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A cidade como território de reconhecimento de marcas identitárias

André Rocha Rodrigues1

“Mas minha palavra não sou só eu


Minha palavra é a cidade
Mundão redondo, capão redondo,
coração redondo,
Na ciranda da solidariedade
A rua é nóis, cumpadi”2

Os pós-coloniais e os processos de identificação

Os estudos pós-coloniais não se constituem como um movimento e ou uma matriz teórica


uniforme, mas de várias contribuições de autores distintos (Homi Bhabha, Edward Said, Gayatri
Chakravorty Spivak, Stuart Hall e Paul Gilroy). Contudo, esses autores tem em comum a crítica à
essencialização dos conceitos e a desconstrução dos essencialismos com uma referência
epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade. Realizando assim uma crítica
ao processo de conhecimento científico vigente e ao modernismo como teleologia da história que
apresentava a história como um desenvolvimento irreversível e que opunha modernidade e
tradição.
O “pós” dos pós-coloniais não significa depois ou sequência linear, cronológica, mas uma
reconfiguração do nosso campo discursivo. Afirmam que toda enunciação vem de algum lugar.
Esse discurso é no sentido foucaultiano. Ou seja, reconfigurar o campo discursivo é pensar o
descentramento das narrativas e do próprio sujeito.

Se o jargão de nossos tempos – pós-modernidade, pós-colonialidade, pós-


feminismo – tem algum significado, este não está no uso popular do “pós” para
indicar sequencialidade – feminismo posterior – ou polaridade –
antimodernismo. Esses termos que apontam insistentemente para o além só

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da FCLAr - Faculdade de Ciências e Letras de
Araraquara na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Membro do GEPAC/UNESP –
Grupo de Estudos e Pesquisas em Antropologia Contemporânea da UNESP.
2
“Nóiz” (Emicida) – O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui - 2013
poderão incorporar a energia inquieta e revisionária deste se transformarem o
presente em um lugar expandido e ex-cêntrico de experiência e aquisição de
poder [...].
A significação mais ampla da condição pós-moderna reside na consciência de
que os “limites” epistemológicos daquelas ideias etnocêntricas são também
fronteiras enunciativas de uma gama de outras vozes e outras histórias
dissonantes, até dissidentes. (BHABHA, 1998: 23-24)

