra e pobre ao mesmo tencial médico-hospitalar-privatista, tendo
tempo; privilegia-o por ser homem e bran- práticas como eletrochoque e internações
co ao mesmo tempo etc. psiquiátricas como formas hegemônicas de
O efeito da dominação interseccionada tratamento. Sabemos, ou deveríamos sa-
pode ser tão devastador que, muitas vezes, ber, o que esse retorno às antigas práticas
retira o direito da pessoa de se sentir perten- significa para a população negra, indígena
cente a si e à história de seu povo. Seus cor- e pobre de hoje, assim como para todas(os)
pos são matáveis simbólica e concretamente: aquelas(es) que não correspondem à norma-
dados estatísticos confirmam que os homens tividade em relação a sua identidade de gê-
negros pobres são os mais assassinados, os nero ou orientação sexual. E, por isso, convi-
que mais estão em situação de extrema po- damos nossa categoria a ler os documentos
breza e aprisionados, as mulheres negras são fundantes destes movimentos e a conside-
as mais assassinadas e estupradas. rar a defesa dos direitos humanos como ele-
Embora estas situações possam ser mento central dos cuidados com a saúde da
dilacerantes psíquica e fisicamente, isso não população brasileira.

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
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AZEVEDO, Célia Maria Marinho de Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das
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SAÚDE NA CÂMARA FEDERAL, 1., 1979, Brasília. Disponível em: http://cebes.org.br/site/wp-
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CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discri-
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DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tem-
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PENA, Sérgio Danilo Junho. Humanidade sem raças? São Paulo: Publifolha, 2008.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em
ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
SANTOS, Raquel Amorim dos, & Silva, Rosângela Maria de Nazaré Barbosa e. Racismo cien-
tífico no Brasil: um retrato racial do Brasil pós-escravatura. Educar em Revista, ano 34, n.
68, pp. 253-268, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0104-4060.53577. Acesso em:
11 maio 2020.
SCARCELLI, Ianni Regia. O Movimento da Luta Antimanicomial e a Rede Substitutiva em
Saúde Mental: a experiência do município de São Paulo (1989-1992). Dissertação (Mestrado
em Psicologia Social). Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
SERRA, Lia Novaes. Infância perdida: a concepção de “menores anormais” na obra de Pa-
checo e Silva. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social). Instituto de Psicologia, Universi-
dade de São Paulo, São Paulo, 2011.

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
Neoliberalismo, trabalho e desemprego:
impactos psicossociais em tempos de Covid-19

AUTORA:
Tatiana Lionço

N os últimos anos o Brasil assumiu refor-


mas trabalhistas que podem ser com-
preendidas como medidas de favorecimento
parte, têm contribuído para o enfrentamen-
to da epidemia, e que também têm sofrido
os efeitos das reformas trabalhistas e os da
dos interesses empresariais, em detrimento pandemia na precarização de suas próprias
das condições de trabalho da população. Em condições de trabalho.
tempos de pandemia e do necessário cum- A reforma trabalhista de 2017 insti-
primento de medidas de isolamento social, tuiu o trabalho intermitente, fragilizou a
o desemprego, a informalidade do trabalho organização de sindicatos por meio da não
e a flexibilização dos direitos trabalhistas obrigatoriedade da contribuição sindical,
decorreram na agudização dos sofrimen- tornou o descanso negociável e portanto
tos relativos ao trabalho ou à sua falta. Cabe passível de não ser garantido satisfatoria-
ainda pensar a condição de trabalho e de mente, aumentou o limite da jornada diária
saúde de profissionais de Psicologia que, em de trabalho para doze horas, excluiu a me-

