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De Wolverine a Oxóssi – O pop e os arquétipos de humano

Não é mais novidade o que a cultura pop tem feito a partir de diversos
arquétipos universais. São super-heróis, bandidos, mulheres
excepcionais, homens desfigurados que passeiam através da música,
dos quadrinhos, do cinema, da TV, expressando tanto o horror quanto o
fascínio que o imponderável exerce sobre nós.
As bruxas medievais davam calafrios somente em pensar nas poções e
nos feitiços por elas realizados. Os alienígenas são desenhados nos filmes
a tal ponto, que projetamos neles a crueldade tipicamente humana
(até onde se sabe, somente humana), os imputando um desejo de
invasão do planeta, como se fossemos uma espécie de Iraque destes
seres de outra esfera planetária. Aqui na Terra mesmo, os arquétipos
humanos sobressaem nas ficções como resultado da apreensão mítico-
religiosa ou da criatividade de escritores, em múltiplos meios de arte,
que criam seres em que estão contidos elementos de representações
coletivas sobre fenômenos manifestos e capturados pela consciência
(ou seria inconsciência?) e fixados como símbolos de tensão e/ou
explicação do mundo.
Werewolf é o termo em inglês para designar lobisomem, esta criatura
que se constitui num ser meio homem meio lobo (e que não é nem uma
coisa nem outra) aterrorizando desde a Idade Média os sonhos de
muitas pessoas. O werewolf é uma criatura advinda do universo dos
híbridos, cuja hibridização, por si só, já nos leva ao medo, pela falta de
pureza, de definição clara do seu pertencimento. O temor que o
lobisomem causa é similar aquele que nos dá o “marginal”. No limite
entre o aceitável de humanidade e “barbárie” (que me perdoem
germânicos, eslavos e outros descendentes dos bárbaros da
Antigüidade) o werewolf parece o “marginal”, no sentido de estar entre
o humano e o animal, como nós muitas vezes pensamos estes indivíduos
que nos deixam apreensivos por causa de sua capacidade de nos
surpreender e, mesmo, nos agredir. Se o marginal não é humano? Claro
que é. A comparação aqui se dá para perceber a semelhança de
sensações. “Quem com porcos se mistura, farelo come”. Esta expressão
designa o conselho das famílias para que o indivíduo não se envolva
com ninguém que pareça transitar entre limites de civilidade e de não-
civilidade. Os híbridos aí (mesmo não sendo lobisomens) alertam para
arquétipos de comportamento não aceitáveis socialmente. São
representantes de aspectos da cultura que deveriam ser contidos,
numa representação generalizada de mundo. O “marginal” (mesmo o
apenas usuário de maconha, ou rapaz meio afeminado que adentra
casa “de família”) não serve como exemplo razoável de ideal de
civilização, tal como o lobisomem; um ser entre perigoso e sexualmente
excitante, na sua lasciva busca por carne e sangue.
Wolverine (wolf continua sendo a partícula característica deste nome) é
o personagem da Marvel Comics, eternizado na obra X-Men, criação
de Stan Lee. O mutante (híbrido também) é aquele que, com um fator
de cura ilimitado, pode ser ferido e, mesmo como dor, em pouco
tempo volta à integridade, desapontando seus inimigos. Não fosse
apenas essa característica, de suas mãos, saem garras de um metal
fictício chamado adamantium, que podem fazer estragos quando o ser
em questão se sente ameaçado. Wolverine é uma espécie de animal
domesticado pela convivência com os X-Men. Sua origem remonta
experiências do governo norte-americano com um projeto chamado
Arma X. Wolverine era a própria arma. Jogado entre lobos e perigos no
frio e em condições adversas, o personagem foi induzido a um estado
animalesco para desenvolver suas qualidades inatas de instinto e sede
de matar. Ao voltar para a civilização, mantém latentes estas
potencialidades, e tal e qual o Werewolf, se transforma em expressão
de raiva quando desafiado. Sua oscilação também se dá entre a
natureza (instintiva e com regras livres dos padrões humanos) e a
cultura, em que assume o perfil de um misantropo avesso ao
comportamento social aceitável. Entre Wolverine e o Werewolf, não
apenas o prefixo lobo (wolf) é o ponto em comum.
Ogum e Oxóssi são duas divindades do panteão iorubano, cultuados no
Brasil, no Candomblé e na Umbanda. São deuses que representam a
passagem do homem histórico da animalidade para a humanidade.
Ogum é o desbravador, antigo deus da caça e posteriormente o
construtor dos impérios do metal. Nos mitos mais correntes, é o
sanguinário guerreiro, que corta com sua espada as cabeças daqueles
que o desagradam. Uma espécie de cruzado cristão medieval sem o
interesse de catequização ou de reconquista de Jerusalém. A sua
catequese é a conquista em si. Ogum é o rei da/na guerra. Aquele que
abre os caminhos, estabelecendo, ao quebrá-los, os limites. Ogum
determina o antes e o depois do Homem a partir de suas armas de
metal.
Oxóssi é irmão de Ogum. Aprende com ele as artes da caça e se
especializa nesta atividade. Enquanto Ogum constrói estradas, ligando
limites, Oxóssi embrenha-se na mata, providenciando alimentos. É a
animalidade no seu sentido profundo. Mas Oxóssi (também chamado
de Odé, o caçador), é um híbrido, na medida em que se transforma em
rei, ao conquistar a região de Ketu, atingindo a supremacia. É animal
caçador, na mata e homem soberano, na civilização. Oxóssi é aquele
que imita o som dos animais para melhor se aproximar e caçá-los, e ao
mesmo tempo, é a personificação da realeza sutil e bela. Enquanto
Ogum não se apodera (no sentido de saborear o poder), pois está
sempre em busca de novas estradas, Oxóssi está na mata, como animal
que também é e está na civilização, como rei que se tornou.
Ogum e Oxóssi são duas animalidades transmorfas em civilização.
Werewolf e Wolverine são duas animalidades que se integram e, ao
mesmo tempo, se afastam do mundo civilizado. Wolverine tem a
faculdade de sentir os cheiros de maneira mais aguçada que nós,
humanos. Oxóssi aprende o som e o cheiro dos animais para torná-los
presa e posterior alimentação. Ogum e o Werewolf são temidos por seus
acessos de ira. Ogum quer conquistar pela guerra. O Werewolf mata
por instinto. Oxóssi vive marginalmente à civilização, na mata, e retorna
ao mundo da sociedade, trazendo o que o mundo não civilizado
fornece – alimento. Tanto Ogum, quanto Wolverine são tipicamente
estranhos aos olhos do comportamento sutil. Nenhum dos dois se
enquadra na idéia de educação como uma economia de pulsões.
Com isto, pode-se afirmar que não se curvam à civilização
ocidentalmente erigida ao longo da história. Oxóssi e o Werewolf fogem
de um convívio com o humano no momento em que se embrenham
nas matas da sua necessidade de solidão. Oxóssi caça solitariamente, e
o Werewolf precisa estar só para destilar suas dores inerentes à
condição de homem-animal que não consegue fugir ao desejo
incontrolável por sangue.
A cultura pop engloba tanto as mitologias religiosas, quanto os
elementos coletivos cotidianos. As empresas que fazem maravilhas
tecnológicas para desenhar universos mágicos nos quadrinhos e nos
filmes, desejam, de fato, que reconheçamos nossa admiração por
imagens presentes nos sonhos e no inconsciente. Figuras como Salvador
Dali e Pablo Picasso, de certa forma, entenderam o inconsciente e o
fantástico na sua arte, que não por acaso, também pode ser
enquadrada no rol de imagens utilizadas pelo pop. Para não escapar-
me da deixa, e colocar um pouco de mulher nesta história, a recente
letra de Harlei Eduardo[1] – Ororo – é um poema esclarecedor dos
efeitos do pop sobre os arquétipos:

