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Introdução

Existe portanto uma satisfação da cultura elaborada que brota do que


eu chamaria conteúdos culturais progressistas ou interpretados de maneira
progressista.
A cultura pode não ser nem fuga nem confissão de impotênCia. Suas
duas características fundamentais são que ela abre perspectivas mais recon-
fortantes que a cultura primeira; e por outro lado ela está em continuidade-
ruptura com esta cultura primeira: continuidade com as perguntas que se
colocam, as alegrias que já eram sentidas; ruptura visto que se trata de colo-
car suas experiências em um plano mais elevado;' em suma, transformá-Ias
através de uma elaboração purificadora e assim chegar a senti-Ias com mais
intensidade, mais força; os interesliados se reconhecem, reconhecem respos-
ta a sua espera e ao mesmo tempo percebem uma ultrapassagem das contra-
dições onde suas vidas se debatem. Se tais satisfações culturais existem, se
há uma filiação desta natureza entre o essencial da cultura e o imediato da
cultura, entre as satisfações da cultura elaborada e as satisfações habituais
então uma escola como lugar de satisfação, uma escola que ousa proclamar-
se lugar de satisfação torna-se possível e necessária, e válida a instituição
que organiza a passagem, o trajeto da cultura primeira, satisfações da cultu-
ra primeira às satisfações da cultura elaborada, ~em que os jovens deixem de
se apoiar em suas satisfações em suas primeiras dificuldades.
É necessário uma instituição organizada, pois haverá incessantemente
algo de dificil: ela é posslvclulllu vcz que tem como fundamento a continui-
Introdução 187
186 A alegria na escola
Certamente um conteúdo certo, que a mim parece certo, pode ser
dade; ela vale à pena, pois conduz às satisfações que merecem, e amplamen- acompanhado de métodos tirânicos ou simplesmentes enfadonhos, mortal-
te, o esforço que tivemos. mente -enfadonhos: cada vez que o professor não estiver preocupado em se
Há, na cultura elaborada, outras vias além da escola: é entretanto, à relacionar com o que são estes alunos, o que esperam, isto é quando se tiver
satisfação escolar que desejo consagrar estas páginas deixando ao outrém, negligenciado a cultura como continuidade e resposta.
mais qualificado a tarefa de tratar das modalidades que chamam de auto- E principalmente o inverso não é verdadeiro: contrariamente ao que
formação. tentaram vários pedagogos e freqUentemente de grande mérito (não é por
acaso que se fala de "métodos novos" ou de "métodos ativos"), as inova-
Continuidade e ruptura, liberdade e autoritarismo - Uma escola que ções nos métodos não podem substituir a transformação dos conteúdos:
realiza esta síntese de continuidade e ruptura, significa que não se deixa blo- elas correm o risco de deixar subexistir conteúdos inconsistentes, decepcio-
quear no dilema: ou impor do alto uma cultura já perfeita, completamente nantes, portanto incapazes de conduzir à satisfação; e é uma mistificação
pronta - ou de se manter em níveis fáceis, médios: ela recusar-se-á a utili- efêmera querer compensá-los por algo que seria da qualidade da "boas rela-
zar a cultura primeira como meio de atrair o cliente, astúcia liberal que é lo- ções" ou do "aprender a aprender" - pelo que nos absteríamos de colocar
go abandonada para recorrer ao autoritarismo, simples artifícios para atrair os problemas de validade dl;lquiloque aprendemos ..
o cliente. Ela realmente procura os caminhos de passagem entre as músicas De fato, se nós quisermos ensinar aos alunos coisas que não tém liga-
da moda e a "grande" música. ção com sua vivência e os problemas que se colocam, tornar-se inevitável re-
Não· quero deixar a cultura primeira, a cultura de massa, a cultura de correr a processos autoritários, sejam brutalmente autoritários (punições),
lazer ser única depositária da satisfação e desta vez estou de acordo com sejam sutilmente autoritários.
Mac Luhan quando declara: "A escola deve ser fascinante a fim de poder
competir com a publicidade, o hit-parade e a televisão". Digo: escola progressista porque o trajeto continuidade-ruptura só me
Mas na realidade estou de acordo com ele somente modificando o sen- parece possível (é o que a primeira parte quis dizer) numa cultura progres-
tido de suas palavras: procuro para minha escola a satisfação, mas uma sa- sista; porque ao contrário a relação é certa entre tantos anos de escola que
tisfação específica, cultural diretamente resultante do valor dos conteúdos se passariam na não-satisfação, na não-confiança em si e na submissão re-
culturais. Através da continuidade, ela estará em ruptura com o prazer, a signada à sociedade tal como ela é: porque este trajeto parece-me funda-
distração; certamente há continuidade entre as satisfações, mas a satisfação mentar uma possibilidade essencial de progresso para as crianças provindas
para a qual minha escola tende não é idêntica a dos momentos de lazer. das classes exploradas, as quais sabemos bem que constituem o grande bata-
Não vamos trazer à escola, declarar na escola um pouco de jogo, de lhão do fracasso escolar.
divertimento, de distração; não se trata de prometer que se vai apreender O tema da satisfação na escola está muito mais estritamente ligado a
brincando, distraindo-se, menos ainda de anunciar que se vai aprender qua- política que o parecia numa primeira abordagem; as resistências à própria
se sem dar conta. idéia de satisfação cultural são enormes. Elas também possuem um sentido
A dificuldade, o esforço estarão continuamente presente; aprender político. A satisfação é conquista possível, convicção jamais conservado,a
para a satisfação, e uma satisfação que irá muito fundo para ultrapassar, que "mais está em nós".
mas não exclui o doloroso; nunca se vangloriar de ensinar pela satisfação.
Se a escola quer rivalizar com o lazer no campo da distração, sempre
será perdedora. No que diz respeito a ser "simpático" no modo do compa-
nheiro, o professor encontrar-se-á toda vez em inferioridade; a escola
cansar-se-á em vão ao querer sem equiparar com o agradável do extra-
escolar.

Renovar o quê? Quero sustentar que é a renovação dos conteúdos que


suscita a renovação dos métodos, das relações entre professores e alunos,
das obrigações e de disciplina, pois aqui estão tantas conseqüências dos con-
teúdos inculcados - e não causas primeiras.
CAPÍTULO I

A escola e a não-satisfação
Por que a escola leva tão freqüentemente
à não-satisfação?

PRIMEIRA SEÇÃO

Imensas são as resistências da escola e dos alunos à prórpia idéia de sa-


tisfação cultural escolar.
Provavelmente estas idéias de satisfação cultural escolar têm uma apa-
rência estúpida: ordenar aos jovens que estão começando a fazer simples-
mente aquilo que eles têm vontade de fazer e que lhes agrada - por exem-
plo, eles estão brincando no pátio de recreação - mandá-Ios entrar em clas-
se, porque chegou o momento de desfrutar de uma outra satisfação, mais
confortante: não vão eles responder que a alegria é o tempo livre, o lazer,
quando se é livre e feliz, feliz por que livre?
A rigor, eles aceitariam o tema da satisfação cultural, mas contanto
que se pudesse movimentar à vontade; o que parece impossível na escola, e
que em todo caso não está previsto na "minha" escola.
Mesmo os adultos que se tornaram "intelectuais" escritores, jornalis-
tas, artistas ... quase não acreditam na escola da satisfação cultural que atin-
giram: é mais freqüentemente fora do âmbito escolar que declaram ter co-
nhecido a verdadeira cultura, sem a escola, às vezes contra ela. Engano da
escola? Provavelmente; e depois também, dizer o contrário, seria confessar
que fomos guiados, ajudados, que tivemos necessidade de um apoio,ainda
que devamos nos declarar os verdadeiros autores de nós mesmos.
Por que isto faz-me pensar em todos esses pais que afirmavam nunca
tcr scntido ncnhuma dificuldadc cm amar scus filhos'!
189 A escola e não-satisfação 190
A alegria na escola

