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DOI: 10.1590/1413-81232022271.

19802021 27

Avante Luta Antimanicomial, ocupemos os planos diretores

artigo article
das cidades

Onward with the Anti-asylum Struggle, occupying city master plans

Gitonam Lucas Tavares Honorato (https://orcid.org/0000-0003-0422-2199) 1

Abstract This article reflects on the limits and Resumo O presente artigo reflete sobre os limites
possibilities for articulating the anti-asylum stru- e possibilidades de articulação entre a Luta An-
ggle with participatory city master plans (PMPs) timanicomial e os Planos Diretores Participativos
in Brazil with the aim of helping enhance anti das cidades (PDPs) no Brasil, com vistas ao cuida-
-asylum care in liberty and guaranteeing the ri- do antimanicomial em liberdade para as pessoas
ghts of people experiencing mental suffering. De- em sofrimento mental, bem como à garantia de
parting from the premise that the city is neither a realização e à ampliação dos seus direitos. Ao par-
therapeutic nor a caring environment, this analy- tir da premissa de que a cidade não é por si tera-
sis seeks to weave together the challenges of “living pêutica nem tampouco cuidadora, desenvolvemos
in liberty” with urban planning policies guided by uma analítica que busca entrecruzar os desafios
PMPs. To this end, we analyzed terms pertaining do “morar em liberdade” com as políticas de de-
to the anti-asylum struggle and Brazil’s mental senvolvimento urbano nos municípios brasileiros
health reform in the PMPs of the 15 highest-sco- – estas, orientadas pelos PDPs. Assim, analisamos
ring cities in the Connected Smart Cities Ranking. citações concernentes ao temário da Luta Antima-
The findings show that it is important for the anti nicomial e Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB)
-asylum struggle to dispute municipal urban poli- nos PDPs dos 15 municípios mais bem avaliados
cies in wider legislative arenas in order to promote no ranking de qualidade urbana nacional, de
further advances in deinstitutionalization and a acordo com a Plataforma Connected Smart Cities.
transformation of the social place of madness, and Com base nessa pesquisa, pudemos refletir sobre a
guarantee the rights of people experiencing men- importância de a Luta Antimanicomial disputar
tal suffering in cities. as políticas urbanas municipais para articular,
Key words Citizenship, Deinstitutionalization, em arenas ainda mais ampliadas na via legislati-
Social participation, City planning, Mental he- va, avanços nos termos da desinstitucionalização,
alth transformação do lugar social da loucura e reali-
1
Programa de Pós-
Graduação em Geografia, zação dos direitos de cidadania para pessoas em
Universidade Federal situação de sofrimento mental nas cidades.
Fluminense. Rua Gal. Palavras-chave Cidadania, Desinstitucionaliza-
Milton Tavares s/n Instituto
de Geociências, Campus ção, Participação social, Planejamento das cida-
Praia Vermelha Boa Viagem. des, Saúde mental
24210-346 Niterói RJ Brasil.
lucasthonorato@
yahoo.com.br
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Honorato GLT

