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Como a história faz o historiador?

Reflexão sobre a teoria marxista


TEORIA DA HISTÓRIA III, 2020/01.
Professora: Dra. Sandra Mara Dantas
Aluno: Bruno Augusto da Costa

Este texto argumentativo tem como objetivo expor a adoção da teoria da história
marxista como prática pessoal e profissional. Para tal realizei uma pequena revisão
bibliográfica com foco na relação entre história e marxismo, na qual apresentei a
influência da categoria da luta de classes como exemplificação e destaque. Após a etapa
introdutória busquei no desenvolvimento descrever brevemente os posicionamentos
intelectuais e militantes que deram origem ao materialismo histórico e dialético. Para
concluir a exposição respondi a questão: “Como a história faz o historiador?”, tendo
como referencial as perspectivas teóricas, metodológicas, políticas e filosóficas
fundamentadas anteriormente.

1. Marxismo & História:

Nas “Teses sobre Feuerbach” (1888), Karl Marx (1818 – 1883) afirma: “Os
filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém,
é transformá-lo.”. (MARX, 2021, p.1). A frase refere-se à filosofia, mas penso que
também tem o potencial para pautar a produção da história. A filosofia é a origem do
pensamento científico, sendo assim possui caráter radical, no sentido de ser a raiz
histórica do conhecimento. De maneira evidente ou subterrânea, o pensamento
filosófico participa e acompanha de todas as abordagens científicas. A transformação
do mundo nos impõe a investigação da realidade que é condicionada ao tempo, bem
como requer teorias e métodos que acessam os fenômenos por meio dos conceitos e das
categorias. Lato sensu, observo que a relação entre marxismo e história é bem
complexa. Nesse sentido, possui várias perspectivas a serem analisadas. Stricto sensu,
destaco que uma teoria da história marxista não significa afirmar juízos históricos de
Marx ou dos marxistas. Ela depende sempre das circunstancias ou condições em que
são elaboradas.

O filósofo e historiador Georg Lukács (1885 – 1971) explicou em “História e


consciência de classe: estudo sobre a dialética marxista” (1923) que a ortodoxia no

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socialismo científico não é reconhecimento sem crítica ou ter fé das teses de um livro
“sagrado”: “Ela implica convicção científica de que, com o marxismo dialético, foi
encontrado o método de investigação correto, que esse método pode ser desenvolvido,
aperfeiçoado e aprofundado.”. (LUKÁCS, 2003, p. 64). Assim, a ortodoxia marxista
para a prática de ciência histórica se refere, antes e exclusivamente, ao método adotado
pelos pesquisadores e seus pares.

Ao refletir história é preciso também mobilizar definições em que se estabeleça


seu status como ciências. O historiador Lucien Febvre (1878 – 1956) no texto
“Combates pela História” (1953) coloca a seguinte concepção: “A história que
considero o estudo, cientificamente conduzido, das diversas actividades e das diversas
criações dos homens de outrora, tomados na sua data, no quadro de sociedades
extremamente variadas e contudo comprováveis umas com as outras.”. (FEBVRE,
1985, p.30). Este pensador francês é co-fundador da teoria histórica elaborada pela
“Escola dos Annales”, que possui dialogo com o marxismo, contudo sem perder a
identidade teórica própria. Neste contexto, o historiador está se referindo a “Unidade”
da história. Ela não está submetida apenas a si mesma, como disciplina autônoma, mas
bebe das diferentes fontes, a fim de dar cabo ao seu objetivo de ser a “ciência dos
homens inseridos no tempo”.

Marx escreveu em “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” (1852) que: “Os


homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem livre e de espontânea
vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita.”.
(MARX. 2011, p. 25). A colocação traz um posicionamento importante sobre a reflexão
da influência das ideias marxistas, uma delas é a categoria da luta de classes. Marx
analisa que a história tem sido determinada por sucessivas formas de exploração de uma
classe sobre outra. Em períodos mais antigos são identificadas ordens e redes de grupos
particulares que comprovam a existências das múltiplas camadas sociais. São estas
gradações das sociedades tribais que se desenvolveram até a vigência do capitalismo
industrial e que deram origem as classes fundamentais da burguesia e do proletariado. O
sistema capitalista “toma corpo” na totalidade das relações humanas e é baseado na
polaridade entre a servidão e a dominação. O antagonismo social, econômico e material
entre as classes é que instauram os confrontos entre elas.

