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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS
COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PAULO LEMINSKI E A SUBVERSÃO POÉTICA

Juliana Caetano da Cunha

Dissertação de Mestrado submetida


ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a
obtenção do título de Mestre em
Ciência da Literatura – Literatura
Comparada. Orientador: Professor
Doutor Ronaldo Lima Lins.

Rio de Janeiro
Abril de 2015
Cunha, Juliana Caetano da
C972p Paulo Leminski e a subversão poética /
Juliana Caetano da Cunha. -- Rio de
Janeiro, 2015.
180 f.

Orientador: Ronaldo Lima Lins.


Dissertação (mestrado) - Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura, 2015.

1. Literatura Comparada. 2. Literatura


Brasileira. 3. Modernismos. 4. Paulo
Leminski. 5. Poesia. I. Lins, Ronaldo
Lima, orient. II. Título.

CIP - Catalogação na Publicação


Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
PAULO LEMINSKI E A SUBVERSÃO POÉTICA

Juliana Caetano da Cunha

Orientador: Professor Doutor Ronaldo Lima Lins

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-

Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal

do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do título de Mestre em

Literatura Comparada.

Examinada por:

___________________________________________
Prof. Doutor Ronaldo Lima Lins, UFRJ (presidente)

___________________________________________
Prof. Doutor Nonato Gurgel, UFRRJ

___________________________________________
Prof. Doutor Theotonio de Paiva, UNIVERSO

Rio de Janeiro,

06 de abril de 2015.
RESUMO

Título

Paulo Leminski e a subversão poética

Resumo

Esta dissertação analisa a poética de Paulo Leminski;

sobretudo, suas obras de poesia. Abordamos o trabalho do

autor em relação à linguagem e a relação disto com a

perspectiva modernista e o processo de transformação que a

literatura e a arte de modo geral sofreram no século XX,

quando os recursos expressivos e possibilidades estéticas

foram levados a extremos, ganhando finalmente em

diversidade, o que chamamos de “extensão das formas”.

Fundamentamos nossa pesquisa em formulações apresentados

por Barthes, Kosik, Valéry, Benjamin, Candido, entre

outros, sempre discutindo literatura e sociedade

dialeticamente. Leminski acaba por mostrar-se conjugador de

subversão poética e social, imprimindo sua marca na

literatura brasileira.

Palavras-chave

Linguagem; Modernismo; Vanguardas Literárias; revolução;


subversão; poesia; Paulo Leminski.

2
RÉSUMÉ

Titre

Paulo Leminski et la subversion poétique

Résumé

Cette thèse examine la poésie de Paulo Leminski, en

particulier son œuvre poétique, mais pas seulement. Nous

abordons le travail de l’auteur sur la language et sa

relation avec la perspective moderniste et le processus de

transformation que la littérature et l'art en général ont

subi au XXe siècle, lorsque les ressources expressives et

les possibilités esthétiques ont été poussés à l'extrême et

qu’enfin elles gagnèrent en diversité, ce que l’on appelle

“l’extension des formes”. Notre recherche est basée sur des

concepts présentés par Barthes, Kosik, Valéry, Benjamin,

Candido, entre autres, en ne parlant de littérature et de

société que de manière dialectique. Leminski s’avère être

finalement le conjugueur d’une subversion sociale et

poétique, marquant la littérature brésilienne.

Mots-clés

Langage; Modernisme; subversion; Avant-garde Littéraire;

poésie; Paulo Leminski.

3
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................. 10

1. A SUBVERSÃO NA LINGUAGEM E NA SOCIEDADE:

a contraordem no texto de gozo.......................... 22

2. TEMPO HISTÓRICO E POESIA NO MUNDO MODERNO.............52

2.1. Um lance de dados no tabuleiro da história:

sobre a não linearidade..................................58

2.2. A luta entre o autômato e o sujeito histórico:

sobre a ruptura vanguardista............................ 83

3. A POÉTICA DO RELÂMPAGO DE PAULO LEMINSKI.............111

3.1. O poeta nascido na Pororoca........................119

3.2. O capricho e o relaxo do malandro faixa-preta......130

3.3. A voz de quem mestiça..............................151

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................163

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................170

4
Para Plínio de Arruda Sampaio,

Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho,

amigos e camaradas que me foram de imensa

inspiração, os quais perdi quando cursava o

mestrado; militantes e intelectuais

brilhantes, que perdemos todos. PRESENTE!

5
Agradecimento

Este livro está longe de ser um livro


confessional. Apesar disso, como o levei
dentro de mim por muitos anos, creio que é,
de algum modo, a história da minha vida.
Impossível agradecer aqui a todos aqueles
que conviveram comigo através do livro, e
colaboraram para que ele fosse o que é...
Marshall Berman (1987)

Aos meus pais, João e Élida, que me deram o que de

melhor podiam dar: amor e liberdade. Aos meus irmãos, Aline

e Paulo Henrique.

À minha dinda, Ilva, minha segunda mãe; ao meu dindo,

Paulo, segundo pai. Ao David, especialmente por, além de

primo, ser meu irmão, amigo e camarada de artes e armas.

À vó Maria, tão incrivelmente especial, sempre pronta

e presente. À Gigi, que me deu a conhecer antes de todos a

poesia, e às minhas outras tantas avós: Jacery, Maria

Oneides, Cacaia, Cyra, Luciana e Quiquinha.

Aos tios, especialmente Yara, Lucinha, e Zé. Aos

primos, sobretudo Marco Aurélio, pelas primeiras aventuras.

Aos afilhados, que tanto me engrandecem e animam:

Marcelo, Marina, Júlia, Pedro e Maria. A Beatriz e Mateus

Neiva Moreira, meus quase filhos.

Àqueles que me fazem realmente privilegiada, os amigos

da vida toda, Roberto Magalhães e Paulo Crochemore; e à

Jaqueline Brizola, com quem compartilhei momentos muito

específicos desta caminhada. Aos demais incríveis que me

6
povoam a vida: Rafael Nunes, Isabel Palmeira, Marina Íris,

Maria Caú e Diego Medeiros; Juliana Plá, Pedro

Vasconcellos, Mário San Segundo, Juliano Medeiros, Daniela

Conte, Raquel Vercelino, Paula Bandeira e Vicente Ribeiro;

João Guilherme Siqueira, Renato Pardal, João Pedro Sá,

Renata Valle, Clarissa Penna e Eduardo Teffé; Laura Caldas,

Fernanda Miguens, Guilherme Vargues, Rafael Maieiro,

Alexandre Magno, Leopoldo Antunes, Alexandre Albuquerque,

Sandra Carvalho de Souza e Regina Bruno; e, finalmente,

Stéphane Ruffin e Yannik Frank, que me levaram a inventar

de estudar francês; e a Antônio Neiva e Diogo Coelho, que

me trouxeram para o Rio de Janeiro e a UFRJ.

Aos novíssimos amigos já tão queridos: Bruna Araújo,

Danilo Ferreira e Danilo Mesquita (que ajudou demais esta

pessoa atrapalhada nas horas finais).

Aos companheiros de Associação de Pós-Graduandos da

UFRJ, principalmente Gregory Costa (também meu primeiro

crítico), Marcos Neto, Marcelo Côrtes, Leila Salim, Victor

Galdino, Renato Brito Gomes e André Coutinho. E ao

movimento estudantil Nós Não Vamos Pagar Nada.

Aos meus colegas de UFRJ e FND, Agnaldo Fernandes e

Juliana Neuenschwander Magalhães, obrigada demais! A

Roberto Leher, Cláudio Ribeiro, Vanessa Batista Berner,

Raffaele de Giorgi e Roberto Gambine; Alexandre Silva,

Adriana Maranhão, Juliana Barros, Thiago Goulart e Fátima

Andrade.

7
Aos tantos professores incríveis que tive,

especialmente Carlos Nougué, Cláudio Moreno e José Paulo

Netto; e aos do teatro, que me misturaram de vez o corpo à

cabeça: Chico Meirelles, Fernando Índio Benevenuto, Paulo

Flores e o Ói Nóis Aqui Traveiz, Paulo Giardini, Juliana

Betti, Paulo Betti e a Casa da Gávea.

A todos os meus camaradas revolucionários, vários já

mencionados, que me mostraram quem sou, sem os quais vida

não me teria qualquer sentido; especialmente, ao Breno

Pimentel Câmara e à Ceres Torres, esta que me ensinou a

pensar criticamente, para nunca mais esquecer.

A Dau Bastos, por inúmeras razões racionais e

irracionais. A Theotonio de Paiva, Marcelo Diniz e Renata

Requião pelo imenso incentivo que me deram e o carinho com

que me trataram. A Nonato Gurgel, por ter me apresentado

Leminski com tanta paixão.

A Ronaldo Lima Lins, não por ter me orientado, mas

porque sem a sua presença provavelmente eu tivesse

desistido.

E um agradecimento especial a Paulo Leminski, doido de

pedra, com uma admiração sem tamanho e o desejo de que siga

ardendo em brasa: “uma carta uma brasa através / por dentro

do texto / nuvem cheia da minha chuva / cruza o deserto por

mim / a montanha caminha / o mar entre os dois / uma sílaba

um soluço / um sim um não um ai / sinais dizendo nós /

quando não estamos mais” (Leminski, 1983, p. 30).

8
A defesa da palavra

Escrevemos a partir de uma necessidade de


comunicação e de comunhão com os demais,
para denunciar o que dói e compartilhar o
que dá alegria. Escrevemos contra a nossa
própria solidão e a solidão dos outros.
Supomos que a literatura transmite
conhecimento e atua sobre a linguagem e a
conduta de quem a recebe; que nos ajuda a
conhecer-nos melhor para salvar-nos juntos.
Mas “os demais” e “os outros” são termos
demasiado vagos; e em tempos de crise,
tempos de definição, a ambiguidade pode se
parecer demais à mentira. Escrevemos, na
realidade, para as pessoas com cuja sorte,
ou azar, nos sentimos identificados. Os que
comem mal, os que dormem mal, os rebeldes e
humilhados desta terra, e a maioria deles
não sabe ler.

Eduardo Galeano, A descoberta da América


(que ainda não houve).

Adotar uma escrita […] é fazer economia de


todas as premissas de escolha, é manifestar
como aceitas as razões da escolha.
A escrita à qual me entrego é já toda
instituição; ela desvenda o meu passado e a
minha escolha, dá-me uma história,
escancara a minha situação, engaja-me sem
que eu precise dizê-lo.

Roland Barthes,
O grau zero da escrita.

9
INTRODUÇÃO

Poeta que é poeta mora na jogada


O que vem é festa pro meu coração

Paulo César Pinheiro,


“Minha esquina”.

