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Colação Debates

Düigida por J. Guinsburg

jogo alexandre barbosa


AS ILUSOES
DA ODERNIDADE
NOTAS SOBRE A HISTORICIDADE DA
LÍRICA MODERNA

Equipe de realização -- Revisão: Plinto Mastins Filho; Produção: Ricardo W. Neves


e Raquel Femandes Abranches. :$iÜ PERSPECTIVA
Dados Intemacíonais de Catalogação na Publicação (CIP)
(CâmaraBrasileira do Livro, SP,Brasil)

Barbosa, João Alexandre


As ilusões da modemidade/ Jogo Alexandre
Barbosa. São Paulo : Perspectiva, 2009.
(Debates; 198/ dirigida por J. Guinsburgh)

ISBN 978-85-273-0742-0

1. Poesialírica - Históriae crítca 2. Poesia


romântica- Sécu]o] 9 - História e crítica 3. Poesia
romântica - Século20 - História e crítica
1. Guinsburg, J. 11.Título. 111.Série.

05-7179 CDD-809.14
À 121emóría
de
Antonio Costa Barbosa, irmão e amigo
Índices para catálogo sistemático:
Resina Schnaidermati, mestra e amiga
Poesialírica : História e crítica 809. 14 e
}orge Canteiro da Cunha, a própria amizade.

I' edição -- 2' reimpressão

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2009
'''''TI

2. BAUDELAIRE,
OU A LINGUAGEMINAUGURAL
'ARIA J:l:ERÁBIA
g

l
A minha proposta é a seguinte: ler um poema de
Baudelaire a partir do qual seja possível recuperar, para a
reflexão acerca da Modernidade, os traços mais importantes
do prometobaudelairiano.Neste sentido, o que está em
jogo é, sobretudo, a articulação entre um texto poético e
tudo aquilo que, talvez à falta de melhor nome, pode-se
chamar de prometodo poeta. É claro que já seria o bastante:
articular poema e prometo,sobretudo no caso de um poeta
com ap dimensões de Baudelaire, significa, na verdade,
rastrear alguns dos problemas fundamentais para uma defi-
nição da Modernidade do poema. Sendo assim, a proposta
incial é, de certa forma, uma maneirade possibilitara
apreensão de tudo o que, num determinado poema, aponta

39
11

para a busca de resolução individual daqueles problemas Là s'étalaít jades une ménagerie;
mencionados. Là je vis, un matin, à I'heure oü seusles cieux
Froids et clairs le Travail s'éveille.oü la voirie
Por outro lado, a afirmação da viabilidade de uma 16 Pousse un sombra ouragan dais I'air silencíeux,
configurada implica na concepção do 6t;ê;iiã
leitura .assim configurado
K: como Un cygne qui s'était évadé de sa cago,
o da linguagêiã:'Ã Et, de ses pieds palmés frottant le pavé sec.
niiêüãÉêãímpoema a Sur le sol raboteux trathaít son blanc plumage.
quanto instância de um discurso da poesia qãe, fixado no 20 Prós d'un ruisseau sins eau ]a bête ouvrant le bec
texto em pauta, deixa ver os acidentesde 'sua traíetória.
As marcasda Hisiõiíã: Baignait nervousement ses ailes dons la poudre,
Et disait, le çoeur plein de son beau lac natal:
Não está, portanto, no horizonte deste ensaio, a ambi- "Eau, quand dono pleuvras-tu? quand tonneras-tu: foudre?
!ão de uma descriçãodetalhada dos procedimentos de Baude- 24 Je vais ce malheureux, mythe étrange et fatal,
laire: a leitura seráparcial na medidamesmaem que se Vens le fiel quelquefois, comme I'homme d'Ovide
propõe .um corte..no poema a fim de que melhor sejam Vens le fiel ironique et cruellement bICa,
regi?trados os delineamentos do projeto. Não deixa de 'ser Sur son cou convulsif tendant sa tête avide,
verdade,por outro lado, que, mesmoparcial, a leitura assim 28 Comme s'il adressait des reproches à Doeu!
pensada ambiciona transcender os liÚuites textuais: a deci-
11
fração do poema termina trabalhando no sentido de buscar
a decifração no nível das relações entre poeta e história Pauis changel mais rien dana ma mélancolie
8.b!!!alia..!jterária como tradução incrustada nas articulações N'a bougé! panais neufs, échafaudages, bloco,
o poema. Depe Vieux faubourgs,tout pour moi devientallégorie,
32 Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des roca
enéõHtravg no momento da elaboração de seu texto e por
onde criava o espaço para a instauração de sua linguagem. Aussi devant ce Louvre une image m'opprime:
Um ato inaugural. Je pense à mon grand cygne, aves ses gostes fous
Comme les exilés. ridicule et sublime.
Seria inútil procurar na fixação de características român-
36 Et rongéd'un désir santrêvel et puasà vous,
ticas e. pós-românticas
uma definição do projeto de Bauda-
laire. A dependênciapara com a linguagem do Romantismo Andromaque, des bus d'un grand époux tombée
e a.abertura p?ra aquilo que será a sua posteridadep6s- Vil bétail, seus la main du superbe Pyrrhus,
romântica são dois movimentos de uma mesma linguagem: Auprês d'un tombeau vida en extasc courbée;
40 Veuve d'sector, hélas! et femme d'Hélénus!
o eixo em torno do qual é possíveller o sentidomais amplo
de sua obra. Eis o texto: Je pense à la négresse, amaigrie et phthisique,
Piétinant dais la blue, et cherchant, I'oeil hagard
LE CYGNE
Les cocotiers absents de la superbe Afrique
Á VÍcfor Huno 44 Derriêre la muraille immensadu brouillard
,-----\ l
A quiconque a perdu ce qui ne se retrouve
in=WTtk$g:;à.}=: .%:=li' -"",
L'immensamajestéde vos douleur; de verve.
jamais, jamaisl à ceux qui s'abreuvent de pleura
Et tettent la Douleur çomme une bonne louve!
4 48 Aux maiores orphelins séchant comme des fleurs!
Ce Simoís menteur qui par vos pleura grandit,
A fécondé soudain ma mémoire fertile. Ainsi dons la forêt oü mon esprit s'exibe
Comme je traversais le nouveau Carrossel. Un vieux Souvenirsonneà plein soufflédu cor!
Le vieux Parian'est plus (la forme d'une villa Je pense aux matelots oubliés dana une ile,
8
Chance pias vate, hélas! que le coeur d;un mortal); 52 Aux captifs, aux vaincus!. . . à bien d'autres encorli
je ne voif qu'en esprit tout ce vamp de baraques,
Ces tas de chapiteaux ébauchéset de futs. ' ' 1. Cf. CHARLESBAUDELAIRE, OeuvresCompZêfes
1. Texto
Les .helbes, les aros blocs verdis par I'eau 'des claques, établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Paras, Gallimard(Bi-
12 Et, brillant aux' carreaux, 'le brio:à-brac confus"'' bliothêquede la Pléiade), 1975,pp. 85-87.

