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A PRODUÇÃO DA SEXUALIDADE
NORMAL/ANORMAL
Psicóloga, Psicanalista membra do Círculo Psicanalítico do RGS, Pós-doutora em Estudos de Gênero na UCES,
Argentina, Mestre em Educação (UFRGS), Doutora em Educação (2007), Professora e Pesquisadora na Universidade
Feevale, onde atua no Curso de Psicologia e no Programa de Pós Graduação em Diversidade e Inclusão. E-mail: de-
nisequaresma@feevale.br
tadas no presente texto vêm se fundamen-
tando ultimamente dentro desta perspectiva
da análise e tem seu início a partir de um
estudo com adolescentes grávidas em situ-
O s temas da sexualidade, da educação
sexual e das diversidades de gênero estão
ação de risco social, que revelou as limita-
ções das famílias para dialogar sobre sexu-
alidade (QUARESMA DA SILVA, 2007). Na
ocupando crescentemente diversos espa- seqüência, desenvolveu-se uma pesquisa
ços da mídia, da política, da academia e da institucional onde foram entrevistados/as
sociedade civil brasileira. A amostra mais professores/as e estudantes das escolas pú-
evidente da extensão destes temas pode blicas municipais de ensino fundamental da
ser a atual polêmica dentro e fora do Con- cidade de Novo Hamburgo/RS, objetivando
gresso Nacional sobre a pertinência de uma analisar as práticas de educação sexual e a
proposta do Ministério da Educação para sua transversalidade no currículo escolar.
incluir temas de homofobia e que dizem Nesta direção, examinar as práticas de edu-
respeito - a diversidade da instrução da cação sexual com uma perspectiva de
educação sexual nas instituições gênero nas instituições escolares
escolares. A articulação des- de nível fundamental em Novo
te debate e seus desenlaces Hamburgo/RS significa re-
confirmam a consolidação velar as pedagogias de gê-
da educação sexual como nero que ali são articula-
um campo de interesses das, descrever o que elas
e lutas, onde diferentes ensinam sobre como
discursos participam ser homens e mulheres,
de uma disputa política analisar os discursos
de gênero e sexualida- de gênero que circulam
de que envolve relações nestas práticas, verificar
desiguais de poder por como são significadas,
legitimar ou estigmatizar representadas, valoriza-
algumas identificações e das e ordenadas diversas
práticas (FURLANI, 2008). identidades e quais homens
Estes enfrentamentos des- e mulheres são legitimados, es-
tacam um acentuado interesse tigmatizados e marginalizados.
pela educação sexual que transcen- Concluiu-se, através das análises das
de a preocupação pela higiene do corpo, a entrevistas, que, quando as/os professoras/
prevenção do HIV/AIDS, o aumento da gra- es explicam a importância e a finalidade da
videz na adolescência e o início cada vez educação sexual, destacam preocupações e
mais cedo das relações sexuais. Falam propósitos que não tem a ver somente com
de um acentuado interesse por pro- a prevenção das doenças e da
duzir ou não corpos e subjetivida- gravidez entre as adolescen-
des ajustados aos ideais sexuais tes. Em suas explanações
e de gênero pre- se evidenciam que nas
dominantes. práticas de educação se-
As indaga- xual se ensina muito mais
ções apresen- do que órgãos e partes
como o encontro do social e do individual,
formando a teia que constitui o sujeito e
se manifesta nas suas relações, na práxis.
Reiteramos a importância de (re)conhecer
como se institucionalizam as práticas so-
ciais, visto que estas são responsáveis pela
transmissão de valores incorporados nas
subjetividades.