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
diação sindical nas rescisões contratuais, gentes na saúde pública, o reconhecimento
bem como excluiu o tempo de deslocamento da vulnerabilidade aos agravos da covid-19
para o trabalho do parâmetro das jornadas. em função da idade avançada e/ou da condi-
Se a justificativa para a reforma era desbu- ção prévia de certas doenças implica que par-
rocratizar as relações trabalhistas para as- te do contingente de trabalhadora/es perma-
sim aumentar o número de empregos, pode- neça em isolamento, sobrecarregando assim
mos contra-argumentar que a legalização da aquelas pessoas que mantém a atividade la-
suspensão de medidas burocráticas de apu- boral presencial. É o caso de trabalhadora/es
ração da garantia de direitos trabalhistas e a da saúde, pois o seu trabalho é compreendi-
legalização das negociações que tensionam do como imprescindível para o bem comum.
direitos decorrem, contrariamente, na per- Para a psicóloga Shirlene Queiroz, que
da de direitos trabalhistas. Decorre também dirige a entidade sindical de nossa categoria
na perda do trabalho para muitas pessoas, de classe profissional, a Federação Nacional
em função da flexibilização dos contratos e de Psicólogos (FENAPSI), a suspensão de
das condições laborais cada vez mais exaus- contratos, assim como a redução da jornada
tivas, remetendo à individualidade o mérito de trabalho prejudica trabalhadora/es pois
ou a capacidade para atender ou não às de- impacta diretamente em sua renda. No seu
mandas de empregadores. entendimento, uma vez que seja implantado
Por sua vez, a reforma trabalhista de o programa emergencial de manutenção do
2019, também referida como minirreforma emprego, por mais que seja concedido o be-
trabalhista, teve como foco explícito o favo- nefício previsto, este não seria equiparável
recimento de interesses de empregadores, ao rendimento decorrente do pleno exercí-
alegando-se a necessidade de fomentar o em- cio da jornada laboral. Ainda, ressalta que
preendedorismo no Brasil. O horário livre, no entendimento da FENAPSI as profissio-
por exemplo, é uma medida que precariza as nais de Psicologia dispõem majoritariamen-
condições de trabalhadoras/es, submetidas/ te de condições precárias de trabalho, já que
os à negociação das condições para o desem- não há definição de piso salarial ou de jorna-
penho do trabalho a partir de demandas e da para a categoria. Neste sentido, Shirlene
condições estipuladas por empregadores. As Queiroz ressalta a importância da revogação
reformas condicionam o direito ao trabalho do artigo 29, da Medida Provisória n. 927, de
à resiliência de trabalhadoras/es, que se tor- 22 de março de 2020, por parte do Supremo
nam mais vulneráveis ao agravamento dos Tribunal Federal, o que viabilizou o reco-
sofrimentos relacionados ao trabalho. Muitas nhecimento da contaminação por coronaví-
pessoas se submetem a condições degradan- rus como doença ocupacional, permitindo a
tes e adoecedoras como um modo para a sua concessão de auxílio-doença nessa situação.
permanência no emprego, ou para adquirir O Estado brasileiro, por meio das
renda mínima. Tais reformas, portanto, lega- mencionadas reformas, oficializou o deslo-
lizaram condições trabalhistas anteriormen- camento da compreensão do trabalho como
te consideradas ilegais e precárias, promo- direito social para remetê-lo explicitamente
vendo assim a informalidade. à lógica do livre mercado. Mais amplamen-
Os efeitos da pandemia sobre as condi- te, podemos sinalizar que outros recuos
ções de trabalho são agravantes da sua preca- decorreram no desinvestimento estatal nas
rização e da violação de direitos. Além do com- políticas públicas para a garantia dos direi-
promisso de trabalhadoras/es da saúde com o tos sociais, o que foi efetivado por meio da
atendimentos a demandas urgentes e emer- Emenda Constitucional 95. O que se eviden-

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
cia é a adesão à ideologia neoliberal: o es- aludir à situação brasileira. A precarização
vaziamento da responsabilidade estatal e o do direito ao trabalho e dos direitos traba-
condicionamento do gozo de “bens” sociais lhistas, mas também a exploração e a opres-
à meritocracia individual na suposta destre- são como condição regular do exercício labo-
za para conquistar (ou não) renda própria e ral contemporâneo, são efeitos das políticas
mobilidade sócio-institucional. de austeridade e da retirada de direitos.
Em tempos de pandemia, esta situação A compreensão da responsabilidade
se agrava. A redução do Estado ao mínimo, do Estado como mantenedor da segurança e
com explícita promoção de interesses econô- da ordem implica a justificação moral de re-
micos empresariais e privados, vem acom- trocessos nas políticas públicas que visam a
panhada de maior investimento nas políti- garantia dos direitos sociais, incluindo aí a le-
cas de segurança. No capitalismo neoliberal, gitimação social e estatal do extermínio e de
portanto, o Estado é mínimo, a não ser no seu práticas punitivistas, marcadas pelo racismo
braço penal, que se fortalece na medida em e pela desigualdade de classe social. Como
que a função ou responsabilidade que caberia projeto societário, o neoliberalismo condena
ao próprio Estado passa a se confundir com a grupos sociais historicamente vilipendiados
segurança, seja por meio da polícia, seja por em seus direitos à agudização de seus sofri-
meio da formalização de legislação que acir- mentos. O estigma da periculosidade, cons-
ra e promove a criminalização da população. truído historicamente como atributo de gru-
Como sinalizado por Silvio Luiz de Al- pos sociais marcados pela cor/etnia e pela
meida (2018), o neoliberalismo efetiva a des- pobreza, prejudica o reconhecimento social
democratização, decorrendo no devir negro do trabalho como bem comum e como direi-
do mundo, expressão de Achille Mbembe to social de todas as pessoas, pois naturali-
oportunamente recuperada pelo autor para za a precariedade como constitutiva de de-

