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HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL

ENSINO, SOCIEDADE E COTIDIANO: DIÁLOGOS ENTRE


O PASSADO E O PRESENTE
Adriana Zierer
Marcus Baccega
Ana Livia Bomfim Vieira
(Organizadores)

HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL


ENSINO, SOCIEDADE E COTIDIANO: DIÁLOGOS ENTRE
O PASSADO E O PRESENTE

São Luís
2019
© copyright 2019 by UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA UEMA.

EDITORA UEMA
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Alan Kardec Gomes Pachêco Filho José Roberto Pereira de Sousa


Ana Lucia Abreu Silva José Sampaio de Mattos Jr
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CAPA
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EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Kerly Ferreira (krcpereira@gmail.com)

A revisão ortográfica dos textos é de inteira responsabilidade dos autores.

História Antiga e Medieval. Conflitos Sociais, guerras e relações de


gênero: representações e violência / Adriana Zierer, Ana Livia Bomfim
Vieira, Marcus Baccega (Orgs.). São Luís: EDUEMA, 2019, v. 7.
298 p.

ISBN: 978-85-8227-251-0
1. História Antiga. 2. História Medieval. 3. Ensino.
4. Sociedade. 5. Cotidiano. I. Zierer, Adriana. II. Vieira, Ana Lívia
Bomfim. III. Marcus Baccega. IV. Título
CDU: 94(100)“...05”:316.48
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO..........................................................................................................09

PREFÁCIO – Prof. Dra. Terezinha Oliveira (UEM/GTSEAM) ................................13

O PAPEL DO ESPELHO DE PRÍNCIPES NA EDUCAÇÃO DOS


SOBERANOS PORTUGUESES. O CASO DO REI DOM SEBASTIÃO
DE AVIS..........................................................................................................................15
Rosuel Lima-Pereira (UG)

PARAÍSO, UTOPIAS E DISTOPIAS: REFLETINDO SOBRE O


LUGAR IDEAL EM NARRATIVAS MEDIEVAIS E NO FILME
METROPOLIS, DE FRITZ LANG (1927)..........................................................31
Adriana Zierer (UEMA/Brathair /Mnemosyne)

VATAÇA LASCARIS: DE APRENDIZ, NA CORTE DA RAINHA


SANTA ISABEL, A TUTORA EM CASTELA..................................................57
Aldinida Medeiros (UFPB)

O ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA ANTIGA NO BRASIL:


UM PANORAMA DA ÁREA...............................................................................63
Ana Livia Bomfim Vieira (UEMA/Mnemosyne)

A EDUCAÇÃO PELA LITERATURA: O IDEAL CAVALEIRESCO


COMO MEIO DE APRENDIZAGEM CRÍTICA DA HISTÓRIA
NACIONAL.............................................................................................................73
Ana Marcia Alves Siqueira (UFC)

A IDADE MÉDIA E A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO:


ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO DOS HOMENS
COM A CIÊNCIA..............................................................................................87
Ana Paula Tavares Magalhães (USP)

AS HISTÓRIAS DE UM LIVRO CATEDRAL - RELAÇÕES ENTRE


PASSADO, PRESENTE E FUTURO NA INTERPRETAÇÃO DO
DRAGMATICON DO MESTRE GUILHERME DE CONCHES
(c. 1080-1154)..........................................................................................................97
Carlile Lanzieri Júnior (UFMT)
BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E OS DESAFIOS DA
HISTÓRIA MEDIEVAL NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO
BÁSICA BRASILEIRA........................................................................................115
Douglas Mota Xavier de Lima (UFOPA)

ENTRE PALAVRAS, RELÍQUIAS E MILAGRES: A PROPÓSITO


DA OBRA HAGIOGRÁFICA DE GREGÓRIO DE TOURS........................131
Edmar Checon de Freitas (UFF)

CHODERLOS DE LACLOS E UMA NOVA EDUCAÇÃO PARA AS


MULHERES............................................................................................................145
Elizabeth Sousa Abrantes (UEMA)

PRESENÇA DO MEDIEVO NA MÚSICA CONTEMPORÂNEA..............155


Flavio Pereira Senra (IFRJ/ GECOMLIC-UFRJ)
Rafael Ottati (GECOMLIC-UFRJ)

COMO APARECER E PARECER – APRENDENDO AS RELAÇÕES


DE CORTESIA EM SOCIEDADE.....................................................................171
Geraldo Augusto Fernandes (UFC)

CINEMA E IDADE MÉDIA: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS


REPRESENTAÇÕES FÍLMICAS DO MEDIEVO, SEU DIÁLOGO
COM A HISTORIOGRAFIA, E SEU USO DIDÁTICO NO
ENSINO DE HISTÓRIA.....................................................................................185
José D’Assunção Barros (UFRRJ)

A LITERATURA E O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA: UMA


DISCUSSÃO EXPLORATÓRIA........................................................................201
José Maria Gomes de Souza Neto (UPE)
Sérgio de Corrêa Mendes Júnior
Luiz Henrique Bonifácio Cordeiro

A MÚSICA MEDIEVAL E O ENSINO DE HISTÓRIA..................................213


Lenora Pinto Mendes (UFF)

LITERATURA DE CORDEL: UM RECURSO PEDAGÓGICO PARA


A TEMÁTICA DA HISTÓRIA............................................................................223
Júlia Constança Pereira Camêlo (UEMA)
MOROIS: UMA UTOPIA IDÍLICA NO PARAÍSO DO PECADO.............233
Marcus Baccega (UFMA/Brathair)