40 41
11

2
podemos chamar com especial ênlêlç i;iil; l; líferária". A
Publicado em l,a Causerfe, em 1860, o poema foi in-
c[uído na segunda edição de Z,es FJeurs dzz ]i/a/, de 1861, partir daí, entretanto, o ensaio de Lowry' Nelson Jr. abre
constituindo o quarto texto da segundaparte da obra, então perspectivasbem mais amplas,para a leitura do texto baude
criada pelo poeta sob o título de ''Tableaux Parisiens'' laíriano, do que aquela primeira frase poderia deixar suspei
tar: observando que o poeta "não somente utiliza palavras
Situado entre ''À une Mendiante Rousse'' e "Les Sept e frases da Elzéída mais incorpora toda a ressonânciado
Vieillards", o poema tem sido, de um modo geral, tratado episódio ao q ual ele alude em seu próprio poema"', a leitura
como uma convergência de dois movimentos fundamentais
que realiza do trecho do poema virgiliano consumido pelo
em Baudelaire:"o poder de evocaçãoque as ruas de Parti poema de Baudelaire é bastante arguta para tomar evidente
acionam em Baudelaire", para repetir as palavras da pará-
aquele modo de incorporação. Assim, por exemplo, a idéia
frase de Albert Feuillerat :, e a utilização da alegoria como
mediação entre a poesia e a existência do poeta prisioneiro fundamental de que aquela cidade construída por Hel
das contingências,conformea leitura de Mme. E. Noulet3 e por ele apresentada a Enéias, era ''uma pequena
de Tróia ('parvam Traiam')". Diz o autor
Sem desprezar nenhuma das duas alternativas, que evidente-
mente comparecemno texto, algumas leituras mais recentes feita cer a Óiaj\ com
têm insistido na própria organizaçãodo poema como modo paio rio Xanta rico C seco
de ler a complexidade da linguagem baudelairiana. Seleciono procedo et parvam Traiam simulataque magnas
Pergama et atentem Xanthi cognomine rivum
três exemplo!: ''Baudelaire and Virgil: A reading of 'Le agnosco 9
Cygne' ", de Lowry Nelson Jr. ', ''Thé Originality of Baude-
laire's 'Le Cygne': Genesis as Structure and Theme", de Da mesma forma, é essencial, para o argumento logo
F. W. Leakeys, e "'Le Cygne' de Baudelaire: Douleur, em seguidadesenvolvido
pelo autor em sua leitura do
Souvenir, Travail", de Visto; Brombert6 poema, a ldrâmaca
O ensaio de Lowry Nelson Jr. assume como argumento existindo "Tiõ da Traiaori a
central aquilo que, na crítica baudelairiana. tem servido
cepa.instrumento de decifração do poema: a referência a está processo, para o autor, é, sobretudo, o
« Vjrgíli(!> ao episódio deíálti;ãBiããõãldQ..Canto...linda.Elzéída. VliHHia.H
'Â"êft)caçãode Baudélãii;de um episódioda Enéíciaem B mesmo Enéias. "Há uma sugêÉiãõ' aqui
seu poema 'Le Cygne' é um excelente exemplo do que .e Eã..gljçDação:o saque de Traia e o exílio
dos troianos sobreviventes como a expulsão de um paraíso
2. Cf. ."LArchitecture des F/euro du Ma/', em Sfadfes by
memberso/ f/zeFrenc/zDeparfmenf o/ Vale U/zíversífy.Ed. by Albert
que então continua a aparecerpara os homenscomo um
Feuilleratt Decennial volume, New Haven, Yale University Press, sonho irrecuperável" "
1941,P. 304. ' É claro que este último trecho do ensaiode Lowry
3. Em STEPHANE MALLARME, Oeuvres Como/ates.Texte Nelson Jr. é bélico para a passagemao poemabaudelairiano
établi et .annoté par Henri Mondar et G. mean-Aubry. ' Paria, Galli. o tema do ue o autor reconhece como "maior theme'
mard (Bibliothêque de la Pléiade), 1956, p. 1486. ' '
4. Cf. "Baudelaire and Virgil: A reading of 'Le Cygne' ", em
do poema ali configurado com todas as suas ímpli
Comparafíve l,íferafure. Vol. XIII. Fal1 1961. N. 4. Oregon: Univer- cações. Ou, segundo o autor: i$olamç!!!g diva aban
sity of Oregon. dono, cxcll to. irada @. Todavia, aquilo que $.erá deck
5.
Structure
Cf. "The
and Theme',
Originality of Baudelaire's
em Ordem a/zd ,4dvenfure
'Le Cygne': Genesis as
írz Post-Romalzfic
sitio na leitura do autor, e
de Êêü 6'crítico, é o
FrerzcAPoefly..ETays. presentedto C. A. Hackett. Ed. by E. M.
Beaumont. 1. M. Cocking and J. Cruickshank. Londres, BasalBlack-
7 OP. cÍf., P. 332
6. Cf. " 'Le Cygne' de Baudelaire: Douleur, Souvenir. Tra- 8 Idem, ibidem.
vail", em Éfudes fraude/aírierzrzes
//.r. Hommage à' W. T. Brandy. 9 /dem, p. 334.
(Publié..par lamas S. Patty et Claude Pichéis). Neuchâtel,À la
Bacconiêre, 1973. ' ' ' 10 /dem, p. 336.
11 Idem. ibidem.
42
43
11

a ida por Baudelaire desencadeia. O Em Virgí[io,[diz o autor] há a Traia origina], a pequenaTraia