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terminados grupos sociais e os criminaliza. em cumprimento de penas. O trabalho tam-
Este processo de criminalização incide bém sustenta a afirmação identitária e cultu-
sobretudo sobre o povo pobre. Loïc Wacquant ral, incluindo os grupos sociais não urbanos,
(2013) nos ajuda a compreender que o neoli- abrangendo os povos indígenas aldeados,
beralismo implica a criminalização da pobre- quilombolas e as comunidades rurais basea-
za, também reconhecendo que punir pessoas das na agricultura familiar. Estamos longe
pobres é uma prática marcada pelo racismo. de dispor isonomicamente do direito ao tra-
A recusa de parte significativa dos movimen- balho como caminho para a democratiza-
tos negros brasileiros em reconhecer a data ção, mas também para a autodeterminação:
da abolição da escravidão (13/05) como uma caminhamos na direção da compreensão do
agenda política que lhes contemplassem nos trabalho como mercadoria em si, diante da
incita a compreender que o mero desloca- qual dispomos ou não do poder de aquisição,
mento da sujeição na escravidão para a reno- sendo os marcadores sociais da cor/etnia,
vada sujeição ao desemprego e à precarização mas também de gênero (incluindo orienta-
e informalidade do trabalho não atende às ção sexual e identidade de gênero), deficiên-
reivindicações por direitos. A manutenção da cia e classe social definidores das (im)possi-
vulnerabilidade à pobreza, somada à natura- bilidades de acesso, permanência e usufruto
lização da agonia penal e carcerária marcada deste “bem” no mercado.
pela cor da pele negra, decorre na legitimação É importante reconhecer as caracterís-
social e institucional da necropolítica racis- ticas das pessoas mais vulneráveis à exposi-
ta, sendo a tortura e o extermínio de corpos ção ao coronavírus: quem são as pessoas que
negros uma constante na história do Brasil. não podem atender às recomendações de iso-
Lembro aqui ainda que os movimentos so- lamento social? São majoritariamente as pes-
ciais que reivindicam o direito à terra são os soas em situação de rua, de trabalho preca-
que mais têm sofrido extermínio por meio de rizado, de desemprego, e mesmo as pessoas
execuções de suas lideranças, mas também que dispõem de trabalho formal, mas que
ameaças explícitas do ensejo governamental não dispõe da viabilidade para a abstenção
por criminalizar suas práticas na luta polí- física no cumprimento do isolamento social:
tica: os sem-terra, os sem teto, mas também trabalhadoras domésticas, lixeiros, trabalha-
as comunidades indígenas e quilombolas dora/es que atuam na limpeza urbana. Ain-
referidas como invasoras em seus próprios da, em grande parte o perfil de profissionais
territórios, culminando na sua designação que não se abstiveram da presença física em
como terroristas, ecoando assim os jargões contexto laboral se refere àquelas profissões
já adotados para justificar moralmente a marcadas pela generificação do cuidado:
tortura e o genocídio na época da ditadura. profissionais da saúde que, com exceção da
É importante lembrarmos que o mês Medicina, são majoritariamente mulheres
de maio contempla o dia do trabalhador, ce- (enfermeiras, assistentes sociais, psicólogas).
lebrado no primeiro dia do mês, mas tam- Há, portanto, um recorte de cor/etnia e de gê-
bém consta no calendário oficial referência nero na vulnerabilidade ao agravamento do
ao dia do trabalhador preso (05/05) e ao dia sofrimento relacionado ao trabalho em tem-
do trabalhador rural (25/05). É oportuno no- pos de pandemia de covid-19.
tar que o trabalho é passível de ser entendido De acordo com a psicóloga clínica e
como dimensão importante da vida subjetiva hospitalar Daniele Rabello, conselheira do
e social, bem como cumpriria função impor- CRP-2, as pessoas em situação de rua estão
tante na reabilitação psicossocial de pessoas compulsoriamente submetidas à suspensão

