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Governança: A dimensão política do desenvolvimento urbano sustentável

CAPÍTULO 5 – GOVERNANÇA URBANA INTRAMUNICIPAL

Neste capítulo, discutiremos o processo de compartilhamento de tomada de decisão e a


atuação integrada no território municipal. Para isso, abordaremos os aspectos formais
relativos à organização dos conselhos e comitês, e as dimensões da sua atuação prática,
inserindo o problema da representatividade do território nos processos de decisão. A
governança será debatida no âmbito dos processos participativos, considerando os
principais instrumentos da política urbana e orçamentária. Também serão considerados
o compartilhamento do processo de tomada de decisão e os desdobramentos sobre o
posicionamento dos conselhos e comitês.

5.1 Organização e atuação dos conselhos


e comitês nos processos de decisão PARA MAIS
INFORMAÇÕES 1
4
Os arts. 182 e 183 da CF88 foram regulamentados
pelo Estatuto das Cidades (Lei 10257/2001). Ele
SOBRE O TEMA E
VER TAMBÉM OS
estabeleceu instrumentos capazes de garantir o direito MÓDULOS 1 E 4.
a cidades sustentáveis, organizadas com base na gestão
democrática e na cooperação entre os governos, a
iniciativa privada e a sociedade civil. Cumprir a função social da cidade e da propriedade
urbana é dever do poder público. Suas ações devem ser dirigidas para as necessidades
de toda a população, buscando a justiça social e o bem-estar coletivo. Nesse sentido, a
participação da população nas decisões de interesse público é fundamental para garantir
a gestão democrática.

O Brasil se tornou um grande laboratório de experiências participativas depois da


redemocratização. Em 2014, havia mais de 60.000 conselhos gestores de políticas
públicas no país (BRASIL, 2014).

A articulação entre o poder público, o setor privado e a sociedade civil na organização,


na gestão e no orçamento estão incluídos no entendimento da governança. No âmbito
intramunicipal, a participação social é institucionalizada através da formação de comitês
e conselhos. Quando eles possuem atuação efetiva, colaboram com propostas mais
firmes, podendo participar da criação dos orçamentos e escolher os investimentos.

Os comitês são formados por um grupo de pessoas com poder deliberativo (com
autoridade para decidir) ou executivo (com capacidade para executar ações). Elas irão
se posicionar em relação a determinados assuntos em nome dos demais.

Os conselhos municipais são formados por representantes da sociedade civil que


participam de reuniões e discussões periódicas. De acordo com Barros (2011), sua criação
é resultado do surgimento da participação direta da sociedade na gestão municipal como
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forma de melhorar a eficiência e a efetividade das políticas públicas. Assim, a criação


dos conselhos não depende da determinação do governo em nenhuma de suas esferas.
No entanto, estudos mostram que boa parte dos conselhos são criados por iniciativa
do poder público, muitas vezes por determinação do governo federal. Isso é feito para
condicionar o repasse de verbas para áreas como a da Saúde.

Os conselhos deliberativos auxiliam a administração pública a formular políticas


públicas, com poder para votar e eleger prioridades. Os conselhos consultivos, como
o próprio nome indica, atuam orientando e aconselhando líderes e gestores. Há ainda
os conselhos responsáveis pela fiscalização, execução e direcionamento das verbas
públicas (BARROS, 2011).

O objetivo dos conselhos é promover a participação da sociedade civil na formulação,


implementação, monitoramento e avaliação das políticas públicas. Eles são compostos
por representantes da sociedade civil e do poder público para qualificar as políticas
públicas de determinado tema (TEIXEIRA; TEIXEIRA, 2019). Os conselhos não são
abertos à participação de qualquer pessoa interessada num assunto ou discussão. Apenas
os representantes eleitos ou indicados podem falar e votar nos conselhos (TEIXEIRA;
SOUZA; LIMA, 2012).

De acordo com Teixeira e Teixeira (2009), a partir de 2002 o pensamento sobre


a participação social começou a ser articulado de forma mais ampla. Isso levou à
consolidação de diversas instâncias participativas em diferentes setores de políticas
públicas, nas três esferas de governo. Os conselhos de políticas públicas e de direitos
começaram a se multiplicar pelos municípios do país.