TRISTÃO E ISOLDA: A MULHER, A MAGIA E O CONCEITO DE


AMOR....................................................................................................................251
Mônica Amim (UFRJ)

EDUCAÇÃO E RELIGIÃO: A OBRA PASTORAL DE ISIDORO DE


SEVILHA................................................................................................................269
Sergio Alberto Feldman (UFES)

UMA REFLEXÃO SOBRE O USO DE DOCUMENTOS NA


ANTIGUIDADE E A INSTRUMENTALIZAÇÃO DO
CONHECIMENTO HISTÓRICO SEGUNDO A BNCC: O EXEMPLO
DAS MOEDAS ROMANAS.................................................................................281
Thiago Eustáquio Araújo Mota (UPE/LEIR-UFG)
Marcelo Miguel de Souza (LEIR-UFG)
UMA REFLEXÃO SOBRE O USO DE DOCUMENTOS NA ANTIGUIDA-
DE E A INSTRUMENTALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO
SEGUNDO A BNCC: O EXEMPLO DAS MOEDAS ROMANAS.

Thiago Eustáquio Araújo Mota (UPE/LEIR-UFG)1


Marcelo Miguel de Souza (LEIR-UFG)2

INTRODUÇÃO

Consonante aos debates sobre a implementação da Base Nacional Co-


mum Curricular - BNCC3 e, mais especificamente, aos componentes curricu-
lares de História com a formação de uma cultura escolar voltada para uma
pedagogia da cidadania, temos por objetivo, neste capítulo, elencar elementos
das metodologias de ensino pensando o recorte da Antiguidade no âmbito das
habilidades e competências previstas. É sabido que a BNCC traz, em seu esco-
po, o esforço para a inserção de novas temáticas, bastante relevantes, dentro
dos componentes curriculares da disciplina. Por outro lado, a inserção destes
novos temas4 pode levar, decisivamente, a uma compressão e superficialização
de alguns conteúdos como, por exemplo, aqueles relacionados à Antiguidade
a ao Medievo.
Este capítulo, então, é uma contribuição no sentido inverso ao desta
superficialidade dos componentes aplicados ao conteúdo de História Antiga.
Para tanto, nossa argumentação se debruçará sobre o uso de documentação
primária em sala de aula e de como esta documentação pode servir para “esti-
mular a autonomia de pensamento e a capacidade de reconhecer que os indiví-
duos agem de acordo com a época” (BRASIL, 2018, p. 400). Considerando que

1 Doutor em História pela UFG, Professor Adjunto de História Antiga da UPE, campus
Petrolina e Pesquisador do LEIR-UFG.
2 Doutor em História pela UFG, Professor da Rede Municipal de Goiânia e Pesquisador do
LEIR-UFG.
3 A BNCC, segundo definição proposta “é um documento de caráter normativo que define
o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que
tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade
com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE)” (BRASIL, 2018, p. 07).
4 A história, enquanto conteúdo escolar parece crescer exponencialmente não só em sua
dinâmica temporal, mas em profusão de temas e localidades. Infelizmente, o tempo para
instrumentalizar tanta diversidade é finito, e pode levar a uma compressão e abordagem
superficial das discussões.

  
Adriana Thiago Eustáquio Araújo Mota
Marcelo Miguel de Souza

pouco se pode compreender da base contemporânea de nossa sociedade sem


confrontar os dilemas dos antigos, o diálogo com novos temas e novas deman-
das acenam para a renovação do ensino da História Antiga e a superação da
pecha de um eurocentrismo colonizador.5
Os princípios norteadores do ensino de história, na nova BNCC, suge-
rem coadunar a prática do ensino/aprendizado ao conhecimento mais especí-
fico da documentação primária – material característico do historiador profis-
sional. A documentação de base material, arqueológica e literária para o estudo
das sociedades antigas parece impor desafios em termos metodológicos a seu
uso escolar mais cotidiano. Devemos assinalar que a análise da documentação
permite um uso didático que reflete um ganho qualitativo em termos da expan-
são do potencial crítico do discente e sua autonomia de pensamento. Sobre o
uso de documentos em sala de aula, a BNCC aponta:

A utilização de objetos materiais pode auxiliar o professor e os alu-


nos a colocar em questão o significado das coisas do mundo, esti-
mulando a produção do conhecimento histórico em âmbito escolar.
Por meio dessa prática, docentes e discentes poderão desempenhar
o papel de agentes do processo de ensino e aprendizagem, assumin-
do, ambos, uma “atitude historiadora” diante dos conteúdos propos-
tos, no âmbito de um processo adequado ao Ensino Fundamental.
(BRASIL, 2018, p. 398)

Como observa a pesquisadora Selva Guimarães Fonseca, compete ao


professor selecionar o material adequado ao exercício eficiente do ensino e,
por mais abrangente que seja o currículo, esta seleção é sempre um posiciona-
mento, uma escolha por assim dizer: “O trabalho de selecionar, eleger, é uma
exigência permanente. Um currículo de história é sempre fruto de uma seleção
cultural” (FONSECA, 2010, p. 06). Dentro desta seleção, o cuidado em oferecer

5 O ensino de História ligado às complexidades do mundo moderno, bem como às novas


demandas por maior representatividade dos grupos identitários, tem relegado a um plano
menor o estudo da História Antiga, taxada muitas vezes como “eurocêntrica”, o que,
em nossa opinião, eclipsa os elementos de continuidade, apropriação e ressignificação
de elementos culturais herdados dos Antigos. Do ponto de vista historiográfico, a
consolidação dos Estudos Mediterrânicos com foco nas trocas culturais entre Ocidente
e Oriente, assim como a influência dos estudos pós-coloniais nas pesquisas em História
Antiga têm contribuído para superar esta visão estigmatizada. Para um aprofundamento
do debate sobre a Africanologia relacionada ao recorte da História Antiga sugerimos a
coletânea organizada por João Carlos Furlani, A África no Mundo Antigo. Possibilidades
de Ensino e Pesquisa (2019).

