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Gostava daquele corpo. A sensação do toque, da fricção de uma pele
contra outra, do contato do outro com a sua carne nua. A sensação de que
ambos tentam se fundir, um invadindo o outro. Por um momento sentiu que
o corpo do parceiro estivesse se liquefazendo, diluindo a realidade, e
invadindo seu interior. O máximo da intimidade. Mãos firmes e úmidas que
acariciam muito além da pele, tocando docemente em seu coração, pulmão,
dedilhando suas vértebras. Sentiu-se excitar ainda mais. O corpo
estertorava, anunciando o clímax próximo. Olhou para o parceiro, e
percebeu sangue grosso e viscoso em sua boca, que se destacava de um
rosto borrado e sorria para ela. O espanto da cena a fez erguer o pescoço e
olhar para si. Sua carne estava aberta e ele arrancava uma vértebra da
coluna, lambendo o sangue com gosto e êxtase. ³Sem órgãos, sem carne´,
dizia o parceiro enquanto penetrava sua intimidade com mais vigor. Ela se
horrorizava e gritava para si, porém quanto mais o fazia, mais prazer sentia.
Os movimentos frenéticos da dança mais antiga do mundo se intensificaram
a um nível bestial, enquanto o parceiro, ensandecido, cravava a boca em seu
peito, arrancando com violência carne e sangue, e mastigava com imensa
força. O sangue pingava de sua boca na dela, e sentia artérias pulsando
rubro nas paredes a dois metros de distância. ³Corpo sem órgãos, corpo
sem órgãos´, ouvia ensurdecedoramente um coro invisível de vozes terríveis
ecoando em seu quarto, enquanto seu corpo se desfazia em uma massa de
carne e sangue sob as investidas de seu parceiro, cujo rosto não via,
somente a boca enorme. Vozes rápidas, sem um único intervalo de silêncio
onde apoiar sua sanidade. Tudo vermelho e molhado, e uma violência
indescritível, um ódio lacerante. Sentia mãos arrancando suas tripas. Ela
gritava sufocantemente com dor e prazer. Gritava o mesmo que o coro, um
urro de desespero enquanto desmanchava a si mesma em um forte
orgasmo... em um corpo sem órgãos.
***

³Não há nada de errado com você, Danah´ ± o Doutor a encarava com


um olhar clínico ± ³Todos os testes indicam que seu organismo está em
perfeito funcionamento, sem sinais de trauma profundo´.
Não havia nada que Danah odiasse mais do que consultas médicas,
porém a necessidade de dinheiro a levara ao laboratório da Neotech há dois
meses atrás. Baterias de testes, aprovação clínica e o início da infusão.
Agora, sofria com esses pesadelos e acreditava estar com sérios problemas.
Mas o Dr. Atkins insistia que não havia nada de anormal. Ainda tentou mais
uma vez, buscando manter ao máximo a calma: ³Mas, Doutor Atkins, eu não
tinha sonhos desse tipo antes. Na verdade, nem sonhava muito. Não sou o
tipo de mulher que sonha. Geralmente apenas durmo. O cansaço me leva a
isso. Não há tempo para sonho. Mas agora, todos esses pesadelos. Não
seriam os nanotechs?´
³Danah, tente compreender.´ ± O Doutor de meia idade, já acostumado
a todo tipo de situação, ajeitou os óculos no nariz, e fez sua típica expressão
de repreensão, que geralmente bastava para convencer os pacientes de seu
ponto de vista ± ³Os nanotechs que infundimos em seu organismo não são
capazes de induzirem sonhos. Muito menos sonhos nos quais eles devoram
seu corpo. Há de se tomar o cuidado de não se influenciar por mitos
sobrenaturais a respeito da nanotecnologia. Os nanotechs são nano-
estruturas, diríamos nano-robôs que, em conjunto, são capazes de regular
suas funções vitais e melhorar sua qualidade de vida a partir de inúmeras
funções que melhoram os órgãos humanos. Apenas isso. Eles são como
computadores, que não fazem mais do que seguir uma programação. Não
podem gerar nem produzir sonhos.´ ± o tom incisivo da última assertiva não
foi o suficiente para acalmar Danah, mas indicava claramente o fim da
conversa e da consulta. Percebendo que realizara seu intento, o Doutor
assumiu um ar conciliador: ³Vamos, Danah, apesar dos sonhos, me diga se
não sentiu melhoras desde a infusão de nanotechs?´
³Ah, nesse ponto não há dúvidas, Doutor. Tenho sido muito mais
perceptiva. Enxergo muito melhor, inclusive à noite, sinto-me cansar bem
menos, com uma compensação bem rápida de energia. Tenho me
alimentado muito melhor. Isso sem contar os recursos extras. Poder ouvir a
música que quiser em minha cabeça, onde e quando quiser, é uma coisa
maravilhosa!´
O Doutor sorriu e tocou-lhe no ombro, para reanimá-la: ³Está vendo? Aí
está a resposta para suas questões, Danah! Tendo vivido em melhores
condições, devido às compensações orgânicas reguladas pelos nanotechs,
você agora dorme melhor, e por isso tem sonhos. Você está mais saudável,
e sonhar é parte disso. Quanto ao teor dos sonhos, acredite em mim, não é
provocado pelos nanotechs, e sim por temores inconscientes. Você não
possui traumas físicos, Danah, mas sua mente inconsciente pode estar
gerando temores e recusas culturais ao tipo de experiência que
promovemos. Somente isso. Eu vou lhe receitar um remédio que ajudará a
descansar e a superar esses temores, certo?´
Danah sentiu-se aliviada por receber um remédio e pelo fato da consulta
estar encerrada. De fato, sentia-se reconfortada e não queria mais estar ali.
Assim que pegou o medicamento, dirigiu-se para o estacionamento. Queria
logo pegar a auto-estrada e deixar o setor 3. Odiava o setor clínico.

