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Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Nossas memórias não são inocentes

Paulina Cymrot
Membro Efetivo da SBPSP
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Resumo

Neste texto discute-se a função das memórias, sua intencionalidade, na


análise. Postula-se que as memórias não sejam inocentes. Apesar da tensão
presente, do medo da ignorância, na prática clínica o analista necessita de
relativa tranquilidade para se deixar afetar pelo clima emocional da sessão e
priorizar a história da análise.

Importa ao analista observar como o paciente se apresenta na sessão, a


abertura de ambos (analista e paciente) para a experiência emocional
presente, para a contenção, para o sonho, para a surpresa. Entende-se que o
vínculo analítico se faz a cada momento e que cada participante contribui
para isso.
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Nossas memórias não são inocentes

Neste texto não pretendo me estender em teorias, citei-as em trabalhos


anteriores. Pretendo expor algumas idéias, especialmente as que norteiam a
minha prática clínica, e a escolha do título deste trabalho já sugere um norte
de idéias para esta prática. Também mencionarei algumas vivências de minha
análise pessoal.

No desenvolvimento de sua obra, Freud não colocou barreiras precisas entre


evento e fantasia, mundo interno e mundo externo, realidade e imaginação.
O modelo que pressupõe a associação entre percepção e memória, entre
registro e evocação foi revisto por ele. Deu-se conta que na memória estão os
desejos conscientes e os desejos inconscientes, as fantasias, as angústias e
suas defesas, os afetos, as emoções e suas intensidades, a história das
relações do sujeito com ele mesmo, e com outros.

É escassa a confiabilidade nas lembranças. Não é por acaso que os


magistrados necessitam de testemunhas para registrar os depoimentos.
Enquanto psicanalistas, sabemos que uma lembrança repetidamente evocada
pode se fixar na mente enquanto uma verdade. O ser humano tem a
capacidade de buscar e, ao mesmo tempo, de encobrir a sua verdade.

Em 1899 Freud escreveu um artigo sobre a função das lembranças


encobridoras, sua aparente inocência e insignificância; sua função de
formação de compromisso, de substituir outras lembranças. Ele notou um
paradoxo: fatos tidos como importantes não permaneciam retidos na memória
da pessoa, enquanto outros eram evocados na consciência, com valor banal,
com a propriedade de diminuir o desprazer na mente, da mesma forma como
no sonho. A presença das lembranças encobridoras é muito comum numa
análise, na vida das pessoas. Disfarçamos a verdade através de mecanismos
protetores, permanentes e falsificadores para torná-la mais aceitável.

Concordo com Grotstein (2010), quando ele escreve que as histórias, as


fantasias, os sonhos, os mitos são recursos dos quais nos servimos para
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tolerarmos melhor as nossas vidas, suportarmos a verdade, personalizarmos e


recriarmos as nossas experiências dentro de nós, nos protegermos, nos
ampararmos, tornarmos a realidade mais suportável.

Entendo que as palavras cumpram várias funções. Uma delas é a de falsificar


para nós mesmos e para o outro, como um modo de defesa psíquica contra a
invasão de memórias, pensamentos dolorosos, desprazerosos. Vetar memórias
na consciência torna-se psiquicamente mais econômico do que confrontá-las.
Criar verdades consolatórias é um modo comum aos seres humanos.

Como Bion, entendo que não seja simples a discriminação do que seja
memória, intuição, afirmação profética, pensamento selvagem (Conversando
com Bion, 1976). Nossas memórias são nossas associações, invenções, ficções.
Nelas estão nossas esperanças, expectativas, anseios, emoções, desejos,
frustrações. Criamos personagens e lhes atribuímos qualidades e também
aquilo que há de pior. Nossas recordações são feitas de ilusões, de crenças, de
convicções que são as nossas verdades comunicadas com certeza.