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de medidas preventivas, assim como outras sociais e institucionais passíveis de crítica.
pessoas em situação de pobreza ou que pre- Pessoas negras, povos indígenas, co-
cisam recorrer ao benefício emergencial, munidades rurais e pessoas em situação de
pois se vulnerabilizaram à contaminação pobreza urbana são não apenas alijadas de
por estarem submetidas a filas demoradas, seus direitos sociais, mas também culpa-
com aglomeração de pessoas, para acessar bilizadas por não necessariamente corres-
o dinheiro nas agências da Caixa Econômica ponderem em suas práticas culturais e so-
Federal. Para Daniele Rabello, as mulheres ciais aos requisitos do “capital moral” para
estão sobrecarregadas, pois acumulam tra- o ingresso e a permanência no mercado de
balho formal ou informal e trabalho domés- trabalho, seja este formal ou informal. Há
tico, bem como passaram a se responsabili- de se considerar o sofrimento das pessoas
zar pelo acompanhamento diário de filha/os que não têm trabalho ou emprego em dis-
nas atividades escolares virtuais. tinção em relação ao sofrimento daquelas
Christophe Dejours (2006) alerta para que permanecem trabalhando no período
o fato de que o sofrimento decorrente do de- conturbado em que nos encontramos. Te-
semprego ou da precarização das condições mos diante de nós problemáticas distintas,
de trabalho é muitas vezes remetido à lógica que merecem consideração em suas par-
do infortúnio pessoal, incidindo na banali- ticularidades. Por um lado, temos pessoas
zação do mal como condição decorrente do desempregadas e com a pobreza agravada,
discurso economista, que por sua vez é refra- tornando-se assim mais vulneráveis à ade-
tário ao reconhecimento das injustiças. O re- são a condições laborais degradantes e à
conhecimento da injustiça é antagônico à pre- contaminação por coronavírus em suas ten-
sunção de que as adversidades seriam fatos tativas de resolver a falta de renda. Por outro
incontornáveis e carentes de determinações lado, outras pessoas dispõem de maior se-

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gurança laboral e econômica, embora tam- Social e do Sistema Único de Saúde.
bém precisemos reconhecer que se expõem A individualização do temor e dos
a tarefas arriscadas para a saúde, incluindo agravos decorrentes do desemprego e da
a sua própria saúde mental. informalidade no trabalho em tempos de
No caso de profissionais de Psicologia, pandemia precisa ser urgentemente recusa-
Shirlene Queiroz e Daniele Rabello concor- da. A desigualdade nas condições de traba-
dam que nem sempre aqueles que se man- lho vulnerabiliza ainda mais determinados
tém ativos no enfrentamento da covid-19 grupos sociais à necropolítica diante da co-
em unidades de saúde dispõem de equipa- vid-19. Por isso, quando eu escuto os parcos
mentos de proteção individuais. Shirlene e vagos agradecimentos às trabalhadoras da
ressalta que há psicólogas sobrecarregadas saúde em tempos de pandemia, a mim soa
em função das próprias demandas por in- como higienização, pois há brutalidade evi-
tervenção psicossocial junto às equipes nas dente na desigualdade de gênero, de classe
quais atuam, enfatizando a importância de e de cor/etnia no que se refere ao trabalho
nosso trabalho no enfrentamento da pan- mas também à saúde no momento em que
demia: somos importantes para evidenciar nos encontramos. Manter o silêncio sobre
que há efeitos danosos da pandemia relacio- os baixos salários, bem como a demora no
nados à violência doméstica, à elaboração atendimento à reivindicação histórica de
do luto, à própria institucionalização. Shir- nossa categoria profissional pela redução
lene Queiroz nos lembra que estamos diante de jornada de trabalho para trinta horas
do desmonte das políticas públicas de saúde não me parece também uma medida justi-
mental na lógica da atenção psicossocial de ficável. Em tempos de pandemia, espero que
base territorial e comunitária, bem como da possamos ampliar a consciência de classe
fragilização do Sistema Único de Assistência trabalhadora entre colegas de profissão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Neoconservadorismo e liberalismo. In: GALLEGO, Esther Solano.
O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de
Janeiro: Revan, 2013.

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
O enfrentamento às violências
sexuais contra crianças e adolescentes
na perspectiva interseccional:
contribuições da Psicologia para as políticas públicas