Não podemos pensar em relações que se
efetivem [entre sujeitos] que não estejam
inseridas em determinado contexto, e que
não sofram influência deste. Neste sentido,
as subjetividades, são compostas de deter-
minantes estruturais e singularidades. As-
sumimos a concepção de que aquilo que
se traduz nas interações entre sujeitos é o
reflexo de valores culturais internalizados
no processo de socialização, embora nas re-
lações se expressem de forma única. Desta
forma, assumimos a posição de que o gê-
nero, na construção das subjetividades se
efetiva nas interações singulares, no âmbito
social, cada caso se configurando de forma
única, mas tendo como ‘pano de fundo’, as
práticas histórico/culturais onde os sujeitos
se constituem. Postulamos que toda educa-
ção é sexual e que a educação sexual consti-
tui um espaço onde circulam identidades de
gênero valorizadas e desacreditadas e, para
este propósito, são ativadas diversas táticas
regulamentares para registrar nos corpos
características de gênero e sexualidade legi-
timadas e dominantes na lógica heteronor-
mativa.
do corpo, muito mais do que como colocar Louro (2010) afirma:
um preservativo, muito mais do que infec-
ções de transmissão sexual. Acompanhando
estes temas, circulam discursos e represen-
O ato de nomear o corpo acontece no
tações sobre gênero e sexualidade, que in-
interior da lógica que supõe o sexo como
dicam como devem ser homens e mulheres um ‘dado’ anterior à cultura e lhe atribui
e quais comportamentos, atitudes, gestos e um caráter imutável, a-histórico e biná-
práticas sexuais são adequadas para cada rio. Tal lógica implica que esse ‘dado’
um (QUARESMA DA SILVA, 2011). sexo vai determinar o gênero e induzir
a uma única forma de desejo (p. 15).
As reflexões apresentadas neste texto
podem ser úteis para justificar ações diri-
gidas, sensibilizar e implicar a todos/as no
questionamento das suas práticas cotidia-
nas sobre como nos posicionamos frente à
questão da sexualidade humana, na análise
dos efeitos de inclusão-exclusão, aceitação-
-discriminação, legitimação-desaprovação e
normalidade-aberração que nossas postu-
ras produzem. Entendemos a subjetividade
Neste sentido, Roudinesco (2003) destaca
que “quando se considera que o sexo anatô-
mico prevalece sobre o gênero, a unidade se
esfacela e a humanidade é dividida em duas
categorias imutáveis: os homens e as mulhe-
res. As outras diferenças são então despre-
zadas ou abolidas” (p. 117).
Diversas instâncias (escola, família, lei,
igreja, mídia, ciência, cinema, organizações)
participam ativamente e suportam esta ló-
gica para produzir os corpos e as subjetivi-
dades, acordes à norma que privilegia a he-
terossexualidade. Nessas instâncias, podem
ser desconstruídos processos articulados
que privilegiam identidades e práticas he-
gemônicas enquanto negam, desvalorizam
e marginalizam outras identidades e prá-
ticas. Louro (2010) descreve este “fazer os
corpos” como um trabalho pedagógico inin-
terrupto, reiterado e ilimitado que é desen-
volvido para inscrever nos corpos o gênero
e a sexualidade legítimos.
Referimos as pedagogias culturais que
nos ensinam hábitos, formas de comporta-
mentos e valores através de diferentes arte-
fatos como os filmes, a moda, as revistas, os
programas de televisão, a literatura, a publi-
cidade e a música. Através das pedagogias
de gênero se ensinam quais comportamen-
tos se devem valorizar, quais atitudes e ges-
tos são adequados para cada gênero, bem
como se deve ser e fazer (LOURO, 2008).
Quando falamos destas identificações
ensinadas, valorizadas, permitidas e esti-
muladas, é impossível não ter em conta a
participação da mídia nesse processo, e,
especificamente, das revistas como mídia
impressa. As revistas, segundo Bassanizi
(1996):
[...] em qualquer
lugar em que existe
a possibilidade de tra-
duzir a experiência
e construir verdades,
mesmo que essas verdades
pareçam irremediavelmen-
te redundantes, superfi-
ciais e próximas ao lu-
gar-comum (p. 144).
A partir das pedagogias de gênero, se en-
sinam quais aparências corporais, compor-
tamentos, acessórios, atitudes e gestos são
mais ou menos adequados para cada gêne-
ro. Brincadeiras e brinquedos constituem
acessos efetivos para ir conhecendo os lu-
gares e destinos estabelecidos para homens
e mulheres na sociedade, na família e em
outros âmbitos. Sob constante orientação,
vigília e controle, meninos e meninas “esco-
lhem” como e com o quê brincar. É assim
que meninos e meninas se vão aproprian-
do de um conjunto de ‘mandamentos’ sobre
como devem ser homens e mulheres, para
obter aceitação e respeito.
