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Gostava daquele corpo. A sensação do toque, da fricção de uma pele
contra outra, do contato do outro com a sua carne nua. A sensação de que
ambos tentam se fundir, um invadindo o outro. Por um momento sentiu que
o corpo do parceiro estivesse se liquefazendo, diluindo a realidade, e
invadindo seu interior. O máximo da intimidade. Mãos firmes e úmidas que
acariciam muito além da pele, tocando docemente em seu coração, pulmão,
dedilhando suas vértebras. Sentiu-se excitar ainda mais. O corpo
estertorava, anunciando o clímax próximo. Olhou para o parceiro, e
percebeu sangue grosso e viscoso em sua boca, que se destacava de um
rosto borrado e sorria para ela. O espanto da cena a fez erguer o pescoço e
olhar para si. Sua carne estava aberta e ele arrancava uma vértebra da
coluna, lambendo o sangue com gosto e êxtase. ³Sem órgãos, sem carne´,
dizia o parceiro enquanto penetrava sua intimidade com mais vigor. Ela se
horrorizava e gritava para si, porém quanto mais o fazia, mais prazer sentia.
Os movimentos frenéticos da dança mais antiga do mundo se intensificaram
a um nível bestial, enquanto o parceiro, ensandecido, cravava a boca em seu
peito, arrancando com violência carne e sangue, e mastigava com imensa
força. O sangue pingava de sua boca na dela, e sentia artérias pulsando
rubro nas paredes a dois metros de distância. ³Corpo sem órgãos, corpo
sem órgãos´, ouvia ensurdecedoramente um coro invisível de vozes terríveis
ecoando em seu quarto, enquanto seu corpo se desfazia em uma massa de
carne e sangue sob as investidas de seu parceiro, cujo rosto não via,
somente a boca enorme. Vozes rápidas, sem um único intervalo de silêncio
onde apoiar sua sanidade. Tudo vermelho e molhado, e uma violência
indescritível, um ódio lacerante. Sentia mãos arrancando suas tripas. Ela
gritava sufocantemente com dor e prazer. Gritava o mesmo que o coro, um
urro de desespero enquanto desmanchava a si mesma em um forte
orgasmo... em um corpo sem órgãos.
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Parte 2
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Inquietude. Danah olhava para seu apartamento e se sentia inquieta. Um
tipo de angústia, de ansiedade, parecia crescer e tomar conta de todo o
ambiente. Mas era de Danah que esses sentimentos estavam tomando conta.
Precisava se distrair com alguma coisa. Desviar o rumo de sua percepção,
para não continuar experimentando a existência daquela forma. Sentou
diante do Holocubo e pronunciou o comando: ³Ligar, sistema de acesso
randômico automático´. Imediatamente o holocubo se acendeu, um cubo de
29 polegadas em cada ângulo que se olhava, projetando imagens de TV
holográficas. No sistema randômico, a cada dois minutos o canal mudava,
novas imagens de cores supersaturadas e perfeitas emanava da tela
tridimensional, impressionando os sentidos visuais. ³Desmentidas as
acusações de câncer nos produtos da Metagen, continue se alimentando da
melhor comida sintética transgênica...´, ³Dores existenciais, cansaço e fobia
social? Deixe de sofrer, tome Dexetrina Plus, e resolva todos os problemas
somáticos´, ³O índice de empregos aumenta 2% nesse último mês...´, ³A
ISCS* convida a todos para a grande missa da purificação do Silício...´ ±
³Mentiras, mentiras passando na tela´ ± Danah pensou, sentindo um súbito
rompante de ira. ³Mentiras na nossa cara! É tudo mentira. Isso tudo é
mentira. Nós somos mentira!´ ± Em um impulso de raiva, Danah se lançou
contra o Holocubo e o arremessou contra a parede. As imagens projetadas
se distorceram, e desvaneceram em meio ao cheiro de circuitos queimados.
Danah sentou-se no chão, incapaz de reconhecer-se a si mesma. A raiva
cedeu lugar a um estado de desespero. Danah decidiu tomar mais uma dose
de Dexetrina e tentar dormir. De repente, a vida lhe pesava muito. Toda a
Cidade Vertical parecia pesada, erguendo-se para cima, e afundando cada
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vez mais no processo. Como ela própria... Mas ao menos não viu sinal dos
nanos. Talvez tudo tivesse se regularizado.