AUTORA:
Iolete Ribeiro da Silva

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
D e acordo com Cecília Coimbra (2017),
cada vez mais se torna difícil falar so-
bre a violência. Estamos diante de processos
sob patrocínio, apoio ou incentivo de ter-
ceiro, seja de modo presencial ou por meio
eletrônico. No tráfico de pessoas ocorre o re-
de banalização e naturalização da violência crutamento, o transporte, a transferência, o
que criam, ao mesmo tempo, um estado pa- alojamento ou o acolhimento da criança ou
ranóico e alarmante, e um movimento de da/o adolescente, com o fim de exploração
busca de produção de segurança em que se sexual, mediante ameaça, uso de força ou
apela não somente para a judicialização, mas outra forma de coação, rapto, fraude, enga-
fundamentalmente para uma maior e mais no, abuso de autoridade, aproveitamento de
forte repressão. No entanto, a complexidade situação de vulnerabilidade ou entrega ou
do fenômeno da violência exige respostas aceitação de pagamento.
mais elaboradas e que considerem uma ava- Algumas estatísticas demonstram a
liação contextualizada. Os fatores socioeco- gravidade do problema. Segundo dados do
nômicos são quase sempre necessários para Ministério da Saúde (2018), cerca de 70 %
explicar certos tipos de violência, apesar de dos casos de violência sexual notificados
não serem suficientes para elucidar a sua são contra crianças e adolescentes. Quando
origem. Nosso modo de compreender e defi- analisamos as notificações de violência se-
nir a violência depende dos valores sociais, xual registradas, no âmbito do Sistema Úni-
regras culturais, ordenamentos normativos co de Saúde – SUS, é possível verificar que a
e circunstâncias históricas. grande maioria das crianças é do sexo femi-
O surgimento e o recrudescimento nino (74,2 %), um pouco mais que a metade
da violência sexual, portanto, depende do (51,2 %) tem entre um e cinco anos, quase a
modo como reagimos a ela. Nesse sentido, metade (45,5 %) é negra e uma parcela sig-
as ações repressivas ou a lógica adversarial nificativa (3,3 %) possui alguma deficiência
característica dos processos judiciais não ou transtorno. Entre os adolescentes os per-
são suficientes para o enfrentamento da vio- centuais são semelhantes. O mais agravan-
lência. A violência sexual, em suas mais di- te é que essa é uma violência de repetição.
versas formas, é entendida em nossa legisla- Uma criança/adolescente sofrerá essa vio-
ção como qualquer conduta que constranja lência mais de uma vez e isto significa que
a criança ou o adolescente a praticar ou pre- as políticas públicas em vigência não estão
senciar conjunção carnal ou qualquer outro produzindo os resultados esperados.
ato libidinoso, inclusive exposição do corpo Os dados sobre a violência sexual con-
em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, tra crianças/adolescentes demonstram que
que compreenda: abuso sexual, exploração esta é também uma violência de gênero e
sexual comercial ou tráfico de pessoas. O tem estreita relação com a violência contra
abuso sexual refere-se a toda ação que se mulheres de qualquer grupo etário e com a
utiliza da criança ou do adolescente para LGBTfobia. sete em cada dez mulheres no
fins sexuais, seja conjunção carnal ou outro mundo já foram ou serão violentadas em al-
ato libidinoso, realizado de modo presencial gum momento da vida; uma em cada quatro
ou por meio eletrônico, para estimulação se- mulheres sofre violência física ou sexual du-
xual do agente ou de terceiros. A exploração rante a gravidez; a primeira relação sexual
sexual comercial envolve o uso da criança ou de 30 % das mulheres e de 45 % das meni-
do adolescente em atividade sexual em tro- nas com menos de quinze anos, foi forçada
ca de remuneração ou qualquer outra forma (ONU Mulheres, 2016). A violência se expres-
de compensação, de forma independente ou sa de muitas formas, que podem ir desde in-

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
sultos, humilhações, intimidações, controle ram propostas. Apesar desses esforços, as
sobre amizades ou redes sociais, beliscões, denúncias de violações têm crescido cada
tapas, socos, até assassinato. A violência de vez mais, o que pode ocorrer em função do
gênero tem contornos especiais, especial- maior acesso aos canais de denúncia mas
mente porque nem sempre é reconhecida também ao incremento dessas violações
como violência. de direitos. Convidamos você para refletir
Este assunto tem sido bastante deba- conosco sobre quais são os desafios para a
tido no mês de maio em virtude de que a Lei oferta de uma proteção efetiva. Para contri-
n. 9.970/2000 institui o dia 18 de maio como buir na análise dessa política pública entre-
o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Ex- vistamos a jovem Ane Caroline Vicente (24
ploração Sexual de Crianças e Adolescentes. anos), do Rio de Janeiro, participante da Es-
Portanto, em 2020 completamos vinte anos cola da Cidadania e a psicóloga Maria Luiza
de lutas para o enfrentamento das violên- Oliveira, de Goiânia, Mestre em Psicologia
cias sexuais contra crianças e adolescentes. Social, ex-presidenta do CONANDA e inte-
Foi também no ano 2000 que o Conselho Na- grante do Observatório Latinoamericano e
cional dos Direitos da Criança e do Adoles- Caribenho sobre Tráfico de Pessoas.
cente – CONANDA aprovou o primeiro Plano Alguns desafios têm sido referidos por
Nacional de Enfrentamento da Violência Se- pessoas que sofreram violência, por pro-
xual Infanto Juvenil que também completa fissionais e pesquisadoras. Esses desafios
20 anos nesse momento, tendo passado por envolvem a dificuldade de reconhecimento
atualizações. do que é violência sexual por crianças/ado-
Nesses 20 anos de luta o debate sobre lescentes, o fato de que para denunciar e/
as violências sexuais foi gradativamente ga- ou buscar ajuda é necessário que existam
nhando visibilidade na sociedade, muitas recursos alcançáveis por quem sofre a vio-
leis foram aprovadas, muitas políticas fo- lência e a ausência ou insuficiência do aten-