Porém, é impossível nomear e descrever
o normal sem apresentar o anormal. Por em que são colocadas algumas identidades.
isso, circulam continuamente diversas re- Identidades estigmatizadas e demonizadas
presentações sobre gênero, tanto represen- pelo distanciamento com os ideais hegemô-
tações hegemônicas, tradicionais ou institu- nicos são produtivas, úteis, para evidenciar
ídas quanto representações desvalorizadas, os limites entre o respeitado e o desestima-
transgressoras, emergentes ou dissidentes, do. Toda matriz excludente:
resultando um universo de significados di-
versos, ambíguos, socialmente produzidos e
em conflito, mas com significativos efeitos
de inclusão-exclusão e aceitação-discrimina-
ção.
Ao se falar de identidades valorizadas
nas diversas instâncias sociais, se abre es-
paço para as identidades desacreditadas,
indicando o que não pode ser: o punido, o [...] pela qual os sujeitos são formados
proibido, mesmo que nunca seja enunciado exige, pois, a produção simultânea de um
verbalmente. Ao se ignorar, ao se fazer de domínio de seres adjetos, aqueles que
ainda não são “sujeitos”, mas que for-
conta que não existe, se define o lugar mam o exterior constitutivo relativamen-
te ao domínio do sujeito (BUTLER, 2010,
p. 155).
Esta autora evidencia o caráter relacio- em ensinar como os homens heterossexuais
nal e complementar das representações de devem procurar e obter prazer (CÂMARA,
identidades que circulam culturalmente: 2007), enquanto outras oferecem lições so-
o que somos se define a partir do que não bre como ser homossexuais (LOPES, 2011).
somos. Examinar as identidades de gênero Os centros de tradição gaúcha investem em
sem ignorar esta particularidade, multiplica ensinar como ser um verdadeiro homem
as possibilidades de problematizar as lutas gaúcho (NUNES, 2003). Filmes infantis cons-
por legitimação que se estabelecem entre as tituem recursos pedagógicos para garantir
identidades. Sendo assim, representações a heterossexualidade como norma (SABAT,
de feminilidades se encontram interligadas 2003). Um programa de TV desenvolve uma
com representações de masculinidades, re- pedagogia amorosa/sexual (SOARES, 2007)
presentações hegemônicas de feminilidades e um programa social ensina as crianças a
indicam as feminilidades estigmatizadas e viverem em família de determinadas formas
novas masculinidades revelam o menospre- (FERNANDES, 2008).
zado nas masculinidades tradicionais. Estes autores/as assumem que podemos
Numerosos estudos vêm mostrando que encontrar pedagogias culturais em “qual-
ao pensar em pedagogias podem ser múlti- quer instituição ou dispositivo cultural que,
plos os espaços onde elas podem articular. tal como a escola, esteja envolvido em cone-
Além do espaço propriamente escolar, en- xão com relações de poder no processo de
contramos, em diferentes locais e contextos, transmissão de atitudes e valores” (SILVA,
as mais variadas e singulares pedagogias, 2000, p. 89). Estas produções teóricas têm
muitas delas nomeadas como pedagogias possibilitado a extensão das noções de edu-
do gênero e da sexualidade. Em programas cação, ensino, aprendizagem, pedagogia
de educação em saúde se observam peda- e currículo para além dos contor-
gogias da maternidade (MEYER, 2003). Al- nos físicos das escolas.
gumas revistas estão muito interessadas
Nessa assertiva, ao finalizar este texto,
reiteramos a fundamental importância de
um exame crítico de como todos/as esta-
mos permanentemente produzindo e sendo
produtos nas designações de gê-
nero e nas constituições subjetivas,
cabendo a cada um se perguntar: o que
significa ser homem ou ser mulher? Que
coisas são designadas como sendo de ho-
mem ou de mulher? Existem
coisas que um homem pode
fazer que uma mulher
não possa ou vice-ver-
sa? Como aceito a di-
versidade de escolhas
sexuais para além da determinada
em minha cultura como sendo a cor-
reta? O que é normal ou anormal
no campo da sexualida- de na minha
família, na minha cida- de, na minha
vida?
REFERÊNCIAS
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