10
O leitor, à primeira vista, poderá achar que este

trabalho se perdeu de seu objetivo, dado que almejava

resultar em interpretação da poesia de Paulo Leminski. É

verdade que nosso problema inicial parecia-nos bem mais

simples do que acabou se revelando. Pura ingenuidade de

principiante. Olhamos, anos atrás, para a obra de Paulo

Leminski com encantamento, vimos em Caprichos & Relaxos um

expoente expressivo de seu conjunto; logo nascia a ideia:

pesquisar a poesia de Leminski estudando esse livro tão

importante de sua produção.

Não nos demoramos em notar que tal publicação é ponta

de iceberg, e que a poesia leminskiana é ponta de lança –

não só a do futebol, mas a da arma; e ainda vermelha, como

o capim-vermelho, também chamado “ponta de lança” (e que

lance!). O gol desse poeta é lança e lançamento, é a jogada

toda, chega a ser a própria bola que passa por onde o

goleiro não alcança; mas com muitos parceiros – de dança,

de jogo, de luta. Não se trata de voo solo. Foi batendo

bola com poetas e viventes de diversos tempos e línguas que

Paulo Leminski entrou para a história da literatura

brasileira.

Caiu logo por terra a ideia de analisar o Caprichos e

relaxos. A questão que nos estava posta era quanto à

poética de Leminski, que não se expressa nem somente em sua

11
poesia, que dirá apenas num livro,1 ainda que esse –

Caprichos & Relaxos – tenha continuado a nortear nossas

análises. Suas obras mereceriam análises particulares, sem

dúvida. A fortuna crítica não lhe é vasta, há muito a se

fazer. Mas optamos por nos ocupar de um aporte de caráter

estrutural e amplo, que foi o que nos pareceu ter mais

propósito no momento.

Caberia dizer desde já que Paulo Leminski foi poeta.

Mesmo quando não escrevia poemas, era poeta. Se quiséssemos

uma definição mais literal, talvez fosse adequado atribuir-

lhe a de “artesão da palavra”. Sua vida foi escrever, lidar

com a literatura, pensá-la, musicá-la. Escrever,

certamente, muito. Sua biografia é marcante porque, além de

escritor, ensaísta e compositor, foi professor, redator,

publicitário, judoca e tradutor. Encontrou jeito de

transmutar essas experiências em palavras poéticas, com a

velocidade da ação publicitária e a precisão da reação do

judoca. Também o é sua erudição – dominava onze idiomas

(português, espanhol, francês, italiano, inglês, alemão,

polonês, japonês, hebraico, latim e grego). Fez texto do

corpo e da alma, com uma cabeça pensante, cheia de

“criacionices”. Na verdade, tentar defini-lo não é boa

ideia, mais uma ingenuidade.

1
Recentemente, a obra poética de Leminski foi publicada num único
volume, o Toda poesia (2013); entretanto, são pelo menos seis os
livros de poesia do autor. Esse volume trouxe ainda alguns poemas
inéditos. Além disso, Leminski escreveu prosa, biografias e ensaios, e
traduziu. Apresentaremos o conjunto da obra no terceiro capítulo.

12
Descobrimos, ao longo deste processo de pesquisa, que

aquelas explicações dos autores, sempre presentes neste

tipo de trabalho, sobre a incompletude de suas análises,

eram (pasmem!) gritantemente verdadeiras. Este trabalho não

teria, jamais, qualquer chance de esgotar o tema. Não

somente porque as possibilidades interpretativas são

infinitas (as perspectivas, os aspectos, as

particularidades), ou porque a obra de Leminski é extensa e

diversa, mas porque “a linha”, de fato, “nunca termina”.

Uma coisa leva a outras de maneira que sequer conseguimos

desenvolver tudo o que identificamos que poderíamos; há

ademais o que não chegamos a identificar. Só agora,

portanto, temos a dimensão do quanto este trabalho é

singelo; e fazemos coro com o dito por aqueles tantos

outros autores (talvez todos os pesquisadores acadêmicos):

esta é uma análise inicial do que a muitas mangas ainda

daria pano (esperando que dê).

Diante do propósito de fazer a crítica da poética

leminskiana – e, perifericamente, entender quem foi esse

poeta e que lugar ocupa na literatura –, dedicamo-nos a

ultrapassar o aparente e chegar ao concreto, realizando um

estudo comparativo, literário e social; visto que nem a

literatura, nem qualquer outra coisa, conhecemos apartada

da realidade social.

Passaremos em seguida a uma breve apresentação de

pressupostos teóricos, justificando nossa metodologia.

13
Posteriormente, apresentamos o que nos parece essencial da

estrutura deste trabalho, seus capítulos.

Antes disso, entretanto, permitimo-nos um último

assunto com o leitor atento. Quer dizer, o primeiro

assunto. Esta dissertação, numa perspectiva, é sobre arte,

sobre o binômio dialético “literatura e sociedade” e sobre

o século XX. Nele, movimentos de vanguarda eclodiram na

Europa e ondularam águas até as praias brasileiras. É sobre

pós-vanguardas. É ainda sobre crises, guerras, lutas e o

desenvolvimento da Modernidade. Em última análise, é sobre

luta de classes e disputa de poder, sobre a arte no meio do

furacão.

Então realmente sobre um tal de “pauloleminski” é que

não é? Não, essa pergunta continua sendo equívoco de

primeira impressão. O que ocorre é que inúmeras árvores

costumam ter mais raízes que galhos, assim como é o

concreto mais fundo e complexo do que se pode inicialmente

perceber. Foi da materialidade da obra leminskiana que

extraímos esta crítica, esperando alcançar intelectualmente

a dimensão e as propriedades que lhe pertencem.

***

Fazer a crítica, na compreensão de Karl Marx,

significa “trazer à consciência os fundamentos. A crítica é

o constitutivo da teoria” (Netto, 2013). Não temos a

14
pretensão de terminar este estudo com uma teoria pronta,

fechada, é uma primeira parte. Nosso intuito é entender o

que fundamenta a obra de Leminski, e para isto acreditamos

que este estudo foi suficiente.

Nas palavras do próprio Marx, numa das poucas vezes

que escreve sobre seu método, lemos:

é necessário se deter para escutar


atentamente o próprio objeto em seu
desenvolvimento, sem se empenhar em
imputar-lhe classificações arbitrárias, e
sim deixando que a própria razão da coisa
siga seu curso contraditório e encontre em
si mesma a sua própria unidade. (Marx, 2010
[1837], p. 296)

Nesse sentido, será correto afirmar que “a teoria nada

produz, mas reproduz o movimento do objeto real” (Netto,

2013). Marx complementa: “O nexo mediador entre a forma e o

conteúdo é precisamente o conceito. Por isso, […] um tem

que brotar do outro: mais ainda, a forma não pode ser mais

que o desenvolvimento do conteúdo” (Marx, op. cit., p.

296).

Para realizar o entendimento do objeto de análise, é

necessário fazer uso do que se convencionou chamar

materialismo dialético2. Será preciso, então, olhar para a

coisa, para seus fenômenos aparentes, e a partir deles,

depreender-lhe o “movimento real”. Quer dizer que a coisa

2
Marx não o menciona dessa forma, mas diz que seu método é
materialista e dialético, diz também que é histórico. Cf. Introdução à
crítica da economia política, 1982 [1857], e O capital, 1983 [1867].

15
não existe em si, mas em seu movimento, ou seja, nas

relações que estabelece, na forma como funciona e se

desenvolve, transformando-se. E também que a coisa não está

dada a olho nu.

Teoria é reprodução ideal, reconstrução no


plano das ideias. A razão não cria coisa
nenhuma, mas reproduz. Reprodução ideal do
movimento do objeto real (não é imagem, nem
fotografia). Nada se passa na cabeça sem
que esteja passando no mundo material. Não
existe teoria sobre o que não existe, ou
sobre o que não está em processo. E
reprodução não é cópia, não é espelhamento.
(Netto, 2013)

Para a reprodução em pensamento do real, ou seja, para

a sua compreensão, é preciso realizar a abstração: ir além

da factualidade, para identificar os processos que ela

implica, e que explicam a realidade. É com a faculdade

racional de descolar-se do imediato, pelo movimento que nos

leva para além do dado, que é possível identificar os

processos sinalizados pelo fato. Segundo Marx (cf. Löwy et

al., 2015; Netto, 2013; Konder, 1988), só por esse

movimento, de abstração intelectiva, torna-se possível

abandonar o nível do abstrato (e ir ao concreto, ao real).

O objetivo é superar o caráter abstrato da expressão

fática. Tal movimento permite formular conceitos, que são

as categorias que a própria coisa nos demonstrará, são os

mecanismos de seu funcionamento. De posse desses conceitos,

é preciso retornar à forma empírica de onde se partiu, para

16
finalmente formular a teoria. Por isso a reprodução em

pensamento não é espelhamento, mas crítica, resultante de

uma movimentação do pensamento, que vai do abstrato ao

concreto, e volta com a formulação teórica para a análise

concreta. É um movimento duplo, dialético.

Por um lado, vai observar a realidade com o


propósito de produzir conceitos, e, por
outro lado, faz uso desses conceitos
(elaborados para esse fim) no estudo da
realidade. O primeiro movimento é o da
produção teórica, e o segundo, o da análise
concreta. […]
Uma vez executado esse trabalho de produção
teórica, o economista pode voltar ao estudo
da realidade munido, desta vez, de
ferramentas adequadas, às quais ele combina
o valor explicativo. Chega assim o momento
da análise concreta, o que Marx chama de
reconstrução do concreto no pensamento, o
“concreto pensado”. (Löwy et al., 2015, p.
28)

A dialética marxiana3 pressupõe que o movimento do

pensamento se dá sempre na alternância entre “prática-

teoria-prática-teoria-prática”, passando de uma a outra

através de um processo de superação, ou seja, não indo de

um lado para o outro, ou andando em voltas, mas elevando a

compreensão sempre a um patamar acima, como que desdobrando

um círculo em espiral. O mesmo movimento pode ser expresso

nos termos de “tese-antítese-síntese (que é nova tese)–

antítese”, ou ainda “real-contradição-superação (que é novo


3
Usa-se o termo “marxiano” para designar o pensamento de Marx ele
mesmo, e o termo “marxista” para se referir de modo geral àqueles que
seguem os princípios de Marx, que dele deduzem, que o complementam,
que o têm por base para suas análises e atuações.

17
real)”, e assim por diante. Ainda que a imagem da espiral

possa parecer linear, ou que se trate de avançar sempre

para o melhor, não é isso. Ser dialético é não ser linear.

O propósito é demonstrar o movimento de ir e voltar,

chegando de volta ao mesmo lugar sendo sempre diferente. O

mesmo movimento aplica-se a processos sociais. E assim como

é o movimento de compreensão da coisa, é o de transformação

dela. Sua primeira imagem é provavelmente a de Heráclito,

que disse que “um homem não pode entrar duas vezes no mesmo

rio”. É o mesmo homem, o mesmo rio, mas o constante

movimento de transformação que sofrem com o tempo os torna

diferentes (ou muito diferentes), não sendo mais os mesmos.