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dimento especializado geram incertezas blicas propiciar estratégias e mecanismos
quanto ao recebimento de apoio. que facilitem a participação organizada e a
Ane Caroline Vicente afirma que o expressão livre de crianças e adolescentes,
adolescente “pensa que não tem voz e até em especial sobre os assuntos a eles relacio-
descobrir que tem voz passa por muitas si- nados conforme propõe Plano Decenal dos
tuações de violência, sente medo, tem que Direitos de Crianças e Adolescentes aprova-
lidar com julgamentos das pessoas”. A au- do pelo CONANDA em 2010.
sência de espaços participativos amplia A oferta de atendimento especializado
essa dificuldade de o/a adolescente se sentir e a responsabilização também se configuram
potente para buscar ajuda. A participação é como questões complexas ainda não equacio-
um direito ainda negligenciado no Brasil. nadas adequadamente pelas políticas públi-
Dada a sua importância, o Plano Nacional cas. Questiona-se: O que deve ser aprimorado
de Enfrentamento da Violência Sexual con- nas políticas públicas? De que forma a psico-
tra Crianças e Adolescentes adotou como logia pode contribuir para o enfrentamento
um dos eixos estratégicos a promoção da dessas violências? Apesar de inúmeras leis e
participação ativa de crianças e adolescen- políticas de enfrentamento, o orçamento pú-
tes na defesa de seus direitos e na execução blico insuficiente para o financiamento das
de políticas de proteção de seus direitos. ações propostas tem sido um obstáculo im-
Outro aspecto importante é que a vio- portante para a qualificação das ações.
lência sexual frequentemente é uma violên- Em relação às contribuições da psi-
cia intrafamiliar, o que reverte essa vivên- cologia, Ane Caroline Vicente afirma que a
cia de uma complexidade maior exigindo psicóloga “empresta o ouvido para escutar
cuidados adicionais no manejo da situação, a dor, porque quem está vivenciando uma
uma vez que os vínculos familiares envol- violência fica num beco sem saída, sem sa-
vem afetos importantes. Qualquer inter- ber com quem conversar para quem con-
venção nestes casos deve considerar esses tar. A ajuda de um psicólogo é essencial
vínculos e as violências em uma perspectiva para que as pessoas que foram violenta-
intersubjetiva. É preciso tempo e espaços de das possam falar sem peso, sem dor, sem
acolhimento dos sofrimentos para possibi- medo de serem julgadas, essa é a ajuda
litar reelaborações e ressignificações que fundamental que um psicólogo pode dar”.
contribuam para a promoção de bem-estar. Podemos apontar outras possibilida-
As políticas públicas de enfrentamen- des de contribuição da psicologia. A esse res-
to à violência de gênero produziram o re- peito Maria Luiza Moura Oliveira avalia que
conhecimento de que as violências sexuais para avançar no enfrentamento da violência
devem ser combatidas e uma ampla divul- sexual contra crianças e adolescentes “deve-
gação dos canais de denúncia, em especial mos reafirmar a nossa atuação profissional
o Disque 100. No entanto precisamos avaliar pautada na doutrina da proteção integral,
a efetividade desses canais de forma a redu- que rege o Direito infanto-juvenil no Brasil
zir a subnotificação e aumentar a confiança e as políticas intersetoriais”. Para ela é de
no atendimento especializado. “No momen- suma importância “conceber crianças e ado-
to em que sofre uma violência o adolescen- lescentes como cidadãos plenos, porém su-
te não sabe que tem direitos e garantias e jeitos à proteção prioritária, por serem pes-
com isso eles/as se calam e guardam a dor soas em desenvolvimento físico, psicológico
pra si” afirma Ane Caroline Vicente. Isso e social”. A efetivação do ECA (Lei n. 8.069 de
demonstra a importância de as políticas pú- 13 de julho de 1990) deve seguir “as diretri-

