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881-Texto Original - Manuscrito Original-6891-1!10!20140804
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Ciências & Cognição 2014; Vol 19(2) 193-206 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 23/01/2013│Revisado em 18/10/2013│Aceito em 18/12/2013│ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 01/07/2014
Resumo Abstract
Quando nos referimos ao termo “sensório-mo- When we refer to the term “sensory-motor”,
tor”, de acordo com a epistemologia genética pia- according to Piaget’s genetic epistemology, we
getiana, estamos evocando conceitualmente um are conceptually evoking a specific theoretical
arcabouço teórico específico e que compreen- framework which comprises well-defined
de fronteiras epistemológicas bem delimitadas. epistemological boundaries. However, how can
Todavia, sugerimos ampliar conceitualmente a we conceptually extend the Piagetian proposal by
proposta piagetiana em considerar o estágio sen- considering the sensory-motor stage not only as
sório-motor não só enquanto uma das etapas de one of the stages of the cognition development,
construção da cognição, mas na arregimentação but in the permanent regimentation of the
permanente da totalidade de nosso ser. Logo, a entireness of our being? Would the child, when
criança, ao “ultrapassar” esta fase por volta dos “overcoming” such stage, at about two years
dois anos, deixa-a de fato para trás na forma de of age, actually leave it behind in the form of
“organização transcendente” de outros esquemas “transcendent organization” of other action
de ação. Como objetivo central deste Ensaio, pro- schemes? The central goal of this Essay is to
poremos oportunamente algumas reflexões que propose some appropriate reflections aiming
visam problematizar e ampliar significativamente at significantly expanding and problematizing
o termo “sensório-motor” em sua conotação pia- the term “sensory-motor” within its Piagetian
getiana, tecendo articulações com a tese de auto- connotation, by building joints with the thesis of
res que defendem o intrincado processo de uma authors who advocate the intricate process of an
“cognição incorporada”. “embodied cognition.”
E.M.Guerra – Av. Barão do Rio Branco, 2817/905, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. CEP 36010-012.
E-mail: estevao.guerra@yahoo.com
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Introdução
“Por falta de um prego, perdeu-se a ferra- sentando outras variáveis para se compreender
dura; como o pobre cavalo que “perdeu” o prego da fer-
por falta de uma ferradura, perdeu-se um radura e atrasou o cavaleiro levou ao fatídico de-
cavalo; sastre do desconhecido reino. Poderíamos ques-
por falta do cavalo, perdeu-se o cavaleiro; tionar, hipoteticamente, qual foi o infeliz ferreiro
por falta do cavaleiro, perdeu-se a batalha; que colocou a ferradura e, deste ponto, iniciar o
por falta da batalha, perdeu-se o reino!” provérbio. Também poderíamos conjeturar que o
cavaleiro estava com pressa e, por isso, não permi-
O provérbio medieval, acima citado, retrata tiu que o ferreiro executasse adequadamente seu
um dos princípios elementares da teoria do caos. ofício. Poderíamos ficar neste torturante exercício
Neste contexto, pequenas perturbações, as quais ad nauseam, sem chegar a qualquer conclusão, já
se manifestam em condições iniciais, podem pro- que este procedimento é, por si só, o vicioso de-
duzir, a partir de múltiplas retroalimentações e sejo de se instaurar linearidade e, portanto, cau-
bifurcações do sistema, eventos em larga escala. salidade mecânica, a um paradigma que deve ser
Na atualidade, outra metáfora, apresentada por refletido por outras vias. Para isso, devemos ter
Edward Lorenz (1996), seria usada com mais fre- em mente que a estrutura inicial de um ser vivo
quência: o simples bater de asas de uma borbole- não pode determinar suas características além
ta, em algum recanto do planeta, pode produzir do momento inicial (escolhido arbitrariamente?)