Do ponto de vista geral, esses são nossos “fundamentos

teóricos”, que objetivamente significam um método de

análise. Quanto ao particular da literatura, vale dizer que

estamos de acordo com Antonio Candido, pensando a

literatura em sua relação com a sociedade, numa análise

comparada. Segundo o autor, não cabe debater “se a obra é

fruto da iniciativa individual ou de condições sociais,

quando na verdade ela surge na confluência de ambas,

indissoluvelmente ligadas” (Candido, 2006, p. 35). O autor

destacará ainda que é preciso considerar “o movimento

dialético que engloba a arte e a sociedade num vasto

sistema solidário de influências recíprocas” (ibid.). É o

que ensaiamos fazer aqui.

18
Não cabe anunciar muito do conteúdo do desenvolvimento

deste estudo, preferimos que o leitor siga o curso de nosso

pensamento. Pode-se sempre dar um pulo às considerações

finais, uma olhadela de águia para frente. Alertamos,

entretanto, para o fato de que não importam as conclusões,

mas o processo; ou ainda, mais claramente, que as

conclusões só existem como parte do processo dialético,

constituindo novo ponto de partida logo que configurem

síntese.

Para não matar o leitor de curiosidade, nem

desclassificar esta introdução quanto aos requisitos

formais, diremos apenas que trabalhamos no primeiro

capítulo a questão da linguagem, partindo de Roland

Barthes; a linguagem da ordem e a da contraordem,

relacionadas à “dialética do concreto” de Karel Kosik. No

segundo, discutimos a sociedade, especialmente a

Modernidade e seus fenômenos literários, de Baudelaire às

Vanguardas Literárias, com a perspectiva do debate de

Benjamin sobre o tempo histórico, considerando as análises

literárias de autores como Valéry, Hauser, Berman,

Carpeaux, Candido, entre outros. No último capítulo,

analisamos a obra de Leminski ela mesma, buscando esboçar

os principais traços de sua poética e observando seu lugar

na literatura brasileira; não deixamos de lado o Modernismo

e o Concretismo, e nos baseamos em autores da crítica

específica do poeta, além de Candido, Haroldo de Campos,

19
Octavio Paz, entre outros já mencionados. Talvez o sumário

o dissesse melhor; perdoe-nos o leitor por não querer

antecipar os gols do jogo.

Enfim, as análises literárias muitas vezes se ocupam

de definir, caracterizar e separar as coisas (em grandes

gaveteiros, ou pequenos). Sejam essas coisas obras de

autores, poesias, romances, movimentos literários, momentos

históricos, gêneros. Nós estamos em outra linha, mais nos

interessa misturar, ligar, conectar as coisas, mesmo quando

elas aparecem separadas (sem relação aparente) aos olhos do

mundo ou no curso da história. Não se trata de considerá-

las como se fossem todas a mesma, mas de extrair do

processo histórico o que “está agindo”, digamos assim,

nesta coisa para a qual olhamos, a poesia de Leminski.

Estar agindo no sentido de “existir”, estar em movimento,

ou seja, operar relações e construir valores. Desculpe-nos,

portanto, o leitor que pretendia ler o que era exatamente o

romantismo, o realismo, o simbolismo, o futurismo, o

cubismo, o expressionismo, a psicanálise, o marxismo, o

modernismo, o concretismo, ou exatamente qualquer coisa.

Realmente não encontrará aqui muitas definições, mas sim

relações.

Antonio Candido afirma que “os fatores sociais atuam

concretamente nas artes, em especial na literatura” (2006,

p. 47), ressaltando o caráter social da arte e da cultura;

outrossim, afirma que “os impulsos pessoais predominam na

20
verdadeira obra de arte sobre quaisquer elementos sociais a

que se combinem” (id.). Isto significa dizer que é o

espírito, a singularidade humana, que, na arte, acabará se

sobrepondo nessa relação literatura-sociedade.

Leminski, ao contrário do que muitos pensam, não foi

vanguardista, no sentido de que nunca pretendeu

desconsiderar e negar tudo que veio antes, nem se afastar

em protagonismo solo, pelo contrário, bebeu declaradamente

de todas as fontes que pôde; nunca se intitulou o novo dos

novos e tampouco reverenciou um processo que, sabidamente ,

assim como surgia, sucumbia, uma vez que o muito novo hoje

já é velho daqui a pouco.

Este trabalho analisa a poesia de Leminski à luz do

processo de ruptura que permitiu que a poesia pudesse se

dar exclusivamente no campo da linguagem, apartada,

digamos, da realidade. Entretanto, é com base na realidade

social, uma realidade marcada pelo advento da Modernidade,

que buscamos entender esse processo, que ecoa em Leminski,

no qual ele se insere, produzindo um passo mais. Passo

importante, em nossa opinião, para a literatura deste país

novo, doido, lindo e brutal, tropical e mestiço.

21
CAPÍTULO I

A SUBVERSÃO NA LINGUAGEM E NA SOCIEDADE

A contraordem no texto de gozo

Nada é mais aborrecedor e árido


que o locus communis
disfarçado.

Karl Marx (1982)

sim
eu quis a prosa
essa deusa
só diz besteiras
fala das coisas
como se novas

não quis a prosa


apenas a ideia
uma ideia de prosa
em esperma de trova
um gozo
uma gosma

uma poesia porosa

Paulo Leminski (1983)

22
Toda a obra de Leminski é marcada pela relação

particular que estabeleceu com a língua. Ele mesmo debateu

a questão em diversas oportunidades (ensaios, conferências,

entrevistas), argumentando, por exemplo, que a língua

tortura o poeta até que este responda com os mesmos golpes,

dominando-a, o que seria uma relação de amor: “As línguas

amam seus poetas porque, nos poetas, se realizam os seus

possíveis” (Leminski, 1987, p. 289). Octavio Paz, poeta e

ensaísta mexicano, diz que “a criação poética se inicia

como violência sobre a linguagem” (1986, p. 47). Já se nos

apresenta o questionamento sobre que possíveis são esses, e

por que eles precisam de um poeta para se manifestar. Por

outro lado, tem alguma coisa de especial nesses “golpes”

trocados entre língua e poeta, nessa relação de

“violência”. Será que o poeta, para ser assim considerado,

precisa atuar nesse “domínio”? Talvez determinado tipo de

poeta. Vejamos que Roland Barthes trata do mesmo ponto, em

seu O grau zero da escrita:

O escritor nada retira dela, literalmente:


a língua é antes para ele como uma linha
cuja transgressão designará talvez uma
sobrenatureza de linguagem: é a área de uma
ação, a definição e a espera de um possível
(Barthes, 2004b, p. 9; grifo nosso).

23
Não há dúvida de que para Leminski a língua é uma

“área de ação”, ação transgressora. E, como veremos, sua

atividade poética se desenvolve no sentido de viver essa

atividade transgressora inteiramente, o que significa dizer

que da poesia ela se estende para a vida, o corpo, a

sociedade.

Na coletânea de ensaios organizada por André Dick e

Fabiano Calixto, intitulada A linha que nunca termina

(2004), encontramos, por exemplo, as ideias de que Leminski

era poeta em tempo integral, de que ele próprio defendia

que para ser poeta era preciso ser “mais que poeta”, que

trabalhava com a identificação entre sua palavra e seu

corpo, com a rebelião da linguagem, a lógica virada do

avesso, e, entre outras, a ideia de que Leminski

“concretizou a existência, existencializou a concretude,

viveu a forma” (Milán, 2004, p. 21). A atuação de Leminski

sobre a linguagem e por meio da linguagem não é opção

fortuita. Viver a forma com a própria vida é promover a

rebelião na linguagem e na sociedade.

É Roland Barthes quem nos orienta na questão: “A

linguagem é uma legislação, a língua é um código. Não vemos

o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda

língua é uma classificação, e que toda classificação é

opressiva” (Barthes, 2002, p. 12). Leminski desenvolve o

mesmo raciocínio, “todo artista é limitado já a priori por

uma língua e por um estoque de formas” (1987, p. 287),

24
apontando para a necessidade de subversão, da língua à

sociedade. Pois se a língua, de um lado, é limitadora e

opressiva, mas, como se viu, cabe ao poeta dominá-la,

buscamos entender como e por quê.

***

Mergulhando nas questões apresentadas por Barthes,

pensamos a relação entre sociedade e linguagem no que se

refere a esse jogo de repressão, opressão, conforto, de um

lado; e também liberdade, gozo e revolução, de outro. O

autor nos parece imprescindível às discussões sobre

linguagem, e centraremos nele este subcapítulo, ainda que

outros autores tenham contribuído para este pensamento, e

apareçam em outros momentos de nossas análises.

Inspirando-nos na obra poética de Paulo Leminski,

repleta de frases emblemáticas e questionadoras, damos

início a esta reflexão a partir de uma assertiva de Barthes

que segue os mesmos moldes. Numa de suas obras mais

conhecidas, O prazer do texto, diz o autor francês: “o

prazer é dizível, o gozo4 não o é” (Barthes, 2004, p. 28).

4
J. Guinsburg, tradutor de Le plaisir du texte (Barthes, 1973), em O
prazer do texto (Barthes, 2004), usa o termo “fruição” para traduzir
jouissance. Optamos por substituir fruição por “gozo” sempre que usada
nesse sentido, seguindo a discussão apresentada por Leyla Perrone-
Moisés (2002, p. 79-81), também tradutora de Barthes. Desse modo,
reitero que onde se lê “fruição”, na tradução de J. Guinsburg, cito
como “gozo”, e, por conseguinte, a oposição original entre plaisir e
jouissance, em Barthes, aparecerá em português como prazer e gozo.

25
Uma simples justaposição de afirmação e negação, recheada

de ideias.

Comecemos pela reflexão sobre o que é, ou não é,

dizível. As línguas se propõem a tudo dizer e comunicar.

Toda uma gama de pensadores dirá que as coisas só existem à

medida que ganhem forma no pensamento humano. Aquilo que

não pudesse ser dito, também não poderia ser conhecido,

logo, não existiria. A comunicação se baseia na precisão da

forma, ou, melhor dizendo, na capacidade que a forma tem de

transferir/transmitir uma coisa/ideia entre uma pessoa e

outra; a língua, desse ponto de vista, é mero instrumento.

Vejamos o que coloca Octavio Paz, em O arco e a lira,

sobre o tema:

A primeira atitude do homem diante da


linguagem foi de confiança: o signo e o
objeto representado eram a mesma coisa. […]
Falar era re-criar o objeto aludido. […] As
ciências da linguagem conquistaram sua
autonomia tão logo cessou a crença na
identidade entre o objeto e seu signo (Paz,
1986, p. 35).