Figura 16: Conselhos I Fonte: Elaborado pela autora. Elaboração gráfica do LabHab. 2022.
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No Brasil, existem milhares de conselhos atuantes no âmbito 4 Boullosa, R. F.; Araújo, E. T.;
municipal nas mais diversas áreas: educação, saúde, assistência Junqueira, Luciano. (2014).
Os conselhos gestores
social, segurança alimentar, infância e adolescência, trabalho, municipais no Brasil: o
direitos da pessoa com deficiência etc. Assim, não é possível paradoxo do bom moço que
pensar em uma política pública sem um conselho gestor pode engessar processos
de políticas públicas. In: V
(BOULLOSA EL AL, 2014 apud TEIXEIRA; TEIXEIRA, 2019)4. Congreso Internacional en
Gobierno, Administración y
A Constituição Federal de 1988 impulsionou a participação Políticas Públicas, Madrid.
social, o que se expressou em dispositivos que ampliaram e ANAIS do V Congreso
incorporaram essa participação nos processos de decisão e Internacional en Gobierno,
Administración y Políticas
gestão de políticas públicas. Assim, o processo de tomada de Públicas. Madrid: GIGAPP-
decisão pode sofrer a intervenção de atores sociais articulados IUIOG, 2014. v. 1. p. 1-16.
de diferentes modos, utilizando diferentes mecanismos de
participação além dos que a representação eleitoral permite.

Esse processo é fruto da luta da sociedade, o que pode ser ATIVIDADE


lembrado com o exemplo do Movimento Nacional pela Reforma PROGRAMADA
Urbana (MNRU). Esse movimento contribuiu de forma valiosa Você conhece ou
com a política urbana ao participar da criação dos arts. 182 e 183 faz parte de algum
conselho no seu
da CF88. O MNRU se tornou posteriormente o Fórum Nacional município? De qual tipo
ele é e em qual frente
de Reforma Urbana (FNRU) e passou a integrar o Conselho ele atua?
das Cidades, articulando diferentes atores da sociedade civil
(BRASIL et al., 2013; TEIXEIRA; SOUZA; LIMA, 2012).

A participação da sociedade nos conselhos ajuda a legitimar


as ações governamentais, além de lhes conferir transparência.
A eficiência dessa participação está diretamente ligada à
APROFUNDE-SE
representatividade dos diferentes grupos sociais, especialmente
daqueles historicamente marginalizados: Caso queira saber mais
sobre o Conselho das
pessoas negras, pessoas com deficiência, Cidades, acesse o artigo
mulheres, crianças, pessoas LGBTQIA+, Participação, desenho
institucional e alcances
pessoas idosas e povos de comunidades democráticos: uma
análise do Conselho das
tradicionais (BRASIL, 2021). Cidades.

BRASIL, F. de P. D. et al.
O envolvimento de participantes desses diferentes grupos deve Participação, desenho
ser garantido, pois a pluralidade de questões levantadas por eles institucional e alcances
democráticos: uma
contribui para ampliar o alcance no atendimento das necessidades análise do Conselho das
Cidades (ConCidades).
e assegurar o direito à cidade. A formação de conselhos é Revista de sociologia
também uma forma de compreender a territorialização da e política, [s. l.], v. 21, p.
5-18, 2013.
governança e do controle social, principalmente nos casos em
que as questões atravessam os limites municipais. Os casos de Disponível em: https://
www.scielo.br/j/
grupos historicamente marginalizados, como as comunidades rsocp/a/fDQGshqt5s-
GcWDtCfy6rGFB/ab-
quilombolas, merecem uma atenção especial, por conta da sua stract/?lang=pt
relação singular com o território.
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5.2 A governança intramunicipal e os conselhos de grupos


historicamente marginalizados
Em 2019, o IBGE estimou a existência de 5.972 localidades quilombolas no Brasil,
espalhadas por 1.672 municípios brasileiros. Dessas localidades, 404 são territórios
oficialmente reconhecidos, 2.308 são agrupamentos quilombolas e 3.260 são
identificados como localidades quilombolas. A Região Nordeste concentra 3.171
localidades quilombolas, o maior número do Brasil (Figura 3). De acordo com Pedreira
e Araújo (2018), a Bahia é o estado com maior população quilombola do país: são
747 comunidades remanescentes de quilombos certificadas pela Fundação Cultural
Palmares, das quais 128 ainda não possuem suas respectivas certidões.