Ao afirmarem que toda enunciação vem de algum lugar criticam o lugar do sujeito nas
ciências sociais e apontam o limite desse conhecimento que está marcado por um recorte binário
que eles chamam de “West and Rest” (o ocidente e o resto), o qual, segundo eles, está na base das
ciências sociais. Pois esses pressupostos epistemológicos da forma de fazer sociologia
contribuem para o pensamento de que moderno é tudo aquilo que os não ocidentais não são
fazendo com que esse sistema de pensamento comporte uma relação assimétrica de poder e
demonstrando como a perspectiva colonial está inscrita nas ciências sociais e dessa forma como
as ciências sociais estão imersas na cegueira epistemológica do binarismo e entrelaçadas como a
história da modernidade.
Ao criticar os essencialismos problematizam a questão e ou o conceito da identidade e
afirmam que a identidade é formada ao longo do tempo e por isso pensam em processo de
identificação e não em identidade fixa.
Stuart Hall em A identidade cultural da pós-modernidade parte da afirmação que as
identidades modernas estão descentradas, fragmentadas, deslocadas para examinar as definições
de identidade e o caráter da mudança na modernidade tardia. Ele aponta três concepções de
identidade e traça os estágios através do qual o sujeito emergiu pela primeira vez na idade
moderna; como ele se tornou "centrado", nos discursos e práticas que moldaram as sociedades
modernas; como adquiriu uma definição mais sociológica ou interativa; e como ele está sendo
descentrado na modernidade tardia.
As três concepções de identidade apontadas por Hall são:
a) Identidade do sujeito do iluminismo;
b) Identidade do sujeito sociológico;
c) Identidade do sujeito pós-moderno.
Segundo Hall, o sujeito do iluminismo era centrado, unificado, dotado das capacidades de
razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela
primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo
essencialmente o mesmo. Ou seja, o centro referencial do eu era sua identidade.
Já a identidade do sujeito sociológico era formada na “interação” entre o eu e a sociedade.
Um sujeito não autônomo e autossuficiente. Ainda tinha seu núcleo, mas mantinha diálogos com
os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos ofereciam. Ou seja, a
identidade era a ponte entre “interior” (pessoal) e “exterior” (público). A identidade estabilizava
esses dois mundos e os deixava unificados e predizíveis.
É justamente com as mudanças estruturais e institucionais, sobretudo no “mundo exterior”
que faz do sujeito pós-moderno ser fragmentado. Composto não mais por uma, mas por várias
identidades (contraditórias e ou dissolvidas).
O processo de identificação tornou-se provisório, variável e problemático. Esse processo
faz do sujeito pós-moderno um sujeito sem uma identidade fixa, essencial ou permanente. A
identidade é uma celebração móvel formada e transformada continuamente em relação às formas
pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Ela é
definida historicamente e não biologicamente assumindo diferentes posições em diferentes
momentos. A identidade não é mais unificada ao redor de um “eu” coerente.
Esses diferentes momentos Homi Bhabha chama de fronteiras do presente e afirma que
esse sujeito que vive nessas fronteiras possui uma existência marcada por uma tenebrosa
sensação de sobrevivência.
Segundo Bhabha, o afastamento das singularidades de classe como categorias conceituais
e organizacionais básicas resultou em uma consciência das posições do sujeito. E agora importa
pensar a cultura na esfera do “além”. Esse além não é um novo horizonte, ou um abandono do
passado. Pelo contrário, esse além é estar aqui e lá; ir para lá e para cá; para frente e para trás. Ir
além das narrativas de subjetividades e focalizar aqueles momentos e processos que são
produzidos na articulação de diferenças culturais.
Essas fronteiras, ou esses “entre lugares” fornecem estratégias de subjetivação e dá início
a novos signos de significação. Até mesmo no reconhecimento que a tradição outorga é uma
forma parcial de identificação, pois ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades
culturais incomensuráveis na invenção da tradição e isso afasta qualquer acesso imediato a uma
identidade original ou uma tradição “recebida”.
Esse processo que se dá no interstício entre identificações fixas abre para o hibridismo
cultural e acolhe a diferença cultural sem hierarquia suposta ou imposta.

Os não-lugares produzidos pela sobremodernidade

Os estudos pós-coloniais chamam de pós-modernidade aquilo que seria uma categoria


empírica que descreve o descentramento das narrativas e dos sujeitos na contemporaneidade.
Marc Augé prefere o termo supermodernidade para pensar o contemporâneo, o qual para ele
passa por transformações agudas3. Segundo Augé, a ssupermodernidade é marcada pela
necessidade diária do sujeito dar sentido ao mundo a partir de um tempo concebido com uma
dinâmica inexorável.

Essa necessidade de dar sentido ao presente, senão ao passado, é o resgate da


superabundância factual que corresponde a uma situação que poderíamos dizer
de “supermodernidade” para dar conta de sua modalidade essencial: o excesso
(AUGÉ, 1994: 32).