  
Uma reflexão sobre o uso de documentos na antiguidade e a...

aos alunos contato com a base de pesquisa dos historiadores pode permitir o
preenchimento de um vácuo de sentido, característico da disciplina: a impos-
sibilidade de verificação direta dos fatos. Ao mesmo tempo, este procedimento
deve atentar para a questão de que a escola não é somente um espaço de vulga-
rização do conhecimento acadêmico. Como indica Fonseca,

a despeito da força e do poder diretivo dos currículos prescritos,


precisamos atentar para o fato de que as disciplinas não são meros
espaços de vulgarização de saberes, nem tampouco de adaptação,
transposição das ciências de referência, mas produtos dos espaços,
das culturas escolares” (FONSECA, 2010, p. 06).

Os ganhos qualitativos em relação ao ensino, bem como a possibilida-


de de selecionar propostas que conectem diversos elementos do presente e do
passado à discussão sugerida, transformam a ideia do uso de documentos em
uma prática viável e interessante. A BNCC propõe para o ensino de história
a busca de autonomia e um diálogo alargado com as bases epistemológicas
da História, percebendo “a natureza compartilhada do sujeito e do objeto de
conhecimento, o conceito de tempo histórico em seus diferentes ritmos e dura-
ções, a concepção de documento como suporte das relações sociais” (BRASIL,
2018, p. 400 - 401). Enfatiza que os alunos e professores, dentro de uma di-
nâmica de interação, sejam sujeitos do processo de aprendizagem, assumindo
ambos uma “atitude historiadora” diante dos conteúdos propostos” (BRASIL,
2018, p. 401). (grifo no original)
Diante dos desafios da prática historiadora, presentes dentro e fora da
sala de aula, este texto sugere dialogar diretamente com a competência especí-
fica de História para o Ensino fundamental de número seis, ou seja, “compre-
ender e problematizar os conceitos e procedimentos norteadores da produção
historiográfica” (BRASIL, 2018, p. 402). Instrumentalizando, através do uso
de documentos primários, o que a BNCC indica para os anos finais do ensino
fundamental, ou seja, desenvolver o procedimento de criação,

das condições necessárias para que os alunos selecionem, compre-


endam e reflitam sobre os significados da produção, circulação e uti-
lização de documentos (materiais ou imateriais), elaborando críticas
sobre formas já consolidadas de registro e de memória, por meio de
uma ou várias linguagens (BRASIL, 2018, p. 416).

  
Adriana Thiago Eustáquio Araújo Mota
Marcelo Miguel de Souza

Devemos assinalar, no entanto, que o uso de documentos na prática


e no cotidiano escolar em sala de aula não tem por objetivo formar mini-his-
toriadores. A finalidade do uso de documentos está em transcender o texto
dos manuais didáticos e corporificar a fala do docente que, por mais coerente
e atraente que seja, é abstrata para grande parte do conjunto dos educandos.
O confronto direto entre aluno e documento permite que o discente tenha a
possibilidade de formular suas próprias indagações e questões, advindas de
suas curiosidades e experiências, e cria a necessidade na criança ou adolescente
de respondê-las. Esta é a “atitude historiadora’ a que se refere a BNCC e que se
pretende alcançar.
Sejam documentos escritos, imagens fotográficas de sítios arqueoló-
gicos ou artefatos de um museu, o contato direto do discente com a docu-
mentação primária dá ensejo à construção de uma curiosidade participativa,
além de permitir ao aluno perceber que o conhecimento histórico é fruto de
investigação especializada e metódica e não se encontra pronta e acabada nos
livros didáticos. Essa curiosidade leva a um ganho qualitativo na aprendiza-
gem, permitindo que o educando formule ideias próprias sobre o debate ou
exposição com base na documentação. O contato com noções de investigação
histórica permite ao educando a percepção da história como uma “construção
de seu tempo”, elemento importante já citado.
A função do uso de documentos, neste contexto, é relacional: visa en-
fatizar as ligações que podem ser estabelecidas pelo próprio aluno e o conteúdo
escolar presente no livro didático e/ou nas próprias aulas do professor, bem
como permitir a construção de elementos que levem em consideração as ex-
periências deste aluno. Seu histórico de vida (como aliás também ocorre nos
pesquisadores acadêmicos) pode filtrar/e ou subsidiar questões propostas na
leitura e no trabalho com documentação primária, permitindo a inserção das
identidades locais ou individuais na construção deste mesmo saber histórico.A
questão da tratativa documental, então, por ser relacional, permite uma flexão
metodológica mais difícil de ser apreendida via conteúdo escolar somente com
material didático. Pasteurizado e decantado em grandes linhas conceituais, o
manual escolar perde parte da complexidade de trato que um documento pri-
mário poderia suscitar ao aluno.