De fato uma das aquisições mais sólidas dos trabalhos de Bourdieu- ção à escola quando ela não os conduz a satisfação cutural? O momento
Passeron é ter mostrado que aqueles que aproveitam o melhor da cultura preparatório para a renovação escolar, seria um pacto entre professores e
fora da escola são os mesmos que já puderam aproveitar de uma escolarida- alunos sobre a alegria e seus bloqueios.
de profunda e extensa. Para se dar conta desta não-satisfação, os alunos reclamam muito: an-
tes de mais nada, há a obrigação da escola com seu cortejo de avaliações e
Em busca de alunos que procuram a satisfação na escola - Devo par- sanções: eis contra o que vão se dirigir as acusações.
tir da constatação que a satisfação na escola está muito longe de ser uma evi-
dência brilhante; e tanto menos se distinguirmos a satisfação propriamente Inconsistência de muitos conteúdos - A questão deverá ser retoma-
cultural das "satisfações intermediárias": obter bons resultados, saber que da; na verdade, do mesmo modo que conto com uma renovação dos conteú-
se está progredindo, vencer a dificuldade; conseguir realizar algo que se co- dos ensinados para transformar a escola, assim resposabilizo fundamental-
meçou; certamente estas alegrias são importantes, mas podem se encontrar mente os conteúdos atuais pelo aspecto sombrio de tantas escolas..
em qualquer atividade; teria oportunidade de retomar a este assunto. O que é ensinado corresponde às expectativas dos alunos? acolhe suas
Atualmente não é segredo para ninguém que a alegria dos jovens se preocupações? amplia sua experiência vivida? Quais relações são mantidas
proclama bem mais no seu feriado, em sua vida familiar do que na escola. com as perguntas que eles fazem a si mesmos? Risco constante da irrealida-
Existem' alun03' que protestam contra a escola, às vezes rejeitam-na e de; vi alunos estudando em classe as guerras de religiões sem mesmo se per-
são rejeitados por ela. Há principalmente, e são aqueles que provavelmente guntarem se dentre eles havia protestantes.
mais me interessam no momento, estes milhares e milhares de alunos que Risco constante de passadismo: o contemporâneo oferece uma alegria
gentilmente fazem seu trabalho, não se saem tão mal, mas vão á escola sem que é a única a ser procurada, visto que sozinho ele pode estar em relação
nenhum entusiasmo como um empregado vai a seu escritório. Suas ambi- com o desejo de agir, sozinho pode dar ensejo aquilo que ainda se espera
ções limitam-se a garantir sua aprovação para a série e assim, porque não se modificar - pelo menos sentir.
deixa de repetir-Ihes para preparar seu futuro; eles estudam "pela nota" e Mas o contemporâneo é lugar de incertezas, e freqüentemente mesmo
freqüentemente o confessam ingenuamente; no fundo estudam para ter a os problemas são aí colocados em termos de oposição. O drama é nossa so-
paz esperando trabalhar para ter o salário. ciedade quase não consegue edificar-se a partir destas contravérsias uma
O drama é que eles nem mesmo sonham em fazer perguntas à escola zona bastante ampla de consenso (é também um tema que reencontraremos
sobre a satisfação cultural, reivindicar da escola a satisfação da aventura in- a seguir) por conseguinte a escola teme o contemporâneo I; mas é por isso
telectual e da descoberta, a satisfação atual, em sua vida de jovens. A satis- mesmo o mais categórico, o mais tônico da cultura que correm o risco de
fação não é declarada, visada, mal pensada. desaparecer da classe; não abordaremos as questões que apaixonam os ho-
Eles não repugnam a escola, não se revoltam contra ela, não têm gran- mens e pelos quais eles se matam.
des temores em relação a ela, mas de preferência esperam que isto passe, Tanto mais que a escola vai privilegiar os exercícios, pois eles não São
com um indício de abatimento, de aceitação. perigosos - e as "preparações". Mas preparar-se para o futuro distante,
Na verdade os alunos esperam aborrecer-se eles estão bastante resig- exercitar-se a sucessos incessantemente diferidos, será que isto pode ir ao
nados a este aborrecimento, e procuram limitar os danos - muito felizes se encontro de satisfação cultural presente, da alegria do jovem na sua vida de
puderem eliminar o desagradável de algumas compensações recreativas, se jovem?
puderem criar uma atmosfera "simpática" com um professor "simpático", Se a escola não se fundamenta sobre o atrativo dos conteúdos, corre ti
introduzir na escola um pouco de diversão "extra escolar" - ainda que isto risco de especular o temor, temor de sanções imediatas e principalmente te-
não responda a nenhum de seus problemas, não os "alimente" realmente e mor de grandes fracassos tão freqüentem ente profetizados.
permaneçam a cem léguas de tudo aquilo que há de importante em sua vida Risco que a escola se reduza ao confronto de dois mundos estanques,
e na cultura elaborada.

A/unos queixosos - Nós, pais, quando não conseguimos fazer nossos


"Se os professores levassem a sério o que eles devem ensinar: liberdade, igualdade, fra-
filhos felizes, ele nos criticam, nos falam de sua decepção, pois se sentem ternidade, eles tornar-se-iam revolucionários (Jaures em Chambre des dépulés, 1I de feverc:Íro
privados daquilo que lhes é devido. Por que não exigem o mesmo em rcla- de IH95).
191 A escola e não-satisfação A alegria na escola 192