Antes de tratarmos do que houve depois das ciências da

linguagem, pensemos um pouco sobre como “falar era re-criar

o objeto aludido”. Pensemos nisso como paradigma para a

arte em geral, que, assim, pretendeu, ao longo de séculos,

representar a realidade. A representação era feita

reproduzindo formas, contando histórias, descrevendo com

rimas, enfim, de diversas maneiras, mas sem abandonar essa

26
essência da representação como algo possível, necessário e,

em última análise, verdadeiro. Recriar a coisa, nesse caso,

significa copiar, espelhar, como se fosse possível

representar totalmente (não criticamente). Ocorre que nada

disso é exatamente verdadeiro.

Não é novidade que a representação o máximo que pode é

reapresentar. A arte só tem sentido por não ter sentido-

fim, por não chegar a termo (terminar-se) em comunicação,

por não representar legitimamente nada, por não ser

reprodução, mas criação. Ganha razão de ser quando trai,

corrompe, confunde, questiona o “real”. Quando transforma o

real em outra coisa, isto é, em arte. E o transforma com

algum combustível, com alguma ferramenta – ao que

voltaremos em seguida.

***

À medida que algo é dito, há o que deixa de ser dito.

O signo, necessariamente, encerra, recorta, delimita,

resolve. Sua existência depende de fechar uma relação entre

significante e significado. Barthes aponta esse poder

arbitrário e autoritário do signo e da língua, que muitas

vezes passa despercebido, quando nos lembra de que a língua

é um código de uma legislação. A língua não pode deixar de

classificar, nem o signo, de ser classificável.

27
Se Leminski reclama de dispor apenas de um estoque de

formas, é preciso dizer que este era bem mais rígido antes

do advento das Vanguardas Europeias, que movimentaram a

cena literária no início do século XX. Voltaremos a isto,

porém, antes, cabe discutir a limitação opressiva que

finalmente responde sobre o “dizível” e, em seguida, sobre

o “real”.

A principal tradutora de Roland Barthes no Brasil,

Leyla Perrone-Moisés, ao refletir sobre a obra barthesiana,

diz que “para o escritor, a língua não é uma mina de

riquezas ou um repertório de possibilidades; a língua é

insuficiência e resistência” (2002, p. 65). Ela fala do

escritor, Leminski fala do artista; Barthes pretendeu uma

escrita que fosse arte, ainda que em forma de crítica ou

ensaio (o que lhe rendeu muitas críticas – e ensaios).

O ponto comum é que escrever, assim como viver, é

criar um caminho sobre linhas em alguma medida pré-

moldadas, um estoque delas, que poderia durar para sempre.

Cada um de nós, na vida ou na arte, pode se contentar com

essas formas de que todos dispõem, com esses signos – ou

não. Escrever, dizer, pensar, viver: insuficiência e

resistência.

***

28
Se nos propusermos a definir o “real”, encontraremos a

mesma insuficiência e resistência, antes encarnada na

língua, agora no “aparente” – o que também podemos chamar

de imediato, fato, fenômeno, representação, como desenvolve

Karel Kosik:

A representação da coisa não constitui uma


qualidade natural da coisa e da realidade:
é a projeção na consciência do sujeito de
determinadas condições históricas
petrificadas (Kosik, 1965, p. 15; grifo
original).

A “petrificação” nos diz muito sobre este tema, porque

o central aqui é entender que o aparente não é o real, pois

o real só o é em seu movimento contínuo. Segundo Karl Marx

(apud Kosik, 1965, p. 26), a substância imutável do objeto

é somente a dialética. Ou seja, a essência da coisa se dá

em seu movimento de transformação e existência, em todas as

suas relações vivas, não em abstrações superficiais e

estanques.

Kosik vai chamar o concreto aparente de

“pseudoconcreto”, isto é, uma abstração do real, que não é

o real ele mesmo, mas que nos permite chegar à compreensão

dele.

O complexo dos fenômenos que povoam o


ambiente cotidiano e a atmosfera comum da
vida humana, que, com sua regularidade,
imediatismo e evidência penetram na
consciência dos indivíduos agentes,

29
assumindo um aspecto independente e
natural, constitui o mundo da
pseudoconcreticidade (Kosik, 1965, p. 11).

O autor coloca que “a manifestação da essência é

precisamente a atividade do fenômeno”, e, em seguida, que

“a estrutura do mundo fenomênico ainda não capta a relação

entre o mundo fenomênico e a essência” (Kosik, 1965, p.

11). Portanto, o fenômeno (o aparente, o pseudoconcreto)

esconde, ao mesmo tempo em que manifesta, o concreto. Desse

modo, o fenômeno, que habita nossas consciências de forma

imediata, é indispensável ao processo de compreensão do

real.

O real é sempre mais do que conseguimos captar porque

está em constante movimento dialético (de transformação),

como já aludido. Capturando esse movimento, poderíamos

(supomos nós, os materialistas) intervir nele. O aparente

funciona como ponto de partida para a compreensão da coisa,

e compreender a coisa é compreender sua estrutura e

movimento.

Este debate trata de precisar que a imagem da

realidade não é a realidade ela mesma, para voltar à

questão da linguagem: se dizer é deixar de dizer, se nomear

é delimitar, tudo pode ser cindido entre si mesmo e seu

“oposto” (seu não ser), em duas verdades, afirmação e

negação, superficial e profundo, como luz e sombra, sem as

quais não há forma ou cor visível aos nossos humildes olhos

30
humanos. Enfim, é verdadeiro o fenômeno e verdadeira a

essência.

Pensando a língua sob essa perspectiva, vê-se que ela

pode muito mais que comunicar, porque o signo, se entendido

como pseudoconcreto, cumprirá seu papel de elo. Nisto fique

claro que, tanto na linguagem, como na realidade de modo

geral, o concreto é complexo e essencialmente em movimento,

como dissemos antes.

Barthes faz da linguagem seu objeto, propõe-se a

compreendê-la, sem cometer o equívoco de pensar que ela se

termina em sua imagem (ou em seus signos). Susan Sontag,

sinteticamente, diz que “a escrita de Barthes, com sua

prodigiosa diversidade de assuntos, tem, em última análise,

um tema principal: a escrita em si mesma” (2005, p. 89).

Essa escrita de Barthes, que ele chama de escritura,

refere-se ao discurso “em que as palavras não são usadas

como instrumentos, mas postas em evidência (encenadas,

teatralizadas) como significantes” (Perrone-Moisés, 2002,

p. 75). É a escrita do escritor, do artista; mas daqueles

que não se conformam com o estoque de formas que nos é

oferecido, que perspectivam o aparente.

Nas palavras de Barthes, “a escritura é isto: a

ciência dos gozos da linguagem, seu kama-sutra (desta

ciência, só há um tratado, a própria escritura)” (Barthes,

2004, p. 11). Em lugar de “ciência” dos gozos da linguagem,

poder-se-ia dizer também “filosofia”, pois tanto a ciência

31
como a filosofia partem de uma “problemática inicial” que

consiste em descobrir a estrutura da coisa. Kosik

complementa que “se a aparência fenomênica e a essência das

coisas coincidissem diretamente, a ciência e a filosofia

seriam coisas inúteis” (1965, p. 13). E, neste ponto,

Barthes levanta o problema que é compreender não só a

linguagem, mas especialmente a sua face que é gozo.

***

Esta reflexão partiu de uma frase que podemos chamar

(por que não?) de aforismo, em que Barthes (2004) afirma

que o prazer é dizível, mas o gozo não. O mesmo autor está

dizendo que a escritura é a ciência dos gozos da linguagem.

Portanto, a matéria da escritura é o indizível?

Barthes alerta, como se pode imaginar a partir do

aforismo inicial, que não se trata de uma diferença entre

prazer e mais prazer, não é a intensidade que diferencia

esses dois pontos. Prazer e gozo andam em paralelas,

caminhos distintos que a linguagem pode percorrer.

Cabe dizer que há uma questão em relação à tradução,

sobre a qual não pretendo me ater, mas que causa às vezes

confusão. A palavra plaisir (do francês) pode ter os dois

sentidos, de prazer e de gozo. Em O prazer do texto,

32
Barthes (2004) diferencia os dois sentidos, compondo

expressões, oposições e conceitos.5

Vale reafirmar (conforme nota 1), que assumo em

português as palavras prazer e gozo para esta oposição

barthesiana, que em muitos momentos é apresentada em

francês como plaisir e jouissance, ainda que em outros

momentos se veja apenas plaisir, contextualizado de acordo

com a diferença apresentada por Barthes. Vejamos nas

palavras do autor a problemática, por exemplo, entre texto

de prazer e prazer do texto:

essas expressões são ambíguas porque não há


palavra francesa para cobrir ao mesmo tempo
o prazer (o contentamento) e o gozo (o
desvanecimento). O ‘prazer’ é, portanto,
aqui (e sem poder prevenir), ora extensivo
ao gozo, ora a ele oposto (Barthes, 2004,
p. 27).

A contradição é explorada pelo ensaísta não sem gosto

e entusiasmo. Plaisir, ao mesmo tempo em que confunde e é

insuficiente, carrega consigo a oposição que se faz central

para Barthes. O prazer-contentamento é inevitavelmente

agradável, confortável. Por sua vez, a literatura que se

faz no campo do “dizível” tem seu lugar, há necessidade

dela, do sentimento de saciedade, no âmbito do imediato.

5
A diferença entre os termos “prazer” e “gozo” (como os usamos aqui),
é correlata à oposição entre as expressões “texto de prazer” e “prazer
do texto”, assim como “texto de prazer” e “texto de gozo”. Ver também
Leyla Perrone-Moisés, que dedica uma seção de texto “Lição de casa”
(2005, p. 79-81) à palavra jouissance, discutindo esses conceitos e as
questões de tradução para o português.

33
Trata-se de um prazer geral, comum, que transita pela ordem

das coisas, consonante com o poder da língua, do signo, do

pseudoconcreto e do sistema social de produção e reprodução

da vida. O texto de prazer é a literatura harmônica, que

agrada os olhos (Barthes, 2004).

Justamente no seio da harmonia nasce, entretanto, o

fascista, o autoritário, o arbitrário. A harmonia

naturalizada e intransigente, limitada ao mundo da

aparência, castra e cega os sujeitos, criando a ilusão da

não porosidade, do estanque como verdade. Kosik menciona –

sobre o fisicalismo positivista – que este teria

empobrecido o mundo humano, “por ter reduzido a um único

modo de apropriação da realidade a riqueza da subjetividade

humana” (1965, p. 25), difundindo a lógica formal, linear,

progressista.

Não é o caso de discutir o fisicalismo, mas o de

apenas pontuar que essa concepção reduz todos os processos

e experiências a explicações físicas, ou seja, todas as

elaborações científicas seriam correspondentes a processos

físicos (o que é diferente de “materiais”). Na prática, o

espírito, a intuição, enfim, a subjetividade, é aniquilada.