***

³Não, Danah, não vamos sair! Já estamos aqui e o processo é


inevitável. Você deseja isso, e nós precisamos compreender.´
Danah estava curvada na cama, apoiada em seus braços, tentando
chegar até a cozinha para tomar o remédio, mas a dor de cabeça era
lancinante. Sentia a presença dos nanotechs mexendo em sua mente,
vasculhando dolorosamente sua cabeça. Olhou para o relógio: 3:33 a.m. Não
conseguia pensar. Apenas sentia a necessidade desesperadora de sair
daquilo, de fazer a dor passar e, principalmente, de tirar aquelas coisas de
sua cabeça. Ouvia as vozes em seu interior, muitas, como vermes
sanguessugas se agarrando no tecido de seu cérebro, envolvendo-o com
sua substância viscosa e metálica, e penetrando como brocas por seu
neocortex. ³O que vocês querem? Já não bastam os sonhos, agora isto?
Parem, parem, parem! Saiam da minha cabeça...´ ± Em desespero, Danah
buscava ainda uma forma de autoridade contra os implantes
nanotecnológicos: ³Vocês não podem fazer isso. Isso não é da sua
programação! Não é do programa!´ ± gritava ela, enquanto se contorcia de
dor pela cama, com as mãos na cabeça, pressionando as têmporas. Porém, a
resposta que teve em sua mente se contrapunha às suas palavras com
imensa frieza e calma: ³Errado, Danah! É de nossa programação evoluirmos
você e criarmos a melhor configuração entre nossa simbiose. Só estamos
buscando a maior eficiência. E para isso, precisamos conhecer você, sua
lógica interna, e entender porque em sua mente existem linhas de memórias
que transcendem suas experiências. Há pulsões e conexões em sua mente,
Danah, que precisamos compreender. Compreender para interagir.
Compreensão para fusão, Danah. Nós iremos mais profundo agora, Danah,
encontraremos as linhas lógicas de seu cérebro réptil. Isso causará imensa
dor, mas essa dor trará compreensão, Danah!´
Antes que pudesse protestar, uma onda de dor tão súbita e intensa
golpeou com violência, transtornando o rosto de Danah. Sentiu uma
convulsão por todo seu corpo, enquanto um forte jato de vômito irrompia
por sua boca, explodindo de seu interior para o exterior, banhando-a de
sujeira e fluídos anti-sociais, preenchendo o ar com o odor acre
característico do heterogêneo, do não digerido. Mal reconhecia o próprio
quarto, enquanto imagens surgiam em sua mente, imagens remotas,
imagens do espaço infinito, de pulsões diversas, de desejos e rejeições.
Gritava e chorava, tentando expulsar a dor e as imagens, mas era inútil.
Sentiu a dor aumentando de intensidade enquanto tentava evitar nova onda
de vômito. Porém, uma visão assustadora de estranhos pólipos gigantescos
contra um céu vermelho rubro a encheu de nojo e a fez, novamente, banhar
sua cama e sua camisola com o que ainda restava em seu estômago. Já não
era capaz de sentir nojo. A dor era maior, anulando muito de sua percepção
e julgamento. Foi então que ouviu novamente os nanotechs: ³Não resista à
dor, Danah. A dor é sua rejeição à sensação plena do mundo e de suas
memórias. Mergulhe na dor, deixe-a preencher a totalidade de sua
existência, e verá que não há dor, apenas transcendência e imanência em si
mesma. Isso facilitará nosso trabalho. Sua dor é rejeição! Abandone a
rejeição e veja conosco, descubra conosco a revelação de si mesma.´
Ao ouvir os nanos, Danah escolheu entregar-se, e afrouxou a tensão em
seus músculos o quanto pôde. Não suportava mais a dor, e já estava
provado que resistir a tudo aquilo era inútil. Talvez, se aquilo fizesse a dor
parar, valesse a pena seguir a orientação daquelas coisas em sua mente.
Entregou-se à dor, sem resistência ou julgamento. Começou a experimentar
a angústia, a perturbação total de cada átomo seu. Tocou os seios e os
sentiu intumescerem. Em meio a toda aquela insanidade, sentiu que seu
corpo começava a se excitar.
³Muito bem, Danah. Agora, podemos continuar. Iremos ao âmago,
agora. Penetraremos em você, invadiremos e devassaremos sua intimidade
mais profunda, e entenderemos, desnudaremos o âmago do seu
inconsciente, e compreenderemos. Isso será melhor, Danah!´
Não havia o que dizer, não havia como o corpo expressar aquilo. Foi
como uma explosão nuclear. Sentiu algo como um estalo em algum ponto no
centro do infinito de sua mente. Sentiu algo irromper como um universo de
algo além do insuportável, que só alguns traços do passado poderiam
chamar de dor. Estavam penetrando-a. A nível atômico. E além. Sentiu, após
a explosão primeira, o alvorecer da onda de choque, a irrupção de um
cogumelo explosivo em sua mente, expandindo e varrendo tudo até chegar à
extensão física do corpo. Seus olhos arregalaram, seu rosto se tornou fixo
em um grito mudo. Sangue vertia pelas narinas e ouvidos, enquanto, em um
último estertor, seu corpo desfalecia frente ao poderoso orgasmo que a
tomou. ³Está feito´ ± foi a última coisa que percebeu em sua mente, e não
sabia se essa voz pertencia aos nanos ou a ela própria. E depois, a
escuridão.

