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TEMPOS MODERNOS:

ESPAÇOS EM COMPRESSÃO E TRANSFORMACÃO

MODERN TIMES:

SPACES IN COMPRESSION AND TRANSFORMATION


83

Lidia Kosovski
Cenógrafa e diretora de arte, professora associada da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO)

Resumo: O artigo é um estudo relativo ao espaço cênico teatral. A partir das teorias de David Harvey
sobre os mecanismos de compressão do tempo/espaço geradas pelas forças capitalistas na Europa
do século XIX – que, segundo este autor, resultaram em alterações significativas no campo da arte –,
investiga-se como este fenômeno atua sobre o palco teatral. Apresenta, conclusivamente, a obra de
Adolphe Appia como questão das tensões que o mundo urbano moderno produz, traduzida na
expressão corpo/espaco-cênico.

Palavras-chave: espaço , modernidade teatral, cenografia.

Abstract: The article is a study about theatrical scenic space. From the theories of David Harvey on
compression of time/space generated by the capitalist power in the Europe of the 19th century,
which according to the author, resulted in significant changes in the field of art, we investigate how
this fact impacts the theatre stage. It presents, conclusively, the work of Adolphe Appia as a matter of
tension produced by the modern urban world translated into the expression body/performance
space.

Keywords : Space; theatrical modernity, scenography.

Tudo deve soar pensamento artístico a partir dos meados


simultaneamente, deve-se
do século XIX. O autor identifica “a crise da
ouvir o mugir do gado, o
murmúrio dos amantes, a representação” apontada por Foucault, e a
retórica dos funcionários. ascensão do Modernismo como efeitos dos
(Flaubert)
mecanismos de compressão do tempo —
espaço ocorrido sobretudo na depressão de

Na tese de David Harvey (A 1846-1847 na Inglaterra e nas

Condição Pós-moderna, 1993) representar reconfigurações espaciais resultantes da

diferenças e heterogeneidades, quando o Primeira Guerra Mundial. David Harvey

tempo e o espaço começam a ser tenta demonstrar que nenhuma

absorvidos pelas forças homogeneizantes manifestação humana escapa da expansão

do capitalismo, teria sido a tarefa maior do das redes de comunicação e transporte, das

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tensões políticas e econômicas nutridas perspectivado como sistema de


referência, ao lado de outros “lugares-
pela intensa circulação mundial de dinheiro comuns” anteriores como a cidade,
e pelas trocas de mercadoria propostas história, paternidade, o sistema tonal
da música, a moralidade tradicional, e
pelo capitalismo já amadurecido, seja em assim por diante. Esse foi de fato um
momento essencial. (apud HARVEY, op.
suas crises paralisantes, seja em seus cit, p. 242)
momentos de crescimento. 84

As novas experiências de tempo e


Do século XV ao XIX, cada pintura
espaço vividas por um mundo radicalmente
ou cada escultura representava o mundo,
transformado entre 1850 e 1914, na trilha
real ou imaginário, e era bem definida e
de um globalismo abolidor de fronteiras e
reconhecível num espaço tridimensional
distâncias, não somente teriam
ampliado. Essa estrutura perceptual básica
reformulado o campo das contiguidades
permaneceu a mesma por cinco séculos, e
físicas mas também teriam promovido a
foi precisamente essa estrutura sensorial,
decomposição dos espaços tradicionais da
apoiada fundamentalmente na natureza,
produção artística.
como preestabelecida fonte de paradigma
para a representação da forma
reconhecível, que no princípio do século XX
Afinal essas estruturas eram
incompatíveis com uma realidade em mudou na expressão artística. Na pintura, o
que dois acontecimentos em lugares Impressionismo, seguido do Cubismo, foi o
bem distintos ocorrendo ao mesmo
tempo poderiam se relacionar a ponto primeiro rompimento com as tradições
de modificar o funcionamento do
mundo. Flaubert, o modernista, fora pictóricas da Renascença na pintura
pioneiro de um caminho que Zola, o Ocidental. Neste quadro, decompõe-se o
realista, descobrira ser impossível
emular. (HARVEY, 1993, p. 239) espaço tradicional da pintura e as formas
de enquadramento nas pinceladas
fragmentadas em luz e cor; Picasso e
Harvey se apóia em Henry Lefebvre Bracque, na trilha de Cézanne, abandonam
na seguinte declaração: o espaço homogêneo linear.