Considero que as memórias guardem intimidade com ficções úteis. São


recortes emocionais e expressivos de uma lógica subjetiva, falaz, criações
toleráveis resultantes de conexões de pensamentos, de associações de idéias
que obedecem ao determinismo de processos conscientes e inconscientes. As
memórias não têm relação de causa e efeito, não são registros de verdades
inquestionáveis. Não resultam de construções levianas ou que apreendam a
realidade dos acontecimentos.

A meu ver, referem-se a invenções de valor psicológico para o sujeito. Nelas


estão presentes os seus desejos, os seus preconceitos, a história de suas
relações, e, na análise, a história da relação analítica. Penso que as
lembranças sejam fontes suspeitas e que guardem intenções em sua
comunicação. Não minimizo a importância da companhia que uma lembrança
pode fazer a uma pessoa em sua vida. E a necessidade das pessoas de
encontrar alguém para compartilhar.

Em seu livro Estudos Psicanalíticos Revisados (1967), além de lembrar-nos que


é ilusória a idéia de neutralidade, de registro fatual, Bion aponta que um
registro feito recentemente não é mais fidedigno do que outro escrito
anteriormente, meses ou anos depois.

Temos a engenhosidade de associar idéias, lembranças. Não há lembrança,


escrita, narrativa, pesquisa, comportamento, pensamento isentos da marca
da subjetividade.

Creio que, na prática clínica, importa menos o relato do conteúdo das


lembranças por ser conhecido ao paciente, do que a forma com que estas são
comunicadas ao analista, a sua intencionalidade, a tonalidade emocional;
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como a comunicação afeta o analista, como as lembranças são dimensionadas,


como são escutadas pelo analista na sessão. Importa o clima emocional
presente, as angústias presentes, as emoções presentes na sessão. Importa
observar se o paciente se percebe implicado na visão que ele constrói de si,
dos outros, do mundo, não sendo somente afetado por estes. Se ele percebe o
que se passa na relação analítica. Não que ele tenha que perceber isto, esta é
a função do analista, apresentar o paciente para ele, ajudá-lo a pensar as
suas emoções.

Quando o analista está mais cansado, desatento há uma tendência para uma
conversa que resulte em explicações, em relações de causa e efeito, em
estímulos que direcionem para o conhecido. Há menos espaço para as
dúvidas, as incertezas, as curiosidades, as descobertas, a surpresa.

Na sala de análise temos a história contada, as lembranças vividas, o que ela


viveu até então. Temos a pessoa no presente. Importa ao analista como esta
pessoa se apresenta para ele, como interage com ele, as capacidades e os
limites de ambos, que são variáveis, e evoluem na sessão.

Na análise, fico atenta se há abertura para a experiência emocional presente,


para a surpresa, penso que o vínculo se faz a cada momento, e que cada um,
paciente e analista, contribui para isso. Penso que a relação analítica é
transiente, é dinâmica. Como Bion, acredito que a busca da verdade seja uma
aspiração humana e que pode estar além da capacidade da mente humana.

1. Experiência Clínica

P - Cumprimenta-me com um olhar rápido, fugidio. Após algum silêncio, ele


diz:

Não consigo falar, não consigo.

A - Você está falando. E diz que não consegue. Teremos que ficar com esta
realidade. O fato é que você veio. Está aqui e não falta. Não é obrigado a vir.
Podemos conversar sobre o que o move hoje para estar aqui.

P - Tenho ficado quieto e com medo de ser mandado embora; que você se
canse de mim.

A – (Com humor) Parece que você está com uma perseguidora aqui nessa sala.
Eu propondo conversarmos, esperando, e você me chamando de intolerante,
que vou mandar você embora...

P – Ri. É que eu não estou nos meus melhores dias para conversar.
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A – Para conversar tem que estar nos melhores dias? Penso que para conversar
é preciso ter desejo, liberdade. Talvez esteja angustiado, e acha que deve
desempenhar bem.

P – Me sinto inferior, incompetente. No trabalho e com as moças, mas não falo


para mais ninguém.

A – Agradeço a confiança. Parece decepcionado com você e receia que eu


também fique decepcionada com você; acha que vou julgá-lo com o mesmo
rigor com que você se julga?