É a figura do excesso que define a supermodernidade. Sobretudo, excesso de tempo,


espaço e do indivíduo.
No mundo contemporâneo é muito difícil pensar o tempo em meio à superabundância
factual. Da nossa exigência de compreender todo o presente decorre nossa dificuldade de dar um
sentido ao passado próximo. Daí nossa angústia com o tempo.
O excesso do espaço, também característico da ssupermodernidade, pode ser pensado no
paradoxo do encolhimento do planeta, no sentido da comunicação e na mudança de escalas com o
desenvolvimento dos meios de transporte, mas também no alargamento do espaço quando
sentimos que estamos diante do mundo todo. Essa superabundância espacial resulta em

3
Marc Augé inclusive diferencia sobremodernidade de pós-modernidade. Segundo ele, na sobremodernidade a
dificuldade de pensar o tempo, por exemplo, está mais ligada a superabundância factual do mundo contemporâneo
do que com a derrocada de uma ideia de progresso. (AUGÉ, 1994, p. 32-33). Contudo, penso que a discussão e a
discordância desses termos/conceitos (pós-modernidade e sobremodernidade) não é muito profícua e ou oportuna
para esse texto.
consideráveis modificações, gerando e multiplicando aquilo que ele chama de “não-lugares” se
opondo a tradição sociológica de lugar de uma cultura localizada no tempo e no espaço.

Os não-lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das


pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os
próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os
campos de trânsito prolongado onde são alojados os refugiados do planeta.
(AUGÉ, 1994: 36)

O mundo da supermodernidade nos obriga a reaprender pensar o espaço, uma vez que ele
não tem mais dimensões exatas na qual podemos viver.
Por fim temos a figura do excesso do ego, do indivíduo, ou melhor, do excesso da
individualização de referências. Nas sociedades ocidentais, o indivíduo quer um mundo para ser
mundo. Ele pretende interpretar por e para si mesmo as informações que lhe são entregues.
Nunca as histórias individuais foram tão explicitamente referidas pela história coletiva, mas
nunca, também, os pontos de identificação coletiva foram tão flutuantes. A produção individual
de sentido (ou o processo de identificação) é, portanto, mais do que nunca, necessária. Contudo,
essa produção de sentido individual e esse processo de identificação são um tanto considerável
complicado na supermodernidade.
O lugar pode ser elemento constitutivo da identidade individual no sentido que nascer é
nascer em um lugar, ser designado residência. Esse lugar é histórico, possui uma estabilidade
mínima, mas também traz consigo uma multiplicidade de referências, pois em um mesmo lugar
pode coexistir elementos distintos e singulares, que serão partes importantes no processo de
identificação a longo da vida desse sujeito.

Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço


que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como
histórico definirá um não-lugar (AUGÈ, 1994: 73)

Segundo Augé, a supermodernidade é especialista em produzir não-lugares. Entretanto,


afirma que esse não-lugar como lugar nunca é puro, pois lugares se recompõem nele; relações se
reconstituem nele; e nele pode-se desenvolver estratégias. O não-lugar nunca se realiza
totalmente. Contudo, se chamarmos de “espaço” à prática dos lugares da uma viagem onde o
indivíduo experimenta como expectador sem se importar muito (ou nada) com o que está diante
dos seus olhos pode-se afirmar que o espaço do viajante seria, assim, o arquétipo do não-lugar.
A supermodernidade impõe de maneira tal consciências individuais, novas experiências e
vivências de solidão que é possível admitir que ela está diretamente ligada ao surgimento e à
proliferação de não-lugares. Desse modo fica evidente que o não-lugar designa duas realidades
complementares, mas diferentes: espaços constituídos em relação a certos fins e a relação que os
indivíduos mantêm com esses espaços. Se essas relações se correspondem cria-se a tensão
solitária característica da sobremodernidade. Ou seja, para se caracterizar como não-lugar o
espaço depende de sua finalidade e da relação do indivíduo com essa finalidade.
E com isso é possível afirmar que a possibilidade do não-lugar nunca está ausente de
qualquer lugar que seja, pois na supermodernidade sempre se está e nunca se está em casa.

Pedaço, mancha, trajeto e circuito

A cidade contemporânea abriga sujeitos com identidades descentradas e também não-


lugares. José Guilherme C. Magnani destaca as apropriações desses sujeitos da e na cidade. A
partir daí eleva as categorias nativas e suas percepções a conceitos de análise. Esses conceitos
são: pedaço, mancha, trajeto e circuito4.
Quando um espaço mais ou menos demarcado torna-se referência para diferenciar um
grupo de frequentadores como pertencentes a uma rede de relações, recebe o nome de pedaço.