Introdução também das lutas e da emancipação8, os territó-


rios na cidade acabam circunscrevendo possibili-
Ao longo de quase 20 anos de institucionalização dades diferentes e desiguais aos diversos sujeitos
da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), a partir sociais no tocante ao acesso aos direitos e ser-
da Lei nº 10.216/2001 e outras normativas subse- viços essenciais à vida social e individual. Nesse
quentes1,2, pudemos notar avanços significativos sentido, há de se considerar o processo histórico
em relação à reorganização do cuidado com as de uma urbanização capitalista na conformação
pessoas em situação de sofrimento mental no dos territórios das cidades brasileiras, distribuin-
país. Os processos de desospitalização, constru- do os recursos sociais urbanos de forma desigual
ção de serviços extra-hospitalares e organização e combinada9,10. Fundado no e para a produção e
de Redes de Atenção Psicossocial (RAPS) ilus- o consumo, o ordenamento espacial capitalista,
tram importantes vitórias para o avanço da Luta é, portanto, mais um desafio à cidadania, por ser
Antimanicomial, sobretudo em relação à desins- ao mesmo tempo produto e produtor de seleti-
titucionalização das pessoas em sofrimento men- vidade em relação às capacidades de realização
tal3 e à consolidação do paradigma da Atenção de direitos por certas parcelas da população11. Os
Psicossocial no Brasil4,5. territórios utilizados nas cidades, marcados por
Antagônica à perspectiva biomédica e hos- desigualdades e injustiças, acabam se tornando
pitalocêntrica, o paradigma da atenção psicos- “espaços sem cidadãos”, logo “a capacidade de
social busca outras estratégias de cuidado, com utilizar o território não apenas divide como se-
base na criação e fortalecimento de vínculos, na para os homens, ainda que eles apareçam como
afirmação da diferença e na produção de saúde5. se estivessem juntos”12 (p. 59). Nos termos de
Em oposição ao processo diagnóstico-medicali- Milton Santos, delineia-se nas cidades brasileiras
zação-cura, afirma-se a diferença-liberdade-vida. a realidade de uma cidadania atrofiada, mutila-
Em termos espaciais e a contrapelo das his- da, pois “para muitos, a rede urbana existente e a
tóricas práticas de sequestro social, a perspectiva rede de serviços correspondente são apenas reais
da desinstitucionalização aposta na cidade, lugar para os outros. Por isso são cidadãos diminuídos,
da multiplicidade e da diferença, para a potencia- incompletos”12 (p. 112).
lização da vida daqueles sujeitos em sofrimento Mais além, sob o ponto de vista das geogra-
– a cidade como lócus da transformação do lugar fias das existências, os territórios onde vivemos
social da loucura. Em síntese, esta abordagem se também são mais do que um simples conjunto
propõe como uma inflexão nas práticas e senti- de objetos através dos quais, condizentes ou não
dos da Saúde Mental, que pode ser sintetizada com as normas, transcorremos nosso cotidiano.
nos seguintes termos: “do manicômio, lugar zero Nesse quesito, as problemáticas “macros” dos
dos intercâmbios sociais, à multiplicidade extre- modelos de urbanização e gestão das cidades
ma das relações sociais”6 (p. 36). produzidos na agonística do Estado, mercado,
Tendo a cidade como centralidade terapêuti- corporações e sociedade civil se somam a todo
ca e o “morar em liberdade” como condição sine um conjunto de micropolíticas próprias das in-
qua non para a transdução do sujeito-sujeitado terrelações sociais cotidianas, transversalizadas
em sujeito-cidadão, o existir, o habitar e o viver por formas de opressões interseccionalizadas
a cidade colocam questões desafiadoras para as (de normatividade, raça, gênero e classe). Para
pessoas em sofrimento mental, não apenas no Jorge Luiz Barbosa13, a mobilidade socioespacial
que tange à prática clínica, como também em das pessoas na cidade vai muito além da acessi-
relação às possibilidades concretas de realização bilidade aos recursos sociais urbanos, e inclusive
efetiva de sua cidadania7. Se, por um lado, “o pa- envolve a urgência de desfazimento de todo um
ciente se torna cidadão de pleno direito e muda, conjunto de geografias de opressões que se dese-
com isto, sua contratualidade em relação à socie- nham nas trajetórias possíveis dessas pessoas nos
dade em geral”6 (p. 36), por outro, a realização territórios. Logo, a cidade que é buscada como
desses direitos de cidadania (sociais, políticos e lugar da multiplicidade, sempre em aberto, dina-
humanos) rebatem em outros entraves não res- mizada pelas interrelações cotidianas e, por isso,
tritos à arena jurídico-normativa, mas associados potente para vivências múltiplas e diversas; tam-
ao enfrentamento de todo um conjunto estrutu- bém se objetiva estruturalmente como o lugar do
ral de distâncias, desigualdades socioespaciais e sofrimento social.
geografias de exclusão e opressões, que marcam a A sociedade adoece. Essa sociedade é a sua
realidade cotidiana das cidades brasileiras. cidade. Tal sobredeterminação põem em xeque
Enquanto cerne da questão social e esfera de as acepções da cidade, da comunidade e do terri-
(re)produção das desigualdades e injustiças, mas tório como entes estáticos, idealizados, ou como
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“sujeitos” naturalmente “bons” e “cuidadores”, crescimento e ordenamento urbano das cidades.
uma vez que essas concepções não permitem Ele é obrigatório para cidades com população su-
perceber que o sujeito institucionalizado, antes perior a 20 mil habitantes e/ou componentes de
do manicômio, veio justamente daquela realida- regiões metropolitanas, aglomerações urbanas,
de socioespacial que, muitas vezes, o adoeceu. áreas de especial interesse turístico ou situadas
Alinhamo-nos com a – não tão nova – defesa em áreas de influência de empreendimentos de
da transformação da cidade como condição para grande impacto ambiental. Trata-se de um ins-
uma política efetiva de cuidado às pessoas em trumento básico das políticas do urbano, estando
condição de sofrimento mental no país14,15. Em a ele subordinados: o plano plurianual, as diretri-
nossa perspectiva, desinstitucionalizar, no âmbi- zes orçamentárias e o orçamento anual etc, que
to da Luta Antimanicomial e RPB, requer dispu- devem, por exemplo, incorporar as diretrizes e
tar a cidade não apenas nas micropolíticas do co- prioridades por ele definidas17. Dada a sua im-
tidiano, bem como na esfera de seu planejamento portância, o PDP deve ser revisto a cada 10 anos,
e gestão. Uma vez que a conquista do Direito à sob responsabilidade do governo Executivo Mu-
Cidade não se qualifica pelo fato do “morar em nicipal vigente na época, de tal forma que san-
liberdade” – embora esta seja uma condição mí- ções previstas pelo EC e pela Lei da Improbidade
nima para que esse direito se estabeleça. Para cui- Administrativa incidem sobre o município que
dar na/com a cidade, é preciso que ela se trans- não estiver em conformidade com essa obrigato-
forme em um espaço potente de cuidado – o que riedade.
ultrapassa as fronteiras corporativas da Saúde O PDP é, portanto, um aparato jurídico-urba-
Mental (mesmo quando se considera o seu sen- nístico que, nos moldes atuais, pretende expres-
tido ampliado, descentrado, multiprofissional e sar, em grande medida, as conquistas decorrentes
trans/interdisciplinar). Ainda que o cuidado ter- de décadas de lutas dos diversos movimentos
ritorializado seja imprescindível – tensionando, sociais pela Reforma Urbana e pelo Direito à Ci-
no local, a arena territorial em que se desenrolam dade no Brasil. Ele é indispensável para, a partir
os projetos terapêuticos e a vida das pessoas –, de diretrizes, definição de parâmetros, previsão
urge intervir conjuntamente em uma escala am- de instrumentos, planos e metas, articular um
pliada e em diálogo com o planejamento e gestão amplo conjunto de outros instrumentos de pla-
da cidade. nejamento, controle e gestão da cidade previstos
Partindo dessa premissa, o presente artigo pelo EC, que devem ser organizados estratégica e
objetiva refletir sobre os limites e possibilidades particularmente de acordo com as realidades lo-
de articulação da Luta Antimanicomial com as cais. Os PDPs buscam, pois, garantir a previsão,
políticas do urbano nos municípios brasileiros, direcionamento e segurança jurídico-legislativa
tomando como foco os Planos Diretores Partici- de alguns dos princípios considerados estrutu-
pativos (PDPs) das cidades, visando potencializar rantes da democratização da cidade, tais quais:
o cuidado antimanicomial em liberdade para as a função social da propriedade urbana, a função
pessoas em sofrimento mental, tal como a garan- social da cidade, o direito à cidade e ao ambiente
tia de realização e a ampliação de seus direitos. equilibrado, dentre outros.
Com base em uma análise comparada de Do ponto de vista da esfera pública, é na cons-
PDPs dos 15 municípios mais bem pontuados no trução do PDP que a cidade “entra em disputa”
Ranking CMC 20 de qualidade urbana, elabora- pela definição de seus zoneamentos estratégicos,
do anualmente pela plataforma Connected Smart orientações de ordenamento, previsão de planos
Cities16, pudemos aprofundar a nossa questão (incluindo os setoriais), estabelecimento de pa-
norteadora: como as temáticas da Saúde Mental, râmetros, metas e prazos e, ainda, pela definição
nos termos da Luta Antimanicomial e RPB, têm de diretrizes, tais quais de mobilidade, saúde,
sido abordadas no macroplanejamento urbano educação, cultura, meio ambiente etc. Ou seja,
das cidades no país? é com base no PDP que a cidade institucional-
mente “se pensa”, “se projeta” e “sonha” a partir
Analisando os planos diretores das cidades: de um processo longo de construção/revisão, ao
onde está a saúde mental? perpassar procedimentos de diagnósticos, previ-
são de cenários e adequação de redações, sempre
Previsto pela Constituição Federal de 1988, pretensamente com participação social. Uma vez
requalificado e ampliado pelo Estatuto da Cidade estabelecido, o plano ganha contorno de Lei, que
(EC), em 2001, o PDP é o principal instrumen- se processa por audiências públicas para ajustes e
to legislativo de orientação do desenvolvimento, para ser votado em seguida. Tal qual se intencio-
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Honorato GLT

