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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da FCLAr - Faculdade de Ciências e Letras de
Araraquara na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Membro do GEPAC/UNESP –
Grupo de Estudos e Pesquisas em Antropologia Contemporânea da UNESP.
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“Nóiz” (Emicida) – O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui - 2013
poderão incorporar a energia inquieta e revisionária deste se transformarem o
presente em um lugar expandido e ex-cêntrico de experiência e aquisição de
poder [...].
A significação mais ampla da condição pós-moderna reside na consciência de
que os “limites” epistemológicos daquelas ideias etnocêntricas são também
fronteiras enunciativas de uma gama de outras vozes e outras histórias
dissonantes, até dissidentes. (BHABHA, 1998: 23-24)
Ao afirmarem que toda enunciação vem de algum lugar criticam o lugar do sujeito nas
ciências sociais e apontam o limite desse conhecimento que está marcado por um recorte binário
que eles chamam de “West and Rest” (o ocidente e o resto), o qual, segundo eles, está na base das
ciências sociais. Pois esses pressupostos epistemológicos da forma de fazer sociologia
contribuem para o pensamento de que moderno é tudo aquilo que os não ocidentais não são
fazendo com que esse sistema de pensamento comporte uma relação assimétrica de poder e
demonstrando como a perspectiva colonial está inscrita nas ciências sociais e dessa forma como
as ciências sociais estão imersas na cegueira epistemológica do binarismo e entrelaçadas como a
história da modernidade.
Ao criticar os essencialismos problematizam a questão e ou o conceito da identidade e
afirmam que a identidade é formada ao longo do tempo e por isso pensam em processo de
identificação e não em identidade fixa.
Stuart Hall em A identidade cultural da pós-modernidade parte da afirmação que as
identidades modernas estão descentradas, fragmentadas, deslocadas para examinar as definições
de identidade e o caráter da mudança na modernidade tardia. Ele aponta três concepções de
identidade e traça os estágios através do qual o sujeito emergiu pela primeira vez na idade
moderna; como ele se tornou "centrado", nos discursos e práticas que moldaram as sociedades
modernas; como adquiriu uma definição mais sociológica ou interativa; e como ele está sendo
descentrado na modernidade tardia.
As três concepções de identidade apontadas por Hall são:
a) Identidade do sujeito do iluminismo;
b) Identidade do sujeito sociológico;
c) Identidade do sujeito pós-moderno.
Segundo Hall, o sujeito do iluminismo era centrado, unificado, dotado das capacidades de
razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela
primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo
essencialmente o mesmo. Ou seja, o centro referencial do eu era sua identidade.
Já a identidade do sujeito sociológico era formada na “interação” entre o eu e a sociedade.
Um sujeito não autônomo e autossuficiente. Ainda tinha seu núcleo, mas mantinha diálogos com
os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos ofereciam. Ou seja, a
identidade era a ponte entre “interior” (pessoal) e “exterior” (público). A identidade estabilizava
esses dois mundos e os deixava unificados e predizíveis.
É justamente com as mudanças estruturais e institucionais, sobretudo no “mundo exterior”
que faz do sujeito pós-moderno ser fragmentado. Composto não mais por uma, mas por várias
identidades (contraditórias e ou dissolvidas).
O processo de identificação tornou-se provisório, variável e problemático. Esse processo
faz do sujeito pós-moderno um sujeito sem uma identidade fixa, essencial ou permanente. A
identidade é uma celebração móvel formada e transformada continuamente em relação às formas
pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Ela é
definida historicamente e não biologicamente assumindo diferentes posições em diferentes
momentos. A identidade não é mais unificada ao redor de um “eu” coerente.
Esses diferentes momentos Homi Bhabha chama de fronteiras do presente e afirma que
esse sujeito que vive nessas fronteiras possui uma existência marcada por uma tenebrosa
sensação de sobrevivência.