INSTRUMENTALIZAÇÃO DA PROPOSTA

Passemos então para um exemplo prático da utilização da proposta


acima referida a partir do estudo de dois objetos do período romano tendo em

  
Uma reflexão sobre o uso de documentos na antiguidade e a...

mente os processos elencados pela BNCC: identificação, comparação, contex-


tualização e interpretação/análise (BRASIL, 2018, p. 398-400). Para isso, den-
tro de um recorte ligado à história de Roma e ao período da Terceira Guerra
Civil da República Romana (43-42 a.C)6 escolhemos duas moedas de datação
muito aproximada, mas que representam projetos e visões políticas antagôni-
cas no âmbito da violenta competição pelo poder instaurada com a morte de
Júlio César em 44 a.C. A primeira delas é um áureo (moeda de ouro) atribuído
a Otávio, filho adotivo e herdeiro político de Caio Júlio César, já a segunda
moeda consiste em um denário (prata) atribuído à Marco Júnio Bruto, um dos
líderes da conspiração que resultou no assassinato do Dictator7 no Senado.
Quando questionados sobre as moedas romanas é natural que os dis-
centes imediatamente às associem aos pequenos discos metálicos de aço, cobre
e níquel que trazem na carteira e são usados para comprar o lanche no in-
tervalo. Uma maneira interessante de despertar a referida atitude historiadora
seria partir de um objeto facilmente identificável e de uso cotidiano, como a
moeda, para investigar seus usos, significados e meios de circulação no con-
texto da Antiguidade. A etimologia é um ponto de partida interessante visto
que a nossa palavra ‘moeda’ e o próprio adjetivo ‘monetário’ derivam direta-
mente do substantivo latino, moneta. A razão do nome se explica pelo fato da
casa de cunhagem de Roma encontrar-se nas imediações do templo de Juno
Moneta, localizado no monte Capitolino. O epíteto moneta pouco tem a ver
com o universo financeiro, pois foi conferido à Deusa por ela ter alertado (do
latim, monere, avisar) os romanos da invasão gaulesa na fortaleza capitolina no
ano de 390 a.C. Os alunos terão a oportunidade de perceber que, por regra, no
Mundo Antigo a moeda valia aquilo que pesava e que, na ausência de meios
mais eficazes de comunicação, era talvez a única maneira de um súdito afasta-
do do Império conhecer o rosto do próprio Imperador romano.
Do ponto de vista do processo comparativo entre as dimensões do pre-
sente e do passado, cabe ressaltar que em sua forma abstrata, nosso conceito de
dinheiro era algo inexistente naquele período histórico, e que o papel moeda é
uma invenção relativamente recente. Todos os pontos referidos podem servir a

6 Conhecida também como “Guerra dos Libertadores” que opõe os líderes da Conspiração
contra César, Marco Júnio Bruto e Caio Cássio Longino contra Otávio, Marco Antônio e
Lépido (Segundo Triunvirato).
7 Magistratura Excepcional da República Romana. O Dictator era nomeado em circunstância
de perigo extraordinário ou sedição. Antes de Caio Júlio César, o título foi conferido
Lúcio Cornélio Sula no fim da guerra civil contra a facção de Caio Mário.

  
Adriana Thiago Eustáquio Araújo Mota
Marcelo Miguel de Souza

interessantes debates e questionamentos em uma apropriação de similitudes e


diferenças entre os usos de meios financeiros na atualidade e na Antiguidade.
De que forma as moedas podem servir como fontes para o estudo do
passado romano? As moedas pertencem à categoria de fonte de procedência
arqueológica, encontradas em conjunto ou em achados individuais, ajudam
a compreender desde os sistemas comerciais, de troca dos homens antigos, as
relações de poder e os símbolos religiosos da cidade emissora. Em sala de aula,
elas podem corporificar o texto do livro didático uma vez que trazem represen-
tações, por vezes realistas, de personagens históricos e eventos como batalhas,
festividades e construções que são comemoradas nas moedas.
Buscamos oferecer, a seguir, algumas rápidas noções instrumentais so-
bre as cunhagens, técnicas de identificação dos tipos monetários seguido de
um exercício de análise dos objetos, introduzindo novas discussões e familiari-
zando o alunado com ciências como a Arqueologia e a Numismática. Longe de
ser considerada um fetiche para colecionadores excêntricos, a Numismática é
um importante campo de pesquisa dos Estudos Clássicos e da própria Arque-
ologia. Seus especialistas cuidam da identificação, datação e catalogação das
peças conseguidas nas escavações, e a informação de como trabalham pode
enriquecer bastante o trato didático do tema em sala de aula.

BREVE HISTÓRIA DAS MOEDAS NA ANTIGUIDADE CLÁSSI-


CA: RUDIMENTOS CONCEITUAIS

Mais do que um expediente econômico, típico da economia de troca


do Mediterrâneo Antigo, as moedas eram um importante veículo de comuni-
cação na Antiguidade. Como documentos oficiais, revelam artifícios de poder
e a visão que as cidades e os governantes procuravam oferecer de si mesmos.
Era comum que os Imperadores divulgassem, no reverso das cunhagens, fes-
tividades, jogos, conquistas territoriais e as construções que financiavam às
próprias expensas. Especialmente as moedas romanas são documentos muito
úteis no trabalho de reconstituição de monumentos, colunas, templos e arcos
que se perderam. Igualmente, podem ser utilizadas no processo de identifica-
ção de bustos e estátuas de governantes e membros da domus imperial8.

