Você está na página 1de 2

Hóquei em Patins

Luísa Costa Gomes / publicado em O TEMPO E O MODO

Leonardi contava um golo anulado e duas faltas. Em meio da segunda parte começou a
pesar-lhe, como sempre, a perseguição do sombra, e este peso convertia-se no
sentimento desconfortável de que a bota se lhe desapertava e o patim direito lhe
fugia. Leonardi mencionara-o, entre dois tempos, a um dos avançados que lhe
garantira desconhecer por completo o fenómeno. Sentia ele, o avançado, que o
rodeava uma névoa elíptica e não conseguia escapar-se da certeza de que o seu
sombra acharia maneira de lhe desfrechar uma sticada entre os olhos.
Leonardi considerava o seu sentimento com um pânico ligeiro, porque o distraia do
movimento do jogo e lhe deixava a cabeça oca de estratégias. Mas não eram por
enquanto necessárias, o jogador que constantemente o seguia não teimava em iludi-o,
antes lhe fitava a joelheira da pena direita numa concentração perversa e, absorto,
deixava-se fintar. Leonardi prometia desligar-se das obsessões do sombra e, como os
seus avançavam, ele seguia-os, sem plano. Mas, enquanto patinava, tinha uma vez por
outra debaixo de olho a própria perna e, desde logo, o incomodativo fitar do sombra.
Ocorreu-lhe que talvez fosse esta uma das regras secretas do jogo, para o confirmar,
observou os outros jogadores, aproveitando uma pausa de golpe de canto. E, de facto,
todos os adversários atentavam nas joelheiras direitas dos respetivos inimigos, num
olhar cuidadoso e enrugado; Leonardi ergueu os braços cruzando os pulsos, em sinal
de pedido de interrupção de jogo.
Chegou-se o arbitro, desequilibrado e mole, no difícil andar de único homem que não
usa patins. Leonardi disse ter descoberto uma das regras daquele jogo. Chamou-se
Kovalski, o treinador da outra equipa.
- Esta regra, disse Leonardi, é fitar continuamente a perna direita do adversário.
- E para que serve esta regra?, perguntou Kovalski, dentro do regulamento.
Leonardi não soube responder; não ganhou pontos. Ao contrário, como se prestara a
responder sem acertar, marcaram-lhe mais uma falta. Mas passara-lhe o sentimento
do patim a abanar e ficara mais disponível para o jogo e a corrida. O avançado Marilio
cruzou por sua vez os braços ao alto e voltou a interromper-se o jogo. Chamou com
autoridade o árbitro que fez sinal a Kovalski para que se aproximasse. Marilio
encomendou depois papel e lápis e pôs-se a desenhar, o público debruçava-se,
suspenso, tossiam os adversários. Leonardi baixara-se para apertar com segurança a
bota, uma bota grande demais como sempre. Juntavam-se dois ou três jogadores que
ficaram a olhar uns para os outros de boca aberta, respirando depressa, nos bicos dos
pés.
Leonardi lembrou-se da única vez em que tivera a subtileza de adivinhar uma regra.
Fora em Berlim, numa temporada difícil - a equipa quase em último lugar na
classificação, ao entrarem no ringue ouviam o público rir-se e encolhiam-se,
lamentáveis, avançavam todos juntos, recuavam todos juntos, não se atreviam a ir até
à borda do ringue, por onde passavam livremente adversários em jogadas que os
ridicularizavam, acumulando conclusivos golos. Nesse dia, os de Berlim tinham entrado
todos a patinar de costas. A equipa de Leonardi entreolhara-se e concluíra em silêncio
que se tratava de um bluff. Mas não. Leonardi ergueu os braços e chamou o arbitro.
- Uma das regras, disse ele, é patinar sempre de costas para a nossa baliza.
E quando o treinador perguntou para que serviria semelhante regra aí, ah! Aí Leonardi
respondera:
- É uma regra que faz as vezes de um bluff. Os adversários ficam ofuscados pela
evidência e, temendo enganar-se, não se atrevem a concluir.
O treinador saiu a correr e o árbitro, encolhendo os ombros, marcara a Leonardi
quinze pontos brancos e tirara-lhe, desde logo, todas as faltas que viesse a cometer
durante o jogo.
Tinham acabado por perder, mas não Leonardi, que fora muito cumprimentado,
repetindo o diálogo da proeza até ao esgotamento.
- Marílio sabe, diz o árbitro. Encostado a barreira metálica, Marílio imagina desenhos
com o stique no cimento.
- Diz-me, pediu Leonardi, e foi o primeiro.
- Eles têm de manter as pernas sempre na mesma posição que as nossas, que as de
cada sombra.
Claro, claro, pensou Leonardi. E nem lhe ocorreu perguntar para que servia aquela
regra, mas apenas como é que Marílio soubera concluí-la. Compreende-se, Leonardi
apenas queria comparar deduções. Mas Marílio era conhecido pelo segredo em que
envolvia as suas, sorria-se e fitava a biqueira da bota, às vezes acrescentava:
- Não era nada fácil, hã?
O que deixava incomodado o outro, que se sentia a mais, profanando um templo de
auto-adoração.
O jogo recomeçava, e, mesmo com os pontos marcados por Marílio, perdiam. Talvez
uma falta dos adversários para ganharem, ou empatarem, tudo dependia da gravidade
da falta. Calculando, Leonardi desliza melancólico, na repetição das mesmas
passagens. Pensava em Marílio. Suspeitava daquele à-vontade na adivinhação das
regras (e para que era o espalhafato dos desenhos?), suspeitava daquele saber à boca
da verdade, suspeitava da atitude secretiva; e não conhecia Marílio bem demais os
adversários? Aquelas conversas surpreendidas no corredor não sugeriam corrupção?
Leonardi deixava-se afastar do coração do jogo. Não simulava, empastelava a bola no
stique e, olhando vagamente, procurava o tardio suporte dos outros. Até que não o
solicitaram mais.
Pensava em Berlim. Quando reouviu aquela ovação esplêndida, os seus saraivavam o
guarda-redes adversário com ferocidade e disciplina. Castigavam-no eles a
impromptos e com recargas no momento em que Leonardi, rapidíssimo, lhes sacou a
bola; deslizou, puxado por ela, através da defesa amigo, ataque inimigo, defesa
inimiga; sozinho passou o meio-campo a ganhar velocidade, fintou o seu guarda-redes
que se defendia por hábito e lançou o stique como um dardo na própria baliza.
O guarda-redes deitou-se no chão devagar, esfregando o ombro para assinalar o
almofadado local da passagem. Leonardi julgou que o público aplaudia, mas o barulho
afinal vinha de orelhas adentro. Em verdade, o público não se ouvia sequer mexer.
Distribuídos pelo ringue como estatuetas de plástico, todos os jogadores consideram,
perplexos, a figura de Leonardi, retirado no canto do ringue.
Marílio desliza até à barreira e encosta-se a desenhar com o stique no cimento.
Ao fundo do ringue, meio escondido pela baliza, um adversário levanta finalmente os
braços cruzados nos pulsos.

Você também pode gostar