catástrofes naturais em algum outro ponto. e que o mundo seria moldado sempre de acordo
A ciência clássica, arregimentada por Galileu com os tipos de ações, das mais “simples” às mais
Galilei e consolidada magnanimamente por Isaac “complexas”, às quais nos engajamos momento a
Newton, se preocupou em adequar, sempre que momento.
possível, os eventos naturais em sistemas fecha- Ainda não se sabe, em todos os detalhes,
dos, logo, em leis mecânicas que privilegiassem a como o cérebro consegue transformar padrões
previsibilidade do fenômeno em detrimento das neurais em padrões mentais. Mas à semelhança
não-linearidades. Além disso, sistemas naturais de Damásio (2000), Johnson (1987), Lakoff (1987),
que não pudessem ser compreendidos por leis Maturana (2001), Rorty (1989), Searle (1995), Va-
mecânicas, não mereciam atenção da comunida- rela et al. (2003), concordamos com a tese de que
de científica que se formou ao redor deste para- o cérebro não registra ou espelha simplesmente,
digma. A tradição filosófica ocidental sempre se o mundo externo como uma fotografia tridimen-
preocupou em aparar estas “arestas” epistemico- sional, mas constrói uma representação interna
-ontológicas no intuito de angariar previsibilidade dos eventos físicos em acordo com experiências
e, consequentemente, “segurança cognitiva” na sensórias e motoras. Neste contexto, quando ela-
observação dos fenômenos a serem explicados. boramos um conhecimento, estamos construindo
Seria inconcebível compreender os eventos do um mundo singularizado que surge em parceria
mundo, sejam eles naturais, biológicos, sócio-po- com o ambiente. É um mundo que convocamos
líticos ou psicológicos, através de “micro leituras a ser em nossa experiência interativa com o que
regionais”, singulares, e sem uma “fundação cog- está fora, mas não separado de nós.
nitiva” objetivamente sólida. Referindo-se à com- Questionamos os tradicionais conceitos de
preensão dos processos cognitivos, observamos organização dos seres vivos que encontram fun-
uma arraigada “ansiedade cartesiana” que subjaz damentação epistemológica nos alicerces cultu-
à cultura ocidental, alegando que “ou se têm uma rais promulgados por uma “modernidade” cien-
base fixa e estável para o conhecimento, um pon- tífica. Neste contexto, o conceito de organização
to onde o conhecimento se inicia, se baseia e se é sustentado pela crença de que a estrutura e o
apoia, ou não se pode escapar de um certo tipo funcionamento do sistema possuem padrões de
de escuridão, caos e confusão” (Varela, Thomp- formação e de evolução definidos, os quais, por
son & Rosch, 2003, p. 149). sua vez, confeririam identidade ao sistema. Por
Ora, caso retomemos o provérbio citado, outro lado, ao aceitarmos que os sistemas vivos
bem poderíamos continuar a desdobrá-lo, apre- se definem por uma singularidade constitutiva, os
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consideramos sujeitos a processos auto-organi- não deve ser considerado em um sentido pejora-
zadores, já que não possuem padrões de forma- tivo, já que em um contexto construtivista, a base
ção e de evolução rigidamente predeterminados. do desenvolvimento afetivo-cognitivo é intrinse-
Sistemas auto-organizados estão sujeitos à cons- camente proporcional em importância às futuras
tante emergência de novos estados, como se ao etapas que se sucederão. Todavia, neste período
abrirmos determinada porta se inaugurasse um inicial do desenvolvimento, o bebê está tecendo
novo horizonte de portas as quais, por sua vez, as bases estruturais de sua capacidade interativa
levariam a outro horizonte de portas. Esta metá- com mundo.