Harvey cita a obra de Durkheim,

Por volta de 1910, um certo Formas Elementares Religiosas, com seu


espaço se viu abalado. Tratava-se do reconhecimento explícito de que “o
espaço do senso comum, do
conhecimento, da prática social, do fundamento da categoria tempo é o ritmo
poder político, um espaço até então
entronizado no discurso cotidiano, bem
da vida social”, e Ortega y Gasset quando
como no pensamento abstrato, na insiste: “havia tantos espaços de realidade
qualidade de ambiente e canal de
comunicação (...). O espaço euclidiano e quantas perspectivas sobre ela” e “há

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tantas realidades quanto pontos de vistas”


rompendo a hegemonia dos ideais
E aqui, onde a coletividade procura a
racionalistas de espaço homogêneo e distração, não falta de modo algum a
dominante tátil, que rege a
absoluto.
reestruturação do sistema perceptivo. É
na arquitetura que ela está em seu
Já Virilio se refere a este momento elemento, de forma mais originária.
Mas nada revela mais claramente as 85
como um instante de crise da dimensão, violentas tensões do nosso tempo que o
onde a transparência toma o lugar das fato de que essa dominante tátil
prevalece no próprio universo da
aparências. óptica. É justamente o que acontece no
cinema, através do efeito de choque de
suas seqüências de imagens. O cinema
se revela assim, também desse ponto
de vista, o objeto atualmente mais
A profundidade de campo das importante daquela ciência da
perspectivas clássicas foi renovada pela percepção que os gregos chamavam de
profundidade de tempo das técnicas estética. (BENJAMIN,1995, p.194)
avançadas. O desenvolvimento da
indústria cinematográfica e da
aeronáutica seguiu de perto a abertura
dos grandes boulevards. Ao desfile
haussmaniano das grandes avenidas
Neste panorama de rupturas, o
sucedeu-se o desfile acelerado de ilusionismo pictórico e a escola naturalista
imagens dos irmãos Lumière, à
esplanada dos Inválidos sucedeu-se a (Roubine,1980), entendida como a forma
invalidação do plano urbano, a tela
mais sofisticada de ilusionismo cênico,
bruscamente tornou-se o local, a
encruzilhada de todos os meios de entram em choque com o cinema por conta
comunicação... (VIRILIO, 1993)
da sua eficácia narrativa, adequada ao
sistema perceptivo instalado sob os signos

Walter Benjamin (1995) percebe a modernos do ritmo e da velocidade.

necessidade de distração das massas, a ser


O teatro pressionado pelas
proporcionada pela arte, e apresenta o
novas técnicas narrativas e ópticas,
cinema como o maior agente desta forma
ingressaria no modernismo sendo
eficaz de perceber e operar o mundo. A
fortemente influenciado, segundo inúmeros
recepção através da distração, que se
autores, pelo advento da luz elétrica, que,
observa crescentemente em todos os
ao submergir a audiência no escuro,
domínios da arte e constitui o sintoma de
iluminou o palco numa poética inédita e
transformações profundas, teria no cinema
integrada à cena — transformando-o,
o seu cenário privilegiado de modificação
fragmentando-o em vários espaços,
das estruturas perceptivas.
remodelando-o, e finalmente
desintegrando o cubo cenográfico, que