P – É. Me sinto tão pressionado pelos outros, que fico pensando em largar tudo
e ir viver sozinho no interior. Mas antes de fazer isso resolvi tentar a análise.
Sinto pressão demais... (Fala de lembranças de fracassos pessoais,
profissionais e afetivos).

A – Você se pressiona e pensou em uma ação solucionadora: ir para o interior –


se fosse solução, iríamos todos e seríamos felizes! E nem seríamos notados!

P – Ri. E pensar que ninguém me notaria no interior... Ri.

A – Convido-o a olhar para o seu interior, para os seus sentimentos, a se


perceber.

P – Eu me torturo muito... demais...

A – Hoje você está experimentando também outros sentimentos, confiança,


prazer, você riu...

P – É verdade...Mas me sinto dividido...

A – Agora o percebo mais inteiro. Mais autêntico.

P – É verdade. Gosto de estar aqui. Me faz bem. Me sinto mais vivo...

As pessoas não são o que elas pensam ou o que aparentam ser; elas vivem da
melhor maneira que podem. Não conseguem se esconder o tempo todo,
tampouco elas conseguem guardar os seus segredos. Como disse Freud, ainda
que suas bocas estejam fechadas, as pontas dos dedos e o movimento dos
olhos as traem. Vemos como é comum a pessoa relatar o que outros fizeram
com ela, contar o que se passou em sua vida, o que lhe disseram, como se ela
fosse neutra, expectadora, passiva, como se não fosse agente da própria vida,
não tivesse escolha. Falando em termos da psicanálise, como se não operasse
por identificações projetivas e outras defesas. Dito de outro modo, a proposta
psicanalítica não considera que o sujeito seja uma massa amorfa, ele
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antecede o evento e lhe atribui significado. Nestes termos, não há evento


separado de quem o vivencia, interpreta, significa.

Desta perspectiva, o que denomino fato histórico, evento, acontecimento,


compreende uma verdade que é subjetiva, provisória, e que na clínica é
vivida intersubjetivamente. O analista afeta o paciente com a sua presença e
é afetado pela presença do mesmo. Na clínica psicanalítica o analista observa
como o paciente se apresenta para ele e vice e versa. A especificidade desta
relação diferencia-a, a meu ver, das psicoterapias.

Na minha prática clínica não priorizo a atenção ao conteúdo das memórias,


aos sintomas, às relações de causa e efeito, à chamada análise do
inconsciente, o que quer que isso signifique, à relação do paciente com outras
pessoas. Como Bion, acredito no fluxo de todas as coisas, na transitoriedade
da memória, da verdade, e procuro atentar para o que se passa comigo na
relação com o paciente no presente da sessão. Procuro sentir o que ecoa em
mim, permitindo-me experimentar dúvidas, ansiedades. Observando-me para
ver o que surge em mim, se é que surge, e entre o paciente e eu.
Respeitando-me, escutando-me, e procurando respeitar e escutar o paciente.
Por vezes consigo isso.

Estou de acordo com Bion quando nos lembra que, na prática clínica, não há
nada que possamos fazer com o passado. Impossível observá-lo. Lidamos com
os vestígios do passado, no presente, com os estados de mente presentes,
discerníveis no presente, se nos permitirmos discerni-los. Entendo que a única
relação a ser observada é a relação analítica.

Concordo com o abandono espontâneo de memórias prévias, desejos e


entendimentos pelo analista para estar mais continente na análise. Sirvo-me
de memórias quando estas surgem espontaneamente na análise.

Na experiência analítica, a memória ativa e não saturada, os desejos do


analista estão presentes, a neutralidade é uma aspiração impossível; mas
estes podem ser menos grosseiros quando ajudados pela análise e pela
formação do analista.