Segundo Bhabha, o afastamento das singularidades de classe como categorias conceituais
e organizacionais básicas resultou em uma consciência das posições do sujeito. E agora importa
pensar a cultura na esfera do “além”. Esse além não é um novo horizonte, ou um abandono do
passado. Pelo contrário, esse além é estar aqui e lá; ir para lá e para cá; para frente e para trás. Ir
além das narrativas de subjetividades e focalizar aqueles momentos e processos que são
produzidos na articulação de diferenças culturais.
Essas fronteiras, ou esses “entre lugares” fornecem estratégias de subjetivação e dá início
a novos signos de significação. Até mesmo no reconhecimento que a tradição outorga é uma
forma parcial de identificação, pois ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades
culturais incomensuráveis na invenção da tradição e isso afasta qualquer acesso imediato a uma
identidade original ou uma tradição “recebida”.
Esse processo que se dá no interstício entre identificações fixas abre para o hibridismo
cultural e acolhe a diferença cultural sem hierarquia suposta ou imposta.
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Marc Augé inclusive diferencia sobremodernidade de pós-modernidade. Segundo ele, na sobremodernidade a
dificuldade de pensar o tempo, por exemplo, está mais ligada a superabundância factual do mundo contemporâneo
do que com a derrocada de uma ideia de progresso. (AUGÉ, 1994, p. 32-33). Contudo, penso que a discussão e a
discordância desses termos/conceitos (pós-modernidade e sobremodernidade) não é muito profícua e ou oportuna
para esse texto.
consideráveis modificações, gerando e multiplicando aquilo que ele chama de “não-lugares” se
opondo a tradição sociológica de lugar de uma cultura localizada no tempo e no espaço.
O mundo da supermodernidade nos obriga a reaprender pensar o espaço, uma vez que ele
não tem mais dimensões exatas na qual podemos viver.
Por fim temos a figura do excesso do ego, do indivíduo, ou melhor, do excesso da
individualização de referências. Nas sociedades ocidentais, o indivíduo quer um mundo para ser
mundo. Ele pretende interpretar por e para si mesmo as informações que lhe são entregues.
Nunca as histórias individuais foram tão explicitamente referidas pela história coletiva, mas
nunca, também, os pontos de identificação coletiva foram tão flutuantes. A produção individual
de sentido (ou o processo de identificação) é, portanto, mais do que nunca, necessária. Contudo,
essa produção de sentido individual e esse processo de identificação são um tanto considerável
complicado na supermodernidade.
O lugar pode ser elemento constitutivo da identidade individual no sentido que nascer é
nascer em um lugar, ser designado residência. Esse lugar é histórico, possui uma estabilidade
mínima, mas também traz consigo uma multiplicidade de referências, pois em um mesmo lugar
pode coexistir elementos distintos e singulares, que serão partes importantes no processo de
identificação a longo da vida desse sujeito.
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“Pedaço” é uma categoria “nativa” que Magnani se apropriou sabiamente para denominar esse espaço. Trata-se de
uma gíria paulistana do final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Muito provavelmente hoje o “pedaço” se
equivale à “quebrada” – o que corresponde a uma atualização daquela gíria mais ou menos com o mesmo significado
em 2014. Macha trajeto e circuito são termos “emprestados” do urbanismo.
Para ser do pedaço é necessário estar situado (e ser reconhecido como tal) em uma rede de
relações que combina família, vizinhança, procedência, vínculos definidos por participações em
atividades comunitárias e desportivas etc. Ou seja, o pedaço combina uma relação espacial e
simbólica. O pedaço é aquilo que Augé (1994) chama de lugar.
Além do pedaço, Magnani destaca também a “mancha” como forma de apropriação de
lugares que se tornam ponto de referência para diversos frequentadores. “Sua base física é mais
ampla, permitindo a circulação de gente de várias procedências e sem o estabelecimento de laços
mais estreitos entre eles.” (MAGNANI, 2012: 94).
A mancha caracteriza-se por um espaço urbano contíguo onde se encontram
equipamentos que marcam seus limites e viabilizam uma atividade ou prática dominante. A
mancha pode ser um potencial não-lugar.
