CONCLUSÕES
Como vimos, a performance pode ser entendida como arte da performance. Seja
concebida como gênero, linguagem, campo de fronteira ou de transição, bem como um
conceito operacional como a performatividade. De toda forma, o que a caracteriza é que
as pesquisas se orientam, especificamente, para o universo da arte. Com certeza, os
esforços em compreender a performance como um fenômeno artístico têm grande
utilidade, entretanto, representam apenas um tipo de abordagem.
Penso que seja difícil isolar o fenômeno da performance do seu contexto geral.
Também pode ser problemático definir uma nova linguagem ou forma de arte num
contexto histórico de dissolução de fronteiras e limites convencionados entre as
tradicionais linguagens artísticas. Não somente as fronteiras entre as artes, mas aquelas
existentes entre as áreas do conhecimento estão se dissolvendo, trazendo a necessidade
de paradigmas inclusivos.
Entendo que a performance é um movimento que nos indica para onde as artes
estão caminhando e, não somente as artes, mas as áreas do conhecimento que estudam o
comportamento humano. A grande envergadura do fenômeno da performance indica
que está em processo uma transformação do pensamento ou, para utilizar os termos de
Turner, das metáforas- radicais que regem os comportamentos sociais. O fio em
comum que une tamanha diversidade e amplitude é o fato de que a performance coloca
o corpo no centro da investigação, o que gera um ponto de convergência para diversos
enfoques.
Penso que seja importante aqui localizar o contexto das principais possibilidades
de enfoque dos estudos da performance, onde se insere o jogo. No começo desta
pesquisa estava diante de várias possibilidades de recorte, como numa encruzilhada de
múltiplos caminhos (Fig.20). A teoria da performance oferece enorme gama de
enfoques de pesquisa, dos quais Schechner discrimina pelo menos oito possibilidades,
mas existem ainda muitas outras. Dentre as possibilidades apontadas por Schechner foi
o jogo que despertou a minha curiosidade.
Figura 20: Esquema de oito possibilidades de enfoques de pesquisa dos estudos da performance,
sugerido por Schechner em sua série de vídeos, disponíveis no youtube, Introduction to Performance
Studies de 2011.
Vimos que estas abordagens trazem diversos aspectos do jogo que tanto
desenvolvem e ampliam os estudos sobre o jogo, como são utilizados por Schechner
para o entendimento da própria performance. Como visto ao longo desta pesquisa o
jogo não é simplesmente uma característica da performance, fundamentalmente, jogo é
performance.
A visão do jogo como principal fator da cultura, cujos fenômenos podem ser
analisados sob perspectiva histórica e antropológica também fundamenta, amplia,
diversifica e possibilita crítica em relação à visão dos estudos da performance. Isso pode
parecer contraditório, uma vez que a teoria do jogo é mais antiga. Contudo, o
entendimento do jogo como fator da cultura está muito próximo dos estudos da
performance, que também concebem performance como fenômeno cultural e lhe
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Desta forma, Schechner coloca o jogo como precursor tanto dos rituais quanto
das performances culturais e/ou dramas estéticos. Uma visão que é muito semelhante à
tese desenvolvida por Huizinga. Penso que cabe perguntar se a ―categoria performance‖
não seria a própria ―categoria jogo‖, uma nova abordagem para a velha questão do
jogo?
Redução dos tipos sociais; introdução de tipos simbólicos; alterações de fins e meios;
todas as definições da situação são as mesmas; implica num ser social de superfluidez
(HANDELMAN, 1977, p.191).
Figura 21: Quadro comparativo apresentado por Handelman em seu ensaio Play and Ritual:
Complementary Frames of Meta-Communication, ―Jogo e Ritual: Quadros Complementares de
MetaComunicação‖ (1977).
Figura 22: Interface entre esquemas, a esquerda a performance como totalidade engloba as polaridades
do ritual e do jogo, a direita a totalidade jogo engloba as polaridades seriedade e divertimento de
Huizinga e o jogo de regras fixas e o jogo de livre improvisação de Caillois.
Penso que a maior correlação entre jogo e ritual, entretanto, é da própria noção
de símbolo com a noção de jogo. Turner toma o símbolo como evento e não coisa, o
evento está em constante movimento. Em Turner o símbolo está em movimento e
interação, é fator de ação social como o jogo como fator da cultura. Turner descreve o
símbolo como aquele que põe ordem e também é capaz de trazer desordem.
Como vimos no terceiro capítulo, uma vez que não pode ser compreendido
dentro dos parâmetros racionais, humanos e civilizatórios, embora constitua base de
todas essas coisas, o jogo escapa aos limites da análise e desafia à criação de novas
estruturas de pensamento que possam abarcar sua amplitude e multiplicidade. A visão
de jogo como totalidade parece traduzir essa categoria de pensamento que transcende os
limites da lógica racional, das funções biológicas e mesmo da estética.