o Sana e Pauis uma outra. "embora
de Andrâmaça
e Heleno.
a futuratróiade Romãe a Traiada
mente. Em Baudelaire a Parascontemporânea que ele evoca toma-se
menos real, 'parva Traia' "u. Da mesma maneira, as ]ágli- tambémuma pequenaTraia; mas no passadohouve uma Traia um
qlDÇBlaD..g.volume do ri6'(mais mais proxima ao onginai em le vieux .pauis que continha
uma espéciede falsa cidade dentro dela, o "camp de baraques".Mais
a memóriada'Fõêtz''Aqui, diz importante é a Traia da mente, a cidad
Nelson Jr. a metáfora dos nascimentos e correntes como memoria e que represen
fontes da inspiração poética é revitalizada pela implicação presente, ou no passado
concreta do rlo trazendo água para irrigar a terra e leva-la é tantoli
a florescer" 's. Neste momento é possível pg!!êE..de..;Andlê- escrava .o ao assa. mesma forma que o caih-
PO .pe CI da mente e também uma espécie
le: . ambas a$ imagens estão vinculadas por de miragem que aprisiona a mente na ilusãoiÓ
irónica através da qual o poeta desdobra a
apreensão da realidade inadequada. Não obstante todos esseselementos de interpretação do
A "fecundante"memória de Andrõmaca trouxe à mente do texto baudelairiano, levantados, com muito rigor analítico
poeta a imagem do cisne porque suas condições são pualelas em por Lowry Nelson Jr., o ensaio está limitado por seu pro-
muitos .sentidos. Ambos são ilgBjgêglçnttJlvres: Andr6maca não pósito básico, isto é, esclarecer o modo pelo qual Baude-
laire leu, e consumiucriativamente,o texto virgiliano. Desta
para que.serve a libefãadê7 Aãdiõhãêã õõiiitiuiu êõm Heleno uma
maneira, as suas últimas observações, referentes à linguagem
pequenaTraia que servecomo uma gaiola para aprision6Jano pas- do poema, não vão além de uma indicação de propriedade
sado. O Cisne escapou, não.para seu "beau laç natal , mas para um
novo confinamento num ambientehostil: uma desagradávelrua seca. entre a intenção de fundir Virgílio e experiência pessoal
áspero chão, um riacho sem águai4 e o que chama de medíum para tal fusão: latinismos de voca-
bulário ou "reflexo do estilo latino"i7
.. Daí por diante será mais fácil, para Lowry Nelson Jr., Não me parece, por isso, que tenha razão F. W. Leakey
-9' ampliar o sentidoem que toma g j99Qdas alusõesliterárias: quando,em nota ao seu ensaio sobre "Le Cygne", trata o
estabelecida a rede irónica qu;"j;;;iBiíiií'i"êquiva ência trabalho de Lowry Nelson Jr. como sendo "at times over-
entre os dois símbolos básicos do texto -- Andrâmaca e ingenious" :'. Ao contrário, por manter-se, às vezes, exces-
cisne -- é possível detectar no texto o aprofundamento do sivamentelimitado aosparâmetrosde um exercíciode deci-
processoalusivo. Memória dentro da memória ("Je pense lraçâo da alusão literária (embora cumprindo admiravelmente
à mon grand cygne, aves ses gestos fous"); imagem dentro bem o seu propósito), é que, a meu ver, o texto de Lowry
da imagem (". . . et puas à vaus,/Andromaque, des bus em não desdobrar mais amplamente algu
d'un grand époux tombée"). Ou, referindo-seaos últimos .cas pesco IFleitura acerca do poema
versos do poema: "exílio na cidade e, dentro da cidade, Sente-sea ausência, por assim dizer, de uma contextualização
exílio na floresta da mente"'5. Está completo o círculo da dos dadostextuaise que poderia, sem dúvida, indicar, de
alienaçãoe da perda: no processoque vai da Traia original modo mais complexo, a passagementre a criação do estilo
dê..Bate, de acordo com a 'iêiiura que Lowry
baudelairiano,
a partir de sua leitura de Virgílio, e sua
experiência de iDêq lyivendo, para aizerC.
Nelson Jr. faz da passagem virgiliana, o poema de Baude- 19
com Walter Benjamin, :a era do alto capita Limo
Este tipo de problematização também não é realizado
preciso citar um dos iíiiiiiiõi''iiêii;os do ensaio 'de Lowry
Nelson Jr. em que se estabelece, com grande sensibilidade, pelo segundo ensaio escolhido para exemplo: o de F. W.
a medida dessa instauração baudelairiana.
16. /dem, p. 344-5.
17. /dem, p. 345.
12. Idem, p. 337.
13. Idem, ibidem 18. Op. cíf. p. 53, nota 2.
19. Refiro-me à ediçãoinglesa do livro de BENJAMIN, Cear
14. idem, p. 339. [es Baudelaire: A Lyric Poet in the Era of .High Capitali$m. TTansX
15. .roem,p. 344. by Harry Zohn, Londres,NLB, 1973.
44 45
implica numa ruptura do que, no poema,é um só movi-
Leakey. Embora a sua intenção seja bem mais analítica do mento de apreensão, embora modulada pela própria lingua-
que a do ensaioanterior, nem sempre os resultadosobtidos gem a um tempo pessoal e histórica de que se serve o poeta.
são mais originais. O propósito essencial é o seguinte: De fato, desejando acompanhar a evolução do pensamento
Na maioria(talvez em todos) dos poemaspreviamente escritos, do poeta no momentomesmoda composição, F. W. Leakey
inclusive aqueles pelo próprio Baudelaire, o que é finalmente apre- cria uma, por assim dizer, circularidade interpretativa: sen-
sentadoao leitor é a reorganização
em algumaforma(lógica ou do a expressão de um movimento interior ao poeta, cada
cronológica) das idéias originais, da experiência original, a partir versoé lido comoindicaçãode um retornopossível,pelo
das quais o poema é moldado; quase por definição há uma brecha,
crítico, às fontes do pensamento do poeta.
mais ou menosampla, entre a seqüênciaoriginal de idéias e a se-
qüência reorganizadafinalmenteposta ante o leitor. A realizaçãoe Neste sentido, pode servir de ilustração o modo pelo
inovação incomuns de Baudelaire em "Le Cygne" é ter/ec/lado esta qual o autor fixa a passagementre as duas partesdo poema.
brecha, ter feito um poema simplesmente derramando os pensamen-
tos que livrementevinham à sua mente no momento real da com- A separação[diz e]e] entre as partes ] e ]] do poema, repre-
posição. Fazendo assim, ele não somente vai além, antecipando téc- senta uma pausa nos pensamentosde Baudelaíre: podemos imagi-
nicas modernas ("associação livre", "fluxo de consciência", "escrita na-lo permanecendosozinho na praça, perdido em suas memórias,
automática",etc.); ele tambémnos concedeo privilégio único de e então, voltando a si novamente, juntando os seus pensamentos
assistir, por assim dizer, a criação real do poema. Tema, estrutura e desde que, mais uma vez, ele se torna consciente da cena presente24
gênesenão são mais distintos e sim idênticos20
Eis o que chamei de circularidade interpretativa: está
O ensaio, todavia, fica a meio caminho da ambição claro que a distância entre as duas partes do poema implica
delineada como intenção fundamental: apenas a gênese numa "pausa", como quer F. W. Leakey; mas não simples-
do poema,como o próprio autor reconhece,foi abordada2: mente uma "paaw nos pensamentos de Baudelaire"l; por
Sobretudo do ângulo de uma, para mím duvidosa, associação isso mesmo, não é convincente a figuração que o autor faz
livre fundamental. Duvidosa: a idéia do texto como "essen-
do poeta (nem, por outro lado, esta acrescenta
qualquer
cialmente. a transposição poética dos pensamentos de um elementopara a leitura do poema).Trata-sede um momento
homem"z2 é de uma tal generalidade que não é possível fundamental para a compreensão da linguagem do poema:
toma-la como instrumento adequado de análise. E, na ver- a segundaparte, articulando elementosdispersosda primeira,
dade, não obstante algumas observaçõesde proveito para insiste na transformação poética daqueles dados apreendidos
a compreensão
do poema,o ensaiode F. W. Leakeyestá pela memória. Neste sentido, a alegoria em que o poeta vê
marcadopor uma inelutável leitura psicologízante:as rela- tudo traduzido é mais do que, como quer F. W. Leakey,
ções entre o texto e a experiência pessoal de Baudalaire
um despertar de imagens que, "por sua interconexão com
(imaginada pelo crítico!) servem para explicar as passagens
entre aquilo que a memória oferecia ao poeta e seu modo outras,pode servir para cristalizar uma emoçãoou idéia
específico de retê-la. Deste modo, a imagem de Paras que central"z. Na verdade,a meu ver, a alegoria,de que o
o poema baudelairiano incorpora é percebida pelo crítico poeta é explicitamenteconsciente,é muito mais uma indi-
como, antes de mais nada, uma descrição de caráter visual: cação do sentido de perda e alienação que se instaura entre
''before he can /ee/, he must first see"a. Está claro que o poeta e as imagens da cidade colhidas pela memória do
não se negará a importância, no poema, das imagens visuais
"homem na multidão", para usar da expressãode Poe, tão
(mesmo porque, fundado na memória, o texto baudelairiano estimada pelo próprio Baudelaire 2ó. Deixando para depois
não poderia deixar de fazer uso daquilo que a memória a discussão do papel desempenhado por essa consciência
visual Ihe ofereciacomo instrumento de captaçãoda cidade): alegorizante, não é difícil perceber, entretanto, de que modo
a separação,
entretanto,dos movimentosde sentir e ver
24. /dem, p. 43.
20. OP. cÍf., P. 38. 25. Idem. Ibidem.
21 . Idem, p. 53, nota l 26. Cf. "Le peintre de la vie moderno", em Oeuvres Complê-
fes //. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichéis, Paras,
22. /dem, p. 40. Gallimard (Bibliothêque de la Pléiade), 1976.
23 . Idem. ibidem.
47
46
'11