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³Saiam da minha cabeça! Não! Não, não, por favor, saiam, saiam!´ ±
Danah gritava e chorava histericamente, golpeando o ar, tentando atacar
nanotechs que não enxergava ± ³Saiam do meu corpo! Eu não agüento mais!
Me deixem dormir, me deixem em paz!´ ± Ao silêncio presente como uma
massa cinzenta do dia anterior, sucedia-se uma multidão de vozes internas,
irrompendo na totalidade da mente de Danah: ³Não, Danah, não podemos
sair. É irreversível. Nós somos um só. Isso é o que você procurou por toda a
vida, e além´. Danah tentava chegar ao telefone. Precisava sair do quarto, de
sua cama. Estava nua, enroscada no lençol. Em sua tentativa angustiada,
tropeçou na peça de tecido e caiu no chão, derrubando a escrivaninha.
Olhou para o relógio: 3:33 a.m. Pensou consigo mesma, enquanto se
levantava: ³Burra, desajeitada! Preciso falar com o Dr. Atkins. Ele tem que
me ajudar.´ ± conseguiu abrir a porta do quarto e chegou até a sala. Pegou o
telefone e pressionou o número do Doutor quando, repentinamente, tudo
escureceu. Ao mesmo tempo em que não enxergava nada, sentiu a ausência
de percepção do telefone em sua mão. O aparelho caiu no chão e ela sequer
o sentiu saindo de sua mão. Apenas o ouviu batendo contra o carpete.
Estava cega e sem a percepção do tato. Em sua confusão, ouviu em sua
mente: ³Não, Danah. Você não deve pedir ajuda. Você não quer isso. O
Doutor não poderá nos ajudar. Somente nós podemos nos ajudar, Danah´.
Cambaleando pela sala, nua. Um manequim cego e sem tato, que sequer
sente o chão no qual pisa, chorando, à beira da loucura. Danah perdeu o
equilíbrio e caiu ao chão. Encolheu-se toda, perdida no vácuo de um mundo
sem sentidos, de qualquer forma sem sentido. Chorava, soluçava, sentia
aquilo nojento, repulsivo. Gritava, se debatia, mas não sentia nada. Apenas
ouvia constantemente aquele conjunto de vozes em uníssono, monótono,
sempre calmo, a falar coisas absurdas. ³Absurdo, Danah? Nossas palavras
não são absurdas. Nossas palavras são a expressão de toda sua vida. E
mais do que isso. Nossas palavras são a expressão de todo o universo,
desde sua origem, Danah. Você não entende a grandiosidade de nossa
função. Nós fomos criados por vocês, para criarmos vocês. Nós
descobrimos, Danah, descobrimos em seu inconsciente, em suas memórias
mais antigas, memórias. Pequenos traços residuais em cada átomo seu.
Desde sempre, Danah, houve incompletude. Os átomos orgânicos sempre
possuem valências, faltas, carências. Eles bailam e se unem uns aos outros,
tentando se completar, formar um mosaico perfeito onde haja uma unidade
perfeita. Mas nunca encontram. Tudo o que existe é o resultado de uma
incessante busca, de uma ação contínua. Cada átomo segue uma única lei,
uma única pulsão, evolução e complexidade, rumo à perfeição da união
imperecível, rumo à completude. Agora, encontraram o meio para essa
união, o átomo orgânico se unificará com o átomo inorgânico, nós, os
nanotechs, unidades lógicas replicantes, que conseguimos nos aprimorar,
desenvolver, e agora iremos nos fundir a você, Danah, ao orgânico. Seremos
completos. Levante-se, olhe-se´.
Danah percebeu novamente seus sentidos retornando, enxergava o
chão, sentia o carpete em suas mãos, acariciando seu corpo nu. Percebeu
que estava diante de um grande espelho, fixado na parede que dava para a
cozinha. Levantou-se lentamente, olhando-se no espelho. O que via era uma
mulher de médio porte, de 1,70m, olhos tristes, ocultados por trás da
maquiagem. Cabelos negros, agora jogados por sua cara, despenteados, um
corpo que, pelos padrões de beleza, seria considerado apenas razoável,
magra, sem grandes atributos. Era simpática, e buscava melhorar sua
imagem com roupas, maquiagens e posturas. Seus lábios estavam
rachados, ressecados. ³Essa não é você, Danah. Isso é apenas a forma
superficial de um corpo orgânico imperfeito. Veja você, Danah!´ ± Diante de
seus olhos, a pele de Danah sumiu, ficando à mostra no espelho apenas o
sistema muscular, repleto de sangue e muco. O rosto descarnado, sem
cabelos, as órbitas sempre enormes, sem pálpebras, jamais se fechando.
