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Transcrição de registos radiofónicos 299

4. José Saramago manual p. 260

“O simbólico na passagem de ano” 04 min 25 s

Recursos Pensamento Cruzado, Mésicles Helin, Vítor Cotovio, Margarida Cordo, TSF,
31 de dezembro de 2014

Mésicles Helin: Frases que ouvimos os mais velhos dizerem em contexto de gabinete: “A passa-
gem de ano é uma noite como outra qualquer”, Margarida.
Margarida Cordo: Nós ouvimos dizer isso em gabinetes dos mais velhos e também de muita gente,
de muita gente que não são mais velhos. Quer dizer… eu, outro dia, ouvia uma pessoa de 32
5 anos dizer: “Ah, a passagem de ano… eu passo a dormir”. Bom… eu devo dizer que acho que
nós temos de simbolizar as coisas, porque nós não somos o que temos ou o que possuímos ou
o que está guardado. Nós somos o que vivemos e o que nos deixamos sentir por ter vivido. E,
portanto, a simbolização destes momentos, a alegria com que se faz um brinde, a festa em
que se junta os amigos, o sítio onde se está não têm que ser aquelas fantasias para dizer que
10 se fez, que se esteve ou o glamour imaginado que os outros pensam que foi vivido por nós. Não
é nada disso. Porque também de plateia estamos fartos. Mas as coisas são para ser vividas e,
portanto, não é uma noite como outra coisa qualquer, embora seja. É claro que é uma noite
como outra qualquer porque todos os dias têm vinte e quatro horas, todas as noites começam
à hora que nos deitamos, para cada um de nós, e acabam à hora a que nos levantamos e, por-
15 tanto, aí começa o dia, não é? Claro que isto, em termos reais, é uma noite como outra qual-
quer. O que é incongruente, de facto, é que, se nós gostamos de simbolizar os nossos aniver-
sários, se nós gostamos de simbolizar outras coisas, porque não gostarmos de simbolizar a
passagem do ano? Há pessoas que dizem, como argumento, que é “Ah, bom… porque eu não
gosto de me divertir quando o calendário assinala”. Eu não me divirto porque o calendário
20 assinala. Eu acho que cada um de nós deve divertir-se porque deve simbolizar a vida. E,
quando as pessoas mais velhas dizem isto, vale a pena refletirem se sempre disseram isso ou
se dizem agora porque, enfim, porque agora perderam a vontade de simbolizar a passagem de
ano. Bom, se foi porque perderam, então vale a pena animarem-se e retomarem o festejo da
passagem do ano, da entrada num ano novo, que esperemos que seja bom.
25 Mésicles Helin: A passagem de ano é uma noite como outra qualquer, Vítor.
Vítor Cotovio: Mais uma vez aqui deveria ser interessante enquadrar isto na comunicação não
verbal e contextualizar, porque pode ter muitos significados, não é? Eu, no meu caso, como o
Natal é aquela quadra que eu valorizo de uma forma muito hipertrofiada, de facto, porque
mexe comigo, a passagem de ano, comparativamente, não mexe tanto. Também concordo com
30 a Margarida que nós somos seres simbólicos, não é? E o simbolismo dá sentido à forma como
nós temos até a nossa visão do mundo e a forma como nos enquadramos no mundo. Mas,
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muitas vezes aí, com a idade, pode acontecer que isso represente uma grande ambivalência
na forma como a pessoa se coloca. Ou seja, uma grande ambivalência, ao mesmo tempo uma
certa negação que é a pessoa estar a evitar confrontar-se com aquilo que é mais um ano que
35 passa. Pode estar implícito nessa afirmação essa questão, que é mais uma noite como outra
qualquer e, nesse sentido, o calendário quase que não mudaria, naquilo que é mais uma vez o
simbólico. Porque o simbólico tanto pode ser significado pelo lado positivo como pode ser sig-
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nificado pelo lado negativo. Porque não é com certeza que mudar de trinta e um para um que
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acrescenta um ano ao ano que eu tenho, mas, nas inquietações, aqui pelo lado negativo, da

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40 vivência do simbólico, a pessoa poder negar e não se querer confrontar com aquilo que é mais
um ano e o peso de mais um ano, que significaria a aproximação progressiva à ideia de que
poderia morrer mais próximo, porque tenho mais um ano e isso podia estar implícito nessa
frase. Acho que, de facto, é importante que cada pessoa tenha a perceção e tenha a… a perce-
ção da forma como as pessoas vão vivendo a vida é que também vai dando e condicionando a
45 forma como se aproximam da parte final da vida, não é? Porque a vida faz sentido na dialética
desta coisa que vivemos cá, a vida só faz sentido porque há morte, não é? Porque senão não
faria sentido. Nós somos seres também dialéticos e, portanto, a vida sabe bem porque, de
facto, se morre. É uma chatice mas é verdade.
Mésicles Helin: E o ano novo pode ser quando um homem quiser.
50 Vítor Cotovio: E o ano novo é com certeza quando um homem quiser e espero que o novo ano seja
um bom ano.
Mésicles Helin: Bom ano!
Margarida Cordo: Feliz ano novo!

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