Quando os sujeitos se deslocam aos seus pedaços no interior de uma mancha seguem
caminhos não aleatórios. Segundo Magnani esses fluxos recorrentes no espaço da cidade e no
interior das manchas são os trajetos.
A noção de circuito trata de uma categoria que descreve o exercício de uma prática ou
oferta de determinado serviço em estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantém
entre si uma relação de contiguidade espacial, sendo reconhecido em seu conjunto pelos usuários
habituais. (MAGNANI, 2012: 97)
Código-território
Néstor Perlongher em seu livro “O negócio do michê – prostituição viril em São Paulo”
mostra como uma determinada região da cidade de São Paulo se tornou o principal ponto de
encontro de grande parte do grupo homossexual de São Paulo.
Perlongher recorre ao trabalho de Barbosa da Silva sobre o gueto gay paulistano para ter
uma visão global da história da região. O depoimento de Clóvis é interessante para ter uma ideia
como tal região já era conhecida por determinadas práticas.
Um pouco antes da década de 60, eu morava em Santos como minha família [...]
Vínhamos a São Paulo de trem. Isso era por volta de 1959. Eu tinha um grande
fascínio pelo mundo gay, queria saber como era, onde é que estava. Chegava à
cidade escutando: é na Rua São Luís, na esquina da Ipiranga com a São João.
Assediava esses lugares, existia o fascínio de um adolescente para com locais
frequentados por pessoas adultas. (PERLONGHER, 1987: 73)
Uma territorialidade expressa num código peculiar que distribui atribuições categoriais a
corpos e desejos em movimento. Ou seja, o território aparece como referência para notar a
produção de subjetividades.
Significa dizer que a territorialidade não se limita a um espaço físico, mas, sobretudo, ao
espaço do código, pois é este código que se inscreve num determinado lugar e lhe dá um sentido
muito menos descritivo (o que é feito lá) do que prescritivo (o que pode ser feito lá). (PELÚCIO.
2007)
Tais considerações vão além das observações de Magnani que pensa o pedaço como
espaço de relações e a mancha como uma área contígua do espaço urbano dotada de
equipamentos que viabilizam uma atividade ou prática predominante. Perlongher foi feliz em
notar que quem ocupa um lugar é um sujeito que em algum momento assume um discurso que
coincide com o do lugar ocupado. Ou ainda, que estar nesse lugar dá ensejo a, no mínimo, ser
reconhecido como conivente com o discurso daquele lugar no momento da ocupação. E que não
quer dizer que em todos os momentos da vida desse sujeito esse discurso será o mesmo. Muito
pelo contrário, ao longo de sua trajetória ele ocupará diversos lugares e assumirá ou será
reconhecido por ser portador de diversos discursos.
Considerações finais
Ao fim desse texto chego a pensar que as constatações aqui apresentadas podem parecer
um tanto óbvias. A cidade é, de fato, um território que serve de reconhecimento das marcas
identitárias. O verso do rap que está como epígrafe desse texto mostra que o rapper Emicida está
bem adiantado na compreensão da cidade e dos citadinos (aliás, como sempre a arte é anterior e
superior às tentativas assim chamadas científicas).
A cidade é composta por ruas. Não há cidade sem ruas. E se “a rua é nóis” está claro que
“a cidade é nóis”. Quem faz a cidade, de quem é a cidade, ou melhor, quem é a cidade? É o
sujeito. É o sujeito que não possui identidade fixa essencializada; que individualiza suas
referências ao extremo e que vive nos não-lugares. É o sujeito que produz e vive nos pedaços e
manchas e se desloca nos trajetos e circuitos. É o sujeito que produz o território que o faz ser
reconhecido e produz suas marcas identitárias. A cidade é aquilo que o sujeito quer dela e este
passa ser aquilo que a cidade quer dele.
Essa reflexão é bastante preliminar, pode haver falhas e com certeza necessita de
aprimoramento. Contudo, no momento estou bem convencido de que o que aqui apresento
corresponde às minhas impressões da cidade contemporânea.
Bibliografia