na, o processo de construção dos PDPs deve bus- Planejamento e gestão em Saúde: saúde públi-
car a configuração de uma arena social ampliada ca; planos setoriais de saúde; padrões da Orga-
de disputa, como lugar privilegiado da participa- nização Mundial de Saúde; pesquisa em saúde;
ção social, instaurando uma contenda entre dife- informação em saúde; secretaria de saúde; Siste-
rentes projetos de cidade (e de viver a, na e com a ma Único de Saúde (SUS); modelos de atenção à
cidade) em pauta naquela realidade local. saúde; vigilância em saúde; vigilância epidemio-
É justamente considerando a obrigatoriedade lógica; rede de atenção à saúde; Política Nacional
da ampla participação social na construção dos de Saúde; novas tecnologias em saúde; gestão da
PDPs (mesmo que, neste artigo, a eficiência da rede municipal de saúde; gestão interfederativa do
participação não esteja sendo precisada), nos di- SUS; Política Municipal de Saúde; gestão partici-
rigimos rumo a uma investigação sobre as for- pativa; unidades de saúde primárias e secundárias;
mas com que a temática da Saúde Mental, sob a rede de saúde integrada e hierarquizada; Progra-
ótica da Luta Antimanicomial e RPB, se consoli- ma Saúde da Família;
dou no texto da Lei desse central instrumento das Efeitos em saúde das atividades e do habitar a
políticas do urbano. cidade: saúde dos habitantes vizinhos; risco poten-
Para a triagem, análise e comparação dos cial para a vida e saúde; saúde (em relação a sanea-
PDPs de diferentes cidades do país nos referen- mento e poluição); agravos à saúde da população;
ciamos no ranking de qualidade urbana, elabora- Rede de serviços e equipamentos: agentes de
do anualmente pela plataforma Connected Smart saúde; resíduos de saúde; saúde do trabalhador;
Cities – que se baseia nos seguintes indicadores: centros de saúde; hospitais gerais; hospitais espe-
Economia, Educação, Empreendedorismo, Go- cializados; postos de saúde; ambulatórios; saúde
vernança, Meio Ambiente, Mobilidade, Acessibi- bucal.
lidade, Saúde, Segurança, Tecnologia e Inovação Desse inventário, destacamos dois detalhes
e Urbanismo. O Ranking CMC 2016 propõe um interessantes em PDPs específicos. O primeiro de-
mapeamento das cidades com maior potencial de les, em relação ao PDP da cidade de Niterói-RJ18,
crescimento e desenvolvimento urbanos no país. datado de 2019, que foi o documento que mais
Embora se trate de uma avaliação com interes- mencionou a palavra “saúde” (61 menções) dentre
ses corporativos, seu método articula o ranque- todos os analisados. Embora a maioria dos termos
amento de diferentes indicadores com vistas ao já alinhavados acima sejam também recorrentes
desenvolvimento, à qualidade de vida e à susten- nesse outros merecem destaque: atenção integral
tabilidade das cidades, traçando um panorama à saúde da mulher, da criança e do adolescente;
comparativo relevante da situação urbana delas saúde e qualidade de vida da população idosa,
– pondera-se no ranqueamento as diferenças em das pessoas com deficiências e doenças crônicas;
relação ao tamanho das cidades e a situação re- planejamento de ações em saúde; três níveis de
gional delas. atenção à saúde; perfil epidemiológico; saúde da
Das cem cidades ranqueadas, nos ativemos família; unidades de saúde especializadas e labo-
em buscar os PDPs das 15 mais bem colocadas, ratoriais; e, informações em saúde e pesquisa em
filtrando buscas nas leituras dos documentos a saúde.
partir de palavras-chave. Iniciando uma busca Segundo, apesar da quantidade expressiva de
preliminar com base no termo “saúde”, encontra- referências no PDP citado anteriormente, é no
mos um cenário de ampla variedade nas formas PDP de Curitiba-PR19, que se trata do único PDP
de menção, com diferentes tipos de empregos, dentre os analisados que faz referência direta aos
sentidos e correlações com assuntos diversos. termos “saúde coletiva” e “determinantes da saú-
Eles foram classificados de acordo com os se- de”. O mesmo acontece com o termo “saúde co-
guintes temas: munitária”, que consta apenas no PDP da cidade
Direitos constitucionais: saúde (em termos de Porto Alegre-RS20 – embora este não faça qual-
legais); proteção à saúde; saúde humana; saúde quer menção à Saúde Mental.
ambiental; recuperação da saúde individual e co- Do ponto de vista das menções mais rigorosa-
letiva; necessidades de saúde; promoção da saú- mente vinculadas aos mecanismos de gestão, pla-
de; prevenção da saúde; saúde e cidadania; aten- nejamento e organização das redes em Saúde, é o
ção integral em saúde; boas condições de saúde PDP da cidade do Rio de Janeiro-RJ21 que merece
e segurança; saúde e bem-estar; atenção à saúde; maior destaque, por ser o único a evidenciar o ter-
saúde da mulher, das crianças e adolescentes, dos mo “plano metropolitano de saúde”.
idosos, de pessoas com deficiências e doenças Outros importantes detalhes também devem
crônicas; ser observados, como o caso do PDP de Barue-
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ri-SP, de 2006 (atualizado via Lei Complementar além do Coeficiente de Aproveitamento (CA) dos