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deixa de ser definido pelas leis perspectivas dadaístas, da obra de Maeterlink e Yeats, e
estáticas. por fim de Artaud e Brecht, este autor alega
que talvez a estreita dependência de
Quando Merleau-Ponty assinala que
condições comerciais e estruturas
“o problema da expressão moderna é fruto
profissionais torne o teatro mais resistente
da comunicação com o Ser sem mais contar
às inovações formais. 86
com o apoio da Natureza. Ascendendo ao
universal através do particular, a arte passa Seja qual for a interpretação
a encontrar na particularidade (o estilo) o dos estatutos do “moderno” teatral,
meio para dar e ver e conhecer a partimos do fenômeno apontado por David
universalidade (a obra)” , justifica-se a Harvey, que valoriza as novas
emergência da figura do encenador — uma sensibilidades relativas ao tempo-espaço
das fortes características do teatro na virada do século XIX. Interessa-nos
moderno — que substitui as tendências verificar como estas novas relações,
anteriores homogeneizantes por olhares representadas pelo ritmo, pela velocidade e
diferenciados e particularizados. O mundo pelas linguagens da cultura urbana,
da criação teatral, portanto, passa a tender interferem na estética teatral, em sua
à vontade individual de pensar e inventar, visualidade e em seu espaço cênico.
assim como cada drama determinará seu
Embora a cenografia
próprio cenário, único para ele.
moderna se caracterize pela presença de
Dentro deste quadro, consideramos uma forte imagem ou por uma série de
que o palco italiano, como suporte de imagens relacionadas entre si, construindo
sistemas de representação sofreu uma uma unidade, ao tentarmos falar da
espécie de convulsão em seu espaço, cenografia e do espaço cênico desdobrado
durante a primeira metade do século XX, no Teatro Moderno, o resultado seria, na
quando todos os elementos do espetáculo melhor das hipóteses, confuso. A
foram repensados. A diversidade de miscelânea de estilos associada ao teatro
interpretações e apropriações do espaço do do século XX abrange do realismo
palco passou a dominar a cena teatral. detalhado à abstração total e, além disso, a
cenografia não é facilmente correlacionável
Já Steven Connor (1993) julga que o
com movimentos específicos da arte
advento do teatro Moderno não se deu
moderna.
senão nos anos 1950, com Brecht. Sem
negar a significativa participação dos Paradoxalmente, não há como
expressionistas, das performances negar que o espaço cênico italiano,

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dominante, é capaz de subjugar qualquer quase que ilimitadas. O espaço foi


coisa nele inserida e assumir uma descentrado, fraturado em zonas diversas e
aparência mais ou menos homogênea, mas explorado em diversas dimensões.
a relação frontal entre o espectador e o
Para efeito de visualização
ator, a necessidade comum de visibilidade e
do fenômeno abordado, as questões
audibilidade e a “realidade” presentificada 87
enfrentadas e poetizadas na obra de
pelo corpo do ator exercem enorme
Adolphe Appia que, a nosso ver,
pressão sobre o formato cenográfico e
caracterizam com precisão as primeiras
criam um quadro de limites explícito. “Num
rupturas a atingir diretamente o
palco italiano, um cenário é sempre um
pensamento sobre o espaço cênico e a
cenário” (ARONSON, 1981, p. 10).
arquitetura teatral, absorvendo as questões
do ritmo, da velocidade e das contingências
da vida moderna.
Durante o último século, o teatro se
libertou – através das investigações de
inúmeros teóricos, diretores e cenógrafos –
Appia: o corpo e o espaço
da petrificação de seu espaço. Poderíamos
compreender a reestruturação teatral, da
passagem do século até seus meados,
E, para compreender o espaço
lembrando as ações e pensamentos de
cênico historicamente implica mergulhar
Alfred Jarry, Adolphe Appia, Gordon Craig,
no campo difuso e “enganoso” da
Antonin Artaud, Irving Piscator, Bertold
imaginação.
Brecht, os encenadores do Cartel,
Meyerhold e os construtivistas russos, Jean Fotos de espetáculos, croquis e
Vilar, entre tantos; mais recentemente, a plantas baixas, relatos e teorias sobre a
partir da década de 1960, de Grotowski, encenação elaborados por diretores,
Peter Brook, Bob Wilson, Richard Foreman, dramaturgos e cenógrafos apenas nos
Tadeusz Kantor, Richard Schechner, Mabou aproximam do fato cênico, em oposição à
Mines, Eugenio Barba, ou Mnouchkine, para pintura e à arquitetura, que ao dispor de
citar só alguns. Sob o gesto destes objetos concretos, são passíveis de ser
diretores, o palco italiano foi visitadas, re-vistas, experienciadas. Já na
“desnaturalizado”, liberado para infinitos cena teatral, o que terá sido o espaço de um
arranjos espaciais e cenográficos, tornando espetáculo é pura memória. Sua única
a cena teatral possível em circunstâncias arqueologia habita pedaços de papel que