a leitura de F. W. Leakey não poderia. atingir os desdobra- Plus...")


mentos fundamentais doeu funcionamento no poema: a a criação
direção psicologizante do' ensaio impede a análise dos proce-
dimentos baudelairianos enquanto articulação entre os dis-
cursos pessoal e histórico.
Da mesma forma, a abertura para a universalidade,
que o autor ]ê nos últimos versosdo poema, vem afirmada
a partir de um momentoassociativodas idéiasem Baudelaire,
sem que encontre um respaldo interpretativo na própria com- Anotando esta "mistura de fugacidade e de pemlanên
posição do texto n. Muito mais do que nos deslocamentostem- cia" n, sem, entretanto, esquecer od
tBlçãa...dQ poemLgltiçula a divã
estabelece'ãí'iérmos da S
texto: sucessão, na primeira
lle
dljlpefiãiêiã:"M
Depois da êugÊ:!ãp,na primeira parte, tempos do indicativo
l?uja gama corresponde aos incidentes e episódios fragmentários(ao
'bFiCpà-br8c confus'), a segunda parte tende a ip®ijPar a expe-
riência.(. . .). De fato, é esta tendência fixadojii'ãiiê Baudelaire
a:soda. à .intencionalidade alegorizante: " . . .tout pour moi devient
allégorie' u

Desta.forma, é bem mais convincente o modo pelo


qual Brombertestabeleceo roteiro, no poema,das trans-
formações alegóricas que, por sua vez, vinculam-se ao que
ele chamade "sistema de analogias"3sdo texto. Dor, lem-
brança e trabalho,modificadosna medidaem que o poema
vai desenvolvendo o seu processo de conhecimento da reali-
dade (passada, presente e futura), não são apenas temas
incorporados ao texto mas decorrentes do próprio sentido
mais radical de composição. Diz Brombert:
f
AvDoryno singular( . . .) retoma no plano generalizado as dores
Convencido, como dirá em plurais, irai ainda individualizadas, da primeira' estrofe. Ora, desde
" 'Le Cyg- logo, a dor se afirma como fecundam
ne', por sua estrutura verbal e
-:;::l poema do tempo e da simultaneidade a aproximação Da mesma forma, logo adiante, com relação à lem.
qüi realizaà êiõiiõlõgiF'liitêiiiã'ãa'texto
é decisiva para brança:
a interpretação posterior:
A !éDbrança'\em também dar conta da Dor. A redundância
. A cronologia do poema implica em estro!!liras.-apenntemente
-->.!9ü@lê$;11i;li&Ói&ã
Ç das palavras'Wa"
somente um latiiiiiiii=
e ':!ÉEU', referipdcHse. à memória,
que o iiÕiitexto justifica; ela remete à natureza
não é '+f

sente da''êV6êãêãr('jé iiõii:a"J'"aibõêi:ii uma experiênciaperten-


cendo a um.passado recente: "Comme je traversais. .' '; e por trás' da
lembrança deste passeio parisiense, que lembra também as metamor- 30. /dem, p. 25S.
31. /dem, p. 256.
27. OP. cif. P. 49. 32. /dem, ibidem.
28. OP. cíf., P. 254. 33. Idem, p. 257.
29. Idem, p. 256.

.
34. Idem, pp. 258-59

48 .i (.« h'.»«. C
«»-- p''.«'...(üd 49
soteriológica da rememoração. ( )
+ mérjp
que
fé!!i!:: uma identidade-éden
recuperar a 8
leti 'quicon- Como T. S. Eiiot nesta Wasfe l,and que tanto deve às F/ares
do À4aZ, Baudelaire também faz o inventário
of time" como ele rosna
salva
Finalmente, com relação ao trabalho: » 39

A trindade alegórica do poema, cui94cc®o termo(ao lado


da Dor e da Lembrança)é justamenteoQrabalho)afirma a unidade Da leitura dos três textos escolhidospara exemplifi-
na relação específica, em diversos níveis;''êõiií"6' topos da cidade. cação g que fica, sobretudo, é a ausência de uma integração
O Trabalho(çom o que esta palavra sugere contextualmente de de análise, descontados, está claro, aqueles elementos funda-
desprezo
e culpabilidade)é, de fato, explicitamenteassociado
à lim-
pezapública,isto é, às ruas da capital e às imagensde lixos e mentais de esclarecimento do poema já ressaltados.
dejetos. A cidade moderna(. . .) propõe especificamente imagens Alusão composição
complementares de construção e deconstruçãox ou leitura do )idade. resul-
'\ tantos de aiidejn:rinnn
Eis, portanto, o sentido básico do ensaio de Victor
Brombert: as articulações do poema baudelairiano estão a Não será possível, entretanto, vê-las como etapas de uma
serviço de uma percepção,por assim dizer, antinâmica da abordagem . mais ampla, capaz de incluí-las como aspectos
realidade, em que tanto os tempos(de Andrõmaca, do Cisne essenciaisde uma leitura que permita descortinarno poema
o próprio mecanismo da composição?
e de Paras) quanto os espaços, estilhaçados pela memória,
são confundidospela própria composiçãodo poemaque Dizendo de outro modo: até que ponto é possíveller
revela e intensifica aquela percepção. o poema como sistema integrador daqueles traços básicos
anotados por Lowry Nelson Jr., F. W. Leakey e Vector
É que [diz Brombert] iência baude Brombert?Ou, ainda: de que modo a alusãoliterária,
desint estão .veemente acop :e:
(senão antiçriação)
discutida no ensaio de Lowry Nelson Jr., respondea um
oe pode ol certo desenvolvimento psicológico do poeta, fundamento do
texto de Leakey, ao mesmotempo em que é confirmada,
(