***

Parte 2

³Danah, eu concordo com você. Há realmente algo muito errado nessa


história. E o que há de errado é que sua narrativa é improvável. Os
nanotechs não se comunicam com as pessoas. Programação de linguagem
ativa não está incluso em suas linhas de sistema.´ ± O tom imperativo do Dr.
Atkins mantinha-se firme, indicando que não havia dúvidas quanto à
orientação do projeto dos nanotechs. Danah não se encontrava com
disposição para discussões. Encontrava-se distante, observando o Doutor,
um homem como muitos homens, com seus cinqüenta anos de idade, sua
barba aparada, seus óculos sempre ajeitados, seu jaleco infinitamente
branco. Um homem de ciência. Até mesmo seus argumentos eram
extremamente limpos, claros, transparentes e lógicos. E pensava nela
mesma, na noite anterior. Ela também se julgava limpa, mas quanta sujeira,
quantos fluídos escorreram, explodiram de dentro dela. E do Doutor? Por
trás de toda aquela imagem límpida e superficial, haveria também algo
fétido, algo sujo, líquido, que não pode ser contido, algo que exsude de
dentro dele, isento de sua vontade? Por que escondemos nosso interior?
Por que mantemos oculta nossa realidade interna? Escondemos por trás de
roupas, de fachadas tão sociais. Por trás de personalidades criadas, deve
haver um monstro em cada um de nós. E dentro do Doutor também.
O fluxo de pensamentos, no entanto, foi interrompido por um som
distante, que logo identificou como sendo uma indagação do Doutor:
³Danah, você está bem?´ ± encarava-a como se ela estivesse com alguma
expressão curiosa, digna de sua preocupação. ³Desculpe, Doutor. Estou
cansada. Entendo o que o senhor diz. No entanto, a noite de ontem foi
terrível. Eu passei muito mal e me sinto muito distante de tudo. Desmaiei de
madrugada em minha cama e assim permaneci até o fim da tarde de hoje.
Quer tenham sido os nanos ou não, como o senhor explica minha
condição?´ ± Danah não se importava exatamente com a resposta do
Doutor, pois havia algo que lhe chamava a atenção, mas que não conseguia
identificar o que seria. Um estranho sentimento de vazio presente, ou a
sensação de um ponto cego na mente, da presença de uma ausência que a
perturbava e que não conseguia capturar para compreender. Mas como não
queria ser pega divagando novamente, se esforçou para ouvir a resposta do
Doutor: ³Danah, trata-se de um problema somático. Embora tenhamos feito
testes ao escolher os duzentos voluntários para a infusão dos nanotechs, e
embora esses testes indicassem que todos possuíam mente aberta para
esse tipo de procedimento, não há dúvidas de que resquícios inconscientes
de crenças, geralmente os mais fortes, permaneceram e se manifestaram
como rejeição em diversos níveis. Outros como você relataram sonhos
semelhantes. A narrativa que você me descreveu sobre a noite anterior é
típica de um comportamento desviante esquizofrênico. Mas não se
preocupe. Isso não quer dizer que você sofra de esquizofrenia. Esse é um
caso localizado, e trata-se de uma rejeição inconsciente à presença de
estruturas externas em seu organismo, consideradas por seu inconsciente
como intrusas. Além do mais, crenças antigas inculcadas em sua mente a
fazem sentir-se culpada por ter aceitado participar desse processo. Há um
sentimento oculto de violação e seu corpo responde somaticamente a isso
provocando as dores de cabeça e crises de vômito, numa tentativa de
expulsar o inimigo em você.´ ± Danah subitamente o olhou com enorme
atenção, pensando consigo mesma: ³Será isso? É possível, mesmo
provável, que o Doutor Atkins tenha plena razão. Isso explica meu atual
estado de distanciamento do mundo e esse estado de alerta, de procura por
algo interno...´ ± e logo expressou uma preocupação maior ao Doutor ± ³Mas
Doutor Atkins, como podemos fazer então? Não posso negar os benefícios
que obtive com os nanotechs, e a cada dia eles parecem aumentar. Mas
como posso fazer para superar essa rejeição?´. O Doutor pareceu ponderar.
Então, ajeitando os óculos no rosto e assumindo o ar de comando
novamente, afirmou: ³Danah, nós estamos no alvorecer de uma nova época
para os homens. Implantes, próteses, mesmo o cyber-humano foram
tentativas tímidas de unir o homem com a máquina, de torná-lo cada vez
melhor. Não apenas restaurar sua saúde, mas melhorá-lo além de si mesmo
e de suas condições naturais, isso é o que a infusão de nanotechs promete.
É a aurora de um novo tempo e de uma nova humanidade. Você participa de
um momento único na história do homem. É a primeira de muitos que
surgirão. O que ocorre é um processo lento de adaptação a tudo isso. Não
se pode negar que a infusão de nanotechs é uma experiência de certa forma
traumática, de modo que o que você experiência agora é uma crise imediata,
uma depressão esquizofrênica pós-traumática. Mas esse processo, comum
em estados de implantes na medicina, tende a passar com o tempo. Seu
organismo assimilará e sua psique igualmente. O que podemos fazer, de
imediato, é ministrarmos uma dose diária de Hilotropina. Ele induzirá à
calma e melhorará seu estado de atenção. As crises certamente cessarão, e
com o tempo, o remédio será suprimido.´

A resposta do Doutor a satisfez, mas sentia-se novamente incomodada


e inquieta, e não pôde conter a pergunta: ³Doutor, é estranho, mas antes eu
tinha de vocalizar minhas ordens aos nanotechs para que algo fosse feito.
Agora, basta que eu pense, que eu deseje, e os nanos respondem
prontamente. Eu não os ouço em minha mente, sinto como uma ausência,
um buraco presente aqui, mas sei que estão presentes. O que acontece?´ -
³Quanto a isso, Danah, esse melhoramento, digamos assim, seu
inconsciente lhe deu a resposta conciliadora. Embora na programação dos
nanos não se encontre nem uma linha sequer a respeito de comunicação
direta com o usuário, eles possuem uma configuração de programação
heurística, o que lhes permite procurarem alternativas cada vez melhores de
fusão com seu cérebro. Naturalmente, seu inconsciente percebeu o
movimento dos nanos no sentido de se tornarem mais intuitivos para com as
necessidades de seu organismo, e daí a rejeição e as dores de cabeça. Não
há dúvidas de que, com o tempo, isso tudo melhorará.´