cujo único elo seria esta famosa utilidade para mais tarde. De um lado os Entretanto a escola laIca, sob sua forma tradicional, vai de encontro a
jovens impacientam-se com o único valor que lhes parece incontestável, sua enormes dificuldades para se destacar daquela que a precedeu e ousarei di-
juventude, o orgulho de sua juventude - e procurando aí o meio de rejeitar zer e sob este aspecto ela permanece a meio caminho.
todo o resto. De outro lado uma cultura que cai sobre eles sem os atingir, Conseguirá ela realmente uitrapassar a desconfiança no que diz respei-
sem mesmo que eles sintam alegria ao atingi-Ia. to à juventude? O jovem freqüentemente aparece como uma ameaça para o
Estamos então condenados a estagnar no inodoro, no medíocre, me- adulto, para a sociedade adulta que temos dificuldade em pensar que é ele
diocridade dos esforços como resultados? quem vai continuar sua ação; sem considerar todos os temores que circun-
dam ao redor de um sexual não dominado. Em Alain, a criança permanece
o que foi a escola cristã? O que importa é ver o dos conteúdos ensina- antes de mais nada como ser de impulso, de capricho, de leveza e de humor.
dos a distância: durante séculos, a escola foi fundamentalmente cristã e du- Desconfiança também acerca do mundo - e a escola laica tradicional
"rante séculos a escola cristã foi constituída a alegria: desconfiança no que anuncia ao aluno um futuro pouco acolhedor, onde as dificuldades e as cila-
diz respeito ao mundo considerando como lugar de corrupção, pelo menos das ocupam muito mais espaço que os momentos de realizar-se na alegria.
de tentações, desconfiança no que diz respeito à criança, mais suspeita ain- A escola de Alain jnsiste muito freqüentem ente sobre o esforço da
da que o adulto de pecado original. Conseqüentemente serão santos, santi- criança em se disciplinar, em se submeter às regras, e daí podemos extrair às
ficantes os valores de renúncia, de mortificação, de ascetismo: humilhar-se, vezes o sentimento de que a parte educativa de um trabalho escolar limita-
temer; o sofrimento valorizado como meio de redenção dos pecados, e é an- se-ia a ser difícil, até duro, talvez mesmo desanimador - e não conduzir a
tes de tudo no sofrimento comum que a comunhão é procurada. um florescimento.
Uma das esperanças de escapar da influência do mal situa-se na escola Daí a grande falha da escola laica tradicional: freqüentemente ela es-
como universo fechado, destinado a afastar, isolar o máximo possível a quece a satisfação cultural ou mesmo sofre a tentação de transferir esta sa-
criança dos acentecimentos contemporâneos, do curso contemporâneo dos tisfação para mais tarde, um mais mítico, um sucesso tão longe; em seu lu-
acontecimentos, dos quais não esperamos grande coisa de educativo; a seve- gar vamos colocar alegrias puramente escolares, alegrias de sucesso escolar;
ridade da disciplina, o esforço em si, para si mesmo esforçar-se-ão em sepa- mas separadas do conjunto da vida, acessíveis somente a alguns, tais ale-
rar a criança de seus desejos espontâneos, e portanto duvidosos; a obediên- grias logo enfraquecem.
cia, a culpa, em todos os sentidos da palavra, são então objetivos: podemos Considero Alain um pensador de transição: seus mais belos momentos
esperar que elas constituam vias de acesso à satisfação cultural? são aqueles em que ele próprio nos convida a ultrapassar os riscos da auste-
A escola cristã muitas vezes fez uma aliança com o estoicismo antigo, ridade rígida que tão freqüentemente pesam sobre sua escola.
propondo como modelos os,heróis de Plutarco, heróis à moda de Plutarco; A religião pode sempre se dirigir para um outro mundo diferente da-
não se pode desconhecer a nobreza, a magnanimidade de tais personagens; quele dos sucessos humanos; um mundo onde a simplicidade da fé é capaz
mas seus esforços, a tensão de todo seu ser podem se tornar insensíveis a tu- num certo sentido, de tornar inútil a cultura, mesmo se os teólogos escre-
do que "não depende de nós" , para se destacar de tudo o que "não depende vem mil volumes científicos para explicar a superioridade do "pobre de es-
de nós", como então encontrar aí promessa de esperança, de alegria? Os pírito". A fuga permanece sempre possível - e portanto sempre prevista.
projetos dos homens devem se inclinar sobre a ordem cósmica da~ coisas, A laicidade marcou um progresso fundamental, e entretanto ainda tí-
aceitá-Ias porque é bom em seu conjunto, obstinando-se contra os sofri- mido, de tal forma impregnado, apesar de tudo, dos elementos ancestrais; e
mentos individuais que ela comporta: "Sustine et abstine" (Suporte e a escola laica não se converteu de alto a baixo, à procura de alegria.
abastenha -se). Temos de conquistar a alegria nesta terra - terra rude onde os resul-
tados são somente progressivos, parciais, e tanto mais essenciais. E aí esta-
A escola laica: a meio caminho - Enfim veio a escola laica que se re- ria um desabrochar da laicidade.
cusa a honrar o sofrimento, afasta qualquer culto da dor, espera a alegria
neste mesmo mundo, e particularmente na escola: é a sociedade laica inteira
que ousa afirmar a alegria, e por outro lado sob sua influência o cristianis- Ter algo a dizer aos alunos - A escola dos Jesuítas na secúlo XVII,
mo abandona aos poucos a valorização do ascetismo: parece mesmo que os tinha algo a dizer aos alunos, mas algo de infinitamente triste: a suspeita
cristãos não ousam mais, atualmente, falar do inferno. lanl(ada sobre a vida e as alegrills que ela pode ofcrel.:cr, c a compansal(ão
193 A escola e não-satisfação A alegria na escola 194

buscada ou no além transcendental ou uma antigüidade da qual se conser- lar-se ela mesma, é que há nela, em toda parte, uma contradição entn~ os fa-
varia apenas as grandes máscaras estóicas, mas um jovem pode ser estóico? tos e as palavras: fratemidade, o combate está por toda parte; igualdade, e
A escola de lules Ferry tinha algo a dizer aos alunos mas as dificulda-
todas as desproporções vão se ampliando; liberdade, e os fracos libertaram-
des que ela traz consigo vem antes de tudo de que seus conteúdos, sua moral se de todos os jogos da força. O que vocês querem que os professores façam
soam falsos: falsa a missão colonizadora, falsa a ideologia da democracia
presos entre as palavras e as coisas?" De onde ele concluía: para que os pro-
formal, a liberdade e igualdade formais - ou pelo menos terrivelmente in- fessores estejam em estado de ensinar a moral, o vital, é preciso que eles
completa enquanto que não a levamos até o ponto onde ela exige as condi- possam "pressentir, prever, preparar esta nova ordem social" [1].
ções de sua realização.
Apesar da diferença fundamental entre os dois tipos de trabalho, há
E nós, hoje, o que temos a dizer aos nossos alunos? Um certo tipo de uma certa relação entre a satisfação e não-satisfação no trabalho dos adul-
satisfação conservadora, herdada precisamente do século XIX, e cada vez tos - e a satisfação ou não-satisfação no trabalho dos jovens, dos alunos.
menos sustentável: os jovens tornaram-se mais lúcidos, os fatos mais evi- A valorização do trabalho dos alunos na escola está ligada à valorização do
dentes, as propagandas progressistas denunciaram as imposturas: em resu- trabalho dos adultos. Em uma sociedade onde o trabalho é vivido por inú-
mo as ilusões tornaram-se muito mais inacreditáveis ainda que na época de meros pais como dever enfadonho, aborrecimento, em resumo como triste-
lules Ferry.
za, o trabalho dos alunos pode ser de fato outro? O trabalho como alegria
pode ser uma exceção própria às crianças, fechada na escola?
Dores culturais - Certamente a cultura é também a dor de nossas
Em particular, as relações professores-alunos estendem-se até tomar
idéias: tomar consciência que não conseguimos evitar nem as guerras colo- uma dimensão política pois há, através das rupturas, apesar de toda uma
niais, nem os terríveis erros daquilo que levava nossas esperanças; é "tam- continuidade entre os estilos de comandos de tal momento, em uma deter-
bém" ... não é "unicamente". A renovação da escola: antes de tudo encon- minada sociedade: na escola, na fábrica, no conjunto da vida social. Na me-
trar na cultura que ela propõe aos alunos o que pode lhes dar confiança váli- dida em que seus pais estão, em seu trabalho, privados da participação de
da em si mesmos e em sua época. Se o que nós lhes mostramos se desenvolve decidir, as crianças quase não podem ter confiança que sua própria vida es-
no mal-entendido, no contra-senso e no fracasso, realmente não é de se colar comporta um poder de ação real, nem mesmo uma preparação para
admirar que eles procurem a alegria fora de nossas escolas? um tal poder. Sua esperança nelas próprias acha-se atingida.