em 2019), que, dentre os analisados, é o único que terrenos, estipulado pelo Plano Diretor, median-
faz menção ao termo “cidade saudável”: te pagamento. Capítulo II, Seção I, Art. 152: No
Capítulo II, Art. 9° - O processo de urbanização cálculo do coeficiente de aproveitamento, com ex-
do território do Município organiza-se sobre ele- ceção das edificações destinadas ao uso residencial
mentos estruturadores e integradores. [...] §2°. Os unifamiliar, não serão computados: [...] IV - áre-
elementos integradores são todos aqueles que com- as de varandas, contíguas a salas ou quartos, que
põem as funções urbanas agrupados por objetivos, a não ultrapassem: [...] b) 20% (vinte por cento) da
saber: [...] VI – Cidade Saudável, que conjuga ações área destinada ao respectivo cômodo em unidades
preventivas com as curativas no âmbito da saúde, de hospedagem de hotéis, motéis, apart-hotéis, pen-
agindo, inclusive, nos fatores ambientais e territo- sões, hospitais, casas de saúde e de repouso, sanató-
riais que interferem na saúde pública22. rios e maternidades24;
Mas qual o lugar dos loucos na cidade? Hospitais especializados em Saúde Mental
Analisando mais detalhadamente os mes- (uma menção, Brasília-DF): Capítulo VIII, Art.
mos documentos, com base na busca dos termos 52: Consideram-se equipamentos regionais os esta-
“saúde mental”, “psicossocial”, “álcool”, “CAPS”, belecimentos em que são prestados os serviços das
“RAPS”, “Centro de Convivência”, “sanatório”, áreas temáticas de educação, segurança pública,
“manicômio”, “Hospitais Psiquiátricos”, “leitos” e saúde, transporte, abastecimento e cultura. [...]
“rede”, pudemos sistematizar uma tabela (Quadro III – saúde: hospitais regionais, hospitais especia-
1) com os resultados. lizados em saúde mental e unidades de vigilância
Dos 15 PDPs analisados, apenas 6 fazem sanitária; (Inciso conforme à Lei Complementar nº
menção direta a qualquer um dos termos anali- 854, de 2012). Texto original: III – saúde: hospitais
sados, de forma concernente à temática da Saúde regionais e unidades de vigilância sanitária25;
Mental – São Paulo-SP, promulgado em 2014 (1º Atenção à Saúde Mental (uma menção, Ni-
Lugar no Ranking CMC 20)23; Curitiba-PR, pro- terói-RJ): Capítulo IV, Art. 253: As diretrizes que
mulgado em 2015 (3º Lugar no Ranking CMC integram as políticas de Desenvolvimento Social que
20)19; Vitória-ES, promulgado em 2016 (5º Lugar incluem a Educação, a Saúde, a Assistência Social,
no Ranking CMC 20)24; Brasília-DF, promulgado Esporte e Lazer são: [...] VII - ampliar e promover
em 2009, porém atualizado via Lei Complemen- ações intersetoriais voltadas ao fortalecimento da
tar em 2015 (8º Lugar no Ranking CMC 20)26; atenção à saúde mental, com ênfase no enfrenta-
Niterói-RJ, promulgado em 2019 (11º Lugar no mento da dependência de crack e outras drogas, no
Ranking CMC 20)18; e Rio de Janeiro-RJ, promul- conjunto de unidades hospitalares da cidade18;
gado em 2011 (12º Lugar no Ranking CMC 20)21. Centros de Convivência (uma menção, Ni-
Os termos empregados nesses documentos terói-RJ): Capítulo VI, Art. 267. São objetivos do
foram: Sistema Municipal de Proteção do Patrimônio Cul-
Centro de Atenção Psicossocial – CAPS (uma tural: [...] VII - estimular a revitalização de prédios
menção, São Paulo-SP): é citado de forma desvin- históricos localizados nas ZEPAC-APAU [Zona Es-
culada de orientações, normativas e/ou diretrizes pecial de Preservação do Ambiente Cultural - Áreas
no PDP. Apenas consta no Quadro 10, anexo à de Preservação do Ambiente Urbano] para ativida-
Lei, que inventaria os Equipamentos Urbanos des voltadas ao idoso, tais como clínicas médicas,
Sociais existentes. CAPÍTULO VIII, Seção I, Pará- centros de convivência e equipamentos de saúde em
grafo Único – Os Equipamentos Urbanos e Sociais geral18;
estão relacionados no Quadro 10 anexo a esta lei23; Recuperação psicossocial (uma menção, Rio
Uso de substâncias entorpecentes e álcool de Janeiro-RJ): SEÇÃO III - DA ASSISTÊNCIA
(uma menção, Curitiba-PR): Seção VI, Art. 116, SOCIAL, SUBSEÇÃO II, Art. 267. A Política de
X - desenvolver ações de prevenção ao uso de subs- Assistência Social se fará através de programas
tâncias entorpecentes e álcool, criando métodos e definidos pelo Conselho Municipal de Assistência
formas de atendimento especializado, objetivando Social, que compreenderão a criação, recuperação
tratamento eficaz, humanizado e no âmbito do Sis- e manutenção de Centros de Atendimento aos ne-
tema Único de Saúde – SUS19; cessitados; o incentivo à construção e manutenção
Sanatório (uma menção, Vitória-ES): o termo de hospedagem, com programas de recuperação
é empregado no contexto da Outorga Onerosa psicossocial, voltados especialmente para a popula-
do Direito de Construir (OODC). De forma ge- ção de rua; a garantia de ampla acessibilidade aos
nérica, a OODC pode ser entendida como uma locais de atendimento; e a divulgação ampla dos
permissão para exercer o direito de construir programas de assistência social21.
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Honorato GLT