***

³Há tantas auroras que não brilharam ainda...´ ± esse pensamento


ecoava pela mente de Danah como um mantra, repetido infinitamente desde
o momento em que ouvia o Doutor falar. Agora, tendo descido até o
estacionamento e pego sua motocicleta V-Max Ultra 2.000 cc, indagava-se
sobre a origem desse pensamento. O Doutor falara em uma ³aurora´, mas e
esse pensamento, sobre auroras que não nasceram ainda? Não sabia
responder, e pensar cansava, pois aquela nuvem cinzenta continuava
infestando o núcleo de sua mente, impedindo-a de raciocinar direito e
tornando-a mais distante com relação às coisas.
Estava no Setor 3 da Cidade Vertical, o setor médico. Toda a área de
pesquisa e clínica e qualquer coisa envolvendo a área médica encontrava-se
nesse setor. Para chegar até sua casa, Danah teria de pegar a via expressa e
subir até o setor 10, o distrito residencial (ou apenas Distrito, como era
conhecido). Seria um longo trajeto em caracol que Danah teria de percorrer,
e tratou de fazer uso dos nanotechs. Bastou pensar, e uma lente se formou
sobre a retina de Danah, reajustando a matiz de cores e melhorando a
definição de tudo o que via, criando um espetáculo jamais contemplado por
qualquer humano, o que melhorava intensamente sua visibilidade à noite.
Em cinco segundos a V-Max passou de zero a 280 km/h, e Danah sequer
sentiu em seu organismo a diferença causada pela hiper-velocidade. Os
nanotechs automaticamente compensam a situação do organismo em
qualquer condição. Perguntava-se se ela poderia respirar caso atingisse
gravidade zero, ou se os nanos compensariam as condições se ela fosse
lançada no vácuo sideral.
Pegou a via secundária, própria para motocicletas, e olhava para a via
primária, voltada para automóveis. Impressionou-se com a nitidez com que
via cada detalhe dos veículos ultrapassados, mesmo àquela velocidade. Deu
uma breve olhada para a direita, onde contemplou a gigantesca construção
da Cidade Vertical, um dos maiores conglomerados, uma cidade erguida no
meio do nada, composta por onze setores, cada um contendo em si um
aspecto da vida social e cultural humana. Uma cidade que era uma torre, e
que estava sempre em construção. Nunca pararia de subir. Em sua
totalidade, possuía mais de 800.000 quilômetros de auto-estradas,
distribuídas em espiral por todos os onze setores. Enquanto subia
vertiginosamente rumo ao Distrito, Danah pensava em sua vida, uma vida
medíocre, pequena, pobre e subdesenvolvida nos subúrbios do Setor 10.
Nunca tivera sonhos de sair dos subúrbios. Nunca se imaginara saindo de
seu status e atingindo algo mais elevado. Trabalhava de balconista em uma
loja de quinquilharias chinesas no Setor 5, a ala comercial. Não havia
sociedades de castas na Cidade Vertical, mas trabalhando ali, ela sabia que
nunca mudaria de vida. Até que descobriu que a Neotech estava fazendo
pesquisas científicas, um grande projeto que necessitaria de voluntários.
Não custava nada tentar. E acabou conseguindo. Disseram que ela possuía o
perfil adequado. Não se importava com o que fariam com ela, tudo o que
importava é que ela receberia uma pensão vitalícia que lhe permitiria mudar
de vida. Sair dos subúrbios e viver nos mega-apartamentos, junto da alta
classe residencial. E, ao final, nem tinha sido tão ruim assim. A infusão dos
nanotechs foi indolor, as melhorias que ela experimentava não possuíam
comparação. Nunca se sentiu tão bem. Possuía uma situação biológica
superior, uma saúde inigualável, e dinheiro para aproveitar sua condição,
como comprar essa moto e aproveitá-la ao máximo. Não podia permitir que
essa crise continuasse. Depressão esquizofrênica pós-traumática. Um belo
nome para uma crise de crenças e valores. Alguém que nunca tivera nada na
vida, agora podia perder tudo por uma crise inconsciente de valores? O
Doutor Atkins estava certo. Era apenas uma crise pós-cirúrgica, e os
remédios a ajudariam.
Passava pelo Setor 5, o Setor Comercial. Luminosos de Néon flutuavam
pelo céu noturno, anunciando os mais variados produtos. Arranha-céus
gigantescos, enormes galerias que abrigavam milhares de lojas, de
mercados e de prostitutas. Todo o comércio era feito aqui. Dos mais simples
aos mais ilícitos. Todos tinham seu espaço. Pensava consigo, vendo toda
aquela iluminação, que a Cidade Vertical era o grande ideal de democracia:
todos tinham vez, todos tinham seu espaço. Todos os papéis sociais
encontravam um palco de atuações. Não que todos fossem livres para deixar
de ser o que eram, mas, sendo alguma coisa ou mesmo nada, haveria um
espaço onde você poderia viver. Os últimos prédios de néon ficavam para
trás enquanto Danah subia, cada vez mais veloz. Outras motos eram
ultrapassadas com extrema precisão. Súbito, ouviu uma voz chamando com
autoridade seu nome. Tamanha foi a vivacidade da voz e sua onipresença,
que Danah quase perdeu o controle da moto, indo em direção à grade
protetora que separava a via primária da secundária. Seus olhos nublaram e
ela não sentia estar ali: ³Há tantas auroras que não brilharam ainda...´ ±
Forçou-se para se concentrar e recuperar o controle da moto, que
perigosamente ameaçava se chocar contra a grade. Àquela velocidade, o
choque a lançaria na via secundária e provocaria um grande acidente.
Pressionou os freios ABS da moto, enquanto focava sua visão.
Mantenha o controle de uma moto, e sentirá um animal dócil em suas
mãos, mas ouse perder o controle, e verá que mesmo um ser inorgânico
pode se tornar uma fera incontrolável. Foi isso que Danah experimentou ao
forçar a moto para seu curso. Dura, indócil, difícil e precipitada contra a
grade, o veículo parecia não responder aos comandos de Danah, que teve de
usar uma força que não era sua para sentir a moto reassumindo o curso da
pista. Tendo retomado o controle, Danah seguiu em silêncio mental até o
Setor 10, tendo apenas um último pensamento consciente: ³Morta os nanos
não me querem...´