Oásis? - Na medida em que a crise de nossa sociedade, a imensa crise


SEGUNDA SEÇÃO - PAIS, FILHOS do capitalismo conduz tantas pessoas, tantos explorados a viver o "desti-
MESMO COMBATE no" adulto como sombrio, opressor, muitas pedagogias vão se esforçar pa-
ra proteger a criança o maior tempo possível do mundo que a rodeia, do
Não posso fugir a uma pergunta amplificadora: para que haja satisfa- mundo que a espera; a infância e a escola tentarão constituir-se em peque-
ção na escola, o que deve ser o mundo dos adultos - ou de preferência co- nos mundos mais justos, comunidades preservadas: Oásis.
mo deve se transformar ó mundo dos adultos? Para que as crianças conhe- Mas tais oásis têm bem poucas chances de atingir a alegria, ao mesmo
çam a alegria na escola é preciso que os adultos não se choquem contra mui- tempo porque eles só existem em contraste precário com todo o ambiente
tas infelicidades em sua vida. Nunca a escola pára na escola. É apoiando-se sentido, pressentido como acabrunhado r - e porque eles se sabem tempo-
sobre as forças progressistas já existentes e finalmente por uma mudança rários, devendo preparar e conduzir, apesar de tudo, àquilo que eles temem.
social estrutural que podemos esperar atingir uma sociedade capaz de ter Se a escola promete a satisfação cultural, proclama os valores culturais de
uma escola de alegria. progresso, a esperança de progresso, de confiança no futuro e nos jovens-
Parece-me que ninguém melhor do que laurés, marcou não só onde se mas que ela seja única a anunciar uma sociedade que suscita essencialmente
situa a verdadeira ruptura, mas também a importância essencial da relação uma cultura de incomunicabilidades e de fracassos repetidos, qual força de
entre a escola e a vida, entre a escola e a sociedade: convicção pode ela esperar? Como os jovens chegarão a experimentar que
"Não se pode ensinar uma moral, uma direção geral da vida sem um seu mundo presente e o mundo adulto que os espera não são feitos somente
ponto de apoio na realidade contemporânea; o que caracteriza a sociedade de tristez.a. de oprcssão - c quc eles são portanto suscetíveis de avanço?
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A escola e não-satisfação A alegria na escola 196
195
Razão pela qual estou constrangido de me confrontar com algo que e
Fundamentar uma escola ae alegria não se separa do movimento pelo qual o mais incompatível com a alegria que procuro.
queremos transformar a sociedade para que ela não seja prometida, não se
sinta destinada a sua própria condenação, danação.
a entusiasmo não se obtém nem por decreto nem por sobressaltos in-
dividuais de boa vontade; ele nasce de uma sociedade progressista - e já da TERCEIRA SEÇÃO - A SELEÇÃO CONTRA A ALEGRIA
ação, da escalada das forças progressistas, capazes de abrir um novo cami-
nho a uma sociedade em busca de si mesma.
a que é incompatível com a alegria que procuro na escola é o medo
dos alunos diante da seleção: certamente a inquietude, para os que já são
Reforma e revolução - Também se coloca o problema revolução e re- bons, de não serem admitidos por vias reais, nas seções C, mas principal-
forma para a escola: mesmo se as reformas parciais opõem-se mais freqüen- mente gostaria de pensar na angústia de muitos alunos ao serem enviados às
temente aos efeitos que as causas, mesmo se elas são incapazes de atingir os fileiras depreciadas, em impasse (Classe Pré-Profissionnelle de Niveau -
objetivos de grande envergadura, elas assumem no entanto, valor essencial, CPPN, por exemplo), onde eles sabem que não obterão qualificação real na
evidentemente pelas melhorias limitadas que elas podem trazer, mas tam- técnica curta (Brevet d'Études Profissionnelles - BEP mas dificilmente
bém para provar que o sistema não é imutável - e portant~ não é em vã~ Certificat d' Aptitudes Profissionnelles - CAP após o 7n que eles sentem
intervir, organizar-se para intervir em busca de uma melhona da escol~; e e como a antecâmara tão freqüentemente, de uma vida explorada, desvalori-
assim que movimentos mais amplos poderão, algum dia, ser promovidos. zada - ou do desemprego; e os fenômenos de reprodução aqui representam
Cada vez que leio que é preciso mudar a escola de alto a baixo, des- inteiramente o que já fora a vida de seus pais. Tão incompatível com a satis-
confio - e estou convencido que nada será feito. Nossa escola já possui fação como com a angústia é a resignação de serem assim "orientados",
bastante positividade para que seja possível lutar tendo em vista sua trans- quando chegam a modelar, restringir suas aspirações em função deste nível
formação, muitos escândalos para que seja indispensável conduzir esta luta. de emprego que estão "destinados" a ocupar.
a drama da escola é que muitos alunos recorrem à ela em busca de co-
Eu - nós não escapamos da po/ftica - Uma vez mais diremos que os mo se desenvolver em uma direção que os atrai, mas a orientação imposta
problemas pedagógicos remetem a problemas políticos; o progress? funda- consegue com freqüência restringir até mesmo a força de desejar. A escola,
mental da pedagogia passa por um progresso fundamental da SOCIedade.
lugar onde se educam os futuros trabalhadores - ou lugar onde se renuncia
Mas hoje devemos dar aula, a satisfação cultural deve começar logo a educá-los? a medo de tornar (ou continuar) se renuncia a educá-los? a
- e não haverá avanço social decisivo se não se criarem também na escola, medo de tornar (ou continuar) trabalhador, pequeno empregado substitui o
homens lúcidos e combativos.
medo do inferno - e quase não se progride em direção a alegria.
a CÍrculo vicioso não é tão rigoroso como se poderia acreditar pois, Certamente Alain evoca um aluno que sente uma espécie de prazer,
desde já, podemos nos apoiar em forças progressistas, o movimento pro-.
como em um jogo, como em um esporte, para correr o risco de uma nota
gressista que, já anima nossa sociedade. baixa quando ele se empenha numa tarefa difícil - e que se engana: ele bem
Iniciei pela satisfação na escola - e me dei conta que, novamente, en- sabe que no lance seguinte a lousa uma vez apagada, ele conserva todas as
contro o marxismo.
oportunidades de desforrar-se.
A crítica política da escola é mistificadora enquanto que ela é crítica Mas nas escolas, nos colégios de hoje, é um fracasso maciço que se
política só da escola: seria um meio de inocentar a sociedade, silenciar sobre " abate sobre as crianças mais exploradas - e um fracasso médio sobre os
suas responsabilidades. a projeto de uma escola de sucesso para todos ou, mais ou menos explorados. Anteriormente, elas escapavam do fracasso não
como nos agrada dizer, de uma escola da igualdade das oportunidades indi- entrando nem mesmo nos estabelecimentos de segundo grau.
ca a direção com certeza válida dos esforços, mas isto seria cair na utopia
pedagógica acredita que isso é possível até o fim em uma sociedade div~di- o quefazer? - a que pode significar, diante desta situação a esperan-
da, repartida em classes, onde os filhos dos explorados não podem, maciça- ça da alegria na escola - ao mesmo tempo uma pedagogia progressista, isto
mente falando, pretender o mesmo futuro que os filhos dos dominantes - é uma pedagogia que lula com todas suas forças contra as segregações?
tanto os modos de vida e em particular como as chances familiares de cultu- Primcirumente sou obrigado a moderar meu otimismo; no momento,
ra são heterogêneas.
197 A escola e não-satisfação A alegria na escola 198

