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11/08/2022 08:25 Democratizar radicalmente as decisões para as políticas urbanas

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REFORMA URBANA E DIREITO À CIDADE: OS DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO

Democratizar radicalmente as
decisões para transformar as
cidades
Direito à Cidade
| Brasil
por Demóstenes Moraes e Lívia Miranda
13 de julho de 2022

A implementação de políticas urbanas redistributivas e inclusivas


nas cidades brasileiras se configura como uma necessidade
urgente e inadiável

A inflexão ultraliberal e o avanço do conservadorismo-autoritário no Brasil têm


impossibilitado que parte significativa da população participe dos debates sobre
os rumos das cidades e restringido seu acesso a recursos, serviços e
oportunidades fundamentais à reprodução individual e social. Uma crise urbana
multidimensional, resultante da associação de condicionantes estruturais a
múltiplos fatores conjunturais, sociais, econômicos, políticos, ambientais e
sanitários agravou tal quadro. Entre as diversas expressões dessa crise é
possível mencionar algumas muito evidentes nas cidades e aglomerações

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metropolitanas: os sucessivos desastres socioambientais, intensificados pela


combinação de mudanças climáticas, urbanização precária e ausência de
políticas urbanas; o aumento da forme e da insegurança alimentar; e o
crescimento da população em situação de rua.

Se a implementação de políticas urbanas redistributivas e inclusivas nas cidades


brasileiras já era fundamental face o histórico de desigualdades e injustiças
socioespaciais e ambientais, nesse contexto de crise, se configura como uma
necessidade ainda mais urgente e inadiável. Porém, há muitos obstáculos a
enfrentar. Estas barreiras estão relacionadas às reformas neoliberais recentes e
à ampliação do conservadorismo-autoritário na gestão pública que acarretaram:
o desmonte de estruturas estatais e das políticas sociais e urbanas; e a reversão
dos avanços institucionais-legais de âmbito federal, relacionados ao
desenvolvimento urbano – promovidos pelos governos petistas no ciclo
desenvolvimentista de 2003 a 2014.

Um projeto de reconstrução para as cidades brasileiras é, reconhecidamente,


necessário, dada a importância destas para a recuperação econômica do país e,
fundamentalmente, para a vida das pessoas, mas é imprescindível que este
projeto tenha um horizonte de transformações estruturais a partir da
democratização radical das decisões sobre as cidades. Nesse sentido, dois
pontos de partida parecem fundamentais, a saber:

A refundação do Estado a partir da construção de um novo marco social-


civilizatório que recupere os fundamentos constitucionais, que promova justiça

social e que se expresse efetivamente na democratização do orçamento público


e em políticas de estado redistributivas e inclusivas. O objetivo é enfrentar as
causas estruturais das desigualdades e injustiças multidimensionais
relacionadas, principalmente, ao capitalismo, ao patrimonialismo, ao racismo e
ao patriarcado; e

O reconhecimento das pessoas oprimidas e discriminadas como sujeitos de


direitos e como imprescindíveis participantes e decisores sobre as questões e
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direitos e como imprescindíveis participantes e decisores sobre as questões e
políticas públicas nas cidades.

Há muito a fazer

Apesar de urgente e fundamental, não bastará aos segmentos historicamente


oprimidos, em uma conjuntura política mais favorável, serem incluídos no
orçamento público e terem acesso a instâncias de gestão participativa e a
políticas, programas, serviços e oportunidades nas cidades. Nem tampouco será
suficiente habilitá-los como consumidores e empreendedores de forma
dissociada da promoção da cidadania e dos direitos, reforçando algumas das
condições econômicas e ideológicas que contribuem para as desigualdades e
injustiças que os afetam diretamente.

Os espoliados precisam, a partir de uma visão crítica de suas realidades,


participar efetivamente das decisões a respeito das questões de interesse
público e social e das políticas públicas nas cidades, caso se pretenda mudanças
mais duráveis.