Há uma tensão presente na análise que precisa ser contida pelo analista.
Penso que a análise e a formação do analista ajudam-no na falta de memórias
e de associações do paciente, como diz Bion, na falha da função alfa. Dito de
outro modo, com a função de rêverie, com as experiências de vida do
analista, algo do seu repertório interior, de vida, apresenta-se como
continente para o paciente. Ao cegar-se, sonhar a sessão, o analista pode
liberar o continente em si para estar continente para o paciente, para poder
assimilar a experiência emocional que o paciente lhe transmite.
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2. Experiência Clínica

A paciente me cumprimenta, deita-se no divã. Parece-me estar apressada


para falar. Diz que tem muitas coisas para me contar. Põe ênfase nas
circunstâncias passadas e desfavoráveis, e justifica com as mesmas o seu
estado ansioso, a piora da asma. Considera que se os outros tivessem seguido
os seus conselhos, ela não estaria tão ansiosa e necessitada de cuidados
médicos, como precisou e precisa. Diz que estava bem e que agora está mal,
e isto a faz sofrer. Quer ficar bem.

Digo-lhe que pela tonalidade da sua fala, parece-me que, no momento, não
me parece estar com asma. (Ela concorda). Mas me parece estar
decepcionada com ela mesma por desejar estar sempre bem. E me consola
que o fracasso não tem a ver com o nosso trabalho. Fico com a impressão que
ela está temerosa que eu desanime de trabalhar com ela.

P – Concorda comigo. Estou sempre queixosa. Me sinto incapaz. Minha família


não me ouve. Quero ajudar, quero ser necessária para eles.

A – De onde veio essa idéia de que você atenderia a necessidade dessas


pessoas?

P – Chora. É eu sei que não me pediram ajuda...

A – Você diz que sabe, mas parece não aprender com este saber.

P – Não me escutam e isso me frustra muito. Ninguém me escuta...

A – Agora estamos aqui, e minha atenção é toda para você!

Ri. Após breve silêncio, a paciente conta, sem pausas, sem vírgulas, que ficou
ansiosa por causa de uma discussão que teve com familiares, com o namorado
e que sentiu mal e foi ao pronto socorro. Relata com detalhes o que houve
antes, durante e depois da ida ao pronto socorro. Nomes das pessoas
envolvidas, parentes, atendentes, médicos. Não parecia recordar, mas reviver
os acontecimentos, as emoções.

Quando interrompeu a fala, perguntou-me o que eu achava do futuro da


relação com o namorado, pois estava cansada dele adiar o compromisso dos
dois, pois ela não queria ser eternamente a amante de um homem casado.
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Disse-lhe precisou desabafar as várias experiências.

E que ela me transformou em um ouvido privilegiado, me deu muitas


informações difíceis para eu acompanhar. (Apontei-lhe a sua possibilidade de
comunicar e a minha de acompanhá-la.) E fiz a sugestão de selecionarmos
algo para ela aprender com esta experiência.

Há a hipótese de que a paciente sente a angústia com angústia, e que a


angústia esteja atingindo a comunicação.

Outra hipótese é ela não conter o seu estado mental, haver pouco
acolhimento para o seu estado mental. Ela acredita em acolhimento? Acredita
que pode encontrar isso?

A psicanálise trabalha com a palavra, mas não somente com o objetivo de


buscar alívio através dela. Observar uma relação e participar dela não é
tarefa fácil para o analista. Ele intui necessidades, mantém-se vivaz, capaz de
se emocionar, de se angustiar, de estar emocionalmente inteiro na sessão.

3. Experiência Clínica

A paciente cumprimenta-me com um sorriso que lembra antes um esgar.


Parece tensa. Aponto-lhe esta minha impressão.

P-É verdade. Preciso da sua ajuda. Estou com sérias dificuldades nos
relacionamentos... Não é de hoje... (Conta que se enganou, decepcionou-se
com várias pessoas em sua vida. Conta alguns episódios passados sobre isso).
Você, que é psicanalista e conhece sobre gente, pode me ensinar como evitar
isso. Quero fazer o meu melhor, evitar problemas na vida, não ficar
ameaçada. Saber interpretar o comportamento das pessoas, dos homens, se é
mais profissional, ou não, se é sedução, se é confiável...