Quadro 1. Sistematização de menções a termos ligados ao temário da Saúde Mental e Luta Antimanicomial nos Planos Diretores
Participativos (PDPs) das 15 cidades mais bem pontuadas no Ranking CMC 20.
Porte
Plano Termo
Ranking Nota da Promulgação Menções Texto
Diretor empregado
cidade
1 37,901 + 500k São Paulo 01 de Agosto 1 (31) Centro de Aten- CAPÍTULO VIII, Seção I, Parágrafo
(SP) de 2014 ção Psicossocial Único - Os Equipamentos Urbanos e
(CAPS) Sociais estão
relacionados no Quadro 10 anexo a
esta lei
2 37,224 + 500k Florianó- 14 de Janeiro 0 - -
polis (SC) de 2014
3 36,545 + 500k Curitiba 17 de Dezem- 1 Uso de substân- Seção VI, Art. 116, X - desenvolver
(PR) bro de 2015 cias entorpecen- ações de prevenção ao uso de substân-
tes e álcool cias entorpecentes e álcool, criando
métodos e
formas de atendimento especializado,
objetivando tratamento eficaz, huma-
nizado e no âmbito do
Sistema Único de Saúde - SUS
4 36,303 + 500k Campinas 27 de Dezem- 0 - -
(SP) bro de 2006
5 36,251 100 a Vitória 13 de Outubro 1 Sanatório Capitulo II, Seção I, Art. 152: No cál-
500k (ES) de 2016 culo do coeficiente de aproveitamento,
com exceção das edificações
destinadas ao uso residencial unifa-
miliar, não serão computados: IV -
áreas de varandas, contíguas a salas ou
quartos, que não ultrapassem: b) 20%
(vinte por cento) da área destinada ao
respectivo cômodo em unidades de
hospedagem de hotéis, motéis, apar-
t-hotéis, pensões, hospitais, casas de
saúde e de
repouso, sanatórios e maternidades