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No “Manifesto Comunista” (1848): “A história de todas as sociedades existentes
é a história das lutas de classes.” (MARX & ENGELS, 2010, p.40). Verificam-se três
premissas essenciais para o entendimento da luta de classes: as classes estão ligadas as
fases particulares do modo de produção social; a luta de classes leva necessariamente à
ditadura do proletariado e este novo regime deve operar como transição para a
sociedade ausente de classes. 1 Ilustra-se:

Nas mais remotas épocas da História, verificamos, quase por toda


parte uma completa estruturação da sociedade em classes distintas,
uma múltipla gradação das posições sociais. Na Roma antiga
encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média,
senhores, vassalos, mestres das corporações, aprendizes,
companheiros, servos; e, em cada uma dessas classes, outras
gradações particulares. (MARX & ENGELS, 2010, p.40)

A interpretação das ideias marxistas implica a reflexão das categorias, teorias e


métodos desenvolvidos pelos marxistas. A conjuntura, por exemplo, discorre os
acontecimentos do ponto vista social, econômico, político e militar. Não pode ser
identificada fora das crises e guerras que animaram a série de acontecimentos
perscrutados pelos historiadores. É preciso compreender nos bojos de quais estruturas
econômicas e sociais são estabelecidos os níveis das forças de produção e a situação do
conjunto das classes, como as distinções das categorias profissionais ou dos grupos
sociais. Outros elementos passam pela intelecção da superestrutura política e
ideológica, na qual são descritas a situação dos movimentos operários de diferentes
países, as organizações, grupos e partidos, as respectivas imprensas dos espectros
políticos, bem como os valores e costumes do coletivo, suas visões de mundo, de
doutrinas econômicas e filosóficas. Todas essas concepções de leitura do mundo operam
como ferramentas para a produção da historiografia.

2. Questão de teoria da história e método marxista:

A obra “As lutas de classes na França” (1850) expõe os movimentos


revolucionários ocorridos em 1848. Os artigos que compõem a publicação foram
redigidos durante o desfecho dos conflitos e demarcaram importantes experiências
teóricas para o desenvolvimento do materialismo histórico e dialético e das concepções

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Em carta datada em 5 de março de 1852, escrita por Karl Marx para Joseph Weydemeyer, o filósofo
afirma os três elementos acima e que não descobriu a luta de classes, trata-se uma elaboração do
pensamento burguês. (MARX, 2021)

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de Estado e de revolução em Karl Marx. Este contexto é pavimentado por revoltas que
provocaram no pensador o posicionamento de que a tarefa estratégica da classe
trabalhadora era de impossível realização no regime republicano-burguês. A luta de
classes havia adquirido formas muito definidas e violentas, sendo esta categoria, a
captura intelectiva de fenômenos concretos, e para Marx, a força motriz da história.
Descreve Marx no texto intitulado “A derrota de junho de 1848: De fevereiro a junho de
1848”:
Uma classe na qual os interesses revolucionários da sociedade se
concentram encontra, no momento em que ascende, diretamente em
sua própria condição, o conteúdo e o material de sua atividade
revolucionária: abater inimigos e adotar medidas exigidas pela
necessidade da luta; são as consequências de seus próprios feitos que a
impulsionam a prosseguir. (MARX, 2012, p. 47).

O livro a “A guerra civil na França”, por sua vez, traz narrativas sobre a primeira
experiência completa de tomada de poder pela classe trabalhadora na “Comuna de
Paris” (1871). No decorrer da “Guerra-Franco-Prussiana” (1870 – 1872), a França foi
derrotada e o império substituído pela terceira República, enquanto a Prússia agregou os
Estados germânicos, parte do processo conhecido como a “Unificação Alemã” (1828 –
1888). A “Comuna de Paris” teve a breve existência de 72 dias, contudo o “levante de
uma cidade” é valorizado como referência histórica clássica no que se diz respeito à
estratégia da luta de emancipação social protagonizada pela classe trabalhadora. Uma
vanguarda revolucionária armada e coesa conclamou o povo a guerra civil contra o
Estado. Constituíram-se a partir destes eventos as perspectivas estratégicas de
dissolução do antigo poder, bem como a atividade organizadora de busca da revolução
permanente, a instauração factual de alguns elementos socialistas. Redige Marx em
mensagem do “Concelho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores”, aos
seus membros alocados na Europa e nos Estados Unidos:
Paris não podia ser defendida sem armar sua classe trabalhadora,
organizando-a em uma força efetiva e treinando suas fileiras na
própria guerra. Mas Paris armada era a revolução armada. Uma vitória
de Paris sobre o agressor prussiano teria sido uma vitória dos
operários franceses sobre o capitalista francês e seus parasitas estatais.
Neste conflito entre dever nacional e interesse de classe, o Governo de
Defesa Nacional não hesitou um momento em transformar-se em um
Governo de Defecção Nacional. (MARX, 2011, p. 35)