A-Posso compreender o seu desejo de evitar problemas de relacionamento, de


ter garantias futuras, mas não sei como evitar o risco da decepção, do
desencontro de qualquer relacionamento, inclusive do nosso.

P – Como assim, do nosso? (Fica surpresa)


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A – Sim, porque qualquer relacionamento é feito de encontros, desencontros,


tem riscos. Agora você está satisfeita comigo e eu com você, confia, não está
ameaçada. Mas não há garantias nos relacionamentos. É preciso conviver,
arriscar, sentir, se emocionar.

P – Recebi uma educação para ficar comportada em casa, na casa dos outros.
Nada de espontaneidade. Não tive infância, nem adolescência e cobrei isso
dos meus irmãos menores. Meu pai foi severo comigo e fui severa com eles.
Sinto culpa de ter sido severa com meus filhos, vejo que são pessoas
reprimidas como eu, nada espontâneas. Falam que sou um general em casa,
sou severa, insegura. Achei que você, tendo mais experiência, poderia me
ajudar...

A – Você acha que eu, mesmo sem conhecer uma pessoa poderia falar desta
para você. Você diz que eu capto você. Para isto, eu preciso conviver com
você, estar com você, me sentir na sua presença. E mesmo assim posso me
enganar. Há riscos.

P – Que tolice... ! Precisa conviver...sentir...E eu querendo regras, manual,


receita! Garantias de não me decepcionar!

Sem Conclusão

Penso na situação analítica como uma oportunidade para duas pessoas se


perceberem, e desenvolverem, aproximarem-se de suas partes psicóticas,
perversas, primitivas. Para o paciente ser acolhido.

Na vida nos organizamos para não sermos surpreendidos e buscamos aquilo


que nos falta, a verdade sobre nós. Mas também não estamos livres do ódio à
análise. Sabemos que a análise é uma complexa experiência emocional de
dois, um aprendizado emocional, no qual se espera que se possa ficar
angustiado, aterrorizado, deprimido, sentir amor e ódio, prazer, ter humor, e
ser capaz de pensar as emoções. Pois se acredita que quanto mais a pessoa se
conhece, mais apta ela se torna para pensar, ousar ser ela mesma, ter
autonomia, se respeitar.

Em Inveja e Gratidão, (1957), Klein escreve que a introjeção e estabilização


do bom objeto no ego capacita o sujeito a vincular, criar, reparar, suportar a
frustração e a ambivalência, ser cooperativo, grato. A constituição do
psiquismo inclui a internalização das figuras combinadas de pai e mãe que
povoam o inferno da PEP e os primórdios da PD, inclui a abertura para a
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alteridade; cada um contém em si os outros que o excluem, acolhem,


submetem, cuidam, perseguem, contém. “Honrarás teu pai e tua mãe”, não
se trata tão somente de introjetar a lei da interdição e submeter-se à função
paterna, da ligação erótica e fecunda entre os genitores como possibilidade
de criação, de estruturação da subjetividade, de contenção da destrutividade
através do amor, da gratidão. Fonte de fecundidade, de criatividade. Trata-se
do reconhecimento da dependência afetiva característica da espécie, da
insuperável experiência de solidão, do desamparo em contraposição à mania
mesmo quando associada à depressão.

É comum escutarmos pacientes queixarem-se de solidão na sessão, tendo,


naquele momento, atenção exclusiva para eles. Klein entende que o
sentimento de solidão que decorre da internalização do vínculo parental que
aceita a dependência dos objetos de cuja parceria está parcialmente excluído
resultaria de um ideal inalcançável de perfeição, pois uma quota de solidão é
inevitável. A aceitação da dependência de objetos confiáveis é expressão de
saúde mental, ter vínculos fecundos, solidários, vitais, de reciprocidade.