Este aniquilamento empodera, mais uma vez, o estado

confortável das coisas, o superficial.

Barthes diz, em frase de efeito, nada menos que o

seguinte: “em cada signo dorme este monstro: um

estereótipo” (Barthes, 2002, p. 15). O autor persegue o

34
estereótipo, o bom senso, o texto de prazer, a limitação ao

dizível, porque entende que transformar o mundo é

transformar a linguagem. A literatura contra o poder, capaz

realmente de questionar, de criar, de reapresentar, será

“escritura”, em suas palavras. O indizível é subversivo,

como o gozo; está no campo da intervenção de que falamos

anteriormente, que se torna possível quando compreendemos o

movimento da coisa.

Resistir a esse poder estabelecido, para Barthes, é a

essência da arte da linguagem, da escritura, sendo o

escritor “ao mesmo tempo mestre e escravo” (Barthes, 2002,

p. 15) – o que novamente nos remete à ideia de tortura e

domínio da língua apresentada por Leminski. Falando sobre

essa questão em Barthes, Leyla Perrone-Moisés coloca que,

por isso:

combater os estereótipos é pois uma tarefa


essencial, porque neles, sob o mando da
naturalidade, a ideologia é vinculada, a
inconsciência dos seres falantes com
relação a suas verdadeiras condições de
fala (de vida) é perpétua (Perrone-Moisés,
2002, p. 58).

Subverter a linguagem, nesse sentido, torna-se

fundamental também ao pensamento crítico, ou seja, aquele

não reprodutor do comum estabelecido.

O prazer do texto, diferentemente do texto de prazer,

equivale ao texto de gozo, visto que: “O prazer do texto

35
seria irredutível a seu funcionamento gramatical

(fenotextual), como o prazer do corpo é irredutível à

necessidade fisiológica” (Barthes, 2004, p. 24). O gozo-

desvanecimento foge a todos os padrões, perde a forma,

extrapola o dizível. Há nele algo de perda e de

desconforto, de inconsciência, de colapso. Entra em crise a

opressão, quebra-se o controle.

Roland Barthes apresenta ainda a ideia de que só o

lazer pode ser social, coletivo. Enquanto o prazer-gozo

seria inevitavelmente individual, egoísta (2004, p. 23). O

gozo é sempre um escândalo, um evento à parte,

incomungável. O texto incomungável, entretanto, seria um

texto insustentável, impossível; um não texto.

***

Ocorre que o texto de Barthes não é impossível; tem

suas técnicas, digamos, antissistêmicas, de narração

antilinear, de pontuação não correspondente ao cânone. O

escrever como ato dramático, que põe o olhar sobre a

linguagem, joga com as formas. A linguagem é vista com

distanciamento crítico, ou “estranhamento”, como diria

Brecht, ou como perspectivação, que já mencionamos. Esse

texto pode ser uma contracomunicação (Barthes, 2004b, p.

18), e pode até ser de fato um não texto, mas veremos que

ele encontrou viabilidade material, como texto.

36
O combate político que Barthes trava é no campo da

cultura; não se trata de comunicar posições subversivas,

mas de dar forma de escritura à subversão, à crítica. O

olhar é eventualmente lúdico, com a ironia de quem vê a

língua com isenção, com certa superioridade, fugindo de seu

condicionamento automático.

Susan Sontag diz que “Barthes está sempre em busca de

um outro sentido, de um discurso mais excêntrico – muitas

vezes utópico” (2005, p. 92). Talvez “utópico” não seja o

melhor termo, afinal esse discurso resulta na própria obra

do autor (ou seja, perde-se o inalcançado da utopia). Mas a

consideração de Sontag nos contempla quanto ao caráter de

busca, presente em toda a obra de Barthes (e, diga-se de

passagem, na de Leminski). Busca que não termina, que não

encontra produto final, porque a busca é sua própria

matéria.

O discurso de Barthes é polifônico, polissêmico,

desorganizado; por exemplo, começa e termina o livro várias

vezes. Não há posicionamentos claros, mas um habitar na

complexidade das coisas contraditórias. Os temas abordados

não são mais importantes que a maneira de pensá-los e de

escrevê-los. Na linguagem cabe tudo (ainda que não nas

formas), não há o que seja sem sentido – o que poderíamos

dizer sob outra perspectiva: quando perde o sentido, perde-

se a linguagem, mas, novamente, esse sentido é complexo,

num mundo de possibilidades além do aparente.

37
Os modernismos,6 sem dúvida, colocaram a forma em

xeque. A forma foi desmascarada, esvaziada de sentido ao

máximo. O que não deixa de configurar uma procura pelo

sentido, por seu lugar, por sua matéria, por aquilo que lhe

confere vida – e isto, em nossa opinião, foi elemento

motriz das Vanguardas Europeias.7 Parece-nos que Barthes é

indissociável desse movimento. Seu trabalho é de criação,

busca e ruptura, jamais de conformidade.

Leminski, por sua vez, se relaciona com as questões

ora debatidas declarada e fluentemente. A perspectivação da

linguagem, assim como o texto inconforme, de gozo, são

estruturantes de sua obra. Sua também constante busca

ganhou forma sobretudo de poesia – ainda que seja autor do

“romance-ideia” Catatau, uma das obras de narrativa poética

mais importantes da literatura brasileira contemporânea.

Leminski não se deteve apenas ao campo estético,

posicionou-se mais claramente na sociedade, reivindicando-

se socialista, falando em luta de classes, não deixando

dúvidas de sua essência vermelha (em tempos de plena

6
Autores como, por exemplo, Otto Maria Carpeaux ([1958], passim) e
Marshall Berman (1987, p. 34) usam o termo “modernismos” para referir
o conjunto dos movimentos artísticos e/ou literários identificados
como de ruptura, revolta ou vanguarda, desde a Modernidade até meados
do século XX. Trataremos do assunto no segundo capítulo deste
trabalho.
7
Nossa percepção de que se tratava de “busca pelo lugar do sentido”
não condiz exatamente com as considerações apresentadas pelos diversos
autores que estudamos, que vão mais na direção de identificar as obras
(ou manifestações) literárias vanguardistas como tentativa de
destruição da arte ou da linguagem, ou pelo menos de declaração de
guerra contra estas. Cf. Roland Barthes (2004b), Peter Bürger (2012),
Arnold Hauser (1972), entre outros.

38
ditadura civil-militar no Brasil). Não obstante, a

interseção entre Barthes e Leminski, recheada de subversão

da linguagem, da poesia (e finalmente da sociedade), é

marcada pelo gozo – pela arte do gozo.

Um ponto relevante é que os dois autores se dedicaram

a pensar o haicai, forma poética de origem japonesa,

composta de três versos apenas (o mais correto é dizer

ideogramas, que nas línguas ocidentais equivalem a, ou se

transformam em, versos). O mais específico de sua estrutura

é que nesse “poema” não há narração, descrição, conclusão.

São originalmente temas relacionados a animais e/ou

natureza, questões existenciais, não ações.

Aquele suposto ideal “modernista” de deixar o sentido

em aberto ganha materialidade irrefutável no haicai.

Leminski foi tradutor de um dos principais haicaístas

japoneses, Matsuo Bashô (que viveu no século XVII). O mesmo

Bashô que intrigou Barthes; o mesmo que Leminski “misturou”

com o francês Stéphane Mallarmé, num haicai que sintetiza,

na nossa opinião: acaso, modernismos, Oriente e Ocidente.

mallarmé bashô

um salto de sapo
jamais abolirá
o velho poço
(Leminski, 1993, LVC, p. 108)

Tal poema não conta uma história, nem tem conclusão

final. O que ele quer dizer? O que quer comunicar? Não

39
sabemos, está apenas plantada a questão, podemos pensar

muitas coisas. Podemos significá-lo por nossa conta e

risco. É como uma constatação, a composição de uma cena em

movimento que foi estagnada, recortada em fotografia de

palavras, no tempo próprio das suposições. É uma poesia-

imagem, ao mesmo tempo em que é pura dramaturgia. O

sentido, claramente, mais “cheio” que a forma. A língua,

aquém da poesia.

Perrone-Moisés diz que “o haicai consegue a façanha de

dizer a pura constatação, sem nenhuma vibração de

arrogância, de sentido, de ideologia” (2004, p. 87). A

tradutora, também estudiosa de Barthes e professora da USP,

aponta que “podemos vivê-lo como um momento em que a

linguagem se detém, pousando na formulação justa” (idem). A

ideia de detenção, ou suspensão, da linguagem é fundamental

aqui. Está posta a pausa para o pensamento, contrariando

seu movimento irrefreável (mas sem, de modo algum, dizer

que ele não existe).

O haicai de Leminski utilizado como exemplo não nos

conta se o sapo pulou ou não, quando foi, se caiu ou não no

poço. O que lemos é o sapo supostamente sobrevoando o poço,

antes de a ação se resolver, e sem qualquer garantia de que

se resolva.

Perrone-Moisés continua, dizendo que esse momento

detido está

40
fixado em linguagem sem o peso do sujeito
psico-lógico do Ocidente. Nenhuma moral da
história. O haicai é, para Barthes, um
lugar feliz em que a linguagem descansa do
sentido (2004, p. 87).

Esse descanso de sentido funciona como interrupção do

processo de reprodução do poder, do comum, do vício de

pensar sempre, e sempre igual. Do vício de não parar, ou

seja, de não intervir no constante movimento natural da

vida.

A linguagem, conclui Perrone-Moisés, necessitaria

desse descanso (segundo Barthes)

não como fuga, mas como uma tomada de


fôlego; não para alienar-se, mas para “dar
um tempo”. Essa “desconversa” tem portanto
uma função crítica – por oposição implícita
– para com a “conversa” (idem).

Em nossa leitura, essa pausa funciona como uma brecha

para a intervenção transformadora. Abre-se um foco, para-se

para o distanciamento, toma-se uma posição que permita

olhar melhor, através do aparente.

Leminski se aproximou de diversos poetas e movimentos

literários. Sua obra não esconde essas relações; pelo

contrário, faz questão de colocá-las em evidência, como

nesse haicai, aludindo claramente a Mallarmé e Bashô,

formando com seus nomes uma sentença ambígua, que soa

foneticamente como “Mallarmé baixou” – desceu, pulou,

saltou feito sapo; incorporou feito espírito? Nota-se que

41
optou pelo caminho das múltiplas rupturas e de inovadoras

proposições e conexões, que certamente ganharam fôlego a

partir das contribuições das vanguardas literárias, e

também do Modernismo e Concretismo brasileiras. Leminski

parte de um patamar em que a forma já foi questionada,

fragmentada, despedaçada, assim como todas as

classificações e padrões literários, como veremos no

capítulo seguinte.