em nossa sociedade, os vereditos negativos precipitam-se de maneira dra- lidade aumentada de progressos e reconversões ulteriores; a vida de traba-
mática - e terrivelmente do mesmo lado. lho e a vida fora do trabalho podem adquirir um interesse mais real.
Mas precisamente este tema da alegria na escola insere-se em um avan- Seria muito fácil, e irrisório, fazer desaparecer os fracassos escolares
ço progressista da sociedade, ele o supõe, não existe sem ele e de um lado ex- renunciando, de uma forma ou de outra, ao período de escolaridade.
tremamente modesto pode assim mesmo contribuir para auxiliá-Io.
Eu só posso indicar aqui algumas direções do pensamento e da ação E se a própria idéia da escola progressista desmoronasse? - Encontro
que diminuiriam o alcance da seleção e portanto da angústia, a não- aq.ui, e não poderia deixar de encontrar uma pergunta fundamental: a pró-
satisfação. pna !!oção de escola progressista é possível?
As fileiras técnicas seriam valorizadas, e não somente na teoria, por- A escola não pode nunca se situar como lugar de harmonia, além dos
tanto menos temidas pelos alunos, menos contrárias à alegria na medida em antagonismos de classes, limite de exceção-que seria subtraído das leis da so-
que o progresso técnico tornaria cada vez mais raras as atividades monóto- ciedade. Não se deve nunca menosprezar a escola como instrumento de re-
nas, repetitivas, não enriquecedoras e de Tato perigosas para o próprio equi- produção e conservação: pelo estilo de vida como pelos conteúdos impos-
líbrio da personalidade. Isto exigiria que este progresso técnico fosse gerado tos, ela vai formar os jovens de "boas maneiras", o que se calcula ser, pelo
de maneira a aliviar a dificuldade dos homens - e não para, ou não somen- menos quanto à massa, hábitos de docilidade e mais forte submissão. E ~
te para tirar proveito. O trabalho na fábrica tornando-se algo que não o cas- dos mais explorados que se vai exigir a mais forte submissão, primeiramente
tigo e o castigo do pobre. porque eles não repelem uma cultura escolar da qual estão, no entanto,
A formação contínua não pode constituir uma panacéia e não deve ser mais afastados, depois e principalmente porque eles aceitam permanecer em
um meio fácil de se resignar às insuficiências da formação inicial; isto é, ela seu lugar, adaptarem-se a seu lugar. Os favorecidos confiam na escola para
tem um papel a ser desempenhado para educar, após o tempo da escola, as conservar a sociedade tal como ela é, mantendo nos postos de comando as
qualificações técnicas e gerais da classe operária - contanto que ainda elites, isto é eles mesmos; o que, repito, implica no fracasso em massa dos
aqui, o progresso técnico seja socialmente dirigido para um aumento das mais desfavorecidos, e num fracasso médio dos mais ou menos favorecidos
qualificações. Os trabalhos de operários especializados pederiam constituir - ou mais ou menos desfavorecidos.
uma etapa antes da obtenção de um emprego qualificado - não um destino Os planos governamentais prevêem as porcentagens de operários espe-
da vida. cializados julgadas pelos dirigentes como necessárias para o bom funciona-
De fato a seleção na escola é a projeção da divisão de nossa sociedade mento da sociedade; tomar-se-ão operários especializados os que terão ob-
em classes; a escola é lugar de lutas de classes, não acredito que ela agrave, tido fracasso escolar - e milagrosamente o número dos que terão fracassa-
mas registra (e do mesmo modo confirma) as desigualdades de sucessos se- do na escola encontrará o que teria sido profetizado. Entre os quais haverá
gundo as desigualdades sociais. poucos que não serão filhos de operários especializados. A escola como de-
Na medida em que a classe operária conseguisse valorizar sua contri- sigual, elista, segregativa, é verdadeira. Colette Chiland chega a se questio-
buição à sociedade, conseguisse conquistar a plenitude de seu papel no pla- nar: "O fracasso escolar é o fracasso de uma política de sucesso ou o suces-
no técnico, sindical, político, ser dirigida para um campo profissional dei- so de uma política do fracasso", de uma política que visa preparar os fra-
xaria de constituir um desterro. cassos?
Até então, os esforços das pedagogias de compensação têm mesmo
uma função a ser preenchida, contanto que a compensação se opere simul- Felizmente a escola é complexa - Se a escola fosse somente isto, a
taneamente na escola e em relação à situação vivida pelas crianças, portanto idéia da escola progressista seria contraditória, quimérica. Mas a escola é
pelos seus pais. O problema não é o sucesso individual deste ou daquele in- um local de contradições, lutas, lutas de classes, portanto também luta para
divíduo que, de origem modesta, atingiu situações brilhantes, mas da posi- que o esmagamento social não continue fatalmente em um igual esmaga-
ção intelectual e política de uma classe na sociedade. mento escolar -- e o que quero dizer é a participação da alegria na luta de
Gostaria de fazer estas duas afirmações ao mesmo, tempo: os fracassos classes na escola.
escolares são terríveis - e o prolongamento da escolaridade, é do mesmo Professores militam para instaurar um modo de vida e um acesso ao
modo, para muitos jovens, uma possibilidade aumentada de viver a adoles- conhecimento que ajudem os explorados em seus combates - ou pelo me-
cência em sua indeterminação, a riqueza de sua incerteza; e também possibi- nos quc Ihcs .'icjam menos desfavoráveis. A satisfação cultural poderá man-
199 A escola e não-satisfação A alegria na escola 200

ter estes esforços, na medida em que os interessados sentirem o conhecimen- cas e inseparáveis das lutas sociais em seu conjunto; a alegria é parte inte-
to inculcado em ressonância com sua própria experiência e capaz de lhes ga- grante dele, para se opor a segregação e para trabalhar na fomação de mn
rantir um domínio mais firme. novo homem.
Sabemos que atualmente o desenvolvimento das novas forças produti-
vas implica numa aproximação entre a ciência e os processos produtivos,
em muitos casos uma maior qualificação da força de trabalho - e isto exige
uma formação elaborada dos trabalhadores. Certamente o sonho da classe
dominante é que a escola seja gerenciada para lhes dar com exatidão a ins-
trução necessária para seu trabalho, sem suscitar ambições "exageradas" e
sem que a instrução profissional chegue a discórdia de um questionamento
global.
Mas todas as armas que a burguesia forjou para justificar seu domÍ-
nio, começando pelas reivindicações de igualdade, liberdade, voltaram-se
contra ela" [2]. Acontece o mesmo com os meios de instrução que ela insti-
tuiu.

A escola escapa dos dominantes - A formação dos trabalhadores não


pode se limitar ao que é estritamente necessário para o trabalho tal como foi
previsto, preparado, recortado; ele surgirá como aspirações para participar
na definição, na organização do trabalho, como aspiração para viver me-
lhor e para melhor compreender porque é tão difícil viver melhor: a cultura
como força de luta e de renovação; a cultura como desejo de progredir no
domínio e a compreensão de tal técnica de trabalho, mas também como de-
sejo de abordar os problemas totais que a execução desta técnica, da técnica
suscita.
Nós sempre teremos em mente a dupla face da escola.
Pode-se proceder a um tipo de contraprova; se as classes dominantes
considerassem a escola como sua aliada certa, elas fariam tudo para cobrir
o país de prédios escolares e para prolongar ao máximo o tempo de escolari-
dade, de impregnação da juventude pelas idéias escolares - e principalmen-
te junto aos mais explorados, que constituem o perigo primeiro; elas fariam
tudo para detê-Ios por uma cultura escolar amplamente difundida.
Ora, é exatamente o inverso que foi colocado em execusão. Já Engels,
em relação à sua época, dizia: "A burguesia tem pouco a esperar, mas mui-
to a temer da formação intelectual do operário" [3]. Ao que R. Leroy res-
ponde hoje [4]: "Para reforçar sua exploração, a burguesia conta com a re-
cusa, não com a extensão da cultura"; e ela segrega esta recusa não somente
pelo escalonamento das seleções, mas também pela tristeza e pela sua cultlt-
ra e modos de transmissão desta cultura.
E é exatamente porque há margem de manobra aberta à escola, que a
escola não está condenada a permanecer fora do combate progressista. De-
vemos utilizar esta margem de manobra em lutas ao mesmo tempo especifi-
CAPÍTULO 11