fora, um tanto frenética, apenas retrata um siste- c) Sendo “menos organizado”, possui menos
ma dinâmico afastado do equilíbrio ou, mais su- “peso estrutural”, logo, é muito mais vulnerável
cintamente, um estado de comportamento caóti- aos estímulos do ambiente, sejam eles quais fo-
co. Nesta linha, Varela et al. (2003) nos oferecem rem. Pelo termo “peso estrutural”, queremos
razoáveis hipóteses de que não devemos mais nos referir à densidade das fronteiras do sistema
considerar o funcionamento do sistema nervoso que vão sendo estabelecidas no processo de de-
como um processador de informações organizado senvolvimento. Um sistema estruturado delimita
por um aparato de inputs-outputs. Este sistema, suas fronteiras com o ambiente, possuindo por
apresentado na década de 60 do século passado isso condições de assumir uma distinção em re-
por defensores do cognitivismo simbólico, seria lação ao meio. A criança, ao ingressar na lingua-
mais adequado para explicar o funcionamento gem, possui uma ferramenta de seleção mais efi-
de máquinas triviais, como um computador, aos ciente, podendo se defender com maior eficácia
quais recebem estímulos pelo teclado e o mouse da aleatoriedade dos estímulos que a circundam.
(inputs) e se comportam de acordo com o pro- Em outros termos, possui fronteiras que visam
grama executado (output). Sendo assim, os seres lhe oferecer maiores condições de se proteger
humanos, enquanto organizações vivas e, portan- do ambiente. A palavra “NÃO”, dita aos berros, é
to, não triviais, poderiam ser compreendidos por menos ambígua do que movimentos corporais ou
leituras que o considerem enquanto sistemas que o choro, que querem dizer a mesma coisa nesta
funcionam através de uma rede emergente, que situação hipotética, mas que pode não ser o caso
opera de acordo com uma clausura operacional e, em muitas outras situações. Logicamente, a com-
por isso, gozam de uma autonomia constitutiva. preensão de expressões corporais e guturais, que
Para maior aprofundamento deste tema, significam analogamente um determinado termo
buscaremos apresentar algumas reflexões a par- linguístico, será dependente do grau satisfatório
tir do estágio sensório-motor, apresentado por de acoplamento que o bebê estabelece com o
Piaget (1978) em sua epistemologia genética. O “sistema cuidador”, seja ele a mãe, o pai, a babá,
estágio sensório-motor deve ocupar um lugar pri- os avós, a instituição cuidadora, etc. Podemos
vilegiado em nosso estudo devido a alguns fato- dizer que a linguagem falada exige “menos sen-
res que apresentaremos a seguir: sibilidade” dos sistemas cuidadores, oferecendo
maiores possibilidades de a criança ter seus limi-
a) o desenvolvimento cognitivo-afetivo se tes respeitados.
faz, primeiramente, por meios de ações sensório- d) Se, por um lado, a aleatoriedade dos estí-
-motoras, já que os recursos simbólicos irão se mulos provindos do mundo produz originalidade
desenvolver decorrente da natureza qualitativa e “aumento” da complexidade do sistema, por
desta exploração sensória e motora. Isto lhe dá outro lado, também pode ser fonte de “encou-
um status de “base cognitiva-afetiva” e, conse- raçamento” do organismo, já que se trata de um
quentemente, exercerá a função de alicerce para período de maior permeabilidade. Do período
as futuras etapas que irão se estabelecer neste pré-natal ao estágio de aquisição da linguagem
contínuo processo de transformação de “esque- simbólica, a criança possui poucas ferramentas
mas de ação”. para lidar com estímulos agressores.