6 36,107 100 a São 9 de Dezem- 0 - -


500k Caetano bro de 2015
do Sul
(SP)
7 35,423 100 a Santos 16 de Julho de 0 - -
500k (SP) 2018
8 35,361 + 500k Brasília 25 de Abril 1 Hospitais espe- Capítulo VIII, Art. 52, Consideram-se
(DF) de 2009, com cializados em equipamentos regionais os estabeleci-
complemen- saúde mental mentos em que são prestados os ser-
tar em 15 de viços das áreas temáticas de educação,
Outubro de segurança pública, saúde, transporte,
2015 abastecimento e cultura. III – saúde:
hospitais regionais, hospitais especia-
lizados em saúde mental e unidades
de vigilância sanitária; (Inciso com a
relação da Lei Complementar nº 854,
de 2012.). Texto original: III – saúde:
hospitais regionais e unidades de vigi-
lância sanitária
continua
33

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Quadro 1. Sistematização de menções a termos ligados ao temário da Saúde Mental e Luta Antimanicomial nos Planos Diretores
Participativos (PDPs) das 15 cidades mais bem pontuadas no Ranking CMC 20.

Porte
Plano Termo
Ranking Nota da Promulgação Menções Texto
Diretor empregado
cidade
9 34,869 + 500k Porto 1 de Dezem- 0 - -
Alegre bro 1999, com
(RS) complemen-
tares até 22 de
Julho de 2010
10 34,608 + 500k Belo 8 de Agosto de 0 - -
Horizonte 2019
(MG)
11 34,411 + 500k Niterói 3 de Julho de 2 Atenção à Saúde Capitulo IV, Art. 253: As diretrizes que
(RJ) 2019 Mental; Centros integram as políticas de Desenvolvi-
de Convivência mento Social incluem a Educação, a
Saúde, a Assistência Social, Esporte e
Lazer são: VII - ampliar e promover
ações intersetoriais voltadas ao forta-
lecimento da atenção à saúde mental,
com ênfase no enfrentamento da
dependência de crack e outras drogas,
no conjunto de unidades hospitalares
da cidade; E, Art. 267. São objetivos
do Sistema Municipal de Proteção do
Patrimônio Cultural: VII - estimular
a revitalização de prédios históricos
localizados nas ZEPAC-APAU para
atividades voltadas ao idoso, tais como
clínicas médicas, centros de convivên-
cia e equipamentos de saúde em geral
12 34,297 + 500k Rio de 1 de Fevereiro 1 Recuperação SEÇÃO III - DA ASSISTÊNCIA SO-
Janeiro 2011 Psicossocial CIAL, SUBSEÇÃO II, Art. 267. A Polí-
(RJ) tica de Assistência Social se fará através
de programas definidos pelo Conselho
Municipal de Assistência Social, que
compreenderão a criação, recuperação
e manutenção de Centros de Atendi-
mento aos necessitados; o incentivo à
construção e manutenção de hospeda-
gem, com programas de recuperação
psicossocial, voltados especialmente
para a população de rua; a garantia
de ampla acessibilidade aos locais de
atendimento; e a divulgação ampla dos
programas de assistência social
13 34,214 100 a Barueri 10 de Dezem- 0 - -
500k (SP) bro de 2004
14 34,002 + 500k Campo 4 de Dezem- 0 - -
Grande bro de 2018,
(MS) com comple-
mentar em
3 de Abril de
2019
15 33,557 + 500k Recife (PE) 14 de Dezem- 0 - -
bro de 2018
Fonte: Autor, 2020, a partir do Ranking CMC 20; Planos Diretores municipais.
34
Honorato GLT