A escola: suas engl"enagens

A escola não é Q monopólio da cultura elaborada, nem da satisfação


cultural elaborada. Ela nunca teve este monopólio, hoje ela o tem menos do
que nunca. Fora da escola, é certo que as múltiplas formas de animação, de
autoformação colocam em presença de uma cultura elaborada do mesmo
nivel que a cultura escolar: teatro, concerto, museu, ouvir uma conferência,
proceder a experiências cientificas, montagens técnincas, TV e cinema -
sem nunca esquecer a cultura de ação, a cultura por participação em ações
militante organizadas.
Pode-se chegar a uma mesma atividade cultural pela escola ou fora de-
la; a mesma tarefa cultural pode ser escolar ou não escolar, o mesmo livro
pode ser lido em casa ou em classe. A visita a um castelo pode ser feita de
um modo escolar (por exemplo haverá para todos relatórios a serem redigi-
dos) ou não escolar.
O lugar evidentemente desenvolve um papel: o lugar da escola ou de
animação ou em casa; mas este lugar não basta para caracterizar a atividade
escolar visto que o lugar teatro pode corresponder ou não a uma atividade
conduzi da seguindo a modalidade da escola.
Primeiramente, será que eu poderia apreender a especificidade da es-
cola, depois procurar como ela pode ser transformada de maneira a se tor-
nar particularmente apta à satisfação cultural? Ou de preferência como ela
é trans,formada quando se ordena ao redor da satisfação cultural.
202 A alegria na escola A escola: suas engrenagens 203

fRIMEIRA SEÇÃO - ESTRUTURA SISTEMATIZADA E, por outro lado, no próprio saber: o saber das "boas pessoas"
adquirido precisamente no decorrer de experiências absurdas e heterogê~
o que me parece caracterizar a escola é uma organização sistemática e neas, seria muito mais frutífero, muito melhor adaptado que o saber dos
contínua das situações: primeiramente, há "pré-requisitos", isto é uma pre- "peritos" .
paração, um grau de preparação considerado indispensável ao que se faz; e
portanto uma certa homogeneidade de formação, de conhecimentos, da o anti-acaso - A escola vai-se explicar de maneira ordenada, aplicar
idade é esperada, reclamada dos participantes. Em contrapartida, o siste- de maneira ordenada; os conteúdos culturais não foram encontrados ao
mático esforça-se para adaptar o que propõe a seu público. acaso das experiências vividas.
Em seguida, procede-se em ordem: há etapas, não se deve queimar as Para atingir o sistemático a escola precisa da duração; percebo aqui
etapas, menos ainda ignorar sua existência. Uma sucessão coerente, do gra- três aspectos essenciais.
duado; passo a passo; há um programa progressivo, uma "progressão", co- O aluno encontra-se no interior do "sistema" escolar por um período
mo se dizia na linguagem dos antigos professores. Cada novo momento in- de tempo tão longo que ele não vê o fim: aos onze anos, ele ainda tem pela
tegra-se ao que precede, consolida o que precede e serve de garantia para ir frer..tepelo menos mais cinco. Isto marca uma diferença radical com a situa-
mais além; cada degrau é ponto de apoio para atingir o degrau seguinte. ção, por :,xemplo, de um estagiário,
A palavra-mestre da escola é: "na última vez nós paramos em ... por- Para se habituar, digamos, com o universo matemático é necessário
tanto vamos recomeçar daí"l. dar-se um longo tempo, levaremos muito tempo - e a escolaridade oferece
ou mesmo impõe uma determinada continuidade. Retoma-se a dificuldade,
o próprio saber - O sistemático da aprendizagem repousa no siste- retoma-se novamente a ela, insiste-se, aprofunda-se, obstina-se a ela' o
mático do saber, do real: tal conhecimento explica a razão de um outro, os . '
exerClClOproposto na segunda-feira é retomado na terça-feira; cada conhe-
'
conhecimentos estão ligados uns aos outros, encadeiam-se e mantêm-se uns cimento é adquirido, perseguido por uma multiplicidade de exercícios, sob
aos outros, explicam-se uns pelos outros, unem-se em totalidades que lhes uuma multiplicidade de facetas.
dão sentido: inserir tal poema na obra inteira do autor ou na literatura desta Enfim vive-se, progride-se num regime de permanência: no teatro
época ou no conjunto das obras de execução semelhante, compreender co- vai-se às vezes, quando se têm oportunidade, a escola é uma vida contínu~
mo este poema participa de maneira original à unidade imensa da poesia. É do grupo-classe, uma ação contínua do professor - o mesmo professor, os
assim que se pode compreender, apreender em sua coesão o que efetivamen- mesmos colegas: não é como uma série de conferências.
te possui coesão, unificar o que tende a unidade. A escola tem confiança no .
saber como podendo ser adquirido sistematicamente porque ele forma o sis-
tema; cada pergunta faz parte de um conjunto e esclarecer-se por este con- Não é fácil gostar da dificuldade - O sistemático nunca é dado, dire-
junto: mesmo a maneira como vemos um quadro depende do que nós sabe- tamente leglvel; um esforço de reestruturação é indispensável para conse-
mos ou sentimos de seu autor, de sua celebridade, de sua época: "nós não guir reunir a experiência esparsa numa totalidade; aí é preciso a intervenção
olhamos da mesma maneira um rosto que nos disseram ser datado de dez de uma terceira pessoa, o professor e todas as dificuldades que ele ajuda a
anos ou seiscentos anos; nós o questionamos de outra maneira" [1]. Certa- resolver, mas também todas as que sua presença acarreta.
mente vai-se introduzir elementos novos a partir de experiências pessoais, Uma segunda causa do difícil da escola é que ela propõe projetos, pro-
problemas pessoais, pelo que o sistema é modificado, enriquecido, mas con- gressos a longo prazo - e que não são portanto possíveis sem uma determi-
tinua a ser sistema. nada aceitação do protelado: é preciso fazer gamas, muitas gamas antes de
Illich recusa a escola porque ele recusa de um lado o sistemático, na se servir de "freagmentos", é preciso passar por uma freqüência lenta, lon-
aquisição do saber: sustenta que o essencial para cada um de nós foi obtido ga e regular da obra antes que ela se transforme em "surpresa, vertigem,
ao acaso, durante encontro, ao acaso de conversas. cxaltação, esplendor que nos constrange" [3].
Os resultados não serão imediatamente sentidos, o esforço não pode
ser logo recompensado; é importante mantê-Io, manter-se aí.
Além disso: não se evitará passar pelo austero, pelo árido; túneis mo-
É porque "a escola paralela" não é uma escola - e além de que não quer de forma
algulIla Sl'r paralela à lns(i(ui~ão cswlur.
mentos deccpcionuntes. desencorajamento; periodos de aborrecimento' e até
204 A alegria na escola A escola: suas engrenagens 205