b) Juntamente com o período de desenvol- e) Também devemos ampliar a compreen-
vimento pré-natal, o estágio sensório-motor é o são semântica e conceitual do termo “sensório-
menos “organizado”, tanto cognitivamente quan- -motor” a partir de seus referenciais teóricos
to afetivamente1. O termo “menos organizado” apresentados na teoria piagetiana, e isto por um
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motivo relativamente óbvio. Quando nos referi- getiana, estamos evocando conceitualmente um
mos, por exemplo, a um termo como “a priori”, arcabouço teórico específico e que compreende
devemos estar atentos a sua amplitude semân- fronteiras epistemológicas bem delimitadas. To-
tica. Como se sabe, este termo possui concei- davia, como podemos ampliar conceitualmente
tualmente um lugar central na Crítica da Razão a proposta piagetiana em considerar o estágio
Pura de Imanuel Kant (1988) e requer, metodo- sensório-motor não só enquanto uma das etapas
logicamente, um rigor específico em seu manejo. de construção da cognição, mas na arregimenta-
Com certeza, tal termo ainda continua a possuir ção permanente da totalidade de nosso ser? Será
em seu leque de significados a ideia de se refe- que a criança, ao “ultrapassar” esta fase por volta
rir a algo ou a alguma situação antes de qualquer dos dois anos, deixa-a de fato para trás na forma
outra. Contudo, devemos relevar que tal termo de “organização transcendente” de outros esque-
assume uma complexidade específica de acordo mas de ação2? Proporemos oportunamente algu-
com o volume significativo incorporado em de- mas reflexões que visam problematizar e ampliar
terminado contexto teórico. Da mesma maneira, significativamente o termo “sensório-motor” em
quando nos referimos ao termo “sensório-mo- sua conotação piagetiana.
tor”, de acordo com a epistemologia genética pia-
O estudo das cores oferece um sólido su- em uma determinada área. Caso não consigamos
porte neurocientífico para o estudo da percep- ver o verde, por exemplo, gerado pela diferença
ção por ter sido exaustivamente investigada por entre os sinais receptores de onda longa e média
neurocientistas, psicólogos, linguistas, filósofos e que forma o canal vermelho-verde, nossa percep-
cientistas da IA, além de ter uma significação per- ção não estaria funcionando adequadamente. To-
ceptiva imediata na vida de qualquer ser humano. davia, como os autores acrescentam, “se de fato
Em primeiro lugar devemos perguntar: como as medirmos a luz refletida a nossa volta, descobri-
cores aparecem? Inicialmente foi detectado que remos que simplesmente não existe uma relação
existem três canais de cores no sistema visual: entre o fluxo de luz de vários comprimentos de
onda e as cores que vemos nas diferentes áreas”
“um canal é acromático e indica diferenças (Varela, et al., 2003, p. 165). As cores poderão
no brilho. Os outros dois são cromáticos e in- manter esta coerência psicofísica se forem obser-
dicam diferenças nos matizes (...) Na retina vadas isoladamente. Todavia, em cenas comple-
existe três mosaicos diferentes, mas entre- xas, como o próprio mundo que se desvela aos
mesclados, de células cone, cujas curvas de nossos olhos, o verde continuará a ser verde mes-
absorção de fotopigmentos sobrepostos têm mo que refletir mais luz de ondas longas e curtas
seu pico em torno de 560, 530 e 440 manô- do que ondas médias. Esta independência entre
metros, respectivamente. Esses três mosai- luz e cor se deve a dois fenômenos:
cos de cones constituem os chamados re-
ceptores de onda longa, onda média e onda Constância aproximada das cores – apesar
curta. Os processos excitatórios e inibitórios das grandes mudanças de iluminação, as cores
das células pós-receptoras possibilitam que permanecem constantes.
os sinais desses receptores sejam compara- Contraste simultâneo das cores – duas áreas
dos por acréscimo e-ou subtração” (Varela, que refletem a luz da mesma composição de es-
et al., 2003, p. 164). pectro podem ter cores diferentes, dependendo
do meio onde ela está localizada.
Sucintamente, observamos que destas rela-
ções psicofísicas surgem as cores. Mas seriam as Logo, como Varela et al. (2003) acrescentam:
cores atributos percebidos das coisas do mundo?