8 Com domus nos referimos a essa noção mais dilatada de família, recorrente no vocabulário
literário e jurídico nos anos que se seguiram à instituição do Principado. Diferente da
concepção de familia – geralmente empregada para destacar a linhagem de ancestrais
paternos, ou agnados - a domus se perpetua, também, pelo parentesco feminino.

  
Uma reflexão sobre o uso de documentos na antiguidade e a...

A moeda tal como conhecemos, pequeno disco metálico usado no in-


tercâmbio comercial, não é uma invenção romana, surge na porção oriental do
Mediterrâneo, por volta do Século VII a.C, nas cidades gregas da Ásia Menor.
Cunhada inicialmente em eletro, uma liga de ouro e prata encontrada em esta-
do natural nos rios da Jônia9, a tecnologia da moeda rapidamente se difundiu
pelo mundo de fala grega. As emissões de prata se tornaram o modelo prepon-
derante na história das póleis gregas e o ouro raramente foi usado na fabricação
de moedas neste período.
Seguindo uma linha de interpretação que remonta à Política de Aris-
tóteles, parte da historiografia considera a adoção da moeda como consequ-
ência da normatização das relações humanas trazida pelo ambiente da pólis
(BARELLO, 2014, p. 63). Enquanto alguns autores enfatizam a razão fiscal, a
partir da qual a autoridade emissora obtinha lucro retendo parte do metal,
para Moses Finley, as cidades adotaram a moeda também pelo valor propa-
gandístico (LE RIDER, 2001, p. 161-165; FINLEY, 1974). Como nos lembra
a pesquisadora Maria Beatriz Borba Florenzano, não podemos retroprojetar
nossa racionalidade econômica nos antigos.
Como afirmação identitária estes objetos traziam emblemas evocati-
vos do passado lendário das cidades e a efígie da divindade tutelar era estampa-
da no anverso. Além do mais, muitos achados de tesouros monetários estão re-
lacionados, não ao contexto comercial urbano, mas aos espaços sagrados como
santuários ou depósitos e poços em templos (FLORENZANO, 2004, p. 72-73).
Em Roma a fabricação de moedas começou por volta de 300 a.C com
notável retardo considerando a introdução das mesmas na parte grega da Pe-
nínsula Itálica e a cunhagem continuou mesmo depois do colapso adminis-
trativo do Império Romano do Ocidente em 476 d.C. Os primeiros nominais
eram fabricadas de bronze, através da técnica de fusão e conhecidos como asses.
Através do contato com as cidades gregas do sul da Itália, os romanos passaram
a bater moedas de prata e posteriormente de ouro. O nominal de maior sucesso
foi o denário de prata, ou Denarius Argentius, estabilizado em 4,54 g., de onde
deriva a nossa palavra ‘dinheiro’. A datação mais aceita para a fabricação das
primeiras peças é 211 a.C (RUDI THOMSEN, 1961; M. CRAWFORD, 1983;
BURNETT, 1987) com base no estudo dos tipos monetários e das escavações
em Morgantina (Sicília) no Santuário de Deméter e Kóre.10 Do ponto de vista

9 Região sudoeste da Anatólia, atual Turquia, e colonizada pelos gregos desde o século VIII
a.C
10 Filha de Cronos e Reia, na Mitologia Grega sua função é propiciar fertilidade ao solo e o
crescimento dos cereais cultivados. Koré, ‘donzela’, é um dos epítetos dados a Perséfone,

  
Adriana Thiago Eustáquio Araújo Mota
Marcelo Miguel de Souza

estilístico, os primeiros denários traziam a efígie da deusa Roma, Dea Roma,


representada com um elmo de tipo coríntio. Com o tempo, outras divindades
como Júpiter, Mercúrio e Vênus passaram a figurar no anverso das moedas. O
campo do reverso era reservado igualmente para as divindades romanas, retra-
tadas em quadrigas e outras figuras do panteão, como os Dióscuros.11
Quem eram os encarregados da produção das moedas romanas? Os
moedeiros constituíam um colégio menor de magistrados reconhecidos como
triunuiri12 ou tresuiri monetales “três moedeiros”. No final do Século II a.C,
as cunhagens passaram a trazer o nome abreviado do moedeiro responsável,
algumas vezes acompanhado da legenda IIIVIR ou IIIIVIR (quando o número
foi aumentado para quatro com César), ou IIIVIR AAAFF ‘triunuiri aere auro
argento flando feriundo’ que se traduz por ‘três homens responsáveis pela fun-
dição e cunhagem do bronze, ouro e prata’. Debutantes da administração pú-
blica nem sempre davam continuidade à carreira das magistraturas, conhecida
em latim como cursus honorum (SAVIO, 2001, p. 130).
Consequentemente, a rivalidade política estimulou o uso das moedas
para fins propagandísticos uma vez que o campo do reverso foi utilizado para
divulgar temas pertinentes às genealogias familiares. No último século da Re-
pública (Século I a.C), a competição entre Mário e Sila, depois, entre Pompeu
e César e, por fim, entre os Triúnviros da segunda geração, Antônio e Otávio,
desencadeou vários usos não ortodoxos do suporte monetário. O reverso do
áureo (moeda de ouro) de A. Manlius retrata uma estátua equestre do Dictator
Lúcio Cornélio Sila e Pompeu Magno aparece com garbo triunfal em outro
áureo do ano 71 a.C. César foi o primeiro general a ter sua efígie colocada no
anverso de uma moeda cunhada e Roma, criando uma prática que foi seguida
pelos governantes subsequentes. A respeito o numismata italiano, Adriano Sa-
vio, declara o seguinte

De um ponto de vista numismático, a República morre quando Cé-


sar não muito antes de se assassinado, obtém do Senado o direito

filha de Deméter, antes de seu rapto por Hades.