períodos dolorosos, principalmente quando o aluno pensar em tudo que ele esperar ultrapassar o difícil daquilo que a escola se dá como tarefa a ser en-
está sacrificando e está presente, ao alcance das mãos. frentada.
Enfim a escola é difícil porque o sistemático exige uma mudança de ní- Há lugar na escola, necessidade de escola, a escola justifica-se - e
vel: o desnível entre a vida havitual de um jovem e as tarefas da escola ca- provavelmente ela apenas se justifica - quando se espera do jovem um sal-
ractenza a escola, ao mesmo tempo o que caracteriza a escola, justifica-a e a to tão considerável que ele deva recorrer ao apoio de uma instituição. Ele
torna muitas vezes, freqüentemente, tão rigorosa. não pode ser bem-sucedido por suas próprias forças, nem mesmo recorren-
Pediu-se ao aluno para mudar o nível de suas atitudes: não se escuta do às forças iguais de seus semelhantes.
um professor como se escuta o transistor, continuando a comer, a conver- É a isto que gostaria de acrescentar três observações:
sar, com o risco de interromper um momento as atividades concomitantes
quando isto se torna realmente interessante; não se folheia um livro de ciên- - Não há "bom professor" que torne tudo fácil - ou 'melhor o bom
cia; não se olha uma obra de arte como se olha a chuva cair. Cada pessoa professor não é aquele que tornaria tudo fácil seja pelo seu encanto, seu ca-
conhece os apelos constantes, às vezes desesperados, da escola para "pres- risma, seja pela virtude iluminadora de suas interpretações; provavelmente
tar atenção": uma tensão em direção ao que, de improviso, por si mesmo, o bom professor é aquele que fornece os meios e a vontade de se medir em
não atrai não retém a atenção - um esforço que ninguém pode manter por relação ao difícil.
muito tempo. - A escola é difícil para todos, certamente em níveis muito diferentes;
Em suma pediu-se ao aluno para encarar o questionamento de suas mas quando não se reduz mais a cultura às boas maneiras, ao bem falar,
tentativas, evidências, certezas até então confortáveis. nem mesmo aos sucessos nos exames, em resumo ao bom tom e àquela fa-
mosa "distinção", parece que ela nunca é imediata, natural, impregnação
Apreço, apreciação - E principalmente a escola é um mundo rigoro- direta do meio; nunca é como o ar que se respira.
so, pois um de seus papéis é avaliar. Os riscos da avaliação foram denuncia- Mesmo os alunos "favorecidos" que obtêm bons resultados na escola
dos centenas de vezes: risco de infantilizar, desesperar, imobilizar; o aluno - e não são todos que são aprovados - não chegam até este por: to deixan-
sentindo-se atacado se contrai, entra dentro de si. Aqui o esforço é essencial do-se ir, deixando-se levar, mas à custa de grandes esforços.
para que cada pessoa seja comparada a si mesma muito mais que confronta- Certamente a cultura das famílias operárias e muito distanciada da
da com os outros. atmosfera das tragéàias de Racine, mas Racine não se situa no prolonga-
Mas a escola não renuncia à avaliação enquanto se interessa por fazer mento simples das preocupações e dos costumes culturais de cada jovem
o aluno viver na convicção que tem progressos a realizar, que ele lá está pa- "burguês", nem de seus pais.
ra realizar progressos; além de fazê-Io sentir que suas produções estão à esta
ou àquela distância dos sucessos de referência. Nada é equivalente, existem - Esse esforço em direção ao cultural é particularmente severo para
critérios de valores, uma hierarquia de valores: o texto que ele escreveu, des- uma criança [3]; começava a familiarizar-se com o que a cerca; a encontrar
ta vez, é melhor que o precedente; apesar de tudo, os alunos mais velhos fa- caminhos nos seus mundos - e ela é incitada a abandonar o que possuía pa-
zem freqüentemente melhor; seu texto não se destina a tomar o lugar das ra se lançar no desconhecido, ir em direção às exigências mais severas. 'Daí
grandes obras. Em suma, acostumar o aluno a se situar. nostalgia e desgosto, temores e resistências. A escola deve primeiramente
Não comprar o contentamento do aluno abandonando a avaliação, compreendê-Ias, admiti-Ias.
não lhe propondo quase nada além das tarefas às quais dir-se-á que não ser- Para que a criança triunfe, é preciso confiança em si, coragem - en-
vem para a avaliação, que não é o caso de erro. O risco de que muitos jo- corajamento; mas também cada passo à frente aumenta a confiança em si.
vens gostam, procuram em seu lazer, nos esportes de lazer, é impossível A criança tem necessidade de obter vitórias - e constatar que em alegria,
transportar o risco às tarefas escolares e aos resultados que elas podem atin- elas supercompensam bem as provas.
gir - ou não.
Multiplicidade do obrigatório - Na covergência do sistemático, do di-
Quando é preciso ir à escola? Muitas vezes o sistemático é necessário fkil e do diferido coloca-se o obrigatório. Ao se esperar ou melhor ao se pre-
para que a escola seja o lugar do difícil, um difícil que não se deixa enganar parar para viver no universo do trabalho assalariado, os jovens vivem em
por frases soltas nem pelo acaso; e o sistemático é aquilo pelo que se pode quatro meios: a escola, a família, o mundo quotidiano, o mundo do lazer e
206 A alegria na escola A escola: suas engrenagens lu!
dos colegas. Evidentemente cada meio possui seu tipo particular de obriga- em primeiro plano: a visão pode se deslocar de campo para campo, pode se
ção; na escola a obrigação é particularmente precisa, codificada; a regra de- encontrar em múltiplos campos.
sempenha um papel em primeiro plano. Eu distinguiria as satisfações intermediárias que são comuns à escola e
Como em toda parte, existem obrigações implícitas, difusas: quando a a outras atividades daquelas que se desenvolvem mais particularmente na
classe é disposta de tal maneira que os alunos comunicam-se entre si o míni- escola.
mo possível, quando a cadeira do profe!!sor está mais elevada para que ele Alegria do sucesso, de todo esforço que é bem-sucedido: enfrentar a
domine; o que o professor impõe sem o querer, às vezes mesmo sem o saber, prova, é preciso que haja um certo risco, uma perda, ou pelo menos a amea-
por suas atitudes e pelo modo de vida que ela suscita na sua classe. ça de um fracasso; depois a alegria da vitória.
E principalmente as obrigações diretas, explícitas, são características: Sentir-se progredindo, capaz de progredir, sentir suas forças crescen-
a primeira é ir à escola, numa determinada classe, em momentos fixados - do; Conhecer-se melhor, governar-se, dominar-se mais, ultrapassar-se,
e isto quase todos os dias e quase o dia todo; os alunos não escolhem seus "arrancar-se" diante do obstáculo, resistir, ir até o fim do que se tinha ten-
professores, os professores não escolhem seus colegas, os alunos não esco- tado; pelo que se pode avaliar, ver onde se está, tomar a medida de si mes-
lhem seus colegas de classe; e é precisO, sendo assim, viver e trabalhar em mo e, em casos favoráveis, adquirir confiança em si; em suma fazer suas
conjunto. provas, prestar testemunho, confirmação de si mesmo.
Todos devem fazer tudo, todos devem fazer de tudo; tudo se dirige a O prazer sentido pelo eu em seu bom funcionamento, uma certa facili-
todos e não somente aos voluntários que o escolheram; cada um deve res- dade na manipulação da força mental e que evidentemente relaciona-se com
ponder verbalmente ou por uma ajuda se for interrogado, não somente os o prazer de sentir seu corpo disponível: estar completamente pronto para
que têm vontade ou os que "têm algo a dizer". É a instituição e não os inte- agir.
ressados que decide, fixa de antemão conteúdos, atividades, programas; Estas alegrais nos jovens são mais pronunciadas ainda: o desejo de
vive-se sob o regime do emprego do tempo, isto é, que a instituição organi- progredir, a satisfação de se sentir capaz de progredir fazem parte integran-
zou de maneira minuciosa e detalhada os momentos e durações que se con- te de sua situação: satisfação de tomar iniciativas, e assim sair da dependên-
sagrará para cada atividade. cia infantil. O que não se separa da alegria de crescer: antes, quando ele era
Enfim, os desempenhos dos alunos são controlados, verificados, jul- pequeno, não conhecia, não compreendia bem, não sabia fazê-Io; agora ele
gados, avaliados, corrigidos. adquire poderes, ele se iniciou nos segredos dos adultos, ele vai lhes roubar
O rigor com o qual o aluno é tratado, as ordens às quais ele deve obe- parcelas de sua força.
decer, as tarefas ordenadas, o estado de encadeamento em que ele se encon-
tra, acontece que isto se torna promessa: promessa que o aluno chegará ao
rigor no raciocínio e na execução, a apreender um encadeamento das causas Mais particularmente na escola - Primeiramente e antes de tudo a
e efeitos, das idéias e condutas, a uma ordem em seu pensamento e ações, alegria dos colegas, mas aqui não diremos nada sobre isso. Assinalarei sim-
em suma a uma cultura ordenada - e que se ordena com alegria. plesmente como característica a alegria sentida quando um colega faz uma
A escola quando se trata de ... quando se acredita possível formar e en- exposição; freqüentemente então os alunos testemunham uma indulgência
sinar, não apenas esclarecer e informar. que eles estão unidos longe de manifestar diante das explicações dadas pelo
professor.
Esta alegria parece-me conduzir a dois sentimentos: meu colega é ca-
SEGUNDA SEÇÃO - SATISFAÇÕES INTERMEDIÁRIAS paz disto, nós somos capazes disto, não existem somente os professores, os
adultos a serem competentes; e por outro lado, nenhum aluno se sente ultra-
Gostaria de chamar de "intermediárias" as satisfações que são ao passado demais, a exposição do colega pode ensinar coisas, visto que ele es-
mesmo tempo reais e não se confudem com a que considero como a satisfa- tudou mais a questão, mas ele permanece no nível de aluno.
ção cultural escolar culminante. Elas desempenham um papel essencial na Apesar de meu postulado inicial, não se pode aqui passar em silêncio
vida dos alunos: participar da cultura nas suas formas "geniais", incorpo- sob a alegria de preparar seu futuro, futuro escolar e, mais distante, futuro
rar os conteúdos culturais, agir ao níveldos conteúdos culturais elaborados. profissional: os sucessos escolares como promessas de sucesso para o futuro
Nas satisfações intermediárias, não é o objetivo, o objetivo cultural que está e também sentir-se capaz de olhar além do presente; do imediato, agir a lon-
208 A alegria na escola A escola: suas engrenagens 209