Veremos também que a questão da imagem visual, a

partir das Vanguardas Literárias, passou a ocupar um espaço

de destaque. Isso que o haicai favorece desde séculos

atrás, foi ganhando reencenações literárias, por exemplo,

nos “caligramas” de Apollinaire e, posteriormente no

concretismo brasileiro. Leminski dialogou com as duas

vertentes da questão: a primeira, como em “mallarmé bashô”,

em que se cria uma imagem visual mental, uma cena parada; a

segunda, em que as palavras compõem figuras, ou representam

algo físico, ou ainda, mais intertextual, agregando

elementos que não são texto, mas desenhos. Observemos, para

“ilustrar” essa segunda forma de usar a imagem, o seguinte

poema (reprodução da página da publicação original):

42
(Leminski, 1983, p. 139.)

Novamente, não há história, nem moral da história. Não

se pode responder linearmente uma pergunta sobre o que diz

esse poema. Trata-se de texto imagético, que pode ser lido

em mais de um plano, com direito a palavras de cabeça para

baixo, refletidas linha abaixo, como a lua e a cidade se

refletem n’água. Num plano, está evidentemente essa imagem

da paisagem lunar refletida; noutro, um movimento, ou dois

(conjugados ou separados): o da lua ao estar visível no céu

e refletida n’água, depois desaparecer; e o movimento de

decrescimento da lua, podemos ver cheia/inteira por uma

semana, depois decrescente/metade, e finalmente

nova/praticamente invisível. Por “nova”, vê-se também

morta, e Leminski tem grande apreço por imagens de

contradição.

43
Para melhor contextualizar a imagem visual do debate

sobre a linguagem, analisemos o que coloca Susan Sontag

sobre a fotografia.

Numa era sobrecarregada de informação, a


fotografia oferece um modo rápido de
apreender algo e uma forma compacta de
memorizá-lo. A foto é como uma citação ou
uma máxima ou provérbio (Sontag, 2003, p.
23).

Note-se que, sob esse ponto de vista, pode-se dizer

que literatura e fotografia se beijam, se interligam.

Sontag está preocupada em discutir, em diversos ensaios,8

como a fotografia destrói a realidade, apartando-a de seu

contexto e processo. A autora diz que a foto é chocante,

que passou a ser usada no jornalismo para “atrair a

atenção, o espanto, a surpresa” (Sontag, 2003, p. 23). Sua

preocupação tem absoluta procedência visto que a

fotografia, como arte, pode ser um meio de propor a

compreensão da realidade, mas não será a reprodução

perfeita dela, como debatemos no início deste capítulo; não

será a própria realidade concreta. A foto é recriação, uma

recriação de linguagem parada, muito semelhante àquela

feita com palavras. Temos apenas o que o olho vê, sem

processo, sem história, sem definição. É o sapo voando em

8
Cf. Sontag, Sobre fotografia, 2004; idem, Diante da dor dos outros,
2003; entre outros.

44
salto, é a lua refletida n’água, é o soldado na foto mais

famosa da Guerra Civil Espanhola.

A imagem é uma máxima, uma síntese. Na literatura, vai

se tornar uma figura de linguagem importantíssima no século

XX. Vejamos o que diz Nonato Gurgel9 sobre a literatura

contemporânea, no que se refere e este tema.

Esse olhar educado pela máquina, pelos


rituais eletrônicos e digitais da era da
informática, possui sintonia com uma forma
mais apressada de recepção (Flora
Sussekind) da letra no cenário maquínico e
virtual. Trata-se, nessa segunda estratégia
óptica, de um olhar também influenciado por
formas e imagens produzidas pelos discursos
da mídia, pelos roteiros da publicidade.
(Gurgel, 2003, p. 190; grifo original).

A imagem visual mental10 e, posteriormente, a

fotografia, estão ligadas também à velocidade do mundo

moderno, cada vez mais intensa, principalmente quanto à

mudança, criação e produção. Que chega aos dias de hoje tão

veloz que nossa consciência já não é capaz de acompanhar.

“A forma mais apressada de recepção” é parte da expressão

mais apressada, mais curta, finalmente, mais imagética,

característica da sociedade que vivemos.

Ao mesmo tempo em que reflete a sociedade, essa

inovação no discurso permite-nos estancá-lo por um

9
A tese de doutorado de Nonato Gurgel (2003), intitulada Seis poetas
para o próximo milênio – entre eles Paulo Leminski e Ana Cristina
César, à luz de Ítalo Calvino – foi um importante referencial sobre a
obra de Leminski especificamente.
10
O autor trabalha a questão da visibilidade da forma a partir do
conceito de estratégias “ópticas”. Cf. Gurgel, 2003.

45
instante. Permite-nos quebrar a sua corrente de poder e

reprodução social. É uma abertura ao indefinido, portanto,

ao indizível. E neste ponto voltamos ao debate de Barthes

quanto à linguagem, que ilumina o processo de ruptura que

permitiu que a poesia pudesse se dar exclusivamente no

campo da linguagem (também), apartada, digamos, da

realidade e da instrumentalidade da língua. Quando Leminski

(1987, p. 289), formula que a língua tortura o poeta e este

finalmente a domina, porque são os poetas que realizam seus

possíveis, como referido anteriormente, esses “possíveis”,

seguramente, quebram a corrente de poder da língua

“fascista”, que o é não porque esconde, mas porque ilude

(como em determinada medida a foto jornalística) – porque

trata o pseudoconcreto como se fosse concreto. E manipula o

leitor, oprime.

***

Para tratar da contracorrente, da quebra de paradigmas

e do poder opressivo da linguagem, voltamos a pensar sobre

aquele “elemento” que permite a transformação do real em

arte, e voltamos às considerações de Barthes. O drama, a

encenação, passam pelo desejo; a produção artística também.

Essa transformação não deixa de ser resultante de um

consumo autofágico da realidade. Barthes pergunta

46
(afirmando o evidente), se “o lugar mais erótico do corpo

não é lá onde o vestuário se entreabre?” (2004, p. 15).

Pois é aqui que queremos chegar. Também a corrente de

poder se entreabre. O autor coloca que o erótico é a

intermitência: “a da pele que cintila entre duas peças [de

roupa] […]; é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a

encenação de um aparecimento-desaparecimento” (Barthes,

2004, p. 16). Por isso, a escritura de Barthes (ou a poesia

de Leminski) não é insustentável, e, sim, intermitente,

sedutora. Acaba que o gozo não está no não texto; mas, sim,

o texto de gozo é aquele intermitente.

Sem haver a barra da blusa e o cós da calça, não há

pele a cintilar entre uma coisa e outra. “Essas duas

margens, o compromisso que elas encenam, são necessárias.

Nem a cultura nem a sua destruição são eróticas; é a fenda

entre uma e outra que se torna erótica” (Barthes, 2004, p.

12). Assim como algo dito carrega o não dito, o que aparece

funda o escondido. Sem desejo não há poesia; assim como sem

intuição, sem espírito, sem subjetividade, não há

compreensão da realidade.

É curioso pensar que esse jogo que se dá entre o

manifestar e o esconder, essa poética do pensar (Sontag,

2005, p. 95) que se desdobra em abertura para a

multiplicidade de sentidos, no texto de gozo de Barthes

ganhem formas aforísticas. A fenda erótica que faz cintilar

luz e sombra, que nos seduz e conquista, que é capaz de

47
enfrentar a toda-poderosa linguagem, pode se mostrar em

afirmações contundentes e até reducionistas.

Susan Sontag assevera que “a escrita de Barthes está

semeada de fórmulas como essas, ostensivamente paradoxais e

epigramáticas, cujo sentido é resumir algo. É da natureza

do pensamento aforístico estar sempre num estado de

conclusão” (2005, p. 94). É curioso porque é contraditório.

A própria Sontag aponta isso, citando o autor provavelmente

mais aforístico de todos, Oscar Wilde: “Uma verdade na arte

é que também a contradição é verdadeira” (idem). Antes

dissemos que os opostos eram verdadeiros, agora fica claro

que a contradição lhes é essencial, pois não são os opostos

separadamente que são verdadeiros, mas sua existência em

contradição.

É em contradição que Barthes (2002) ensina em sua aula

inaugural no Collège de France que não vai ensinar nada,

pois não pretende fechar portas, e, sim, levantar

possibilidades. Assim como as barricadas, que trancam ruas,

mas abrem caminhos. É a opção pela “‘tática sem

estratégia’, a perda do sujeito em gozo, a subversão na e

pela linguagem” (Perrone-Moisés, 2004, p. 52).

Retomando a diferença entre Barthes e Leminski, a

tática sem estratégia confirma a opção de Barthes pela

cultura, mais estritamente, como campo de ação. Seu combate

é subversivo, não há dúvida, mas sem tomada de posição

necessariamente à esquerda, sem assumir a estratégia

48
socialista, anticapitalista, nem qualquer estratégia contra

o fascismo social.

Barthes o tempo todo arrisca, sabendo que o sentido se

dá no momento da recepção, não no da produção. Cada leitor

é um crítico, sem o qual não há nada. Quanto à fonte sutil

de gozo, a fenda surgida, diz que “o autor não pode prevê-

la: ele não pode querer escrever o que não se lerá. No

entanto, é o próprio ritmo daquilo que se lê e do que não

se lê que produz o prazer dos grandes relatos” (Barthes,

2004, p. 17). Leia-se este “prazer” com todos os seus

sentidos.

***

Para não deixar a “intuição” de lado, já que Barthes

se detém na questão do desejo, recupero as reflexões de

Karel Kosik, para quem “o conhecimento não é contemplação

[…], o homem só conhece a realidade na medida em que ele

cria a realidade humana e se comporta antes de tudo como

ser prático” (1965, p. 22).

Interessa ressaltar que, contraditoriamente, é o

distanciamento que permite a aproximação da coisa. É esse

processo crítico, em certa medida subjetivo, de olhar com

estranhamento o mundo aparente, que nos dá a chance de

conhecer, ou seja, de criar o produto histórico social.

49
O fazer artístico é uma forma de sair do “estado

natural”, o que socialmente consiste em encontrar-se com

sua essência humana. Nas palavras de Kosik,

o homem tem de evidenciar esforços e sair


do “estado natural” para chegar a ser
verdadeiramente homem (o homem se forma
evoluindo-se em homem) e conhecer a
realidade como tal (1965, p. 21).

Realizar-se, entretanto, não é simples, nem fácil;

requer trabalho. Ajuda saber que a verdade não está dada,

pronta, ou acabada, nem na arte, nem na vida. Parece-nos

seguro dizer que é na palavra que mora o perigo, o desejo,

a arte e o conhecimento. Octavio Paz resume dizendo que “O

homem é um ser que se criou ao criar uma linguagem. Pela

palavra, o homem é uma metáfora de si mesmo” (1986, p. 42).

***

Por fim, consideremos a questão da individualidade do

gozo, que não me parece assim tão clara. É complexo porque

trata de liberdade, trata de superar a opressão social,

política e linguística que vivemos continuamente, desde

sempre (ou desde que nos reconhecemos como “humanidade”).