Gostaríamos de destacar a menção “Atenção Reitera-se: Qual o lugar dos loucos na cidade?
à Saúde Mental” no PDP de Niterói-RJ. Em um Por mais que pareçam perguntas “novas”, elas
primeiro momento, ela parece “afeita” aos prin- já apareceram no cenário nacional em contex-
cípios da Luta Antimanicomial e RPB, porém, tos pontuais da luta política em municípios es-
nota-se que, apesar de ter sido um PDP promul- pecíficos, como nas manifestações ocorridas em
gado em 2019 (que teoricamente deveria estar Brasília em agosto de 2011. À época, conforme a
adequado à Lei da Reforma Psiquiátrica e demais reportagem do Correio Braziliense, Márcia Guiot
normativas subsequentes, o que inclui a Portaria Henning, presidente da Anankê, afirmou:
GM/MS nº 3.088/20112), a adoção do termo cita- A Reforma Psiquiátrica previu espaços nos cen-
do coloca-se em detrimento do termo “Atenção tros urbanos para inserção social das pessoas com
Psicossocial”, tal como foi cunhado pela Portaria sofrimento psíquico, acabando com instituições de
que institui as RAPS no Brasil. Contudo, no que caráter asilar. Mas quando Plano Diretor foi cria-
diz respeito à linguagem, o mais importante des- do, essa transformação ainda não tinha acontecido.
taque versa sobre o cuidado aos “dependentes de É preciso que isso seja revisto. [...] Não queremos
crack e outras drogas”, contrastando com o texto essas pessoas marginalizadas mais uma vez. Não
da Portaria supracitada, que qualifica a temáti- somos hospitais, não produzimos lixo hospitalar,
ca em termos de sofrimento ou transtorno mental temos atividades psicoterapêuticas, como dança,
e com necessidades decorrentes do uso2. Porém, a artes plásticas. Nossa função é diferenciada26.
informação mais relevante talvez seja o fato de o Mas, de fato, quais seriam os limites e possibi-
texto definir uma diretriz específica para a Saúde lidades da Luta Antimanicomial nos PDPs?
Mental que, embora ressalve-se o direcionamen-
to intersetorial, orienta as ações para as unidades Limites e possibilidades
hospitalares (que entre as quais figura o Hospital para a sáude mental
Psiquiátrico de Jurujuba – HPJ). Isto diverge do
princípio estruturante da RPB, que prioriza os Iniciar essa discussão nos obriga a não perder
recursos extra-hospitalares. de vista que os PDPs não apenas definem parâ-
No caso da menção “Recuperação psicosso- metros urbanísticos, como também versam sobre
cial”, no PDP do Rio de Janeiro-RJ, não é irrele- zoneamentos estratégicos, definição de planos e
vante o fato de a única citação estar enquadrada metas e, principalmente, sobre diretrizes e prin-
entre as diretrizes para Assistência Social, com ên- cípios a serem observados pelos Planos Munici-
fase para as populações em situação de rua, fora pais, que orientam uma ampla gama de outros
do escopo das diretrizes e princípios da Saúde. setores que envolvem o funcionamento das cida-
Também cabe explicitar a presença do termo des – como a Saúde. Embora caiba destaque que
“Sanatório” (caso de Vitória-ES), considerado não há quaisquer obrigatoriedades legais em re-
obsoleto, posto que, tal qual “manicômio”, passou lação à previsão de diretrizes e princípios paras às
por longo processo de crítica e é rigorosamente políticas setoriais municipais, esta tem sido uma
vilipendiado pela Luta Antimanicomial e RPB. prática relativamente consagrada nas últimas dé-
Em suma, de forma geral, podemos constatar cadas, por conta da pressão dos movimentos so-
não só a timidez e a fragilidade das temáticas da ciais das cidades e dos novos ativismos urbanos27.
Saúde Mental nos PDPs analisados, como tam- Façamos um rápido exercício de conjectura,
bém importante inadequação em relação à lin- mesmo que tomemos unicamente o caso das RTs.
guagem pautada pela Luta Antimanicomial e ins- Existem questões estruturantes que concernem à
titucionalizada na RPB – que, lhes são anteriores. consolidação e articulação na cidade e que, recor-
Esse cenário denotaria que os sujeitos e agen- rentemente, enfrentam os seguintes problemas:
tes da Luta Antimanicomial e RPB não se fizeram As mudanças político-ideológicas entre as
representar nos espaços participativos no pro- gestões e as rupturas e descontinuidades das po-
cesso de elaboração dos PDPs? Ou esses sujeitos líticas:
e agentes não teriam conseguido força política Ao considerar a profunda vinculação da con-
suficiente na arena participativa para se fazerem solidação e funcionamento das RTs à vontade
representados nos termos das Leis? política e aos interesses das gestões vigentes, de-
Onde está a Luta Antimanicomial no planeja- correm-se cenários de insegurança para os mora-
mento das cidades? dores quando há mudanças na linha político-ide-
Como se pensa a implantação das Residên- ológica das Secretarias de Saúde e Coordenações
cias Terapêuticas (RTs) no planejamento do or- de Saúde Mental, que reverberam diretamente no
denamento urbano-territorial municipal? planejamento, bem como na construção e gestão
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das RTs afetando a vida dos moradores. Embora da solidez de um planejamento intersecretarial.
os PDPs não tenham a função de enquadramento A possibilidade de reconhecer as pessoas egressas
da gestão executiva – e sim de definir parâmetros, dos manicômios como também uma questão de
diretrizes, zoneamentos e instrumentos possíveis déficit habitacional, tende a estimular certa inte-
para a gestão, sem, com isso, comprometer a go- gração das políticas de Saúde Mental com o Pla-
vernabilidade das gestões –, mas considerando o no Municipal de Habitação, por exemplo – o que
tempo em que o PDP deve vigorar, a previsão de induziria previsões não apenas orçamentárias,
diretrizes e princípios para as RTs no instrumen- mas de metas, prazos e instrumentos de gestão
to tende a acomodar, em alguma medida, as his- compartilhada.
tóricas rupturas político-ideológicas nas políticas Em contrapartida, muitas vezes a Secretaria
públicas que marcam as mudanças de gestão no de Saúde, presa em suas limitações, acaba optan-
país. do por garantir o direito via aluguéis. Contudo,
A judicialização como disparadora da de- não é irrelevante, em parte expressiva das cidades
manda: brasileiras, o histórico de instabilidades contra-
É comum certa ausência/fragilidade de pla- tuais no tocante ao descumprimento das res-
nejamento a médio e longo prazos para o aco- ponsabilidades que envolvem contratante (poder
lhimento das demandas por RTs, sobretudo nos público) e contratado (proprietário privado) –
municípios onde avança a desinstitucionalização. situação que extrapola as competências das Co-
Muitas vezes, a criação de RTs se dá em regimes ordenações de Saúde Mental. Isso sem conside-
de emergência, onde o poder executivo consolida rar ainda as flutuações próprias do mercado de
as residências conforme o cumprimento de de- aluguéis, que afetam de sobremaneira o planeja-
cisões judiciais, com prazos curtos e sem muita mento orçamentário a longo prazo. Essa se torna
flexibilidade em relação à disponibilidade orça- uma questão central quando se reivindica uma
mentária. Nesse caso, é factível pensar em diretri- política massiva de implementação de RTs.
zes específicas nos PDPs que prevejam a criação De toda forma, é importante ressaltar que
de RTs dentro de zoneamentos estratégicos espe- embora existam possibilidades potentes, há mui-
cíficos (como Áreas de Especial Interesse Social, tas outras questões e configurações complexas
por exemplo), que podem prever parâmetros que envolvem a disputa das políticas do urbano,
particulares, mais flexíveis, para a construção e/ diretamente ligadas à eficiência dos espaços par-
ou subsídios específicos para a iniciativa privada ticipativos e a vontade política das gestões exe-
local, no sentido do fomento a aluguéis. Da mes- cutivas. Em suma, é certo que a conquista dos
ma forma que, a previsão de direcionamento de termos da Lei nos PDPs não garante, por si só, a
RTs em territórios estratégicos da cidade também realização do proposto28. Não obstante, seguimos
podem ampliar exponencialmente o sentido da tal qual Milton Santos:
natureza do serviço. Ainda, é igualmente factível Se a lei é realmente cumprida, é outro assunto.
a vinculação de instrumentos de democratização [...] A lei não esgota o direito. A lei é apenas o direi-
do solo urbano, como o IPTU progressivo e/ou a to positivo, fruto de um equilíbrio de interesses, isto
Outorga Onerosa do Direito de Construir, per- é, de um novo direito. A luta pela cidadania não se
mitindo acesso a outras possibilidades de recur- esgota na confecção de uma lei ou da Constituição
sos para a implementação das residências. porque a lei é apenas uma concreção, um momento
A dificuldade no direcionamento de áreas finito de um debate filosófico sempre inacabado11
públicas para a construção de RTs: (p. 80).
A ausência das RTs no macroplanejamento
urbano acaba por produzir esse efeito. As de-
mandas, concentradas nas “competências de Considerações finais
Saúde”, acabam sendo encaradas como questões
exclusivas desse setor, tramitando de acordo com Ao longo deste artigo, pudemos refletir sobre o
as possibilidades da Secretaria de Saúde. Por ou- papel das cidades em relação ao cuidado antima-
tro lado, do ponto de vista da intersetorialidade, nicomial em liberdade e à atenção psicossocial
compreender a construção de RTs como uma das pessoas em sofrimento mental, onde busca-
questão fundamentalmente habitacional opera mos debater a importância da participação da
efeitos não apenas em termos semióticos – dada Luta Antimanicomial na elaboração dos PDPs
a importância do reconhecimento destes sujeitos das cidades no Brasil. A desinstitucionalização
como o que são: cidadãos com o direito consti- e RPB, como pressupõem orientar o cuidado e
tucional à moradia –, mas também em termos atenção psicossocial pensando a cidade, impli-
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Honorato GLT