go prazo, engajar-se por um longo prazo; todas alegrias que, ao mesmo baixo preço atendo-se somente às dificuldades simples demais e principal-
tempo supõem e fortalecem a confiança no futuro. mente seu alcance real na vida; podemos saboreá-Ias sem nos preocuparmos
Mas gostaria de insistir na alegria do sucesso escolar no presente: não verdadeiramente com o valor do que se consegue: a alegria de remontar o
somente dar prazer aos seus pais, a um professor que se gosta, não decep- quebra-cabeça chinês, a partir do momento em que o desmanchamos.
cionar sua expectativa, receber sua aprovação mas principalmente saber-se Mas não é menos importante que o aluno apoie-se nas satisfações in-
à altura, em regra, ao nivel: ser exatamente como se deve ser, "consigo se- termediárias, que ele seja sustentado pelas satisfações intermediárias em sua
guir"; encontrar lugar, sentir-se em seu lugar. caminhada em direção a satisfação cultural. Certamente existem impureza
Mesmo se a escola tradicional abusou terrivelmente dos exercícios, nas satisfações intermediárias: a gloríola liga-se à cultura pois ela garante
apesar disso eles podem dar aos alunos éertos tipos de alegria: sentir que se sucessos lisonjeiros, permite ser bem visto por alguns, eles mesmos já bem
ganha em habilidade minuciosa, em atenção precisa; orgulho de fazer bem colocados.
feito ""'-indiscutivelmente bem feito; aí vê-se melhor. Por exemplo a alegria Entretanto seria ilusório procurar uma satisfação cultural pura, desin-
dos exercícios de ortografia: alguma clareza introduz-se no imenso magma teressada, livre de qualquer parcela de vaidade; seria ilusório pretender se-
das palavras, "et" não mais se confunde com "est". parar completamente o puro e o impuro, e exatamente hipócrita consagrar
Enfim existem conhecimentos que não· me parecem atingir a satisfação o impuro ao desprezo. De fato o impuro é uma das vias de acesso, pode se
cultural no brilho que quero lhes atribuir, mas dos quais muitas crianças ex- tornar uma das vias de acesso em direção à satisfação cultural, por gloríolas
traem determinadas alegrias. Por exemplo alegria de acumular, de colecio- recusar-se-á atitudes de preguiça e facilidade; começar-se-á por gostar de
nar numerosos nomes de flores, cidades, países; alegria da nomenclatura. Picasso, por acreditar e dizer que se gosta de Picasso, para ganhar a consi-
Pouco se aprende sobre as coisas em si e entretanto, ainda aqui, o caos múl- deração de determinadas pessoas que são importantes para mim; mas isto
tiplo do ambiente abre-se para uma determinada ordem e as possibilidades leva ·ainda assim a freqüentar estas obras e pode-se um belo dia surpreender-
de aí se orientar determinam-se. se a gostar delas "de verdade".
A forma inicial desta alegria é que uma criança, pelo menos em certos Da boa utilização do esnobismo, de determinados tipos de esnobismo,
meios, sente que parecerá uma tola e que ficará perdida nas conversas se a fim de chegar, aos poucos, a alegrias sinceras. A satisfação cultural nunca
não souber absolutamente nada do que se fala ao seu redor; a América do se apresenta sozinha, ela tem necessidade de satisfações intermediárias, e
Sul e as equipes de futebol que vêm para cá. Daí sua alegria quando ele ace- não somente como meios de aproximação: permanece sempre um compo-
de a uma primeira localização no espaço (e também no tempo), satisfação nente de vaidade, uma arrogância de ter conseguido pelo simples orgulho
que só se faz com aquela de estar a par do que preocupa o plundo dos adul- do sucesso.
tos - e portanto permanecer afastado fora de seus debates, de não "ser le- Um dos dramas da escola em relação aos bons alunos (pois também
vado em conta". eles causam problemas), é que freqüentemente eles aproveitam das satisfa-
É preciso reconhecer bem que esta alegria é muito menos encarada ao ções intermediárias e nem mesmo desconfiam da existência da satisfação
nível do colégio quando se tratar de aprender tantos nomes de portos desta cultural; é precisamente porque as primeiras não conduzem, por si mesmas,
mesma América do Sul. até a segunda que compete ao professor estabelecer um trajeto entre elas -
e é este ponto de chegada que se trata de nunca perder de vista; as satisfa-
Brilhar - Mundo da prova, da competição, do exame em suas formas ções intermediárias têm necessidade de se juntar à satisfação cultural para
codificadas, institucionalizadas, a escola é um lugar onde a glória, pelo me- atingir a plenitude delas mesmas: na medida em que o termo visado torna-se
nos a gloríola misturam-se de maneira verdadeiramente inexplicável com as mais válido, a alegria de ser bem-sucedido adquire mais consistência; o or-
mais profundas satisfações culturais: gostar de V. Hugo e colocar-se em evi- gulho de ter ultrapassado os obstáculos que a princípio impediam de gostar
dência, mostrar seus talentos, sentir-se considerado, um pouco invejado. É de Picasso, é assim mesmo algo além da alegria de ter reconstituído o
verdade para todos, ainda mais para os alunos. quebra-cabeça chinês.
É essencial não confundir a satisfação cultural com as satisfações in-
termediárias, não limitar a satisfação cultural às satisfações intermediárias,
não se contentar com as satisfações intermediárias.
Estas alegrias do sucesso Que acabei de evocar. pode-se adquiri-Ias a

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