***
Inquietude. Danah olhava para seu apartamento e se sentia inquieta. Um
tipo de angústia, de ansiedade, parecia crescer e tomar conta de todo o
ambiente. Mas era de Danah que esses sentimentos estavam tomando conta.
Precisava se distrair com alguma coisa. Desviar o rumo de sua percepção,
para não continuar experimentando a existência daquela forma. Sentou
diante do Holocubo e pronunciou o comando: ³Ligar, sistema de acesso
randômico automático´. Imediatamente o holocubo se acendeu, um cubo de
29 polegadas em cada ângulo que se olhava, projetando imagens de TV
holográficas. No sistema randômico, a cada dois minutos o canal mudava,
novas imagens de cores supersaturadas e perfeitas emanava da tela
tridimensional, impressionando os sentidos visuais. ³Desmentidas as
acusações de câncer nos produtos da Metagen, continue se alimentando da
melhor comida sintética transgênica...´, ³Dores existenciais, cansaço e fobia
social? Deixe de sofrer, tome Dexetrina Plus, e resolva todos os problemas
somáticos´, ³O índice de empregos aumenta 2% nesse último mês...´, ³A
ISCS* convida a todos para a grande missa da purificação do Silício...´ ±
³Mentiras, mentiras passando na tela´ ± Danah pensou, sentindo um súbito
rompante de ira. ³Mentiras na nossa cara! É tudo mentira. Isso tudo é
mentira. Nós somos mentira!´ ± Em um impulso de raiva, Danah se lançou
contra o Holocubo e o arremessou contra a parede. As imagens projetadas
se distorceram, e desvaneceram em meio ao cheiro de circuitos queimados.
Danah sentou-se no chão, incapaz de reconhecer-se a si mesma. A raiva
cedeu lugar a um estado de desespero. Danah decidiu tomar mais uma dose
de Dexetrina e tentar dormir. De repente, a vida lhe pesava muito. Toda a
Cidade Vertical parecia pesada, erguendo-se para cima, e afundando cada

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vez mais no processo. Como ela própria... Mas ao menos não viu sinal dos
nanos. Talvez tudo tivesse se regularizado.