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nos remetem a sonhos já consumados e nos compromissos com a realidade “científica”


propõem muitos outros. do Naturalismo. Em sua ação, estes quatro
elementos retomam, por vias modernas,
Pôr os pés no Taj-Mahal, no
experiências teatrais já traçadas em outros
Louvre, no Teatro de Dionísio, confrontar-
momentos da história do espetáculo que,
se com a Mona Lisa ao vivo é questão de
agregando novos ingredientes, constituem- 88
projeto, tempo e oportunidade.
se em invenções inéditas: o corpo
Experienciar tais lugares e coisas podemo-
fartamente experienciado pela pantomima
lo fazer na condição de estudiosos ou
da Commedia dell’arte e comprimido na
curiosos. O teatro, imobilizado em
redoma cúbica volta a ser expressão; o
fotogramas e croquis, transforma-se em
espaço, elemento determinante das ações
sinal, cujo sentido se abre sob a voz dos
do teatro elisabetano, engessado nos
discursos adjacentes e provocadores da
limites do proscênio e pela fidelidade
imaginação. O que foi puro acontecimento
naturalista, recupera as suas possibilidades
vivo torna-se acontecimento literário
de ampla ocupação; já o ritmo proposto por
suscitador de paisagens imaginárias.
Appia é inaugural, percebido nas práticas
Dos registros iconográficos atléticas renascentes nas Olimpíadas de
existentes, um dos que mais impressiona 1896; e, por fim, a luz artificial é
como ruptura são os croquis e fotos de instrumento inédito que, nas mãos de
encenação propostos por Adolphe Appia: à Appia, se torna elemento de alta
indefinição dos contornos, às manchas de plasticidade — mostrando e escondendo,
cor, às formas abstratas contrapõe-se, pela criando contrastes e colorindo o palco.
força de suas inovações, o peso visual dos
Como resultante temos a
cenários, tornados subitamente passado. E
intensidade do movimento e a circulação de
a partir deste contraste percebe-se com
corpos, valorizados pela luz, que atravessa
clareza cristalina o espírito do mundo
e marca a vida do homem moderno.
moderno que invade a cena (ver prancha XI
e XII). Sensível aos novos registros
de tempo e de espaço, Appia foi a
Os elementos estruturantes da
personalidade que rompeu os sentidos do
estética de Appia, tão conhecidos por nossa
palco cristalizado trazendo à cena noções
sensibilidade contemporânea, questionam
de uma teatralidade baseada nos mais
e transformam vigorosamente as relações
arcaicos e nos mais inéditos instrumentos
estáticas da cena ilusionista, ou o espaço
do espetáculo, que, transcendendo o texto
tridimensional ainda oprimido pelos