O antagonismo de classes encontrou ápice com o escravismo moderno. As


grandes entidades comerciais agitadas pelo modus operandi mercantil utilizaram-se não
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só de estratagemas materiais, como a tecnologia de navegação ou de armamento. A
dominação também ocorreu de feitio ideológico e subjetivo: superestrutural, na
linguagem marxista.
A expansão da filosofia burguesa, enquanto provedora de doutrinas econômicas
e de artifícios específicos de governo, foi financiada pelo comércio e pelas forças de
trabalho dos escravizados africanos e nativos. Estabeleceu-se juridicamente por meio
das teorias do direito de feitio escravocratas. Inseridos no contexto de concorrência
econômica, os Estados europeus buscaram aperfeiçoar a acumulação de capital e
passaram a considerar o resto do mundo como possibilidades para a propriedade
privada e a exploração dos recursos naturais. Os povos colonizados foram convertidos
em espécies de “posses moventes”, de “primitivos” e “selvagens”.
A democracia liberal apareceu como burla para o resto da humanidade não-
europeia. Afinal, não era para todos e aprofundava as contradições econômicas. “O
Negro é, portanto, o corpo-objecto e a mercadoria que passa de uma a outra forma e,
quando chega à fase terminal, atingida a exaustão, sofre uma desvalorização universal.”.
(MBEMBE, 2014, p.142). Salvo algumas particularidades históricas, a objetificação
também foi imposta a outras classes nativas e étnicas nos continentes colonizados pelo
globo.
Karl Marx e Friedrich Engels (1820 – 1895) também não escaparam do aspecto
racista inerente as origens filosóficas e científicas modernas que lhe são bases de
pensamento. O desenvolvimento das Ciências Sociais do século XIX está repleto de
ideias de supremacia branca, ao passo que os conhecimentos como os da Antropologia,
Etnologia e Sociologia foram utilizados para legitimar cientificamente a hegemonia do
ocidente. As tradições filosóficas orientadas pela perspectiva eurocêntrica projetaram o
homem da Europa como sujeito universal, detentor de uma configuração teleológica que
disputava a universalidade. A própria menção de raça “civilizada” e “não civilizada”
expressa a dicotomia racista. “Estes ‘grandes internacionalistas revolucionários’ não
expressaram se quer uma vez nem mesmo sua ‘solidariedade moral’ quando
confrontados com as inúmeras insurreições negras nas Américas.”. (MOORE, 2010, p.
82). Ao longo do século XX, as ideias marxistas tomam proporções internacionais e
influenciam revoluções políticas em todo planeta, sagra-se como teoria da história
também.

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3. Considerações:

“O historiador faz a história, tanto quanto ela o faz”. Em outras palavras, a


história subjetiva os sujeitos, pois trata-se da dimensão humana que fornece identidade,
autoconsciência e o condicionamento dos valores ideológicos. Ser historiador significa
não apenas adotar práticas teóricas e metodológicas científicas adequadas, mas também
vivenciar as ideias que dão norte aos respectivos saberes em produção e devir. Assim,
ser historiador de prática teórico-marxista é refletir sobre o antagonismo entre as
classes, e deste marco, defender a hegemonia da classe trabalhadora; realizar a crítica
com base nas políticas liberais, conservadoras ou aquelas lhe fazem oposição no cenário
político atual; refletir com base nos fenômenos concretos, desde as fontes materiais, ou
através dos acontecimentos históricos factuais; e adotar a análise do ponto de vista
social, o que implica a investigação dos temas econômicos, do direito, da religião, e da
cultura como um todo. Afirmam: “Somente no socialismo um povo filosófico
encontrará a práxis que lhe corresponde, somente o proletariado encontrará o elemento
ativo de sua libertação.”. (MARX & ENGELS, 2010, p. 12). De maneira que ser
historiador marxista é dar voto a transformação do mundo e a emancipação da classe
trabalhadora por meio do conhecimento. Sua meta é a vitória na história, levar a
humanidade a saltar do reino da necessidade ao da liberdade.

REFERÊNCIAS

FEBRVE, L. Viver a história. In: Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença,


1985.

LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudo sobre a dialética marxista.


São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARX, K. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, K. As lutas de classes na França. São Paulo: Boitempo, 2012.

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MARX, K. Carta de Marx a Joseph Weydemeyer. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/03/05.htm. Acesso em 20 de fevereiro
de 2021.

MARX, K. Teses sobre Feuerbach. Disponível em:


https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm. Acesso em 14 de fevereiro
de 2021.

MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.

MOORE, C. O Marxismo e a questão racial: Karl Marx e Friedrich Engels frente


ao racismo e à escravidão. Belo Horizonte: Nandyala; Uberlândia: Cinafro, 2010.

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