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP
zes da Convenção sobre os Direitos da Crian- gemônicos, por força do atual processo de
ça das Nações Unidas (1989), que reconhece mundialização do mercado e de reforço do
a subjetividade de crianças e adolescentes e modelo cultural adultocêntrico, machista/
sua titularidade de direitos humanos”. patriarcalista, homofóbico e racista”.
Destaca ainda que os Conselhos de O Conselho Federal de Psicologia tem
Psicologia têm atuado na defesa da proteção produzido materiais sobre a violência sexual
integral destacando que “enquanto ciên- contra crianças e adolescentes e abordou
cia e profissão, é importante ressaltarmos esse tema uma das referências técnicas pro-
a nossa responsabilidade de sociedade ci- duzidas no âmbito do Centro de Referências
vil na implementação do Plano Nacional de Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas
Enfrentamento à Violência Sexual contra - CREPOP. O CREPOP é uma importante es-
Crianças e Adolescentes e que um dos de- tratégia de intervenção do Sistema Conselho
safios centrais é a garantia da atenção às de Psicologia. Essas referências estabelecem
crianças, adolescentes e suas famílias, por sobretudo compromissos ético-políticos que
meio da atuação em rede,”. ampliam a prática profissional para além dos
Para fazer avançar as políticas de en- aspectos técnicos, de acordo com Maria Lui-
frentamento à violência de gênero é neces- za Oliveira. Ao delimitar as contribuições da
sário dar visibilidade para a relação entre o psicologia na perspectiva da garantia dos di-
machismo e as violências sexuais. Este reco- reitos, o exercício profissional é de transfor-
nhecimento da violência sexual como uma mação e promoção de justiça social” ressalta.
violência de gênero pode contribuir para a As violências sexuais são uma gra-
construção de uma agenda afirmativa de di- ve violação de direitos humanos e as po-
reitos sexuais que defina como compromis- líticas destinadas ao seu enfrentamento
so da sociedade a garantia de um ambien- ainda possuem fragilidades que exigem a
te seguro para o desenvolvimento, livre de participação de toda a sociedade para im-
violências. Para Maria Luiza Oliveira “faz-se plementar a proteção integral e promover
necessário trabalhar as lacunas do discur- mudanças sociais que sinalizem para a não
so e da prática ideológica, produzidos pelo aceitação de nenhuma criança/adolescente
poder político e econômico, dominantes, he- sofra esse tipo de violência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, n.
27 v. 49, Brasília 2018.
COIMBRA, Cecília. Em análise: violência, universidade e sociedade. 2017. Disponível em ht-
tps://app.uff.br/slab/uploads/texto57.pdf. Acesso em: 10 maio 2020.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). No Dia Internacional da Mulher, ONU pede fim
de todos os tipos de violência de gênero. 19 jun 2016. Disponível em: https://nacoesunidas.
org/no-dia-internacional-da-mulher-onu-pede-fim-de-todos-os-tipos-de-violencia-de-ge-
nero/ Acesso em: 10 maio 2020.

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FOTO VITÓRIA BERNARDES.jpg https://mail.google.com/mail/u/2/
DEPOIMENTOS

VITÓRIA BERNARDES JEFFERSON WILLIAM


FERREIRA CANDIDO DO NASCIMENTO

Em tempos onde a restrição à locomoção se torna Sou psicólogo hospitalar e confesso que o
a principal estratégia de prevenção à infecção por sentimento recorrente no caos da Saúde
coronavírus, é preciso evidenciar que, de acordo em tempos de pandemia tem sido o medo.
com o IBGE (2010), 23,9 % da população brasi- Medo de se contaminar, de contaminar
leira possui, em alguma medida, essa restrição quem amamos… medo da morte. A reali-
como uma realidade constante e pré-pandemia. dade se tornou tão refratária ao sentido,
O acesso à cidade, à educação, ao emprego e a que um de nossos maiores desafios em
1 of 1
uma vida livre de violência são direitos constan- 25/03/2020 15:23
Psicologia Hospitalar ganhou contornos
temente negados às pessoas com deficiência. O desumanos: como vivenciarmos o luto?
capacitismo, discriminação imposta a essa popu- Por outro lado, o excesso de informações e
lação, se estrutura também na lógica capitalista, a falta de congruência entre elas nos têm
que compreende esses corpos como, além de inca- trazido uma legião de trabalhadores apa-
pazes, improdutivos. É urgente que a deficiência vorados e insones. Desta forma, o psicólo-
seja reconhecida, também pela psicologia, como go hospitalar vem sendo convocado pelos
um marcador social da diferença, assim como gê- pacientes e colegas a tentar simbolizar
nero, raça, classe e sexualidade. Precisamos des- uma realidade mutável e terrível. Esta-
naturalizar a recorrente violação de direitos de mos buscando sem trégua produzir senti-
pessoas com deficiência e traçar alternativas polí- do juntos, traçando estratégias para não
ticas e sociais para que a dignidade e exercício da nos desorganizarmos. Apontamos para
cidadania sejam realidades também a essa popu- a importância do autocuidado, de viver-
lação, principalmente durante esse período onde mos o dia de hoje, de incluirmos prazer em
as desigualdades são ainda mais acentuadas, e no nossas novas rotinas e, principalmente, de
qual podemos reconhecer também o capacitismo diferenciarmos o essencial do acessório. É
como uma das desigualdades estruturais. um tempo de muita dor e transformação.