ou ampliada, pelo "sistema de analogias" que Brombert


Desta maneira, contrário mesmo ao sentido da leitura salienta na composição do texto?
de F. W. Leakey e muito mais de acordo com aquilo que Neste sentido, o meu pressuposto de leitura é um só:
o próprio Baudelaire deixou: registrado em seu texto sobre a percepção do poema como sistema somente será possível
Constantin Guys, Vector Brombert vê o texto como um na medida em que a sua decifração implique necessaria-
esboço: mente a reconstrução posterior de um quadro de indagações
0 em que o poema seja lido como movimento de uma lingua-
ele] ( ) não se pode realizar senãopela
moda a serviço do esboço, este esboço fundado sobre gem específica.O que significa dizer que não vejo outro
um processo de decomposição: o sentido mais jugo do meio de realizar uma leitura integradora senão através de
'--!b preende. ria cultura fun uma reflexãoacercadas relaçõesentre o poemae tudo
teca
aquilo que se possa chamar de prometo baudelairiano. O
poemacomo momentode uma linguagemque, por sua vez,
Por ampliar, assim, a matéria de reflexão propiciada traduz o movimento essencial de uma específica maneira
por sua leitura, é que Vector Brombert pode terminar o de ver e auscultar os sentidos da realidade.
ensaio estabelecendo uma fecunda relação entre o Baudelaire
Começo, por isso mesmo, afirmando o sentido inaugural
de "Le Cygne"e o T. S. Eliot de "The WasteLand": do poema.A relação,logo estabelecidapor Baudelain, entro.
35. Idem, pp. 259-60.
a transcrição de leitura e a origem do poema --
.e âmaca é o elemento della da co
36. /dem, pp. 260-61.
desde ã Lclo, o poema num
37. /dem, p. 261.
38. idem. ibidem.
39. /dem, ibidem
50
11

tização não signifique o desprezo pelos objetos não tangíveis


que tecem a fina a
memória. Toda af

f'
LO

qual Baudelaireinsiste 10

basicamente a metáfora germinam do espelho como ma


negra de reduzir o histórico ao pessoal, a memória
forma, que muda, à forma da memória. que é o oróorio
poema. Servindo aos desígnios de concretização, os objêtos
enumeradosnesta estrofe, todavia, são dados a partir de
uma perspectivaque não desfaz aquele precário movimento
entre o novo e o velho em que se situa o poeta:
le ne vais qu'en esprit tout ce vamp de baraques.
Ce tas de chapiteaux ébauchés et di füts,
Les herbes, les aros bloco verdespar I'eau des claques
Et, brillant aux carreaux, le bricpà-brac confus.

O primeiro
tido da visão
Andrâmacae a reconstruçãode uma
(o que dá razão tanto à leitura de
Na verdade,todo o largo apostoque é constituídopelos à de Victor Brombert), não é senão e/z
versos dois, três e quatro, Qg4yçêg..dâ..:lÊi!!114..de
Virgílio, l!$$çlg...Lsua !jtlguagem dê.liãããiãÊãa, criando
está fundado na metáfora do êspelhó: aquilo qué'Bãüaêlãiié paço para que X"fiiêhória/érflJ, de
leu em Virgílio não se distingue,por isso, daquilo que ele anterior, possa desatar os fios
lê agorana realidade.A sua memóriaé poética na medida ciência parisiense à leitura
em que produz as relaçõesnecessáriaspara que a visão de ma constrói em seguida -- a
uns nao despreze,antes inclua, a sua experiência literária um movimento fundamental de
Qna como elemento dia Baudelaire retomar o mito romântico
ovimento !épidQ.de refração aglutinar llid passadas (as de Tróia) e
iêaunda estrofe instaura de fato, começa a
a passagem
entreumae outra:"Comme
je traversais
le utilização, em anáfora, do
nouveau Carrousel". A experiência do novo, em ternos necessária para que a imagem do Cisne possa surgir por
pessoais, apontando para a fugacidade, solicita, por assim entre os.,.estilhaços da memória.
dizer, o comportamentodo que a memória,em temposhis-
tóricos, reteve como experiência. Por isso mesmo, é de uma Lá s'étalàit jades une ménegerie;
Lá je vis, un matin, à I'heure oü seus les cieux
grande coerência textual a lamentação que está nos dois
últimos versosda segundaestrofe: a oposiçãoentre novo
e velho (Carrousel e Paria) estabelece a tensão necessária Por isso mesmo,para que apareçaa figura do Cisne,
o leitor precisa passar pelos dois últimos versos desta estrofe:
entre o pessoal e o histórico. Forma da cidade e coração
o momento em que ocorre a visão do Cisne está situado no
do poeta estão separados pela mudança: o início do poema
começo do dia e tudo aquilo que, na vida de uma cidade
fala de seu próprio aparecimentoporque entre o poeta e a
história está a linguagem da poesia -: uma manei;a diversa como Paras,se representapelo trabalho de limpeza pública.
de dizer que, entre o novo e o velho, está o sentido da Na verdade, o Trabalho que se inicia no terceiro verso (gra-
mudança que o poema busca captar. Mas o poema é sempre vadoem maiúsculapara acentuaro seu valor simbólico) é
uma concretização:o seu movimento-- aquilo que a lin- correlato ao sentido de destruição e abandono que vai
guagemé capaz de gerar como experiênciasmúltiplas da tomando conta do texto: a "voirie", por oposição semântica,
realidade -- só é possível na medida em que aquela concre-
53
]1