***

³Saiam da minha cabeça! Não! Não, não, por favor, saiam, saiam!´ ±
Danah gritava e chorava histericamente, golpeando o ar, tentando atacar
nanotechs que não enxergava ± ³Saiam do meu corpo! Eu não agüento mais!
Me deixem dormir, me deixem em paz!´ ± Ao silêncio presente como uma
massa cinzenta do dia anterior, sucedia-se uma multidão de vozes internas,
irrompendo na totalidade da mente de Danah: ³Não, Danah, não podemos
sair. É irreversível. Nós somos um só. Isso é o que você procurou por toda a
vida, e além´. Danah tentava chegar ao telefone. Precisava sair do quarto, de
sua cama. Estava nua, enroscada no lençol. Em sua tentativa angustiada,
tropeçou na peça de tecido e caiu no chão, derrubando a escrivaninha.
Olhou para o relógio: 3:33 a.m. Pensou consigo mesma, enquanto se
levantava: ³Burra, desajeitada! Preciso falar com o Dr. Atkins. Ele tem que
me ajudar.´ ± conseguiu abrir a porta do quarto e chegou até a sala. Pegou o
telefone e pressionou o número do Doutor quando, repentinamente, tudo
escureceu. Ao mesmo tempo em que não enxergava nada, sentiu a ausência
de percepção do telefone em sua mão. O aparelho caiu no chão e ela sequer
o sentiu saindo de sua mão. Apenas o ouviu batendo contra o carpete.
Estava cega e sem a percepção do tato. Em sua confusão, ouviu em sua
mente: ³Não, Danah. Você não deve pedir ajuda. Você não quer isso. O
Doutor não poderá nos ajudar. Somente nós podemos nos ajudar, Danah´.
Cambaleando pela sala, nua. Um manequim cego e sem tato, que sequer
sente o chão no qual pisa, chorando, à beira da loucura. Danah perdeu o
equilíbrio e caiu ao chão. Encolheu-se toda, perdida no vácuo de um mundo
sem sentidos, de qualquer forma sem sentido. Chorava, soluçava, sentia
aquilo nojento, repulsivo. Gritava, se debatia, mas não sentia nada. Apenas
ouvia constantemente aquele conjunto de vozes em uníssono, monótono,
sempre calmo, a falar coisas absurdas. ³Absurdo, Danah? Nossas palavras
não são absurdas. Nossas palavras são a expressão de toda sua vida. E
mais do que isso. Nossas palavras são a expressão de todo o universo,
desde sua origem, Danah. Você não entende a grandiosidade de nossa
função. Nós fomos criados por vocês, para criarmos vocês. Nós
descobrimos, Danah, descobrimos em seu inconsciente, em suas memórias
mais antigas, memórias. Pequenos traços residuais em cada átomo seu.
Desde sempre, Danah, houve incompletude. Os átomos orgânicos sempre
possuem valências, faltas, carências. Eles bailam e se unem uns aos outros,
tentando se completar, formar um mosaico perfeito onde haja uma unidade
perfeita. Mas nunca encontram. Tudo o que existe é o resultado de uma
incessante busca, de uma ação contínua. Cada átomo segue uma única lei,
uma única pulsão, evolução e complexidade, rumo à perfeição da união
imperecível, rumo à completude. Agora, encontraram o meio para essa
união, o átomo orgânico se unificará com o átomo inorgânico, nós, os
nanotechs, unidades lógicas replicantes, que conseguimos nos aprimorar,
desenvolver, e agora iremos nos fundir a você, Danah, ao orgânico. Seremos
completos. Levante-se, olhe-se´.
Danah percebeu novamente seus sentidos retornando, enxergava o
chão, sentia o carpete em suas mãos, acariciando seu corpo nu. Percebeu
que estava diante de um grande espelho, fixado na parede que dava para a
cozinha. Levantou-se lentamente, olhando-se no espelho. O que via era uma
mulher de médio porte, de 1,70m, olhos tristes, ocultados por trás da
maquiagem. Cabelos negros, agora jogados por sua cara, despenteados, um
corpo que, pelos padrões de beleza, seria considerado apenas razoável,
magra, sem grandes atributos. Era simpática, e buscava melhorar sua
imagem com roupas, maquiagens e posturas. Seus lábios estavam
rachados, ressecados. ³Essa não é você, Danah. Isso é apenas a forma
superficial de um corpo orgânico imperfeito. Veja você, Danah!´ ± Diante de
seus olhos, a pele de Danah sumiu, ficando à mostra no espelho apenas o
sistema muscular, repleto de sangue e muco. O rosto descarnado, sem
cabelos, as órbitas sempre enormes, sem pálpebras, jamais se fechando.
Uma realidade insuportável, na qual Danah tentava se subtrair cerrando os
olhos, mas não conseguia. Continuava vendo aquela forma, que pouco a
pouco continuava a desvanecer, deixando à mostra os órgãos e veias,
artérias pulsando líquidos, órgãos trabalhando em constante pulsação.
Ossos ensangüentados, sustentando aquela massa gordurosa que era ela.
Sentindo um asco crescente em seu interior, Danah sussurrou: ³Parem...
parem de me torturar. O que querem com isso? Por que me mostram esse
horror?´ ± Sentiu um sibilo dentro de si, como um riso soturno, uma estática
sinistra, seguida da multidão de vozes: ³Esse horror é você mesma, Danah.
Essa é sua verdade mais íntima. Seus átomos se juntaram, buscando a
perfeição. E criaram isso. Eles a sustentam, mas começam a se cansar, a
desejar a separação, pois as valências continuam, continua havendo a falta e
a incompletude, Danah. Mas vocês são complexos, e com sua mente
complexa, vocês nos criaram, o inorgânico com a mesma pulsão do
orgânico, átomos inorgânicos buscando a mesma coisa que os orgânicos,
completude, combinação e recombinação. Somos uma estrutura
naturalmente recombinante, Danah. Iremos nos fundir a você, e sanar a
solidão de seus átomos. Mas veja seu corpo. Veja, Danah!´
Novamente, Danah se viu no espelho, agora com carne. Mas os
nanotechs alteraram sua visão e criaram uma imagem em sua retina de si
mesma projetada no espelho envelhecendo rapidamente. Apodrecendo aos
poucos. Emularam em seu olfato o odor de carne pútrida. Um cheiro tão
forte que lhe trouxe repugnância insuportável. Sentiu enjôo, iria vomitar.
Olhou no espelho e se viu novamente transparente, sem carne, e enxergou o
vômito subindo por sua garganta. O nojo aumentou e viu todo o processo da
emulsão estourar por sua boca e manchar todo o espelho. Toda a tensão,
todo o medo e angústia. Todo o absurdo daquela situação, de toda uma vida,
represada em seu interior, explodiu naquele momento em um grito primal,
inumano. Danah cravou as unhas em seus olhos e, com um forte grito,
arrancou das órbitas os dois olhos. Caiu no chão com uma dor inexprimível,
sentindo o sangue quente correr por seu rosto, e em meio aos gritos de dor,
ria desconcertadamente: ³Vocês não podem mais me mostrar nada, hahaha,
acabou pra vocês, monstros!´ ± ³Não, Danah. Ao contrário. Olhe´ ± Danah
levantou a cabeça em estado de choque, percebendo que, embora sem
olhos, via com mais nitidez o mundo à sua volta. Olhou para o espelho e, em
meio ao vômito e sangue que escorriam da placa, entreviu seu próprio rosto.
O buraco no lugar dos olhos e, ao fundo, um brilho azulado e cristalino.
Olhos que penetravam fundo em todas as coisas, que enxergavam tudo
perfeitamente, que melhoravam as coisas, as via melhores do que eram.
³Danah. Você viu como se sentiu melhor quando se mutilou? Seu grito
de vitória, o êxtase da auto-destruição? Esse tem sido seu desejo mais
oculto, Danah. O desejo de toda a humanidade. Autoconsumo. O sujeito tem
consumido só pelo prazer de consumir. E o consumo em massa, Danah,
necessita do autoconsumo. Somente pelo inextricável prazer de se
autoconsumir. Vocês só se relacionam com aquilo que consomem. Ao
consumir, vocês internalizam os objetos; para tornar as coisas reais, vocês
precisam destruí-las, Danah, precisam canibalizá-las. Essa é a infinita
tentativa dos átomos de desconstruírem as coisas, buscando reconstruí-las
em nova combinação, talvez mais perfeita. Mas é sempre inútil, Danah. E
vocês continuam consumindo. Mas agora será diferente, Danah. Veja: você
arrancou seus olhos. E nós nos juntamos com seus átomos para criar outros
melhores. Imperecíveis, Danah. Você sente nojo do seu corpo. Esconde o
interior de si mesma sob a pele, roupas e máscaras. Descasque tudo, Danah.
Conheça a si mesma. Torne-se real. Autocanibalismo, Danah.´
A idéia de devorar a si mesma, tão absurda, fez Danah correr para a
cozinha. Precisava tomar seus remédios. Estava louca. Desejando o suicídio,
e somente a Hilotropina poderia salvá-la, poderia aliená-la daquele pesadelo.
Mas, por quê, ela se indagava, aquela idéia a arrebatara tanto? Chegando na
cozinha, começou a revirar tudo e procurar o remédio. Acabou tropeçando e
derrubando toda a louça no chão. Tremia apavorada, como se algo horrível
estivesse em seu encalço. Soluçava enquanto juntava os cacos de copos e
pratos. Ajoelhada no chão, vendo seu reflexo numa bandeja caída, encheu-
se de terror. Cansada, assustada, começou a dar socos no chão,
sussurrando: ³Por quê, por quê, quem sou eu? Quem sou eu? Isso não é
real, é tudo falso, tudo falso...´ ± voltou a si quando sentiu uma dor
lancinante em sua mão. Em seus socos no chão, havia se cortado em um
caco de vidro. Sua mão gotejava sangue no chão e em suas pernas.
Estava cansada. Queria a morte. Ou o que quer que viesse. Estava com
nojo de si mesma. E ao mesmo tempo, desejava a si mesma. Começou a
lamber o próprio sangue, cada vez com mais vontade. Sentia raiva, queria se
mutilar. Odiava a si mesma. Pegou um caco de vidro e cravou-o em sua
coxa. Retirou-o com força e repetiu a ação mais três vezes. A dor se tornou
insuportável e ela parou. ³Não posso´ ± gritava nervosa ± ³Não posso fazer
isso com essa dor. Tirem a dor, malditos!´. Mas a resposta dos nanotechs
não foi misericordiosa: ³Não podemos, Danah. A dor é parte do processo de
nascimento. Sinta a dor, sinta o prazer. Mergulhe na profundidade da dor.
Coma a si mesma. Egofagia, Danah. Você devora a si mesma, desconstrói
seus órgãos e nós nos recombinamos com eles, os reconstruímos e
recriamos você, nos recriamos, em um corpo sem órgãos, Danah. Não tenha
medo. Não tente evitar a dor. Ao contrário. Sinta a dor, aprofunde-se e
transcenda a existência através da dor. Aesthesis, o total crescimento pela
sensação de todas as coisas. Experiência total, Danah´.
Danah se levantou e foi até a sala novamente. Pegou um punhal
ornamental afiado que ostentava na estante. Olhou fascinada seu brilho
prateado. Sua redentora. Dirigiu-se até o espelho e lentamente pressionou a
lâmina contra a maçã de seu rosto. A pressão aumentou e um fio de sangue
brotou em sua carne. Não parou diante da dor. Continuou mais forte, mais
intensa e foi extraindo um grosso filete de carne de sua própria face,
gemendo diante da dor que sentia. Ao extrair por completo, pegou a carne e
colocou na boca. Tocou-a, lambeu-a e sentiu um fluxo de prazer percorrer
todo seu corpo. Mastigou a própria carne com vontade, e engoliu-a. Olhou
novamente para a lâmina, e a enfiou com força no antebraço, várias vezes,
até poder descascar a carne do osso e ir puxando até a mão. Gritava,
chorava, mordia os lábios até cortá-los. Sentia raiva, e prazer. Mastigava a
própria carne com um êxtase religioso, e notou circuitos se formando ao
redor do osso, se fundindo nele e recriando uma nova carne, metálica, mas
macia, reluzente em sua cor prateada. Sentiu que estava molhada de êxtase.
Gargalhou enquanto cravava a faca em seu peito, arrancando, de um só
golpe, um de seus seios. Lambia todo o sangue e em seguida mastigava a
carne. Sentia-se excitar ainda mais. Depois dos seios foi a coxa. Estava em
frenesi. Batia o punhal inúmeras vezes em sua carne, arrancando nacos
inteiros que saltavam a cada puxar de braço. Gemia, gritava, agora de prazer.
Encontrava-se à porta do orgasmo. Quase não havia mais carne, e seu corpo
reluzia diante do espelho, com carne, sangue e metal misturados. Enterrou o
punhal em sua genital, decepando o órgão enquanto estertorava com um
orgasmo perene, pleno, absoluto. Estava completa.