O termo, na realidade, designa aquele espaço intermediário entre o privado (a


casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que
a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as
relações formais e individualizadas impostas pela sociedade. [...] Para além da
soleira da casa, portanto, não surge repentinamente o resto do mundo. Entre uma
e outro situa-se um espaço de mediação cujos símbolos, normas e vivências
permitem reconhecer as pessoas diferenciando-as, o que termina por atribuir-
lhes uma identidade que pouco tem a ver com a produzida pela interpelação da
sociedade mais ampla e suas instituições (MAGNANI, 1998: 116-117)

4
“Pedaço” é uma categoria “nativa” que Magnani se apropriou sabiamente para denominar esse espaço. Trata-se de
uma gíria paulistana do final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Muito provavelmente hoje o “pedaço” se
equivale à “quebrada” – o que corresponde a uma atualização daquela gíria mais ou menos com o mesmo significado
em 2014. Macha trajeto e circuito são termos “emprestados” do urbanismo.
Para ser do pedaço é necessário estar situado (e ser reconhecido como tal) em uma rede de
relações que combina família, vizinhança, procedência, vínculos definidos por participações em
atividades comunitárias e desportivas etc. Ou seja, o pedaço combina uma relação espacial e
simbólica. O pedaço é aquilo que Augé (1994) chama de lugar.
Além do pedaço, Magnani destaca também a “mancha” como forma de apropriação de
lugares que se tornam ponto de referência para diversos frequentadores. “Sua base física é mais
ampla, permitindo a circulação de gente de várias procedências e sem o estabelecimento de laços
mais estreitos entre eles.” (MAGNANI, 2012: 94).
A mancha caracteriza-se por um espaço urbano contíguo onde se encontram
equipamentos que marcam seus limites e viabilizam uma atividade ou prática dominante. A
mancha pode ser um potencial não-lugar.
Quando os sujeitos se deslocam aos seus pedaços no interior de uma mancha seguem
caminhos não aleatórios. Segundo Magnani esses fluxos recorrentes no espaço da cidade e no
interior das manchas são os trajetos.
A noção de circuito trata de uma categoria que descreve o exercício de uma prática ou
oferta de determinado serviço em estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantém
entre si uma relação de contiguidade espacial, sendo reconhecido em seu conjunto pelos usuários
habituais. (MAGNANI, 2012: 97)

Código-território

Néstor Perlongher em seu livro “O negócio do michê – prostituição viril em São Paulo”
mostra como uma determinada região da cidade de São Paulo se tornou o principal ponto de
encontro de grande parte do grupo homossexual de São Paulo.
Perlongher recorre ao trabalho de Barbosa da Silva sobre o gueto gay paulistano para ter
uma visão global da história da região. O depoimento de Clóvis é interessante para ter uma ideia
como tal região já era conhecida por determinadas práticas.

Um pouco antes da década de 60, eu morava em Santos como minha família [...]
Vínhamos a São Paulo de trem. Isso era por volta de 1959. Eu tinha um grande
fascínio pelo mundo gay, queria saber como era, onde é que estava. Chegava à
cidade escutando: é na Rua São Luís, na esquina da Ipiranga com a São João.
Assediava esses lugares, existia o fascínio de um adolescente para com locais
frequentados por pessoas adultas. (PERLONGHER, 1987: 73)