Os desafios para tal reconstrução-transformação são imensos, tendo em vista


que os processos de tomada de decisão sobre as cidades e sua produção sempre
foram e estão, cada vez mais, concentrados por forças com maior poder

econômico e político, orientadas pelo neoliberalismo e promotoras do


rentismo-extrativismo urbano.

A tais questões, soma-se um contexto de fragmentação social e de precariedade


e desmotivação dos grupos historicamente oprimidos e discriminados para a
participação na discussão sobre os temas de interesse público e social a partir
de instâncias de gestão democrática, tanto em decorrência das lutas pela
sobrevivência, quanto pela justificada descrença em relação ao estado,
considerando as omissões e as ações violentas que sempre sofreram.

Em relação aos territórios populares, que abrigam parte significativa dos


segmentos espoliados, é importante reconhecer que antes do desmonte das
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políticas urbanas promovidos após o golpe parlamentar de 2016, foram


realizados investimentos públicos federais sem precedentes na prevenção e
gerenciamento de risco de desastres e na urbanização e regularização fundiária
de assentamentos precários.

O Programa de Aceleração do Crescimento, nesse contexto, em sua modalidade


Urbanização de Assentamentos Precários (PAC-UAP), implementado a partir de
2007, tornou-se o maior programa nacional de urbanização desses
assentamentos, tendo um investimento de mais de R$ 29 bilhões de reais e
alcançando até 2016, aproximadamente, 2 milhões de famílias. Estes expressivos
resultados, no entanto, foram e são, obviamente, insuficientes frente à
dimensão da precariedade nas cidades brasileiras.

Somente uma política de estado permanente, com intervenções integrais e


integradas quanto às dimensões infraestruturais, urbanísticas, ambientais e

sociais poderia apontar na direção de mudanças desse quadro de precariedade.


Além disso, as articulações com outras políticas públicas (saúde, educação,
cultura, meio ambiente, assistência técnica, gerenciamento de risco, defesa
civil, mobilidade, economia, segurança etc.) e com as iniciativas dos moradores
e de entidades atuantes nos territórios populares seriam fundamentais à
promoção de direitos e da cidadania.

O reconhecimento do abandono histórico e do tratamento discriminatório e


violento promovidos por órgãos e agentes públicos nos territórios populares,
prevalecentes até hoje, é imprescindível para a reconstrução da atuação estatal.
Estes assentamentos, porém, não deveriam se constituir apenas em objetos de
projetos e intervenções urbanísticas e sociais, mas reconhecidos em sua
complexidade e multidimensionalidade e, também, a partir das identidades,
práticas e iniciativas das pessoas que lá vivem. Todos estes apontamentos estão
muito distantes de realização no momento, mas há esperança no horizonte!

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Foto: Pixabay

Construir a unidade na diversidade para transformar as cidades

As desigualdades estruturais e a crise urbana múltipla vêm mobilizando


movimentos sociais, coletivos, articulações e redes para ações solidárias nos
territórios populares, para as lutas urbanas, entre elas a luta contra os despejos,
e para a construção coletiva de uma plataforma por direitos nas cidades, pela
reforma urbana e pelo direito à cidade.

Fruto desta mobilização, foi realizada, em junho desse ano, em São Paulo, a
Conferência Popular pelo Direito à Cidade, com a participação de cerca de 700
pessoas de todo o Brasil, representando mais de 600 movimentos e entidades
sociais, para a elaboração de propostas que integraram uma plataforma pelo
direito à cidade. Essa conferência foi precedida por mais de 200 eventos
preparatórios em todos os estados brasileiros. É importante registrar que a
plataforma resultante desta mobilização abordou temas para além do campo do
desenvolvimento urbano, como arte, cultura, racismo, sexismo, segurança
alimentar, entre outros, alargando as visões e concepções sobre o direito à
d d
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cidade.

Toda a mobilização sociopolítica em torno da Conferência foi compreendida,


pelos movimentos sociais, coletivos e redes que a realizaram, como parte de um
processo de construção de uma unidade para as lutas urbanas em meio à

diversidade de causas e práticas sociopolíticas para romper com a lógica de


mercantilização e de espoliação nas cidades.