Figura 17: Total estimado de localidades quilombolas – 2019.


Fonte: https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/21311-quilombolas-no-brasil.html
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As comunidades quilombolas são grupos étnicos que se autodefinem por relações com
a terra, com o território, com a ancestralidade e com as tradições culturais particulares.
Elas são predominantemente constituídas pela população negra urbana ou rural. Os
Conselhos Territoriais Quilombolas se tornaram parte do Programa de Fortalecimento
Institucional das Comunidades Quilombolas. Eles se institucionalizaram como um
espaço para o desenvolvimento de ações, planos, programas e projetos voltados para a
promoção da igualdade racial (PEDREIRA; ARAÚJO, 2018).

De acordo com Pedreira e Araújo (2018), os conselhos sempre foram uma tentativa de
limitar a hegemonia política através da distribuição da responsabilidade dessa hegemonia.
Eles surgiram como uma alternativa de descentralização do poder historicamente
concentrado nas classes dominantes. Portanto, o controle social na esfera pública é o
exercício da governança, fruto da exigência da população pela prestação de serviços de
maneira efetiva e transparente. Os Conselhos Territoriais Quilombolas buscam criar
uma instância de comunicação e participação entre o poder público e uma parte da
população secularmente afastada dos processos de decisão.

Os Conselhos Territoriais Quilombolas atuam na:

• Regularização fundiária dos territórios quilombolas (titulação) e fortalecimento


político-institucional das organizações quilombolas. Assim como na criação e no
acompanhamento de conselhos municipais, regionais e territoriais.

• Controle social, implementação e fiscalização das políticas públicas e das ações


afirmativas, sobretudo nas áreas de implantação dos Programas Luz e Água Para
Todos.

• Implementação do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Quilombola.

• Programa Juventude Viva e campanha de combate à violência contra mulheres


quilombolas, e capacitação de profissionais de saúde para o tratamento da anemia
falciforme.

• Assistência técnica (ATER Quilombola) e política de crédito rural; distribuição


e fiscalização das cestas básicas, sementes e merenda escolar destinadas às
comunidades quilombolas.

• Ampliação e fortalecimento da representatividade quilombola nos parlamentos.

• Implantação do PAC Quilombola.

• Luta contra o impedimento do acesso aos territórios quilombolas promovido


pelos grandes proprietários de terra, através da ação conjunta destes Conselhos
com o Ministério Público (PEDREIRA; ARAÚJO, 2018).
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A importância do fortalecimento dos Conselhos


Territoriais Quilombolas se insere na necessidade AULA 5
de defesa de um território, fruto da luta da MÓDULO 2
população negra contra a escravidão. Trata-se de
um direito à terra constantemente ameaçado por
invasões (PEDREIRA; ARAÚJO, 2018). Garantir
que essas terras permaneçam com seus donos
legítimos e que eles tenham acesso à infraestrutura
que permita o seu desenvolvimento sustentável é Aula 5 - Governança
garantir o direito à terra e/ou à cidade para uma urbana intramunicipal:
população historicamente marginalizada. compartilhamento de decisões
e atuação integrada no
território municipal.

ESTUDO DE CASO
O Território Kalunga, no nordeste do estado de Goiás, está inserido nos Municípios de
Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre. É um dos maiores do Brasil, ocupando 261
mil hectares. Em 2021, o Território Kalunga foi o primeiro a ser reconhecido como TICCA
(Territórios e Áreas Conservadas por Comunidades Indígenas e Locais) pela ONU, por ser um
território preservado que conserva alternativas sustentáveis de desenvolvimento, como o
plantio de baixo carbono que dispensa o uso de agrotóxicos.

PEDUZZI, P. Comunidade kalunga recebe reconhecimento inédito da ONU. Agência Brasil,


Brasília, 6 de fev. 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-02/
comunidade-kalunga-recebe-reconhecimento-inedito-da-onu. Acesso em: 22 ago 2022.

INFORMAÇÃO EXTRA:
Para conhecer mais sobre o Território Kalunga, acesse o site da associação: https://www.qui-
lombokalunga.org/cultura.php

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