Relata-se que na segunda metade da década de 60 houve um grande acontecimento que


foi a inauguração da Galeria Metrópole. “Ela foi construída como um espaço arquitetônico e
urbanístico. Mas quando já estava em obras as bichas falavam: “vamos invadir esse espaço, vai
ser nosso, vai ser uma bicharada toda nessa galeria” (PERLONGHER, 1987: 78).
Até Sartre quando veio no Brasil ficava a noite tomando uísque na Galeria que se tornou o
“ponto quente da vida gay paulistana”. E não era comum encontrar gays em outra parte da cidade
que não no centro.
Com isso é possível pensar em um território apropriado e produzido pelos sujeitos e que
se torna referência. Ainda que dentro do mesmo território haja espaços com diversas
demarcações e relações é perfeitamente aceitável afirmar que um território pode servir para um
reconhecimento de marcas identitárias.
De encontro com o que diz Perlongher penso que ainda cabe ler o território como uma
rede de sinais por onde transitam os sujeitos, não com identidades individualizadas, definidas,
conscientes, mas como sujeitos à deriva, na multiplicidade dos fluxos, na instantaneidade e acaso
dos encontros. Uma vez que esse espaço não é moradia e pode ser apenas lugar de uma visita
eventual dos sujeitos, mas no momento em que estão no espaço se identificam e ou são
identificados como no mínimo simpatizantes da atividade ali desenvolvida.

Em vez de falar em identidades passamos a falar de territorialidades, de lugares


geográficos e relacionais. Isto nos convida a conceber uma trama de “pontos” e
“redes” por entre as quais circulam (“transforma-se”) os sujeitos, definindo-se
conforme sua trajetória e posição “topológica” na rede, e não conforme uma
suposta identidade essencial. O conceito de identidade dá lugar ao de
territorialidade, à pergunta “quem é?” superpõ-se a pergunta “onde está?”.
(PERLONGHER, 1993: 7)

O território representa então um lugar de reconhecimento de identidades. Depende de


onde o sujeito está situado remete a uma identificação, mas esse sujeito não está sempre no
mesmo território. Aliás, o comum é que esse sujeito transite por vários territórios. Isso vem de
encontro com o que diz os estudos pós-coloniais sobre o descentramento das identidades e
também de encontro com o excesso de individualização de referências da sobremodernidade de
Augé quando afirma que hoje o indivíduo se crê mundo e também com a produção dos não-
lugares da sobremodernidade, uma vez que a condição de existência do não-lugar está
diretamente relacionada com a relação que o sujeito tem com ele.
Contudo, o destaque nas identidades passa a ser substituído pelo destaque nas
territorialidades, lugares relacionais e lugares categorias, de modo a captar como os sujeitos se
definem mutavelmente a partir de posições e trajetórias variáveis dentro de uma rede, bem como
da participação em diferentes redes. Bem próximo do que sugere Magnani.
Não se trata de pensar a cidade como um mosaico de mundos sociais que fragmenta
também o sujeito. Tal pensamento vem de uma concepção do espaço urbano muito inspirada na
Escola de Chicago a qual supunha que o espaço urbano produz modificações per se no
comportamento dos sujeitos. Muito pelo contrário, a cidade tem de ser julgada e entendida apenas
em relação àquilo que seus habitantes desejam dela. (HARVEY, 2013: 27)
Perlongher faz uma apropriação particular do clássico conceito de região moral, que para
Robert Park (1979), designava um território residual para o qual convergiam interesses, gostos e
temperamentos ligados à boemia, ao desejo não convencional, ao “vício” e a todo sorte de
marginalidades como área de convergência e circulação, mais do que fixação residencial, para
repensá-la como “código-território”.