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em direção à música, tornavam a expressão Realçamos outras peculiaridades do


teatral própria e específica. seu pensamento, igualmente relevantes,
que sinalizam a sintonia do pensamento
De forma geral, seu trabalho
artístico com as reformas democráticas,
é associado às inovações wagnerianas , às
exigidas no início do século XX, para um
buscas de transcendência espiritual através
verdadeiro teatro popular, aberto — o 89
da experiência da beleza e da harmonia
sonho de atingir as multidões.
cênica.
Adolphe Appia, ao declarar que o
teatro “seria a catedral do futuro” — um
A música, diversamente do teatro entretenimento para as massas, inspirado
falado, controla o tempo ao mesmo
na religião e nas novas relações entre
passo que expressa as mudanças
emocionais, razão por que o atores e espectadores —, parece ser o
compositor operístico tem sempre primeiro a antever as grandes cenas
maior controle sobre os movimentos
que se desenrolam no palco e mesmo populares, os grandes ritos de massa do
sobre as proporções do cenário do que final do século XX. Com esta declaração, ele
o dramaturgo comum. No novo teatro,
tal como Wagner o concebia, o poeta-
subverte a compreensão burguesa vigente
músico deve controlar todos os do contato entre atores e espectadores,
aspectos da produção incluindo o
fundada na contemplação passiva,
cenário, e estes devem formar um todo
único para cada obra. O cenário não propondo uma experiência comum.
deve confiar “nas convenções, como o
faz normalmente a ópera, nem na Sensível aos novos interesses pelos
imitação da vida, como o teatro falado”.
esportes representados pela retomada dos
(...) A inspiração do desenho deve,
portanto, brotar da própria obra, e não Jogos Olímpicos de 1896, pelas esculturas
da convenção ou da realidade externa.
de Rodin e pela dança de Isadora Duncan,
O atual sistema de encenação impede o
ator, quando animado pela música, de Appia percebia que as artes passavam a dar
relacionar qualquer meio unificado ênfase ao corpo vivo, valorizando seu gesto
com o cenário inanimado ao seu redor.
A solução é permitir que esse cenário e movimentos naturais. Em colaboração
seja também condicionado pela música. com Émile Jacques-Dalcroze, Appia criou
A pintura do cenário deve ser
uma arquitetura cênica totalmente abstrata
substituída pela iluminação, que
compartilha a animação do ator vivo e para o pleno desenvolvimento da ginástica
pode servir de elemento unificador
rítmica, fundada no movimento e nos
entre ele e o espaço cênico neutro
requerido pelos movimentos da gestos esculturais, em busca da expressão
música. (CARLSON, 1997, p. 286) dos mais íntimos sentimentos do corpo no
espaço e no tempo.

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Dalcroze escreveu: e o movimento, o gesto e o ritmo se


transformaram em elementos emotivos.

Pode-se julgar um trabalho de


arquitetura apenas na sua relação com
Em vez dos cenários atravancados,
onde é instalado, assim como os ritmos
pormenorizados e ilusionistas
musicais só podem ser apreciados em 90
empregados até mesmo em Bayreuth,
relação à atmosfera e ao espaço onde se
Appia preconizava um cenário que
movem, isto é, o ritmo musical só pode
antecipava os interesses dos
ser apreciado em relação ao silêncio e a
simbolistas – um simples arranjo de
imobilidade. (DALCROZE, 1976, p. 149)
formas espaciais, mais evocativas que
específicas, que desse maior ênfase à
luz e ao movimento no espaço do ator;
a intenção era captar a unidade
No sistema Dalcroze, Appia fundou
orgânica da obra teatral. (BERNSTEIN,
os sentidos perfeitos para a exteriorização 1994, p. 177)
musical de libertação do corpo em
movimento. Mais adiante, a
arquitetonização do conjunto do palco Dada a relevância total do

previa abrigar os sentimentos físicos, os movimento corporal como forma

movimentos e a típica expressão do homem expressiva, a que Appia chama “duração

dos tempos modernos – o atleta. viva” – a expressão simultânea no espaço e


no tempo de uma ideia essencial –, a cena
O corpo do ator era, para o teatral poderia transformar-se em uma
espaço do palco, como cada edifício era ordem harmônica compensadora da
para a totalidade espacial de um conjunto alienação da existência moderna e da
arquitetônico: ambos os elementos vivos de falência nos tempos contemporâneos da
um ambiente projetado. Arquitetura e persuasão moral e das amarras tradicionais
linguagem cênica eram similares: eram a em que o palco contemplativo resultara.
linguagem do gesto no erigir de uma Appia criava espaços que permitiam a
coluna, no risco do desenho de uma fluidez da evolução rítmica dos corpos
abóbada, nos meandros rítmicos da humanos, iluminados dramaticamente por
evolução no tempo e no espaço. luzes em movimento, “o uso de projeções