Se a contradição ela mesma é verdadeira, determinante

e essencial, obrigamo-nos a dizer que a experiência de

perder-se – de sair do âmbito do consciente, de

50
desconhecer-se, de tocar o indizível, o amorfo – é também a

experiência de encontrar-se. Ou nossa consciência não está

normalmente limitada à inconsciência construída pelo

aparente? E “compreender o fenômeno é atingir a essência”

(Kosik, 1965, p. 12), conforme reiteramos repetidas vezes.

Quando somos obrigados a parar de repetir, que descobrimos

quem somos, ou pelo menos começamos a tentar.

Seria, além do mais, demasiado triste pensar que nós,

seres humanos, necessariamente políticos e sociais, somos

capazes apenas de comungar as amarras. Nossa aposta (será

que utópica?), nascida das questões debatidas por Barthes,

é que também na liberdade podemos realizar nossa identidade

coletiva. Aposta insegura, como o são a libertação e a

revolução. Nem por isso escolhemos a morte da desistência;

o conforto seco e frio do sepultamento. Nosso desejo pede

mais que isso.

Se é verdade que há uma interseção entre Barthes e

Leminski, recheada de subversão e marcada pelo gozo, como

exposto antes, também pode ser verdade que haja aí

comunhão. Esta comunhão, ainda que se demonstre em

intermitências, não em continuidade, é talvez a identidade

dos livres, difícil de resumir em formas, possivelmente

impossível de dizer em palavras, mas, quem sabe,

conhecível.

51
CAPÍTULO II

TEMPO HISTÓRICO E POESIA NO MUNDO MODERNO

Só com Marx, nós não entendemos o nosso


mundo contemporâneo; sem Marx, nós o
entendemos menos ainda. E contra Marx, nós
cancelamos a compreensão do mundo
contemporâneo.

José Paulo Netto

52
Para contar uma história, é preciso escolher um ponto

de partida. Não quer dizer que no decorrer da história não

se façam remissões a momentos anteriores a esse ponto

inicial. É possível também narrar perspectivas futuras,

para depois do fim dessa história. Nessa perspectiva,

deparamo-nos com a tarefa de começar a história da poesia

de Leminski, pretendendo fazê-lo por onde esta começara.

Eis que pensando um pouco mais, observou-se que essa tarefa

não é só impossível de se realizar, como não faz o menor

sentido.

É impossível e não faz o menor sentido por duas razões

imbricadas. Primeiro porque não fomos capazes de

identificar que momento artístico/literário da história da

humanidade (a partir de seu registro) não está, senão em

palavras, no intertexto, nas entrelinhas, no silêncio,

enfim, no conjunto das infinitas conexões que Leminski faz.

Encontramos em sua obra referências a poesias e pensadores

de muitas partes e épocas, do mundo ocidental e oriental.

Seus personagens, vozes e ideias resultam de alguma espécie

de antropofagia amadurecida, realizada por quem devorou a

arte do mundo com parcimônia e voracidade, em que pese o

contraditório disto.

Em segundo, mas sem vir depois, porque a história não

é linear, e nenhum início-meio-fim que se estabeleça será

53
capaz de contá-la. A compreensão de que tudo o que houve no

mundo não se resume àquilo que os vencedores contaram abre

a cena para quem antes nunca teria sido notado. A

compreensão da história como processo dialético certamente

não se origina entre os dominadores do mundo, mas da reação

contra essa dominação.

Foi Walter Benjamin, em sua tese VII sobre o conceito

de história, quem fez a seguinte afirmação.

Nunca há um documento da cultura que não


seja, ao mesmo tempo, um documento da
barbárie. E, assim como ele não está livre
da barbárie, também não o está o processo
de sua transmissão, transmissão na qual ele
passou de um vencedor a outro. Por isso, o
materialista histórico, na medida do
possível, se afasta dessa transmissão. Ele
considera como sua tarefa escovar a
história a contrapelo (Benjamin apud Löwy,
2005, p. 70).

Começando pelo final desse trecho, vale pontuar que

este estudo, os pressupostos que assumimos, nossa visão de

mundo e posição nele estão evidentemente dedicados à

atividade de “escovar a história a contrapelo”. De resto,

Benjamin deixa claros dois pontos fundamentais a este

trabalho, no que se refere à relação direta entre cultura e

sociedade – no caso, cultura e barbárie; e no que concerne

à transmissão da cultura – e, por conseguinte, à

transmissão da barbárie, ou reprodução dela, como

entendemos ser mais adequado.

54
O central é que a reprodução do sistema, assegurada

por fatores decerto econômicos, inclui também toda uma

política social e cultural. Poderíamos dizer o mesmo em

termos de estrutura e superestrutura. Significa que a arte

não é, nem pode ser, alheia à sociedade que a gera, ainda

que uma não explique nem determine completamente a outra.

Benjamin foi provavelmente o mais importante crítico

do progresso, essa transmissão da barbárie de um vencedor a

outro. Michael Löwy (2005, p. 15) diz que seu pensamento

“consiste, sobretudo em uma crítica moderna à modernidade

(capitalista/industrial), inspirada em referências

culturais e históricas pré-capitalistas”, apontando o

resgate que Benjamin faz da visão romântica de mundo. Este

se coloca “contra a visão evolucionista da história como

acumulação de ‘conquistas’, como ‘progresso’ para cada vez

mais liberdade, racionalidade ou civilização” (id., p. 60).

Veremos na literatura (e na sociedade) manifestações e

movimentos muito radicais ocasionados por esse processo de

transformação social que a modernidade significou, seja

afirmando o progresso, seja negando-o; seja construindo

coisas novas, seja essencialmente destruindo as velhas.

Marshall Berman coloca que:

O pensamento atual sobre a modernidade se


divide em dois compartimentos distintos,
hermeticamente lacrados um em relação ao
outro: ‘modernização” em economia e

55
política, “modernismo” em arte, cultura e
sensibilidade (Berman, 1987, p. 87).

Como o autor escreve na década de 1980 (texto original

de 1982), talvez o pensamento “atual” já tenha dado algumas

voltas, mas é certo que tal dualidade ainda tem espaço, e

que a relação entre os dois polos continua sendo tema a se

explorar. O autor complementa:

Esse dualismo, generalizado na cultura


contemporânea, dificulta nossa apreensão de
um dos fatos mais marcantes da vida
moderna: a fusão de suas forças materiais e
espirituais, a interdependência entre o
indivíduo e o ambiente moderno (Berman,
1987, p. 129).

Sobre a interdependência entre a arte e o ambiente

moderno, já vimos que não se trata de determinação completa

de uma pela outra, mas de uma relação insolúvel, por mais

que justamente neste ambiente a arte tenha ganhado

expressões como “a arte pela arte”, ou que então tenhamos

experiências estéticas e de linguagem estritamente no campo

da palavra – tendo a literatura deixado de ter seu

referencial na literatura. Em outra passagem, falará sobre

as características da Modernidade que interessam a Marx, e

insiste que

o que o atrai são os processos ativos e


generativos através dos quais uma coisa
conduz a outra, sonhos se metamorfoseiam em
projetos, fantasias em balanço, as ideias

56
mais exóticas e extravagantes se
transformam continuamente em realidades
[…], ativando e nutrindo novas formas de
vida e ação (Berman, 1987, p. 92).

Isto que, segundo Berman, atraía Marx, também é

atrativo para esta pesquisa, e certamente representa algo

nitidamente presente na poesia que estudamos. No século XX,

muita coisa passa a ser realidade, e a fusão de material e

espiritual mudará radicalmente a literatura. A crítica da

modernidade – concebendo crítica como “compreensão de”,

“tese sobre”, conforme apresentado na Introdução – é

fundamental para a crítica dos modernismos e, por fim, para

chegar à compreensão dessa estrutura da obra de Paulo

Leminski.

No Capítulo I, mostramos a relação entre linguagem e

subversão social, numa perspectiva filosófica mais geral.

Aqui trabalharemos a questão dos modernismos literários em

seu momento histórico, a partir da crítica do progresso e

da história. Entendemos que são estes os debates que

estruturam a obra tão ampla de Leminski. Está claro que não

faremos um estudo aprofundado da Modernidade, nem das

Vanguardas Literárias, visto que o que nos interessa é

entender o que encontramos delas na poética de Leminski, e

como as encontramos. No terceiro capítulo, analisaremos

mais atentamente suas expressões estéticas na obra do

poeta.

57
2.1 – Um lance de dados no tabuleiro da história: sobre a

não linearidade

O passado não é uma acumulação gradual de


conquistas, como na historiografia
“progressista”, mas sobretudo uma série
interminável de derrotas catastróficas.
Michael Löwy, Aviso de incêndio

A Modernidade, de forma muito mais radical que as

outros momentos históricos que a precederam, criou com seu

passado uma relação muito radical de ruptura. Do ponto de

vista cronológico, a Modernidade começa a se estabelecer

quando termina o que a historiografia chama de Idade

Moderna. Há um marco divisor de águas nesse momento: a

Revolução Francesa, ocorrida em 1789, que, na

historiografia dá início à Idade Contemporânea. Poderíamos

dizer, neste sentido, que a Modernidade é, portanto, um

fenômeno contemporâneo. E, apesar de a visão tradicional da

história não nos interessar para nada além de referenciais

cronológicos, estamos de acordo em que hoje ainda vivemos o

mesmo momento histórico, do ponto de vista da estrutura e

do sistema social. A modernidade como momento e processo

histórico segue sendo o que conhecemos no tempo presente.

José Paulo Netto (2013) diz que, enquanto houver ordem

burguesa, não se esgota o capitalismo. E a Modernidade é o

58
tempo do capitalismo – é este o tempo da tal Idade

Contemporânea.

Após a Revolução Francesa, desenvolvem-se a burguesia

(que se configura como classe social dominante), o

capitalismo, a industrialização. Desenvolveram-se também

correntes filosóficas que colocaram o homem em evidência

(sim, sabemos que se tratava dos homens, da humanidade, mas

na verdade entendeu-se depois que era mesmo do homem, e não

dá mulher, que se tratava). O “penso, logo existo” de René

Descartes (considerado o pai da filosofia moderna), funda o

“sujeito cartesiano”, que estaria situado no centro do

conhecimento – esta é a concepção do “sujeito racional,

pensante e consciente”, que seria extremamente abalada

pelos movimentos modernistas posteriormente.

Stuart Hall coloca que

O nascimento do “indivíduo soberano”, entre


o Humanismo Renascentista do século XVI e o
Iluminismo do século XVII, representou uma
ruptura importante com o passado. Alguns
argumentam que ele foi o motor que colocou
todo o sistema social da “modernidade” em
movimento (Hall, 2004, p. 25).