Inicialmente, podemos deduzir, com ajuda dos “Esses dois fenômenos nos levam a concluir
autores, que se vemos uma cor específica, há que não podemos considerar nossa experi-
uma determinada quantidade de luz incidindo ência de cores como um atributo das coisas
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Compreender o desenvolvimento psicoge- pesquisa. Sendo assim, todos nós, enquanto par-
nético humano enfatizando a singularidade des- ticipantes de uma “mesma” humanidade, deverí-
te processo não foi o foco das pesquisas de Pia- amos experimentar o desenvolvimento de nossas
get (1978). Ainda que não desconsiderasse este habilidades cognitivas de forma “inexoravelmen-
fator, não o relevou enquanto norteador de sua te” herdada e sendo desdobrada em três estágios
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primeiro grupo comportavam-se com muito mais na ao construtivismo piagetiano. Ora, mas o mun-
desenvoltura sensório-perceptiva do que os gati- do não é assim tão controlado, tão artificial. Ain-
nhos que tinham sido carregados. Estes pareciam da que tenham a mesma idade, são filhos de pais
que estavam “cegos”, já que estavam trombando diferentes e, portanto, possuem uma estrutura
constantemente em objetos, além de não possuí- genética-biológica distinta, assim como são edu-
rem a firmeza nos membros, como os gatinhos do cados em contextos socioculturais que se organi-
primeiro grupo possuíam. O que podemos consi- zaram e continuam a se organizar de forma dis-
derar desta experiência, de acordo com os pres- tinta. Ainda que realizem os “mesmos” esquemas
supostos de uma teoria cognitiva incorporada, é a de ação como, por exemplo, empilhar pequenos
ideia de que “ver o mundo” não consiste apenas cubos, as ações sensório-motoras são condizen-
em extrair traços visuais, mas guiar visualmente tes a uma singularidade estrutural. Piaget já havia
uma ação sensório-motora dirigida a eles. Não mencionado sobre estas peculiaridades que cada
há percepção sem ação no real, sem movimento, criança apresenta. No entanto, o estudo destas
sem comportamento efetivo-afetivo que especifi- peculiaridades enquanto via mestra de pesquisa,
ca e configura “nosso” mundo. Sendo assim, cada assim como averiguar as proporções que elas as-
mundo é, em última instância, um mundo singu- sumiam para se retratar a complexidade humana,
larmente construído na história cognitiva de aco- foi severamente desconsiderada.
plamentos estruturais. Para autores como Edgar Morin (2003), a
Em busca de elementos que sustentem uma construção do real se faria na recursividade entre
observação empírica da comunicação, Lakoff e uma computação lógica, a qual permitiria a dis-
Johnson (1987) também pontuam a importância tinção, e por associação analógica, que, por sua
do corpo para a linguagem ao identificar que “as vez, permitiria a significação. Estas seriam opera-
experiências básicas da orientação espacial hu- ções distinguíveis, mas que seriam componentes
mana, oriundas da percepção visual, dão origens de uma circularidade constitutiva onde agiriam
a metáforas orientacionais, e que nossas experi- sobre si mesmas. Em um primeiro momento, ha-
ências com os objetos físicos constituem as bases veria assimilação do novo em ressonância com as
para uma variedade extremamente ampla de me- construções anteriores, oferecendo novas possi-
táforas ontológicas” (p. 15). Quando usamos uma bilidades de acomodação dos esquemas de ação.
expressão do tipo: hoje estou para “baixo”...estou Mas a partir do momento que aceitamos, na
“down”, observa-se consonância com uma postu- mesma proporção, uma capacidade intrínseca do
ra corporal encurvada, inclinada, pois a retração sistema afetivo-cognitivo de executar operações
corporal é típica da fisiologia da angústia, da de- sensório-motoras que se realizam por “encaixes”
pressão. de significação, devemos aceitar uma especifici-
Oferecendo suporte neurobiológico a este dade constitutiva a cada nova experiência que os
posicionamento, as áreas do córtex cerebral, as- sistemas executam. Neste sentido, todas as inte-
sociadas com processamentos cognitivos supe- rações de sistemas viventes não podem ser con-
riores, são mais receptivas que outras partes do sideradas como meras resoluções de problemas.