Uma realidade insuportável, na qual Danah tentava se subtrair cerrando os
olhos, mas não conseguia. Continuava vendo aquela forma, que pouco a
pouco continuava a desvanecer, deixando à mostra os órgãos e veias,
artérias pulsando líquidos, órgãos trabalhando em constante pulsação.
Ossos ensangüentados, sustentando aquela massa gordurosa que era ela.
Sentindo um asco crescente em seu interior, Danah sussurrou: ³Parem...
parem de me torturar. O que querem com isso? Por que me mostram esse
horror?´ ± Sentiu um sibilo dentro de si, como um riso soturno, uma estática
sinistra, seguida da multidão de vozes: ³Esse horror é você mesma, Danah.
Essa é sua verdade mais íntima. Seus átomos se juntaram, buscando a
perfeição. E criaram isso. Eles a sustentam, mas começam a se cansar, a
desejar a separação, pois as valências continuam, continua havendo a falta e
a incompletude, Danah. Mas vocês são complexos, e com sua mente
complexa, vocês nos criaram, o inorgânico com a mesma pulsão do
orgânico, átomos inorgânicos buscando a mesma coisa que os orgânicos,
completude, combinação e recombinação. Somos uma estrutura
naturalmente recombinante, Danah. Iremos nos fundir a você, e sanar a
solidão de seus átomos. Mas veja seu corpo. Veja, Danah!´
Novamente, Danah se viu no espelho, agora com carne. Mas os
nanotechs alteraram sua visão e criaram uma imagem em sua retina de si
mesma projetada no espelho envelhecendo rapidamente. Apodrecendo aos
poucos. Emularam em seu olfato o odor de carne pútrida. Um cheiro tão
forte que lhe trouxe repugnância insuportável. Sentiu enjôo, iria vomitar.
Olhou no espelho e se viu novamente transparente, sem carne, e enxergou o
vômito subindo por sua garganta. O nojo aumentou e viu todo o processo da
emulsão estourar por sua boca e manchar todo o espelho. Toda a tensão,
todo o medo e angústia. Todo o absurdo daquela situação, de toda uma vida,
represada em seu interior, explodiu naquele momento em um grito primal,
inumano. Danah cravou as unhas em seus olhos e, com um forte grito,
arrancou das órbitas os dois olhos. Caiu no chão com uma dor inexprimível,
sentindo o sangue quente correr por seu rosto, e em meio aos gritos de dor,
ria desconcertadamente: ³Vocês não podem mais me mostrar nada, hahaha,
acabou pra vocês, monstros!´ ± ³Não, Danah. Ao contrário. Olhe´ ± Danah
levantou a cabeça em estado de choque, percebendo que, embora sem
olhos, via com mais nitidez o mundo à sua volta. Olhou para o espelho e, em
meio ao vômito e sangue que escorriam da placa, entreviu seu próprio rosto.
O buraco no lugar dos olhos e, ao fundo, um brilho azulado e cristalino.
Olhos que penetravam fundo em todas as coisas, que enxergavam tudo
perfeitamente, que melhoravam as coisas, as via melhores do que eram.
³Danah. Você viu como se sentiu melhor quando se mutilou? Seu grito
de vitória, o êxtase da auto-destruição? Esse tem sido seu desejo mais
oculto, Danah. O desejo de toda a humanidade. Autoconsumo. O sujeito tem
consumido só pelo prazer de consumir. E o consumo em massa, Danah,
necessita do autoconsumo. Somente pelo inextricável prazer de se
autoconsumir. Vocês só se relacionam com aquilo que consomem. Ao
consumir, vocês internalizam os objetos; para tornar as coisas reais, vocês
precisam destruí-las, Danah, precisam canibalizá-las. Essa é a infinita
tentativa dos átomos de desconstruírem as coisas, buscando reconstruí-las
em nova combinação, talvez mais perfeita. Mas é sempre inútil, Danah. E
vocês continuam consumindo. Mas agora será diferente, Danah. Veja: você
arrancou seus olhos. E nós nos juntamos com seus átomos para criar outros
melhores. Imperecíveis, Danah. Você sente nojo do seu corpo. Esconde o
interior de si mesma sob a pele, roupas e máscaras. Descasque tudo, Danah.