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26/05/2020 WhatsApp Image 2018-02-17 at 20.02.42.jpeg

28/05/2020 IMG-20171210-WA0006.jpg
DEPOIMENTOS

MARCIA HESPANHOL LUIZ PAULO


BERNARDO RIBEIRO

Ao ser convidada para falar de trabalho precário Os trabalhadores rurais vivenciam situações
díspares de acordo com seu contexto: os que
https://mail.google.com/mail/u/2/#inbox/jrjtXFBjqgcQtJZdjtmVhFTdRkmfwZlJkpHJRxcJpLsRnBGJJPJFCDbGSDwLnckszMdlBXNr?projector=1&… 1/1

em tempos de coronavírus, pensei em focalizar duas


facetas desse contexto. A primeira diz respeito ao estão no agronegócio, agroindústria e na
histórico recente de desmonte de direitos dos traba- agropecuária, em sua maioria, não suspen-
lhadores, que vem ocorrendo desde a reforma/de- deram suas atividades. Estes trabalhadores
forma trabalhista de 2017 na esteira de uma polí- assalariados continuam amparados pela
tica neoliberal selvagem. Portanto, a precariedade legislação trabalhista, mesmo com riscos à
não surge com a epidemia, mas se agrava com ela, sua saúde neste período de quarentena. Por
especialmente com a ausência de políticas públicas outro lado, os sujeitos da agricultura familiar
https://mail.google.com/mail/u/2/#inbox/jrjtXFBjqgcQtJZdjtmVhFTdRkmfwZlJkpHJRxcJpLsRnBGJJPKNDhLvssqVctlKVqCnMBzr?projector=1&m… 1/1

de proteção aos trabalhadores. O segundo aspecto e camponesa têm dificuldades para se mante-
que gostaria de ressaltar — e que diz mais respeito a rem, uma vez que o comércio e o escoamento
nós, psicóloga/os — é como a fala contra quarentena das produções têm encontrado empecilhos,
com o argumento de que as pessoas precisam tra- embora haja empenho de agências sindicais
balhar para viver tem eco junto aos trabalhadores para conseguir fazê-lo, além do não-acesso
mais pobres. Para uma imensa maioria da popula- ao benefício assistencial emergencial. Mes-
ção, que nunca vivenciou um ‘Estado de bem estar mo com vínculos diferentes, há algo que une
social’, essa fala faz sentido porque o “se virar” para os trabalhadores das duas áreas, não só em
viver sempre foi uma realidade. Assim, ela não con- tempos de pandemia de COVID-19: a neces-
segue imaginar que é o Estado que tem o dever de sidade de reconhecimento de que são sujeitos
protegê-la num contexto como esse. Isso me fez lem- de direitos, com identidade e especificidades
brar dos escritos de Martin-Baró sobre o papel dos de vida, que demandam políticas públicas
psicólogos no sentido de promoção de consciência para garantir acesso à saúde de qualidade,
dos oprimidos sobre seus direitos, para que possam a uma educação emancipadora, à segurança
se fortalecer coletivamente e lutar por eles. alimentar e à terra, para viver e trabalhar.

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DEPOIMENTOS

MONIQUE
PRADA

Em tempos nos quais os abraços se tornaram proibitivos e demons-


trações de intimidade mais ainda, a nossa velha conhecida, a clan-
destinidade, nos abraça — e é ainda na clandestinidade que mui-
https://mail.google.com/mail/u/2/#inbox/jrjtXFBjqgcQtJZdjtmVhFTdRkmfwZlJkpHJRxcJpLsRnBGJJPJCvpgDmQGWQmpljnFTxjvc?projector=1&… 1/1

tos nos abraçam. Mesmo que os riscos se façam presentes a todo o


momento, a escolha gira sempre entre a saúde preservada e a fome,
entre o trabalho proibitivo e a miséria. Orgulhosas que temos sido,
receber o apoio de nossas companheiras não tem sido tarefa simples,
muitas de nós seguindo atendendo às escondidas, enfrentando riscos
e mesmo assim, nem sempre conseguindo evitar as garras da misé-
ria. Por conta da escassez de clientes, já a mendicância nos socorre
em múltiplos espaços, se fazendo alternativa sem verdadeiramente
sê-lo. Não há EPI que torne segura a nossa atividade no momento,
mas dela nem sempre podemos abrir mão. Historicamente vistas
como vetor de males e doenças, sem o apoio de políticas públicas
que nos permitam realmente ficar em casa sem sentir a ameaça da
fome, seguimos. Com medo, com fé, com força, ajudando a levan-
tar os corpos daquelas que caem, levando os primeiros cuidados às
que precisam de isolamento obrigatório. Guerra contra inimigos
invisíveis, já sofremos nossas primeiras baixas. E seguimos. Corpos
sem direitos e sem descanso, contamos umas com as outras na au-
sência do Estado, no abandono das nossas irmãs feministas. Conta-
mos umas com as outras, como desde sempre tem sido. E generosas,
dividimos nosso pouco com outros grupos vulneráveis à volta. Viva
Indianare Siqueira! Viva Georgina Orellano!

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Boletim | Comissão de Direitos Humanos | CFP

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