cérebro ao crescimento neural relacionado ao en- Qualquer comportamento sensório-motor deve
riquecimento ambiental. Em outros termos, ain- ser compreendido segundo a história de intera-
da que o cérebro possua uma macro-organização, ções de cada criança e não enquanto uma ação
produto de uma complexa evolução filogenética, desencarnada que é dirigida ao objeto. Ainda que
o córtex cerebral apresentará variações em suas realizem esquemas de empilhar e, sendo assim,
microestruturas, as quais são formadas por expe- compartilham de uma organização psicogenéti-
riências intra-uterinas e, de fato, em todo o ciclo ca compatível com as capacidades constitutivas
vital. determinadas por um processo evolutivo que
Quando colocamos duas crianças exatamen- respeita uma cronologia neurocognitiva e fun-
te da mesma idade para interagirem, observa- cional, deve ser relevada, em última instância, a
remos que elas executam ações mais ou menos singularidade constitutiva de cada “esquema de
condizentes ao seu estágio de evolução psicoge- empilhar”. Ainda que cada criança compartilhe
nética. Observaremos que elas executam ações de invariantes organizacionais, serão suas deter-
sensório-motoras que respeitam uma lógica inter- minações estruturais que darão o “tom” de suas
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mos que haverá sempre uma violação do sistema Domínio das interações destrutivas: Nes-
auto-organizador quando for interrompido ou ul- te domínio, haverá modificações estruturais que
trapassado o limite da capacidade de mudanças levarão à perda da organização do sistema. Ima-
estruturais de cada indivíduo. Ao respeitarmos ginemos que as crianças estão brincando com
esta singularidade construtivista, fica mais sim- cubos de chumbo. Imaginemos que o cubo mais
ples compreender por que uma pilha de cubos alto da pilha caia na cabeça da criança. Podemos
deve ser, em último sentido, sempre diferente da dizer que esta é uma real possibilidade de a crian-
outra. ça morrer e, consequentemente, perder sua or-
De acordo com Maturana (1998), o sistema ganização.
nervoso satisfaz as necessidades relacionais entre
estrutura e ambiente através de sua dinâmica de Quanto ao domínio das interações destru-
correlações internas, as quais observadores de tivas, devemos fazer uma digressão, já que Ma-
segunda ordem percebem enquanto ações sen- turana e Varela não cumprem satisfatoriamente
sório-motoras. Assim assegura: nossas intenções de compreender, em outra es-
cala, a destruição (adoecimento) do sistema vivo.
“a) um conjunto de correlações sensomoto- Bem sabemos que vida não se impõe desta forma
ras capazes de gerar as necessárias condutas em todos os momentos e que a destruição não se
recorrentes; revela sempre de forma tão crassa. Experimenta-
b) a possibilidade de novas correlações sen- mos situações “destrutivas” da vida e da saúde,
somotoras, ao admitir que as novas coinci- todos os dias, sem sermos levados, necessaria-
dências de relações internas de atividade mente, a situações agudas ou de perda imediata
que surgem das mudanças estruturais das de nossas organizações. Tampouco podemos con-
superfícies sensoriais do organismo dispa- siderar estas situações enquanto meras perturba-
rem mudanças estruturais locais; ções, já que podemos sofrer com processos crô-
c) e que estas últimas mudanças resultem nicos de interações destrutivas do sistema, que
em que configurações novas de perturba- podem levar a modificações estruturais internas e
ções substituam as configurações antigas de da conduta. Podemos considerar uma violação do
perturbações no disparar de sua correlação sistema vivo, especificamente ao processo de or-
diante às novas perturbações ambientais, re- ganização dos esquemas sensório-motores, quan-
correntes ou não” (Maturana, 1998, p. 46). do o genitor agride o filho física ou verbalmente
quando este não organiza os cubos da forma que
As relações com o meio, que devem ser de- sugere sua própria capacidade de organização e,
terminadas pelas possibilidades estruturais de portanto, de sua história ontogênica. Devemos
cada indivíduo, podem gerar dois domínios os considerar que todo o processo de agressão que
quais queremos ressaltar: incide sobre as estruturas vivas leva-as a estabe-
lecer , mais ou menos, interações destrutivas com
Domínio das perturbações: de acordo com o meio.