cam justamente na necessidade de a cidade pen- São diretrizes da Política de Saúde: [...] VI.
sá-las. Nos documentos analisados, nem a Luta Obter um grau de resolutibilidade nos serviços
Antimanicomial, nem a RPB e, muito menos, os que considere a racionalização com os custos oti-
princípios da desinstitucionalização, estão arti- mizados dos serviços, assim como a efetividade e
culados de forma minimamente satisfatória com qualidade na resposta terapêutica, incluindo o livre
o planejamento urbano estrutural das cidades. O acesso às diversas alternativas de tratamento exis-
que apresentamos em termos empíricos deve ser tentes e à reversão do modelo hospitalocêntrico32.
problematizado no sentido de avançarmos e ocu- Por último, destacamos que, no que tange aos
parmos as políticas do urbano, não como um fim “direitos da cidade” (ou seja, da liberdade e ca-
em si, posto que as arenas públicas, privadas e do pacidade individual de exercício e uso dos recur-
comum respondem a determinações, processos e sos sociais urbanos), a perspectiva do Direito à
correlações de forças outras29,30. Ainda assim, esse Cidade os extrapola para afirmar a possibilidade
é um caminho necessário e inadiável para que a de reinvenção da cidade como radicalização do
cidade se concretize como um espaço convivial31, exercício da liberdade e como horizonte para a
de cuidado e produção de saúde. tomada de consciência e de poder das pessoas. O
Contudo, é importante considerar que as ci- Direito à Cidade é, portanto, a luta pelo direito à
dades analisadas a partir do ranking de qualidade vida urbana renovada, à apropriação da cidade
urbana são majoritariamente localizadas na re- como valor de uso e lugar do encontro vitalizante,
gião geoeconômica centro-sul brasileira (região vislumbrando a cidade como obra (em termos de
concentradora dos maiores níveis de densidade atividade participante). Direito à liberdade, à in-
técnica e fluxo de capitais, pessoas e informa- dividualização na socialização, ao habitat e ao ha-
ção). A única exceção foi a cidade do Recife-PE, bitar33 (p. 134). Não se trata de um direito indivi-
justamente ocupando a 15ª posição do referido dual, ou um direito a ser institucionalizado pelo
ranking, mas que ainda assim se destaca como Estado, mas de uma plataforma ético-política a
centralidade nacional. A amostragem aqui ana- ser constantemente encampada, (re)construída
lisada não abarca, portanto, a realidade de outras e (re)conquistada pelas lutas populares contra a
cidades deslocadas das centralidades nacionais e lógica mercantilizadora da cidade e da vida:
que, no entanto, possuem experiências particu- O direito à cidade é muito mais que a liberdade
lares e protagonismo na Luta Antimanicomial individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um
– como Bauru-SP, Barbacena-MG, entre outras. direito de mudar a nós mesmos, mudando a cida-
Ainda que não tenham sido analisados no es- de. [...] A liberdade de fazer e refazer as nossas ci-
copo deste artigo, identificamos alguns casos que dades, e a nós mesmos, é, a meu ver, um dos nossos
preveem propostas concretas para a organização direitos humanos mais preciosos e ao mesmo tempo
da Saúde Mental na cidade via PDP. É o caso de mais negligenciados34 (p. 38).
Janaúba-MG, que compõe a região intermediá- Avante Luta Antimanicomial, ocupemos os
ria de Montes Claros-MG. O seu PDP, datado de Planos Diretores das cidades... pelo Direito à Ci-
2007, afirma, na Seção II (“Da Política Municipal dade Antimanicomial!
de Saúde”), Subseção I (“Dos processos gerais”),
no Art. 136:
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folha.uol.com.br/materia/o-direito-a-cidade/

Artigo apresentado em 31/10/2020


Aprovado em 14/10/2021
Versão final apresentada em 16/10/2021

Editores-chefes: Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura


da Silva

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons

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