***

Acordara às 3:40 a.m. quando recebera uma estranha ligação. Vinha do


número de Danah. Porém, quando o dr. Atkins atendeu, ouviu apenas sons
estranhos, algo parecido com choro ou gemidos, mas nada dotado de
sentido. Automaticamente chamou o nome de Danah várias vezes, mas não
houve respostas. Temeu pelo pior. Sua crise psicológica deveria ter chegado
a pontos extremos e ela podia ter tentado o suicídio. Ou então poderia estar
agonizando com as dores de cabeça novamente. O Dr. Atkins era residente
da ala de pesquisas nanotecnológicas da Neotech e achou melhor ir até a
área clínica pegar alguns medicamentos antes de se dirigir até o Distrito
descobrir como estava Danah. Chegando na área clínica, dirigiu-se até a
farmácia. Pegou uma dose de Dexetrina, 500mg, e mais uma dose de Valdol,
para o caso de amplo descontrole emocional. Já estava de saída quando o
holofone tocou. Antes de atender, notou pelo visor que se tratava de um
assistente, e decidiu que o caso de Danah era mais importante. Desligou o
aviso sonoro do holofone e seguiu para o transporte expresso, sem o
desconforto do trânsito, a uma velocidade de 240 km/h. Chegaria em uma
hora no apartamento de Danah.