11 Os gêmeos, Castor e Pólux, filhos de Lêda, esposa do rei de Esparta. Na iconografia
monetária, são representados como dois jovens cavaleiros, empunhando uma lança.
Segundo as narrativas mitológicas, os gêmeos não possuíam o mesmo pai: Castor era
moral e filho de Tíndaro enquanto Pólux, ou Polídeuces, semideus, era filho de Zeus.
Inseparáveis em vida, os dois irmãos foram agraciados com a imortalidade por intermédio
de Zeus e transformados na constelação de Gêmeos.
12 Traduzido literalmente por “Três Homens”. Termo genérico destinado para qualquer
tríade encarregada de assuntos financeiros, políticos, religiosos.

  
Uma reflexão sobre o uso de documentos na antiguidade e a...

de colocar seu retrato nos denários cunhado sob a supervisão dos


quattuoruiri monetales em menção a própria Ditadura perpétua e,
no reverso, Vênus, sua divindade tutelar (SAVIO, Adriano. Monete
Romane, p. 2001)

De um ponto de vista didático, as transições de regimes políticos e


períodos históricos podem ser percebidas através das moedas, desta forma,
ajuda o alunado a construir a periodização dos processos históricos a partir de
continuidades e rupturas. Além disso, permite problematizar como as institui-
ções são utilizadas por quem está no poder e de que forma estes símbolos são
apropriados nas moedas.
A partir da breve introdução teórica sobre os principais nominais e
caminhos da moeda na Antiguidade passemos a algumas questões de ordem
técnica: De que material eram feitos os objeto em questão [no caso a moeda]?
Como eram produzidos? Perguntas que, segundo o texto da BNCC, auxiliam
no processo da identificação dos documentos trabalhados.
No Período Republicano (509-27 a.C), as moedas foram fabricadas
tanto pelo método de fusão quanto de cunhagem, este último conhecido pelos
gregos desde o século VII a.C. Utilizado na confecção do aes rudes,13 aes signa-
tum e da primeira moeda propriamente dita, denominada aes graues, o proces-
so de fusão caracterizava-se pela introdução do bronze líquido em canaletas de
terracota ou argila conectadas a uma forma refratária do mesmo material. De
acordo com Frederico Barello, no livro Archeologia della moneta. Produzione
e utilizzo nell’antichità, a técnica trazia uma série de inconvenientes entre eles
a difícil regularidade dos pesos, a realização de uma impressão ruim, porosa e
menos nítida e a fácil ação dos falsários (BARELLO, 2014, p. 94-98).
De datação incerta e introduzida em Roma a partir do contato com as
cidades da Campânia, a cunhagem14 atende à demanda de regularidade e pres-
teza na produção das peças. Com a ajuda de uma pinça inseria-se o pequeno
disco de metal aquecido (cobre, prata ou ouro), denominado flan, entre duas
cunhas com seus respectivos entalhes em baixo relevo. Em geral, o procedi-
mento requeria um esforço conjunto, pois enquanto um operário ajustava o
flan sobre a cunha da bigorna, o outro golpeava a cunha superior com um mar-
telo. O anverso resultava da impressão da cunha da bigorna enquanto o reverso

13 Aes significa tanto a liga metálica de bronze quanto o nominal, ou moeda de bronze.
14 Disponibilizamos o link para o vídeo produzido do Art Institute of Chicago que através
da arqueologia experimental, reconstitui o processo de cunhagem das moedas romanas
https://www.youtube.com/watch?v=b6T_ZutXzNQ

 
Adriana Thiago Eustáquio Araújo Mota
Marcelo Miguel de Souza

correspondia ao lado do martelo. Como regra, a cunha da bigorna, fixa e mais


resistente, era utilizada para gerar a impressão menos variável da moeda (em
época imperial, é o lado em que se gravava a efígie do Imperador), enquanto o
cone do martelo era destinado ao tipo mais transitório.
Os aspectos técnicos da confecção de uma moeda podem ajudar os
alunos a compreender as especificidades tipológicas desta documentação,
como também criar uma ponte de questões com seu cotidiano mais imediato.
Ao comparar técnicas de confecção da Antiguidade com aqueles empregados
nas moedas contemporâneas, o professor pode construir um debate acerca não
só dos materiais arqueológicos, mas também dos usos sociais e do próprio sta-
tus do moedeiro no contexto romano.

ESTUDO DE CASO: INTERPRETANDO E CONTEXTUALIZAN-


DO AS MOEDAS ROMANAS

Passemos agora à interpretação e contextualização dos referidos ob-


jetos. A primeira moeda pertence à coleção do Museu Britânico sendo datada
pelo catálogo Roman Republican Coinage do ano de 42 a.C.