deixa entrever a realidade mais íntima da cidade por sua


dificuldades da inspiração/composição. No primeiro caso,
vinculação a dejetos e lixos. A oposição é violenta: veja-se
a leitura de Virgílio é elemento deflagrador ãa criação; no
o paralelismo semânticopor antinomia criado nos últimos
versos da estrofe: segundo,o tópico poético, por sua própria condição tipo-
lógica, é o reverso daquele espelho fecundante. Andrâmãca
cieux e Cisne, começo e fim de um só movimento de criação
Froidset çlairsle Travail s'éveille.oü la voirie poética, extraídos pela memória, s6 têm existência pela pre-
Pousse un sombre ouragan dons I'air silencieux sença, mais imediata e aguda da Cidade: entre as duas
realidadesfictícias -- "Simois menteur" e tópico romântico
Estabelecido esse quadro tenso e desolado, que a visão
-- situa-se o Trabalho, sobretudo aquele seu aspecto menos
baudelairiana de Paras busca acentuar pelas recorrências edificante nomeado nas ações da "voirie". A oposição entre
da experiência cultural (seja a lembrança de Andr6maca
os dais mitos é retida por Baudelairenaquilo que eles
seja a de uma cidade não mais existente, o podem representar enquanto fonte de inspiração/fecunda-
de que fala na segunda estrofe), a imagem ção: ric-espelho e solo-cidade. Entre a fecundação da me-
surge na não faz senão in
leitura, pol lpotente de uma realidade adversa
móriapelo simulacrode rio, quer dizer, por tudo o que
na leitura de Virgílio é conscienteaceitaçãode üma reali-
É claro que a imagem,no poema,já traz consigotoda dade de ficção, e a impotência diante de um espaço seco,
a imantação semântica das utilizações líricas anteriores. No duro, adverso,o poeta encontra o instante apropriado para
momento em que Baudelaire escreve o poema, o Cisne já o registro de sua condição. Na verdade, a fuga do Cisnes'
se havia transformado numa espécie de tópico recorrente !aiola nãg.representa uma libertaçãõTi';ür'bMc
da simbologiapoética. olumaae" êãcoi!!!g..êlp contraparuaa naqueles elementosque,
O que entretanto, confere autenticidade à sua utilização õo poema;'ãFõntampara o que há de irónico no esforço de
-orBaudelaire
é o modopeloqual o seuaparecimento
no fuga. "Pavé sec", "sol raboteux", ''ruisseau sans eau'' são
exto traduz um roteiro poético destrutivo e irónico: a iden- simetricamente opostos àquele "petit fleuve", da primeira
rtificação do poeta com o Cisne é mais um ato possível de estrofe, que impulsionava a criação do poema-.:Nesse sen-
reconstituiçãohistórico-literária do que uma verdade psico- tido, o espaço para onde foge p..gang--- a(Ciããàb trans:
lógica referendadapelo poema. formadaque nadatem de seu 'ii;êau'lac';iãiãl'J-- é
Na verdade,entre o poeta e as imagens de abandono, inóspito e «nula a pg!!ibid dado de canto. lâlÊ...nãa...caDlg,
S

desolação e exílio, que Andrõmaca e o Cisne deflagram, ante o espaço


estáa consciênciapoética, isto é, um modo de conservarà em que se encontra:
distância as relações entre poeta .e imagem, por onde seja :Eau, quand dono pleuvras-tu? quand tonneras-tu,foudre?
possívelorganizarum espaçoirónico de apreensãoda exis-
e
tência
Çensen(êt à distância: as imagens trabalhadas pelo poe-
ma são também textos que o poeta vai lendo à medida em
que escreve.Por isso, o que ele vê, como estaexplicitado
na é muito mais um mito..:K :e et fatal
do le. Mais uma vez, como no anterior
da ltana, L são entre o eo
é n intertex Idade dii:'iê;iiliÕii"aõ'êiiê6iitFO da'inspiração poética com a reali
dado da cidade:
Se nas primeiras estrofes do poema a lembrança de
Andrâmaca, refletida no ''pauvre et triste miroir", desdobra- Je vais ce malheureux, mythe étrange e fatal,
se num movimento de !ecundacaQ da memória, qu Vens le fiel quelquefois, comme I'homme d'Ovide
próprio nascjluentoçlg poema. .nas rimas estrofes a Vens le fiel ironique et cruellement bleu,
íiiiãÊêh dã Cisne funciona como comentário implícito das Sur son cou convulsiftendantsa tête avide.
Comme s'il adressait des reproches à Doeu!
54
55
Tudo estápreparadopara que o Cisne ingressotambém namente pelo texto. A metamorfose mítica encontra a sua tl
baque. poema, pertence Andrâmaca: entre contrapartidana nomeaçãodaquilo a que foi possívelchegar l l
a existência mítica do Cisne possi- pela articulação entre memória e experiência. O volt cede, l l
primeira parte do poema, o poeta definitivamente, lugar ao pensei: demais da expçriênçj+ 44
Andrâmaca e vê o Cisne. Todavia, como ele o memori .ado o
Vê "en esprit , c uma vez afiniiããã a metamorfosemítica, riêãêia. A ironia é substituída pela prática consciente da
é possível assumir a distância entre o poeta e a imagem e alegorlaucomo esta ttaão no ter(iêifi 'vãrsõ da primeira
pensa-la em relação a outras metamorfoses. Da mesma ma- éstíõRe'da segunda parte do texto:
neira que, na quarta estrofe desta primeira parte, como
instrumento de distanciamento ainda maior: Paria change! mais rien dana ma mélancolie
N'a bougél palais neufs, échafaudages, bloc!
Vens le fiel quelquefois, comme I'homme d'Ovide. Vieux faubourgs, tour pour moi devient #a11égóiie.
Vens le fiel ironique et cmellement bleu, Et mes chers souvenus sont paus lourds Õüeãêíiocs.