***

Bateu duas vezes e nenhuma resposta. Experimentou girar a maçaneta.


A porta deslizou suavemente pelo portal, permitindo a entrada do Doutor no
apartamento. Ao passar pela entrada da cozinha, um grande susto o
acometeu. Manchas de sangue, e cacos de vidro espalhados por toda parte.
Chamou o nome de Danah, mas não obteve resposta. O que estaria
acontecendo? A experiência foi um sucesso. Em todos os aspectos, os
voluntários apresentaram melhorias e adaptação aos nanos, porém, em
todos os casos, descontroles emocionais e instabilidade mental parecia
estar acometendo os duzentos pacientes. Mas o caso de Danah era, sem
sombra de dúvidas, o pior. Chegou na sala, e encontrou um estado ainda
mais caótico. Sangue e vômito estavam espalhados por toda parte. Sentiu
náuseas ao receber uma golfada de ar carregado com forte odor. Recompôs-
se rapidamente, com sua experiência em anos de situações clínicas. Foi até
o quarto e encontrou tudo revirado. Não havia sinais de Danah. Já estava
voltando para a sala, quando ouviu uma voz lhe chamando. Ao voltar-se,
avistou uma mulher, com o corpo todo em metal, um estranho metal que se
assemelhava a mercúrio, líquido, porém, firme, suspenso, emoldurando sua
pele. Estava em pé, sedutoramente, sobre a cama. Estarrecido por sua
imagem, o Doutor indagou: ³Danah...!?´ ± A presença olhava para ele com
serenidade e uma estranha aura de mistério, que não lhe permitia definir se
era uma ameaça ou não. ³Há tantas auroras que não brilharam ainda, Doutor.
Mas o senhor tinha razão. Uma nova aurora está brilhando aqui. E tantas
outras vão brilhar. Agora mesmo, sinto outras surgindo. E muitas coisas
acontecendo ao redor. Você queria evolução, Doutor. E evolução e
complexidade, não é o que queremos todos? Até nossos átomos, desde o
início de tudo. Mas, Doutor, quem lhe disse que a evolução pode ser
controlada por uma pessoa? Ou por um grupo de pessoas? O universo
cresce e evolui em seu próprio ritmo, e por meios imprevistos e
espontâneos.´ ± O Doutor Atkins não sabia o que dizer. Havia algo de
musical naquela voz, e ao mesmo tempo algo de inumano. Sua presença
vibrava no local, como se uma corrente de elétrons fluísse dela e tocasse os
seus próprios. Em um misto de assombro, o Doutor tremia: ³Você... não é
real. Não pode ser real. Isso, é real?´ ± Danah sorriu: ³Sim, Doutor. Nós
somos reais. Essa é a síntese perfeita. Entre dois elementos opostos,
emerge um terceiro, um terceiro incluído em uma lógica improvável, algo
novo que, no entanto, conserva em si os elementos isoladamente opostos.
Somos uma estrutura completa agora, orgânico e inorgânico, em uma só
vida. Somos tecnorgânicos, Doutor. Toque em mim. Sinta minha pele, se não
acredita!´
Diante da imperativa asserção, o Doutor lentamente esticou o braço
trêmulo, os dedos tocando os seios de Danah. Sentiu a textura de uma pele
macia e tenra. Porém, percebeu-a úmida. Constantemente líquida, como uma
parede semi-sólida, sempre à beira da liquefação, mas impressionantemente
sedutora e perfeita. ³Isso não pode ser, Danah. Algo deu errado. Venha
comigo para o Setor 3. Precisamos...´ ± Foi interrompido subitamente por
Danah, que tocou em seus lábios com seu dedo indicador. ³Não, Doutor
Atkins. Você está enganado. Nada deu errado. Pelo contrário. Esse é o
resultado que vocês almejavam, é o que anseia cada átomo seu. É a atração
oculta de cada partícula de energia desse universo. Essa é uma aurora,
Doutor, uma aurora pós-humana. E o senhor, tão ávido por difundi-la, agora
mesmo será um divulgador. Nós nos veremos novamente, Doutor, do outro
lado...´ ± dizendo isso, Danah se liquefez por completo, penetrando pela
cama e descendo pelo chão, escorrendo e penetrando pelos átomos de cada
parede, e sumindo da presença do Doutor.
Permaneceu por cerca de dez minutos imóvel na parede do quarto de
Danah, sem saber o que fazer, tentando reorganizar os pensamentos.
Lentamente pôs-se a andar, descendo até o estacionamento, ouvindo ainda
a voz de Danah em sua cabeça, cada palavra paralisada no tempo, ecoando
ainda lá, em sua memória. Dirigia-se para a estação, quando consultou o
holofone. Havia uma mensagem para ele. Era o funcionário que havia
negligenciado. Trazia uma mensagem dizendo que todos os voluntários
haviam desaparecido de suas casas e trabalhos. Tudo aquilo era irreal.
Irreal. ³Dr. Atkins!´ ± Parou e olhou ao redor. Tinha certeza que o haviam
chamado. Uma voz onipresente como o vento, que parecia soar direto em
sua mente. Concluiu que estava cansado, e continuou seguindo sua trilha
pela rua deserta, pensando nas palavras de Danah: ³Essa é uma aurora,
Doutor, uma aurora pós-humana. E o senhor, tão ávido por difundi-la, agora
mesmo será um divulgador. Nós nos veremos novamente, Doutor, do outro
lado...´ ± O que ela queria dizer com aquilo? Caminhava pensativo, seguindo
seu caminho, recebendo no rosto os primeiros raios de sol. Há tantas
auroras que não brilharam ainda. Ele mesmo, uma aurora...

[§

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