O ser humano se constitui na relação com outro ser humano e aí se dá o


processo de amadurecimento que é interminável. A unidade biológica é o par
e a personalização se realiza na presença de alguém confiável, significativo e,
a meu ver, este é o princípio da análise. Os humanos buscam realizar suas
potencialidades com os meios que dispõem, contam e recontam suas histórias;
têm curiosidade e medo da condição humana, de sua finitude, de seu
desamparo e necessitam de continência para suas angústias, medos, pavores.
Isso vale para os pacientes, para os analistas. Penso que as condições
ambientais favoráveis ou desfavoráveis não são as determinantes da
potencialidade de uma pessoa. Esta é dada, é afetada pelos cuidados
parentais. Inclui a tendência para o desenvolvimento, a personalidade e suas
transformações, a aprendizagem pela experiência emocional, a história das
relações, a condição amorosa, a tolerância à frustração, talentos,
capacidades. A criança é afetada e afeta o cuidador. A noção de
desenvolvimento é complexa e de falha ambiental também. A provisão
ambiental facilita o desenvolvimento, mas o ambiente não faz o eu, embora
possa ajudar a separar eu - não eu. A personalidade, em sua capacidade
amorosa, de simbolização, de tolerância à frustração, de aprendizagem pela
experiência emocional, em sua capacidade de se preocupar, de sentir
felicidade, mais do que destruir, pode facilitar a vida do sujeito. O impulso
para o crescimento vem do interior de cada um. Não há enriquecimento
pessoal a partir de realidades dadas, exteriores.

Na análise, o paciente afeta e é afetado pelo analista. A análise não cria


nada, a experiência analítica, a meu ver, ajuda a liberar a potencialidade
existente. A continência do analista ajuda a liberar o continente existente.
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Muita coisa é desconhecida com relação ao desenvolvimento emocional


primitivo que é vitalmente importante e pouco conhecido. Bion fala em restos
mentais, elementos arcaicos operantes de modo perturbador, de memórias
inconscientes que rompem a calma, a superfície que nós comumente vemos
como comportamento sadio e racional (Clinical Seminars and Others Works,
1976). Ele reconhece a importância das circunstâncias da vida do sujeito,
quando vem se tratar, mas acredita que explicações baseadas em raça,
ambiente, circunstâncias sejam insatisfatórias para compreender as doenças
mentais. Ele suspeita que o fator psicológico desconhecido liga-se à
capacidade para o relacionamento consigo e com os outros, à qualidade
desses relacionamentos, aos vínculos emocionais nas relações humanas,
conscientes e inconscientes. O que alarga a vida interior é poder se vincular
amorosamente, pensar as emoções. Não exagerar o papel das escolhas na
vida, pois estas não são tão deliberadas, profundas, são os nossos modos
possíveis de existência.

O texto aponta para a idéia de que as memórias não são inocentes. Na


análise, envolto em emoções turbulentas, o analista necessita manter a
atenção flutuante, pensar, sonhar, estar continente, apesar das angústias, do
medo, da tensão presente, da ignorância. De preferência, deixar-se afetar
pelo clima emocional da sessão, pela história da análise. Observando a
relação analítica, participando do vínculo analítico que se faz a cada
momento, o paciente e o analista contribuindo para isto.

Bibliografia:

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________ s/ data. Saúde mental. In_Cogitações. R. J, Imago Edit. Ltda,


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n. 19.
13

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_________1962 Aprendiendo de la eExperiencia. Buenos Aires, Paidós.

Cortazar, J. _____ 1977 As armas secretas. 2ª. ed., São Paulo, José
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Cymrot, P. ____ 2003 Psicanálise com humor. 2ª. ed., São Paulo, Casa do
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_____ 2003 Elaboração Psíquica –Teoria e Clínica; 3ª ed., São


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3ª. ed., Madri, Biblioteca Nueva, Vol. II,1982.

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Completas de S. Freud; 3ª. ed., Madri, Biblioteca Nueva, Vol.II, 1982.

Winnicott, D. O ambiente e os processos de maturação. 3ª. ed., Porto Alegre,


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