nosso exemplo, a criança poderá “flutuar” em sua Toda organização autopoiética possui um
relação com os cubos, gerando modificações in- limiar de tolerância quanto às perturbações que
ternas ou, em termos piagetianos, assimilando, recebem do meio externo ou interno. Estas in-
acomodando e organizando suas experiências, terferências são passíveis de observação por se-
de forma que possa adaptá-las a outras situações rem, exatamente, perturbações que incidem e
etc. Podemos considerar que as mudanças de es- geram transformações materiais, sendo que estas
tado são processos inexoráveis de aprendizagem transformações nos informam, em parte, sobre
e, sendo assim, da permanente acomodação e a qualidade destas perturbações. Qualquer per-
“transcendência” de esquemas, a princípio, sen- turbação que ultrapasse o limiar suportado por
sório-motores. Em último sentido, a criança man- determinada organização incorrerá em adoeci-
tém sua organização, ainda que mude sua estru- mento e, em casos extremos, na desintegração
tura de assimilações e acomodações ao interagir do sistema. Neste sentido, não podemos desme-
com os cubos. recer o papel das perturbações nocivas que de-
sencadeiam inúmeros processos de adoecimento
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Considerações finais
Como argumenta Damásio (2000), o sentido complexo banco de dados, representado pela
de “eu” (self) em nossa consciência “muda con- memória dos fatos e objetos que permeiam qual-
tinuamente conforme avança no tempo, mesmo quer existência singular. Estes dados podem ser
que conservemos uma impressão de que o self reativados e, neste sentido, oferecerem uma apa-
permanece o mesmo enquanto nossa existência rente “permanência” de nossa identidade. Logo,
prossegue” (p. 278). Ora, parece que Damásio um funcionamento minimamente satisfatório da
chegou à compreensão, por outras vias, do que consciência requer a preservação das estruturas
o filósofo grego Heráclito já havia intuído há 2500 neurológicas envolvidas nesta complexa “dança”
anos, ou seja, o ser não é mais nem menos do que entre um “presente permanente” que escoa dian-
o não-ser e o “verdadeiro” se revela apenas en- te de nossos sentidos e de nossa extensa cadeia
quanto a unidade dos opostos. Nos dizeres de He- de construções alojadas em nossa memória. Sem
ráclito tudo flui, nada persiste, nem permanece o a memória biográfica não teríamos a noção de
mesmo; o devir é e também não é. Daí Heráclito passado, futuro e “intencionalidade” diante dos
compara o fluxo da vida com a corrente de um eventos que surgem a cada momento diante de
rio, que não se pode entrar duas vezes na mesma nossos sentidos. Mas sem a narrativa da consciên-
corrente. cia central, não teríamos nenhum conhecimento
Damásio (2000) alega que as estruturas res- do momento. Logicamente, a consciência central
ponsáveis pela “permanência” da consciência e precede a consciência ampliada. Como bem sa-
de um sentido de “eu” e, por outro lado, do per- bemos, houve um longo período de maturação
manente fluxo da consciência que leva o “eu” a orgânica e civilizatória para que o homem se or-
se atualizar, são sustentados por estruturas neu- ganizasse na linguagem, e assim também o é,
rológicas diferentes. O eu sempre em mudança é analogamente, no processo de desenvolvimento
o sentido de um self central. Este self não muda, ontogenético.