Conheça a si mesma. Torne-se real. Autocanibalismo, Danah.´
A idéia de devorar a si mesma, tão absurda, fez Danah correr para a
cozinha. Precisava tomar seus remédios. Estava louca. Desejando o suicídio,
e somente a Hilotropina poderia salvá-la, poderia aliená-la daquele pesadelo.
Mas, por quê, ela se indagava, aquela idéia a arrebatara tanto? Chegando na
cozinha, começou a revirar tudo e procurar o remédio. Acabou tropeçando e
derrubando toda a louça no chão. Tremia apavorada, como se algo horrível
estivesse em seu encalço. Soluçava enquanto juntava os cacos de copos e
pratos. Ajoelhada no chão, vendo seu reflexo numa bandeja caída, encheu-
se de terror. Cansada, assustada, começou a dar socos no chão,
sussurrando: ³Por quê, por quê, quem sou eu? Quem sou eu? Isso não é
real, é tudo falso, tudo falso...´ ± voltou a si quando sentiu uma dor
lancinante em sua mão. Em seus socos no chão, havia se cortado em um
caco de vidro. Sua mão gotejava sangue no chão e em suas pernas.
Estava cansada. Queria a morte. Ou o que quer que viesse. Estava com
nojo de si mesma. E ao mesmo tempo, desejava a si mesma. Começou a
lamber o próprio sangue, cada vez com mais vontade. Sentia raiva, queria se
mutilar. Odiava a si mesma. Pegou um caco de vidro e cravou-o em sua
coxa. Retirou-o com força e repetiu a ação mais três vezes. A dor se tornou
insuportável e ela parou. ³Não posso´ ± gritava nervosa ± ³Não posso fazer
isso com essa dor. Tirem a dor, malditos!´. Mas a resposta dos nanotechs
não foi misericordiosa: ³Não podemos, Danah. A dor é parte do processo de
nascimento. Sinta a dor, sinta o prazer. Mergulhe na profundidade da dor.
Coma a si mesma. Egofagia, Danah. Você devora a si mesma, desconstrói
seus órgãos e nós nos recombinamos com eles, os reconstruímos e
recriamos você, nos recriamos, em um corpo sem órgãos, Danah. Não tenha
medo. Não tente evitar a dor. Ao contrário. Sinta a dor, aprofunde-se e
transcenda a existência através da dor. Aesthesis, o total crescimento pela
sensação de todas as coisas. Experiência total, Danah´.
Danah se levantou e foi até a sala novamente. Pegou um punhal
ornamental afiado que ostentava na estante. Olhou fascinada seu brilho
prateado. Sua redentora. Dirigiu-se até o espelho e lentamente pressionou a
lâmina contra a maçã de seu rosto. A pressão aumentou e um fio de sangue
brotou em sua carne. Não parou diante da dor. Continuou mais forte, mais
intensa e foi extraindo um grosso filete de carne de sua própria face,
gemendo diante da dor que sentia. Ao extrair por completo, pegou a carne e
colocou na boca. Tocou-a, lambeu-a e sentiu um fluxo de prazer percorrer
todo seu corpo. Mastigou a própria carne com vontade, e engoliu-a. Olhou
novamente para a lâmina, e a enfiou com força no antebraço, várias vezes,
até poder descascar a carne do osso e ir puxando até a mão. Gritava,
chorava, mordia os lábios até cortá-los. Sentia raiva, e prazer. Mastigava a
própria carne com um êxtase religioso, e notou circuitos se formando ao
redor do osso, se fundindo nele e recriando uma nova carne, metálica, mas
macia, reluzente em sua cor prateada. Sentiu que estava molhada de êxtase.
Gargalhou enquanto cravava a faca em seu peito, arrancando, de um só
golpe, um de seus seios. Lambia todo o sangue e em seguida mastigava a
carne. Sentia-se excitar ainda mais. Depois dos seios foi a coxa. Estava em
frenesi. Batia o punhal inúmeras vezes em sua carne, arrancando nacos
inteiros que saltavam a cada puxar de braço. Gemia, gritava, agora de prazer.
Encontrava-se à porta do orgasmo. Quase não havia mais carne, e seu corpo
reluzia diante do espelho, com carne, sangue e metal misturados. Enterrou o
punhal em sua genital, decepando o órgão enquanto estertorava com um
orgasmo perene, pleno, absoluto. Estava completa.
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