Para Huizinga, enquanto categoria primária o jogo não pode ser analisado do
ponto de vista das dicotomias do pensamento (objetividade e subjetividade; razão e
sensibilidade; intelecto e emoção; mente e corpo; lógico e ilógico; certo e errado ou
verdadeiro e falso), dualidades que são ilusões criadas pelos próprios jogadores. O que
parece vital é que o jogo cria a ilusão da dualidade e só pode ser compreendido, por
isso, enquanto totalidade.
Fazendo uma importante correlação com os dramas sociais, Turner afirma que
―o drama social é um modelo agonístico que se desenha depois de uma situação
agonística recorrente‖ (TURNER, 1982, p.71). Considerando a possibilidade da
existência de outros tipos de unidades sociais, como vimos, Turner entende o drama
social como um tipo de forma processual universal, o que para ele representa um
―perpétuo desafio de todas as aspirações à perfeição em organizações sociais e
políticas‖ (TURNER, 1982, p.71).
Desta forma, para Turner o drama social é uma forma processual universal, não
exclusiva, que penso também poder ser entendida como um padrão de comportamento
social. Como vimos, Turner identificou a partir de seus estudos com uma tribo africana
uma forma universal que chamou de drama social. Penso que como padrão universal o
drama social pode ser entendido como jogo social. Turner relaciona esta forma
processual universal a definição de tragédia dada por Aristóteles, como ―a imitação de
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Bolkestein argumentou que se por um lado o conceito ampliado de jogo se adequa bem ao pensamento
romano, o que fica claro na raiz ludus do latim, por outro lado o pensamento grego era muito diferente do
romano e não se pode falar que o jogo e a competição são a mesma coisa no mundo grego, pois seria o
mesmo que dizer que os gregos viviam de puro jogo. Huizinga responde: ―Em certo sentido é mesmo essa
a tendência deste livro‖ e ―apesar do fato de a língua grega não ser a única a estabelecer uma distinção
entre a competição e o jogo, estou firmemente convencido da existência de uma identidade profunda entre
ambos.‖ (Huizinga, 2000, p.25)
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uma ação que é completa, um todo, e de uma certa magnitude... tendo um começo, um
meio e um fim,‖ (TURNER, 1982, p.72).
No segundo capítulo desta pesquisa, disse que esta reflexão de Turner parece
fundamental para a compreensão da relação entre dramas sociais e dramas estéticos.
Aqui ela parece fundamental também para compreender as relações entre dramas sociais
e o jogo no, também agonístico, modelo de Huizinga.
De acordo com Huizinga o jogo cria uma ilusão de dualidade. De forma muito
semelhante aos apontamentos de Turner em relação às suas observações sobre a tribo
Ndembu. Turner identificou que uma das características mais marcantes da comunidade
era a tendência agonística. A competição nasce de um desafio, um conflito ou ruptura.
Elegendo a palavra ―conflito‖ como referente ao agon fiz a seguinte reflexão: o conflito
está no cerne do drama social, assim como está na tragédia de Aristóteles e o conflito
também é o centro gravitacional do jogo. Um Padrão Comum?
Como vimos, para Turner em qualquer nível a ruptura apenas expõe tendências
facciosas na comunidade, assim os dramas sociais são processos de equilíbrio. ―O amor
pode ser ‗uma coisa muito esplêndida‘, mas a crise é certamente uma ‗coisa muito
equilibrada‘ em todas as culturas‖ (TURNER, 1982, p.70). Não obstante o idealismo de
um mundo de paz e sem conflitos, Turner conclui que os dramas sociais fazem parte do
equilíbrio da vida.
Ruptura, crise ou conflito são sinônimos dados por Turner para traduzir a
tendência em gerar cismas desencadeadoras de processos sociais. A criação do conflito
coloca alguma coisa em jogo. Penso que a centralidade do conflito é padrão não
somente do jogo, mas está também presente na performance e, como o corpo, pode ser
um ponto de convergência para a compreensão do comportamento.
jogo a definição ampliada de Huizinga, seria o jogo fábrica de fluxo? E seria esta sua
função primordial? Produzir fluxo?
liminoide‖, caracterizada pelo advento de uma pretensa liberdade de escolha dentre uma
variada multiplicação de gêneros liminoides, que parecem encobrir a massacrante
racionalização do trabalho da Era Industrial.
Como apontou Turner é preciso olhar para o fenômeno social total, nele
coexistem resquícios liminares como os cultos religiosos e carnavais com gêneros
liminoides como o teatro e a dança contemporâneos. O panorama é de total coexistência
de variados tipos de formas liminares. Pergunto se a performance, como uma nova
abordagem ao comportamento, não seria uma força de unificação em meio à explosão
plural? Penso que frente a crescente multiplicação de gêneros liminóides num contexto
globalizado e intercultural, paralelamente, surge a performance, um pensamento
inclusivo que como uma força de unificação é capaz de agregar e inter-relacionar
diversos campos dentro de uma mesma categoria geral.
Para que o potencial subversivo dos gêneros liminóides possam realmente vir a
provocar alguma mudança social parece necessária uma unificação, que entendo ser
representada pela performance e, como busquei desenvolver nesta pesquisa, este
potencial unificador também está presente no estudo do jogo.
Penso que estas sejam preciosas pistas para que possamos talvez, como os
deuses, viver jogando.