Em uma descrição tipológica é possível identificar os seguintes ele-


mentos conjugados na moeda. No anverso encontra-se a efígie de Otávio, iden-
tificada pela legenda C·CAESAR III·VIR·R·P·C, abreviatura de ‘Caius Caesar
Triumvir Reipublicae Constituendae’ que se traduz por ‘Caio César, um dos Tri-
únviros para a Organização da República’. Por sua vez o reverso traz a imagem

Uma reflexão sobre o uso de documentos na antiguidade e a...

do herói troiano, Eneias, carregando o pai Anquises nos ombros, circundada


pela legenda L·REGVLVS IIII·VIR·A·P·F que indica como moedeiro Lúcio Ré-
gulo. Uma vez que o objeto foi devidamente identificado e já nos debruçamos
sobre a “estrutura e suas relações com modelos e formas (semelhantes ou di-
ferentes) inseridas no tempo e no espaço” (BRASIL, 2018, p. 399), podemos
partir para a interpretação da moeda. Cabe perguntar o que motivou a escolha
do motivo iconográfico do reverso e qual mensagem ele pretende veicular. E,
além disso, qual a sua relação com Otávio cuja efígie encontra-se estampada no
anverso da moeda? A figura remete ao ciclo troiano e à jornada de Eneias que,
ao fugir de Tróia, navega até Península Itálica liderando os refugiados troia-
nos15. Na cena em questão o herói, filho de Vênus, aparece carregando o pai,
nas costas enquanto a cidade é saqueada pelos gregos. Muito antes de eternizar
esta passagem através do poema épico, a Eneida, o motivo aparece em vasos e
estatuetas. O gesto evoca a ideia de pietas, valor romano que expressa a devo-
ção aos deuses, ancestrais e à tradição. Outra possibilidade de interpretação
proposta pelos especialistas é que a cena retrate não o mito de Enéias, mas os
“irmãos da Catânia”, conhecidos como Anapias e Amphinomus, uma lenda
siciliana registrada por Pausânias.16Durante uma erupção do Etna, enquanto
a população de Catânia escapava do fogo carregando seus pertences de ouro
e prata, os irmãos fugiram trazendo os genitores nas costas. O que também
exprime a ideia de pietas.
A contextualização do áureo nos conduz diretamente à segunda ques-
tão, ou seja, a da relação entre as informações textuais e iconográficas do anver-
so com o revero. Na legenda epigráfica Otávio é referenciado como “Triúnviro
para a Organização da República” o que remete à aliança formada com Marco
Antônio e Lépido, conhecida como Segundo Triunvirato, formado em 43 a.C.
Esta aliança tinha como objetivo repartir os poderes e as áreas de influências do
Império, mas também vingar a morte de César que, posteriormente (42 a.C) foi
transformado em divindade por decreto do Senado, denominado Diuus Iulius.
Neste contexto Otávio desponta como herdeiro do nome de César e principal
continuador do seu legado. Assim, o conceito de pietas, subjacente ao motivo

15 Esta narrativa ficou conhecida no Ocidente, principalmente, a partir da publicação da


obra prima do poeta Públio Virgílio Maro, a Eneida, epopeia romana composta entre 29
e 19 a.C Em linhas gerais, narra a travessia de Eneias, filho de Vênus e Anquises, com
os refugiados troianos até o litoral itálico para a fundação de Lavínio, uma das cidades
ancestrais de Roma. Na versão oficial, Iúlo, filho de Eneias, teria dado origem à Gens Iulia,
a qual se ligam Júlio César e Otávio.
16 Geógrafo grego e viajante do Século II d.C, autor da obra colossal, Descrição da Grécia,
dividida em dez livros.

 
Adriana Thiago Eustáquio Araújo Mota
Marcelo Miguel de Souza

iconográfico do reverso, reforça a devoção do Triunviro para com a memória


do pai adotivo. Se tomarmos a figura do reverso como Eneias é possível ainda
argumentar que a intenção do moedeiro fosse a genealogia familiar dos Iulii
Caesares. Em uma das versões do mito (que se tornará conhecida através da
Eneida de Virgílio) o herói troiano não apenas funda Lavínio, mas é também
o mítico ancestral da Gens Iulia, a quem estão ligados Júlio César e o próprio
Otávio.
A segunda moeda é um denário (moeda de prata) datado pelo catálo-
go, Roman Republican Coinage, entre os ano de 43 a.C e 42 a.C e, igualmente,
pertence à coleção do Museu Britânico. Local da cunhagem é incerto, prova-
velmente em campanha militar.

Na descrição tipológica fornecida pelo catálogo destacam-se os se-


guintes elementos. No anverso destaca-se a efígie de Marco Bruto, com barba,
voltada para a direita e circundada pela legenda BRVT·IMP., Brutus Imperator.
Já a legenda L·PLAET·CEST indica Lúcio Plaetório Cestiano como o moedeiro
responsável. No reverso aparece o motivo iconográfico do Pileus entre duas
adagas, acompanhado da legenda EID·MAR, “Idos de Março”. 17

17 Os Idos correspondiam a uma das três divisões do mês no calendário romano (calendas,
nonas e idos), coincidiam com 15º dia dos meses de março, maio, julho e outubro e com
o 13º dia dos demais meses. Essa data passa a ser sinônimo de mau augúrio, a partir de 44
a.C visto que nos ‘Idos de Março’, Caio Júlio César foi assassinado por uma conspiração
no Senado.

 
Uma reflexão sobre o uso de documentos na antiguidade e a...