Paralela à terceira estrofe, por seu i;alálel=-eiwilaEEg!!yo,


esta estrofe inicial da segunda parte aljlD!.g..j©obiliããlie 4'= .,,\'vl
do poeta por entre a imagem de mudança quis''Ciaãae
impõe. Depois de, na primeira parte, terem sido estabele-
cidos os parâmetros da desolação e deslocamento, é possível
refletir sobre as conseqüênciasdas relaçõesentre poeta e
imagem.A melancolia é a mesma: mas a articulação entre
novo e velho, como está nos dois versos centrais da estrofe,
e o peso da memória, que havia permitido a superposição
das experiência!..bbtó!!çgs e pessoais,possibilitam uma mais
ampla'!Êi!!!!g:Zl11iilãê!!iã11das metamorfoses do Cisne e An-
drâmaca. Na' verdade, a construção do poema produziu o
espaço necessário para que elas passem a existir no mesmo
sistema alegórico em que o poeta classifica os fragmentos
da cidade resultantes de um movimento de destruição/cons-
trução. Não são mais objetos criados pela linguagemda
o primeiroque poesia de que se serve Baudelaire: Andrâmaca, Cidade e
básica. Cisne são representações, quer dizer, reflexos de uma reali-
ruas panstenses dade que as experiências históricas e pessoaisdo poeta inter-
aue é essencial
nalizaram como linguagem do poema. Quero deixar bem
para .que! nlm estágio posterior, a nomeação de sua expe- clara a passagem as imagens de Andrâmaca
riência citadina possa ultrapassar os limites da descrição M
Cisne, vinculadas, n4.
imediata. Por outro lado, contudo, a memória não seria
mov lenlg..jglçrtextual, alusivo, como diria Low Nelson
acionada sem aquela experiência: a metamorfosedo Cisne, r'9 da D
embora sugira a impossibilidade da inspiração dar conta agora, nesta
daã .0 Êh.
de uma realidade brutal -- a da Cidade :--, é também, por as suas si para dizer de outro modo, são
sua vez, um. modo.do poeta ampliar o seu raio de ação extraíd as por intermédio reagi-
perceptivo..Na medida em que a transformaçãomítica signi- de uma lel
fica uma relação à distância, é possível, como já se assinalou, zada pelo poeta com referência às lj' que
abrir o caminho para outras metamorfoses. 'Neste sentido. passaramas suas imagens centrais. Deste modo, a relação
não é um caminho que se abre a partir de, por assim dizer, ÇilBÊ=Exílio, fixada na segunda estrofe, explicita a recupe-
um a prior! lírico, masuma transformaçãosustentadainter- ração do mito no nível da Cidade: não mais aquele revoltado
l '\. «-.p
Neste sentido, pode-se afirmar que a imagem do exílio
da imagem ovidiana, dirigido para o céu, mas o que resulta não está fora, mas dentro do poema: ela traduz, sobretudo
da confrontação com as mudanças urbanísticas: o esforço de realização que, procurada na tradição literária,
o poeta fazia enfrentar a dura realidade da memória n dn
Aussi devant ce Louvre une image m'opprime:
je pense à mon grand cygne, aves ses gestos fous, cidade. Dentro do poema: não é por simples associação de
Comme les exilés, ridicule et sublime. imagens, como quer F. W. Leakey, que baudelaire pode
Et rongéd'un désir sanatrave! et puasà vaus. abrir o seu texto para a nomeação de condições múltiplas
é o espaço de jglyração metafédca, criado pela própria
A relação Cisne-Exílio só foi possível porque, na pri- relaçãoentre história'F êi$êiiêiiiiia pessoal, que permite a
meira parte do poema,o tópico romântico não era apenas universalidade. Nesta segunda parte do poema, por isso
tradução de uma condição mas parábola de uma alienação ela não mais pê e sim
básica: a do poeta diante da realidade fragmentária 'da de mito e símbolo à construção da
Cidade. A meu ver, tanto o "désir sana trêve" do último realidade correspondente ao traçado da construção do poema.
verso quanto o "extase" da estrofe seguinte são indicações Entre uma e outra realidade, está a ausência que o exílio
de uma mesma condiçêg çlQ.inlpglêDç4a que é mais do que traduz. Mas que ausência é esta senão o próprio espaço
uma descriçãogêiiêiãíi2ãnte:estão ãinbos fundidos pela de inadequação expressiva criado pela relação entre reali-
impossibilidade que os leva ao simulacro, seja a revolta dado (histórica e pessoal) e a construção do ooema? Por
ante os céus, seja ao "Simoís menteur" isso, as concretizaçõesdas três estrofes finais apontam tam: Q
Na verdade, a imagem do exílio de que agora Baude- bém para a generalidade: os traços distintivos das condições
laire contamina o tópico romântico, assim como r. múltiplas devem ser lidos com leíeiê;;cia a essa ausência
imaLll'Vil bétail, sous básica. Modelados por ela, lelairianos f
li'ãain du superbe Pyrrhus") que está terceiiã' estrofe ganham o estofo de mas, ao <
identificam no nível das metamorfoses o sentido da sepa mesmo tempo, conservam, no texto, o valor de objetos bas-
ração entre o ato criador e o registro da alienação deses- cante concretos: sãQglegorias da ausêncjê..2g/nadas oelo poe-
perada .gl3:.enão som!!!!E.E!!g.Wa. uu: a construção da realidade
duas expressões assinaladas anteriormente("désir
desolada runaã-se na instauração de um espaço poético
sana trêve'' e "êxtase") marcam a tensão daquele sentido: capazde consumirat !essonâiiêiãide um eiiíiõ maior
a relação Cisne-Andr6maca-Exílio aponta para a impossibili- aquele do poeta por entre ''florestas de símbolos". A tradu-
dado instaurada a partir da confrontação com a adversidade. ção desta imagem do poema o!!gl299<' aparecerá
De fato, os exílios do Cisne e de Andrâmaca respondem no primeiro verso da última estf6fê
no à mesma situação de distanciamento entre uma Ainsi mon esprit s'exile
conde e o estado presente.
é como um exilado, "ridicule et sublime Antes disso, no entanto. as estrofes Quarta..e
nao Le
se encontra dç119sadepor entre as mu- encarregam-sede compor o qua!!!g.das desolqçêgg..::exfadas"
danças da Cidade como ainda parque e4pgljlnenta,..a..jaade- Neste sentido. as ressonâncias são fundamentais: tran
çorrelato à mações de elementos anteriores qiii iãõ recuperados..'eH.
iua condição de cisne; da mesmamaneira, Andrâmaca tem níveis diféi:êiitêi' i)este modo, na quarta ê;iiõíê, BÉliiiíêíaire
o seu exílio intensificadonão apenaspela posiçãode infe- rêãliza-'uln''6êrfeiçç?oaralelismo semântico com relação à
rioridade a que se vê reduzida como ainda, "en extase imagemanterior do Cisne que está na' primeira parte do
courbée", pela aspiração a um passado que os aconteci- poema:
mentos transfomlaram em simulacro da realidades
IgWnua la negresse, amaigrie et phthisique,
Andromaque, des bus d'un grand époux tombée, Piétinant dons la blue, et cherchant, I'oeil hagard
Les cocotiers absents de !a superbe Afrique
Vil bétail, sous la mains du superbêPyrrhus, Derriêre la muraílle immensa du brouillard;
Auprês d'un tombeau vida en êxtase courbée:
Veuve d'Hector, 'hélasl et femme d'Hélénus!

58
l

Tome-se, por exemplo, a imagem do segundo verso: "pié- Se, por um lado, os pronomesutilizadosnos dois
tinant dana la blue". Na verdade, ela parece resultar'da versos iniciais ("quiconque" e "ceux") abrem o caminho
fusão de dois traços anteriores de caracterizaçãodo Cisne: para a generalização,
por outro lado, os dois versosse-
"Et, de ses pieds palmés frottant de pavé sec", segundo guintes repercutem aquilo que o texto produzira anterior-
verso da quinta estrofe da primeira parte, e ''Baignait ner- mente no nível da imagem alusiva(a referência à Loba
veusementses ailes dana la poudre", primeiro verso da do terceiro verso faz ressoar imediatamente a melodia latina
estrofe seguinte. Mais ainda: a expressão final do segundo
da .leitura virgiliana), ou, através da repetição do adjetivo,
verso, "l'oeil hagard", de certa maneira, traduz o "nérveu- emboranuma forma ligeiramentemodificada("maígres or
sement" da sexta estrofe. A forte adjetivação do primeiro phelins" e ''amaigrie et phthisique"), o que o outro nível
verso -- "amaigrie et phthisique" -- pemlite ao poeta o do discurso -- o da confrontação com a experiência pessoal
estabelecimentodo paralelismo das condições do Cisne e -- fora capaz de articular.
da Negra. Sendo assim, da mesma forma 'que aquele bus-
cavano soloduro e secoo espaçopara o canto,estaaxila-se Nestes dois últimos versos da estrofe, aliás, a imbri-
cação imagística é muito grande: "maigres orphelins" é
na medida em que entre ela e o seu espaçonatural --
"superbe Afrique", transformação de "son beata lac natal"
também tradução para Remo e Râmulol
-- instaura-se a ausência. Desta maneira, mais do que em qualquer outra estrofe
do poema, é nesta que a.llÊgsãoentre o histórico e o pessoal #.
O que ela procura não são apenascoqueirosmas
"cocotiers absents": está, de antemão, condenada pela cons-
ciência da inutilidade de seu gesto. O último verso desta inicial do verbo, propondo uma maior liberdade na formação
estrofe marca bem a distância entre a Cidade e o seu da imagem, atua por acumulação, concorrendo para que
diminua a distância entre os ..dais...dveis da experiência.
habitat: o "brouillard", que se interpõe entre ela e a visão
da ' superbre Afrique", ganha as dimensões da adjetivação Por isso mesmo, el.estrofe é fessoanlPpg!..Êxçdência: em
baudelairiana -- ele é ''immense" porque não é só "broui- todos os seusníveis de cóiiii;õiiêlê:(silitático, morfológico,
llard" mastudo o que impede a fuga tlo exílio. Está claro sonoro) Q..gue sobressai é s
compondo a metarora aa aeiólação e' do abandono. Tome-
que, ]lê..gg!!!pgliçãg.do poema! Í..!!!114êlDÇDlâLê...g$çilação
entre os dois níveis'HF'líêêüiiõ: aqueleque. extraídoda se, por exemplo, a repetição que inicia o segundo verso.