O cubo cenográfico, com seu fotográficas em abstratos tons rítmicos e

ilusionismo e cenários em trompe-l’oeil, efeitos especiais como nuvens, fogo e água”

explodem em pedaços sob as modernas como ingredientes de um teatro expressivo.

sensibilidades; o espaço e o tempo, a forma Um “espaço rítmico” esculpido e distante


de fortes figurações pictóricas ou
arquitetônicas.

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Ana Bernstein comenta que o relação dinâmica, de tensão, de oposição


conceito de espaço cênico surge entre cenário e ator que se cria um espaço
verdadeiramente com Appia, que o concebe vivo, por meio de resistência ao corpo
na plena amplitude tridimensional. É na móvel, traduzido cenicamente na utilização
relação com o corpo do ator que o espaço de obstáculos a serem superados, de
deveria ser pensado, construído. Caberia ao rampas, de planos diferenciados de 91

ator a responsabilidade de organização da representação. E, como indica Bernstein,


hierarquia dos elementos em cena. Para Appia resgatava o movimento na cena,
Appia o espaço cênico não tem existência a numa relação funcional, como um
priori. É uma potência a ser transformada trampolim para o ator. Ao contrário do que
durante o acontecimento e ainda na possa parecer, isso se formalizava de
interação dos instrumentos do espetáculo, maneira muito simples, quase abstrata,
onde a luz adquiriu fundamental dentro de uma concepção do cenário
importância. Appia foi o primeiro evocativo, de uma operação que só se
encenador a compreender a luz como completaria no espectador em
elemento plástico em si, a luz como contemplação ativa.
geradora de atmosferas oníricas, como
A arquitetura teatral ideal deveria
construtora de espaços, como cor. Ele
ser totalmente flexível, incluindo o piso, o
apostava na luz, acreditando em sua
teto e as paredes, a fim de que cada drama
capacidade de provocar intensidades
pudesse desenvolver-se em seu próprio e
emocionais, de dar novas formas e
exclusivo espaço cênico. Esta noção de
significados às situações cênicas, na luz
flexibilidade, própria do Modernismo na
como força unificadora da cena: o que
arquitetura, a valorização de um palco que
permite o amálgama de ator, palco e
“funciona” a partir do corpo do ator,
cenário: “O que a música é para a
também pode ser vista como um viés das
‘partitura’, a luz é para a apresentação: um
práticas funcionalistas que passam a
elemento de pura expressão contrastado
caracterizar o pensamento da arquitetura
com os elementos que contêm um
das cidades modernas.
significado racional” (CARLSON, 1997, p.
287).

O cenário deveria ser criado a partir Artigo recebido em 13/10/2011


do ator e, ao mesmo tempo, em oposição a
Aprovado em 28/11/2011
ele. Isto significa que é através de uma

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Lidia Kosovski

Referências Bibliográficas

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of Environmental Scenography. Michigan:
UMI Books and Demand, 1981. 92

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas —


Magia e Técnica. Arte e Política. São Paulo:
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CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro.


Estudo histórico-crítico, dos gregos à
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CONNOR, Steven. Cultura Pós-Moderna –


Introdução às Teorias do Contemporâneo.
São Paulo: Edições Loyola, 1993.

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linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1989.

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NOVAES, Adauto (org.). Artepensamento.


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VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico. Rio de


Janeiro: Editora 34, 1993.

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