No processo de decodificação da moeda, cabe perguntar o que ocasio-


nou a escolha dos motivos iconográficos, do anverso e reverso, e qual mensa-
gem eles buscam veicular? Marco Júnio Bruto, cuja efígie aparece no denário,
pertence ao grupo dos “libertadores” que, juntamente com Caio Cássio Longi-
no, Décimo Júnio Bruto, Públio Servílio Casca, deram cabo da vida de César
enquanto o Senado se reunia na cávea18 do Teatro de Pompeu em 44 a.C. O
Pileus, gravado no reverso, remete à ideia de liberdade uma vez que se tratava
de um ornamento utilizado pelos escravos recém-libertados. Já as adagas que
estão ladeando o Pileus aludem à ação bem sucedida do grupo que, nos Idos de
Março, almejou libertar a República do “Tirano”. Segundo a biografia de Plu-
tarco19 foi assassinado com vinte e três punhaladas, cada uma representando
um dos conspiradores (PLUTARCO. Vida de César, LVI. 14). Em relação a esta
emissão, Mary Beard observa que a efígie de Bruto traz uma mensagem dife-
rente daquela transmitida pelo reverso, pois o retrato de uma pessoa viva em
uma moeda romana era visto como um sinal de poder autocrático (BEARD,
2017, p. 290).
O exercício de comparação entre as duas moedas permite sair do dis-
curso hegemônico e apresentar diferentes visões sobre um mesmo aconteci-
mento, tal como proposto pelo texto da BNCC (BRASIL, 2018, p. 419). No
contexto dos distúrbios civis após 44 a.C, o áureo apregoa a legitimidade de
Otávio como um dos Triúnviros encarregados na ‘reordenação’ da República.
Seu papel como herdeiro político de César é ressaltado através do conceito da
pietas e da genealogia heróica de sua família. Por sua vez, a moeda de Bruto re-
presenta uma das poucas evidências históricas e arqueológicas do projeto dos
vencidos, visto que o grupo dos “libertadores” foi implacavelmente perseguido
pelos Triúnviros e sua memória suprimida com o estabelecimento do Prin-
cipado de Augusto. O denário celebra os Idos de Março como acontecimen-
to restaurador da República Romana e uma bem executada ação tiranicida.
Marco Bruto se vinculava por descendência à Lúcio Bruto, um dos fundadores
da República romana que expulsou o último rei, Tarquínio o Soberbo. Não se
trata, todavia, de uma celebração despretensiosa da libertas uma vez que ofe-
rece indícios da ambição personalista do próprio Bruto que estabeleceu, por
um tempo, sua base de poder no oriente. É interessante que o professor em

18 No cume da cávea, ou seja, das arquibancadas do Teatro de Pompeu localizava-se o


Templo de Vênus Victrix (RICHARDSON, 1992, p. 411).
19 De origem grega, Lúcio Méstrio Plutarco (Séculos I-II d.C) ficou conhecido no Ocidente
pelos seus escritos morais, Moralia e pelo conjunto de biografias de personalidades gregas
e romanas, as Vidas Paralelas.

 
Adriana Thiago Eustáquio Araújo Mota
Marcelo Miguel de Souza

sala de aula permita que o aluno operacionalize estes conhecimentos através


deste constato direto com a documentação, mesmo que introdutório e media-
do, com as terminologias características da numismática e a construção do
conhecimento histórico. Essa atitude historiadora é prevista pela BNCC e deve
ser oportunizada, de preferência com este contato.

CONCLUSÃO

O arco temporal exposto como instrumentalização da proposta da


BNCC permite que diversos conceitos e temas sejam trabalhados ao longo de
uma sequência didática que contemple o objetivo escolhido. Conceitos como
“Senado”, “cursus honorum” e mesmo “Dictator” tem sua origem em Roma e
estão presentes tanto nas moedas, assim como no debate atual, permitindo a
construção de analogias, continuidades e rupturas. A sequencia de informa-
ções apresentada tem também por objetivo esboçar algumas possibilidades de
planejamento da aula pelo docente, bem como viabilizar que se conecte o de-
bate historiográfico à temática de uso cotidiano no livro didático. Suas possibi-
lidades de uso são muitas e diversas, e dependerão do planejamento específico
do professor em sala de aula e do grau de envolvimento dos discentes.

REFERÊNCIAS

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nell’a Antichità. Roma: Caroci Editore, 2014.
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FINLEY, M.I. The Ancient Economy. UCLA Berkeley-Los Angeles: University
Press, 1974.
FLORENZANO, Maria Beatriz Borba. ‘A Moeda na Grécia Arcaica e Clássica.
Séculos VII a IV a.C – Arqueologia e Mudança Cultural.’ Revista do Museu de
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FONSECA, Selva Guimarães. A história na educação básica: conteúdos, abor-
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Uma reflexão sobre o uso de documentos na antiguidade e a...

FURLANI, João Carlos. A África no Mundo Antigo. Possibilidades de Ensi-


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says, Institut Supérieur d’Archéologie et d’Histoire de l’Art, Louvain-la-Neuve,
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RICHARDSON, A New Topographical Dictionary of Ancient Rome. Balti-
more, Maryland: Johns Hopkins University Press, 1992.
SAVIO, Adriano. Monete Romane. Roma: Jouvence, 2001.

 
Este livro foi composto em font Minion Pro, sobre o papel
Off-set 75g e capa em Supremo 250g, no sistema digital da
Gráfica Linha D’Água. São Luís-MA, 2019.

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