Os debates, propostas e as articulações a partir da Conferência Popular pelo


Direito à Cidade apontam que a reconstrução das cidades brasileiras e das
políticas urbanas requer um sentido sociopolítico comum sobre a justiça em
suas várias dimensões (social, espacial, ambiental etc.) e a democratização
radical da gestão pública nas cidades por meio de processos de participação
amplos, plurais e inclusivos.

Se a pretensão é promover a transformação estrutural das cidades brasileiras,


algumas questões e frentes de ação, entre várias, merecem atenção:

A necessidade de aglutinar forças e construir unidade para as lutas políticas a


partir do direito à cidade é fundamental para confrontar ao mesmo tempo o
poder do atraso, o ideário neoliberal e o rentismo-extrativista que predominam
na produção das cidades; ainda mais em um contexto de desmonte de políticas
públicas, de negação de direitos e de ataques à democracia.

A construção e promoção de estratégias articuladas e de intensificar as ações


simultâneas:

de mobilização e incidência política diretas (protestos, manifestações por


direitos, por políticas públicas etc.);

de formação dialógica nas bases (sobre o orçamento público, as lutas e os


direitos nas cidades, as ferramentas digitais etc.);

de comunicação nos diversos meios para a disputa de sentidos e narrativas


sobre os rumos da urbanização, a partir das realidades concretas das pessoas e
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de seus territórios afetados por desastres, segregações etc.; e

institucionais, com a recriação de sistemas e políticas, leis, planos etc. que


articulem os âmbitos nacional e local e que priorizem os territórios populares. É
fundamental a retomada contextualizada da construção participativa dos
sistemas e políticos nacionais de desenvolvimento urbano e de participação
social.

O fortalecimento das lutas para recuperar e ampliar o controle social sobre


planos, projetos, orçamentos e investimentos nas cidades, pela promoção de
planejamentos e orçamentos participativos nas cidades, com prioridade aos
territórios populares e à participação das pessoas discriminadas e
vulnerabilizadas. Nessa direção, será importante a promoção de iniciativas
populares de cogestão e autogestão de programas e projetos públicos nas
cidades.

Serão imprescindíveis à reconstrução e à democratização da gestão pública das


cidades brasileiras, portanto, o protagonismo e envolvimento direto e
autônomo da população negra, das mulheres, das pessoas LGBTQIA+, de
indígenas, comunidades tradicionais, de trabalhadoras e trabalhadores
informais e precarizados, de moradores das periferias e favelas entre vários
segmentos e identidades. Somente os que vêm sofrendo, historicamente e de
forma sobreposta, com as segregações, exclusões, espoliações e discriminações
que lhes são impostas no meio urbano poderão pôr fim a elas.

Tal protagonismo deverá, portanto, se expressar nas decisões e na cogestão das


políticas e programas públicos urbanos, da formulação até a implementação,
sempre com a pretensão de promover justiça e transformações estruturais nas
cidades e metrópoles, tendo o direito à cidade como horizonte de formulações
e ações para a emancipação social.

Demóstenes Moraes é professor da Universidade Federal de Campina Grande


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(UFCG) e pesquisador do Núcleo Paraíba do INCT Observatório das Metrópoles.

Lívia Miranda é professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)


e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Coordenadora do Núcleo
Paraíba do INCT Observatório das Metrópoles.

Leia os outros artigos da série Reforma Urbana e Direito à Cidade: os desafios


do desenvolvimento

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Danielle Rocha
Parabéns, Demóstenes e Lívia, pelo excelente texto! Gostei muito
porque aborda os principais problemas para uma gestão democrática
das cidades, destaca os desafios, mas sobretudo, aponta os
caminhos de forma propositiva e ancorado nos debates resultantes
da Conferência Popular pelo Direito à Cidade. Nos dá esperanças de
uma reconstrução do modelo atual, que precisará de muita luta, mas
que é possível!
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