Ororo, dona dos raios


Oyá
Mutante transliterada
Ororo
Oyá no espelho, Iaô
Na sala escura um reflexo
Anúncio na tela clara
Na Tempestade dos arquétipos
Iansã surgiu translúcida
Ororo
Oyá tomou sua Iaô.

Ororo é o nome civil de Tempestade, a também personagem dos X-


Men, companheira de Wolverine. Sua característica principal é o dom
de manejar os elementos do clima, numa transformação de
humanidade para natureza, se aproximando do arquétipo do orixá
Oyá-Iansã, senhora dos ventos e da cólera expressa nos raios e trovões.
Stan Lee, ao atualizar aspectos do Werewolf na figura de um
personagem como Wolverine, está também possibilitando que
reconheçamos estes e também Ogum e Oxóssi como arquétipos de
híbrido e por que não até certo ponto marginal (de margem, a
margear, na borda) nestas personas. Werewolf, Wolverine, Ogum e
Oxóssi são todos homens (humanos e masculinos) e animais. Pertencem
ao reino do trânsito entre limites. O pop é capaz de colocar eles todos
na mesma prateleira comercial, e podemos falar hoje de lobisomem
sem um terror que ultrapasse os limites do medo temporário ao assistir
uma cena no cinema. O pop possibilita que Wolverine não seja temido,
nem quando faz sair suas garras, pois pertence aos limites do mundo
dos quadrinhos e do cinema. Ele não sai da tela para descarregar sua
raiva em nós. Deste modo, os arquétipos como modelos de
compreensão do humano têm na cultura pop uma contribuição
fundamental para que nos vejamos como eternos híbridos. Estamos
sempre em limites de algum tipo. Estabelecidos aqui, fora dos padrões
lá. Mesmo que não cheguemos às raias da animalidade, humanos são
testados sempre na sua capacidade de sobrevivência, como Wolverine
ou Oxóssi, somente para citar nossos personagens de hoje.

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