A expressão “código-território” se refere à relação entre o código e o território


definido por seu funcionamento. [...] na qual se distinguem dois elementos: uma
“sobrecodificação” – sucordage, código de códigos – e uma “axiomática”, que
regula as relações, passagens e transduções entre e através das redes de códigos,
que por sua vez “capturariam” os corpos que se deslocam, classificando-os
segundo uma retórica, cuja sintaxe corresponderia à axiomatização dos fluxos.
(PERLONGHER, 2005: 276)

Uma territorialidade expressa num código peculiar que distribui atribuições categoriais a
corpos e desejos em movimento. Ou seja, o território aparece como referência para notar a
produção de subjetividades.
Significa dizer que a territorialidade não se limita a um espaço físico, mas, sobretudo, ao
espaço do código, pois é este código que se inscreve num determinado lugar e lhe dá um sentido
muito menos descritivo (o que é feito lá) do que prescritivo (o que pode ser feito lá). (PELÚCIO.
2007)
Tais considerações vão além das observações de Magnani que pensa o pedaço como
espaço de relações e a mancha como uma área contígua do espaço urbano dotada de
equipamentos que viabilizam uma atividade ou prática predominante. Perlongher foi feliz em
notar que quem ocupa um lugar é um sujeito que em algum momento assume um discurso que
coincide com o do lugar ocupado. Ou ainda, que estar nesse lugar dá ensejo a, no mínimo, ser
reconhecido como conivente com o discurso daquele lugar no momento da ocupação. E que não
quer dizer que em todos os momentos da vida desse sujeito esse discurso será o mesmo. Muito
pelo contrário, ao longo de sua trajetória ele ocupará diversos lugares e assumirá ou será
reconhecido por ser portador de diversos discursos.

Considerações finais

Ao fim desse texto chego a pensar que as constatações aqui apresentadas podem parecer
um tanto óbvias. A cidade é, de fato, um território que serve de reconhecimento das marcas
identitárias. O verso do rap que está como epígrafe desse texto mostra que o rapper Emicida está
bem adiantado na compreensão da cidade e dos citadinos (aliás, como sempre a arte é anterior e
superior às tentativas assim chamadas científicas).
A cidade é composta por ruas. Não há cidade sem ruas. E se “a rua é nóis” está claro que
“a cidade é nóis”. Quem faz a cidade, de quem é a cidade, ou melhor, quem é a cidade? É o
sujeito. É o sujeito que não possui identidade fixa essencializada; que individualiza suas
referências ao extremo e que vive nos não-lugares. É o sujeito que produz e vive nos pedaços e
manchas e se desloca nos trajetos e circuitos. É o sujeito que produz o território que o faz ser
reconhecido e produz suas marcas identitárias. A cidade é aquilo que o sujeito quer dela e este
passa ser aquilo que a cidade quer dele.
Essa reflexão é bastante preliminar, pode haver falhas e com certeza necessita de
aprimoramento. Contudo, no momento estou bem convencido de que o que aqui apresento
corresponde às minhas impressões da cidade contemporânea.
Bibliografia

AUGÉ, Marc. 1994. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade.


Campinas, SP: Papirus, 1994.
BHABHA, Homi K. 1998. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 1998.
EMICIDA. 2013. O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui. São Pauto: Laboratório
Fantasma. 2013.
GÊ, Luís. 2011. Avenida Paulista. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
HALL, Stuart. 1997. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DPeA Editora,
1997.
HALL, Stuart. 2003. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2003.
HARVEY, David. 2013. “A liberdade da cidade”. In: Cidades Rebeldes: Passe Livre e as
manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013.
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MAGNANI, J. G. C. 2012. Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em Antropologia
Urbana. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2012.
MAGNANI, J.G.C. 1998. “Transformações na cultura urbana das grandes metrópoles”. In:
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PELÚCIO, Larissa. 2007. “Nos nervos, na carne, na pele”: uma etnografia sobre prostituição
travesti e o modelo preventivo de AIDS. Tese de doutorado em Ciências Sociais. São Carlos:
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PERLONGHER, Néstor. 1987. O Negócio do Michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo:
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PERLONGHER, Néstor. 1993. Antropologia das Sociedades Complexas: Identidade e
Teritorialidade, ou como estava vestida Margareth Mead. Revista Brasileira de Ciências, nº 22:
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PERLONGHER, Néstor. 2005. “Territórios Marginais”. In GREEN, James & TRINDADE,
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290.

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