mas é transitório, efêmero, precisa ser refeito, Estas duas “instâncias conscientes” parecem
precisa renascer continuamente, e são as cons- se organizar recursivamente no sentido de ofere-
tantes explorações sensório-motoras as quais a cer uma experiência consciente unificada. Neste
criança vai ampliando em seu processo de desen- sentido, o presente, o momento, são devedores
volvimento que organizam a consciência central. da biografia, já que o presente parece se organizar
Por sua vez, o sentido de “eu” que “permanece” na simultaneidade das possibilidades intencionais
é o self autobiográfico, isto por se basear em um alojadas na memória afetivo-cognitiva. Damásio
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“Quando o “eu” percebe que não contro- Um determinado caminho só existe porque
la tudo, pode haver pane no sistema como ele é aberto com o caminhar. Ainda que possamos
um todo; contudo, muitas das produções trilhar caminhos abertos por outros, as pegadas
psíquicas acontecem justamente nos hiatos que deixamos neste caminhar terão, em última
caracterizados pela falta de controle total instância, as marcas de nossa singularidade. Da
do ego. Nos apegamos às representações mesma maneira, ainda que o processo evolutivo
egóicas e recusamos a ideia de modificação. psicogenético apresentado por Piaget “respeite”
Compreendemos que uma certa desordem uma lógica interna aos organismos e que corres-
é necessária, mas, afetivamente, resistimos ponda (match) à invariantes funcionais comuns a
à ideia até o último segundo. Sem mudan- todas as estruturações de que os organismos hu-
ças, os processos psíquicos vão aderindo ao manos são capazes, enfatizamos que não foram
real, e, sem imaginação, não se criam novos relevados os mecanismos que, em seu sentido
significados; em suma, se não há reciclagem “fino”, se alicerçam por encaixes (fit) decorrentes
do “eu”, as experiências novas adquirem ca- de uma singularidade ontogênica.
racterísticas de um filme já visto. Caso con-
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Notas
(1) Pelo termo “organização” reflitamos sobre a seguinte imagem: uma xícara de café que cai e se que-
bra evidencia a passagem de um estado de maior ordem para a desordem. Todavia, nunca se foi ob-
servado o contrário, ou seja, a xícara se recompondo, o que constituiria uma evolução de um estado
de maior desordem para uma maior ordem. Em “sistemas abertos”, como as organizações humanas,
consideramos que partimos de estados de maior desordem afetiva-cognitiva .
(2) Vejamos um comentário de Damásio (1996, p. 265). “Uma outra fonte de ceticismo vem da noção
de que o corpo teve efetivamente relevância na evolução do cérebro, mas que está ‘simbolizado’ de
forma tão profunda na estrutura do cérebro que já não necessita fazer parte do ‘circuito’. Concordo
que o corpo está bem ‘simbolizado’ na estrutura cerebral e que esses ‘símbolos’ podem ser usados
‘como se’ fossem sinais corporais reais. Mas prefiro pensar que o corpo se mantém no ‘circuito’ por
todos os motivos apontados.
(3) Não devemos desconsiderar as valorosas contribuições de Vygotsky e Luria (1996), as quais “pro-
blematizaram” a compreensão deste complexo processo de desenvolvimento humano e, portanto,
acrescentando importantes elementos que relevavam a vital importância do contexto sociocultural na
construção deste processo.
(4) Alertamos o leitor para a complexidade semântica deste termo. Citemos algumas e, por sinal, acei-
tamos a todas. Vejamos: SENTIDOS – referindo aos cinco órgãos dos sentidos; SENTIDOS – enquanto
compreensão linguística, de significação; SENTIDOS – orientação no tempo e no espaço; SENTIDOS
– enquanto rede de emoções-afetos que “sentimos” ao estarmos incorporados na experiência vivida.
(5) Todavia, Damásio parece desconhecer a obra de Piaget, já que não situa adequadamente o pro-
cesso de manuseio dos objetos a partir de acomodações e generalizações dos esquemas de ação.
Em outros termos, o manuseio do martelo não se limita somente ao passado das experiências com o
martelo, mas também com esquemas de ação mais primitivos de “bater”, por exemplo, que seriam
exercitados com outros objetos e em diferentes situações emocionais.
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