\\
geDlól:ia--assume..g..cívelda alusão literária(Anãiõmaca e A perdaé absolutaporque ela se situa cada vez mais
distante: "Jamais, jamais!" No mesmo sentido, a estrutura
Cisne)êdQW- dos símiles dos dois últimos versos ("comme une bonne
mj!g..!g..EgÊ!!E!!!ar para Q nível da experiência pessoal. louve" e "comme des fleurs") intensificam o teor implícito
A passagem entre iiiií'T'õüiiõ'i ãiie poiÉibiiiii'Õ' Jogo entre da desolação: opõem-se, delicadamente, à realidade brutal
abstrato e concreto. Por isso mesmo, é possível ver nesta

r
-- "la Douleur","maigresorphelins". , f.
Negraa reminiscência
de JeanneDuval: a ressonância
das
imagensutilizadas para o Cisne, entretanto, extrai da "Vênus A leitura da É!!ima..nlrofe, por .isso,c9mplet&a D@m
ip medida mesmo em que, no nível das 'iiiiããêii::'8'iêxt
negra", como a chama Enid Starkie, aquilo que serve ao s.! !gpserva aberto Dará as múltiplas signifjçações trabalham
poeta como instrumento mais amplo de análise da condição ãi fias estrofes anteriõiêg
do exílio. Na verdade,é a própria transformação
interior
dasimagensque impõe a passagemdo concreto ao abstrato. Ainsi dons la forêt oü mon esprit s'exile
Un vieux Souvenir sonhe à plein souffle du cor!
A gyiDlê.estrofe, iniciada pela elipse do verbo, realiza Je pense aux matelots oubliés dana une íle,
plenamente o iêiiiiãõ dessa passagem: a abstração concre- Aux captifs, aux vaincusl . . . à bien d'autres encore
tiza-se pela recorrência das imagens.
Os quatro versos desta estrofe recuperam, de medo
A quiconque a perdu ce qui ne se retrouve definitivo, o equilíbrio entre memóriae consciênciaque
jamais, jamais! à ceux que s'abreuventde pleura caracteriza todo o poema.
Et tettent la Douleur comme une bonne louve!
Aux maiores orphelins séçhant comme des fleursl Os dois primeiros versos, iniciados por uma cláusula
conclusiva ("ainsi") fazem ecoar todo o movimento inicial
60
61
do texto. Este "vieux Souvenir", do segundoverso, é a à margem,politicamenteexilado,masainda/alava a lingua-
lembrança de Andrâmaca mas, ao mesmo tempo, é mais gem daquelesque o exilaram.
do que isso: imanta, no nível da recuperaçãopela memória, Baudelaire não: incorporando o /russo/zque Hugo podia
tudo o que o poemafoi capaz de traduzir. perceber,isto é, o conteúdodo código estabelecidopela tra-
De qualquer modo, no entanto, é o dispam inicial, dição, efetiva um desvio mais profundo. A tradução da His-
aquilo que põe a funcionar a máquina do poema.É preciso tória em termos de poema importava -- e Auerbach captou
notar, todavia, que essedisparo está referido ao espaçodo o problema noutra direção10-- nessa oscilação fundamental
primeiroverso,isto é, aquelepreenchidopela existênciados de códigos.
símbolos em que se axila o espírito do poeta. Não há resolução, nem mesmo (ou principalmente!)
nada se perde da contaminação com o que para o "Baudelaire Cristão" porque, entre o pessoal e o
está .ito na quarta estrofe desta segunda parte -- a "superbe histórico, a linguagem cava o fosso do nada. E dos deuses
Afrique" é tambémuma floresta,e não só uma Traia, como a linguagem nada pode dizer: cala ou implora a sua inter-
quer Lowry Nelson Jr., da mente. Está claro que, ao escre- cessão.
ver floresta, Baudelairenão apenasaponta para a sua ima- Entre prostitutas e santos, Baudelaire escolheu a "porta
gem anterior: é possível pensar no modo pelo qual, no estreita": aquelaque não leva a lugar nenhum(nem ao
texto, a Cidade é afirmada em nível semelhante. (A Cidade êxtase do sexo nem aos céus) mas a si mesma: o poema.
é uma floresta em que o poeta lê símbolos escondidos: "flâ- Antes e melhor do que qualquer outro, Baudelaire,o "flâ- fÍ
neur'' curioso e heróico.) Mas ele não é senhorda Cidade: neur", o esgrimista, o dândi, sabia que "homem nenhum l\
a sua posição é a de um exilado, um marginal. Por isso é uma ilha", a não ser o poeta: o seu ancoradourochama-ll
mesmo,os dois últimos versos explicitam a sua companhia: se linguagem.
esquecidos, cativos, vencidos.
O poema pode começar a ser relido: ''Andromaque,
)
je pense à vousl
.. il CQackusãode..incowluso: é sempre possível ampliar a re-
'';lçl\ lação daqyglgs..quE..sg..i!!ç!!!çg!.pg $çpêlgcãaêntre memórb e
iíãciência. A Modernidade essencial de Baudelaíiã está
em lazer desta separação o espaço ilusório para a conquista
de uma cidadania (a do poeta) que ele sabia, para sempre,
perdida. Não sendo mais da Cidade, resta-lhe ser poeta da
Cidade..€1é. que a Cidade não o inclui, mas o marginaliza,
compete-lhe nclui i rü= úre' E
por aqui a sombra melancólica do pensamentode Walter
Benjamin pode passar

Exílio, ausência: um salto para o nada mallarmeano.


Diferente do exílio romântico, o de Baudelairetraduz a
ausêízcía conquísfada do objeto pela linguagem que é pre-
sença exilada num código estabelecido.
O /russo/z que VectorHugo percebeupouco tem a ver 40. Refiro»me a ERICH AUERBACH, "The Aesthetíc Dignit)
of the 'Fleurs du Mal' ", em Scepzes/rom fhe Drama of ENFoRCar
com isso: jugo pensavae atuavadentre de um outro códi- Líferafzire,New York, Meridian Books, 1959,talvez o mais agudo
go. Quando Baudelaire dedica-lhe um poema, Hugo estava certeiro e belo ensaio sobre Baudelaire, leitura admirável de "Spleen"

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