A preocupação do autor é identificar “as mudanças

conceituais através das quais […] o sujeito do Iluminismo,

visto como tendo uma identidade fixa e estável, foi

descentrado” (Hall, 2004, p. 46), resultando no que ele

chama de identidade do sujeito pós-moderno. O que muitos

59
autores identificam como pós-modernidade, entendemos como

mais uma fase desse processo mais complexo e longo da

Modernidade, como referido pouco antes. Não obstante, tendo

como referência a fase inicial da Modernidade, os grandes

“descentramentos” no pensamento ocidental, que se

manifestaram entre o fim do século XIX e o início do XX,

constituem uma análise muito acertada.

Vamos nos ater por ora a três desses descentramentos.

Um deles é aquele vocalizado pelo linguista Ferdinand de

Saussure, que argumentava que “nós não somos, em nenhum

sentido, os “autores” das afirmações que fazemos ou dos

significados que expressamos na língua” (Hall, 2004, p.

40). Trabalhamos no primeiro capítulo justamente este

ponto, sob a perspectiva da arbitrariedade da língua

comunicacional e da subversão através da linguagem. Hall

complementa ainda que “podemos utilizar a língua para

produzir significados apenas nos posicionando no interior

das regras da língua e dos sistemas de significado da nossa

cultura” (ibidem). Conforme defendemos, não resta dúvida de

que “a língua é um sistema social e não um sistema

individual” (ibidem), um sistema de poder, passível de

“subversão poética”. As análises de Saussure foram sem

dúvida fundamentais para o debate sobre a linguagem, e a

transgressão dela.

Outro descentramento é a “descoberta” do inconsciente,

por Sigmund Freud. É verdade que suas teorias de modo geral

60
terão grande influência sobre o pensamento ocidental, mas

principalmente a existência do inconsciente coloca em xeque

a racionalidade e a consciência, desviando os caminhos do

pensamento. Freud diz que “a subjetividade é o produto de

processos psíquicos inconscientes” (Hall, 2004, p. 37),

provocando uma inevitável recaracterização do que é o

indivíduo. Voltaremos a Freud logo, quando trabalharmos

suas reverberações estéticas.

Sem se preocupar muito com o indivíduo e a

subjetividade, Marx fundamenta o terceiro descentramento.

Segundo Hall, resgatando Louis Althusser,

ao colocar as relações sociais (modos de


produção, exploração da força de trabalho,
os circuitos do capital) e não uma noção
abstrata de homem no centro de seu sistema
teórico, Marx deslocou duas proposições-
chave da filosofia moderna:
 que há uma essência universal de
homem;
 que essa essência é o atributo de “cada
indivíduo singular”, o qual é seu sujeito
real:
[…] “Ao rejeitar a essência do homem como
sua base teórica, Marx rejeitou todo esse
sistema orgânico de postulados” (Althusser,
1966, apud Hall, 2004, p. 35).

Marx também coloca em xeque o indivíduo racional, uma

vez que dirá que “a vida consciente é determinada pela vida

material, […] que o momento determinante na história é ‘a

produção e a reprodução da vida real’” (Löwy et al., 2015,

p. 83), ainda que Engels esclareça que isso ocorre apenas

61
“em última instância”, ou seja, as condições materiais não

são os únicos fatores determinantes, mas são aqueles que

pesam definitivamente. É preciso fazer ainda uma ressalva

às particularidades que cabem à arte e a outros bens

imateriais, que não estão livres das condições materiais,

senão não estaríamos fazendo este debate aqui, mas não são

operados nas mesmas relações de produção, meios, técnicas e

mercado. A obra do espírito é uma manifestação humana que

não dependem nem de ter utilidade nem de ser consumo, ainda

o capitalismo lhe arranje logo mercado, função e fetiche,

ou seja, valor dentro do conjunto das relações sociais de

produção (da vida material).

Para concluir esta parte inicial do raciocínio,

pontuamos que Freud e Marx acabam tendo visões que não se

demonstraram excludentes. Tinham certamente perspectivas

diferentes, um estava preocupado em entender a psique

humana, o outro preocupado em entender as relações sociais

em que esses humanos estavam engendrados para produzir

coletivamente a sua vida. Suas contribuições são muito

valorosas, para dizer o mínimo, já que parecem ter

conseguido suficientemente chegar a seus propósitos

analíticos. É inegável que esses pensadores “mudaram o

discurso da humanidade”, como se costuma dizer. Inclusive

no que concerne à questão de Stuart Hall, que identifica de

fato os descentramentos que provocam a alteração da

concepção cartesiana de indivíduo e de identidade. O

62
“indivíduo soberano” do início da Modernidade nunca mais

significará a mesma coisa.

***

O pensamento filosófico, econômico e político de Marx

significa outra visão não apenas do indivíduo e do

capitalismo, mas também da história. Em poucas palavras,

ele identificou que a história da humanidade é a história

de uma luta de classes entre opressores e oprimidos, entre

dominadores e dominados (Cf. Marx e Engels, 1848; Netto,

2013), argumentando que “a história se explica pela

dialética das forças produtivas e das relações sociais de

produção” (Marx, 1859, Löwy et al., 2015, p. 48), como

mencionamos antes.

O que nos interessa destacar desse contexto é que,

desde tempos longínquos, grupos sociais dominaram outros

grupos – foram “vários séculos ou milênios de lutas, de

combates derrotados dos escravos, dos servos, dos

camponeses e dos artesãos” (Löwy, 2005, p. 112) –, e essa

dominação foi econômica, obrigando os explorados a

produzirem a riqueza dos exploradores, mas também foi

cultural, impondo ou se apropriando de hábitos, costumes,

gostos, língua; trata-se de anular a cultura do vencido, ou

a sua autonomia e propriedade quanto a ela:

63
a elite dominante se apropria – pela
conquista, ou por outros meios bárbaros –
da cultura anterior e a integra a seu
sistema de dominação social e ideológico. A
cultura e a tradição tornam-se, assim, como
salienta Benjamin em sua tese VI, “um
instrumento das classes dominantes” (Löwy,
2005, p. 79-80).

O debate sobre hegemonia e contra-hegemonia cultural,

do pensamento, será desenvolvido bem depois de Marx por

Antonio Gramsci, em seus Cadernos do cárcere (1999-

2002[1926-1937]). Mas em Marx encontramos as bases do que

Gramsci vai desenvolver, assim como as referências para o

que Benjamin desenvolverá sobre o conceito de história e

contra o ideário do progresso – em parte contra Marx, mas

também de acordo com ele e outros marxistas.

Vejamos nas palavras de Michael Löwy o resgate, a

partir de Trotsky, da ideia de “desenvolvimento desigual e

combinado”.

O movimento da história é necessariamente


heterogêneo – desigual e combinado, diria
Trotski no livro A história da Revolução
Russa, que Benjamin conhecia bem – e os
avanços em uma dimensão da civilização
podem ser acompanhados de regressões na
outra (como já constatara a tese XI);
(Löwy, 2005, p. 116)

Não se trata apenas do desenvolvimento social

material, dos meios de produção etc., mas também do

convívio de ideias avançadas e retrógradas, inovadoras e

conservadoras. Isto condiz com a percepção de que não há

64
“progresso ‘automático’ ou ‘continuo’; a única continuidade

é a da dominação, e o automatismo da história simplesmente

reproduz esta” (Löwy, 2005, p. 117).

O desenvolvimento histórico, além de desigual e

combinado, é dialético. N’O capital, Marx diz que “a

produção capitalista engendra sua própria negação com a

fatalidade que preside as metamorfoses da natureza”. E

“define o objetivo de sua obra como a descoberta da ‘lei

natural’ que preside o ‘movimento da sociedade moderna’ e

determina ‘as fases de seu desenvolvimento natural’” (Löwy,

2005, p. 148). Benjamin, entretanto, discorda de Marx

quanto à inevitabilidade da destruição do capitalismo pelos

demolidores que ele mesmo constrói. O capitalismo constrói

a sua negação, mas a resultante disso não será

necessariamente a sua suplantação pela revolução

socialista. O que Benjamin conclui, na verdade, confirma

uma “abertura da história” que tem respaldo no pensamento

marxiano, mas de alguma forma dissolveu-se em perspectivas

exageradamente deterministas.

Quanto ao progresso, Benjamin defende que a construção

que ele promove carrega em si o gene da destruição (uma

contradição muito específica, porque se trata da construção

e destruição num só movimento, desde sempre). Além disso,

defende que ataquemos as suas doutrinas pela raiz, em seu

fundamento comum, a “sua quintessência oculta: o dogma da

temporalidade homogênea e vazia”, aquela dos relógios,

65
através da concepção alternativa que ele propõe: “o tempo

qualitativo, heterogêneo e pleno” (Löwy, 2005, p. 117).

Quer dizer fundamentalmente um tempo histórico descontínuo,

não linear. Contra o tempo cronológico que mede as coisas

como se fossem todas iguais, vindas uma depois da outra num

mesmo espaço, com começos e fins que se delimitam

linearmente, em conexões ordenadas, claras e resolvidas.

Trata-se do tempo puramente mecânico,


automático, quantitativo, sempre igual a si
mesmo, dos pêndulos: um tempo reduzido ao
espaço.
A civilização industrial/capitalista é
dominada, de maneira crescente desde o
século XIX, pelo tempo do relógio de bolso
ou de pulso, passível de uma medida exata e
estritamente quantitativa. […] [Benjamin]
contrasta “o infinito temporal qualitativo”
[…] do messianismo romântico com o
“infinito temporal vazio” das ideologias do
progresso. (Löwy, 2005, p. 125)

E contra o tempo quantitativo, na tese XV sobre o

conceito de história, Benjamin (apud Löwy, 2005, p. 123)

sustenta que “A consciência de fazer explodir o continuo da

história é própria das classes revolucionárias no instante

de sua ação”. Falamos no primeiro capítulo sobre a

necessidade e a atividade de, pela escrita, parar a

linguagem, contínua reprodução da ordem. Agora chegamos à

ideia de parar a história, o que não significa impedir seu

curso, mas revolucionar absolutamente a sua lógica:

explodir o contínuo da história.

66
Benjamin apresenta um conceito para o “autêntico

instante que interrompe o contínuo da história”: Jetztzeit,

o “tempo-agora”, ou Tempo do Agora, ou ainda “aqui e

agora”. É um tempo que situa a “oportunidade”, esse tempo

da intensidade do instante, a abertura, no âmbito da

atividade emancipadora, revolucionária. Löwy (2005, p. 15)

coloca que este seria como “um ‘amálgama’ entre

experiências surrealistas e temas da mística judaica”.

E é quando a explosão do contínuo da história ganha

expressão estética que Benjamin vai ao encontro, por

exemplo (e no melhor exemplo), do poeta francês Stéphane

Mallarmé.

O que segue é a reprodução de uma página –

considerando que as páginas são duplas indissociáveis, do

poema “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, publicado

em 1897, no original (em francês).

67
Nota-se facilmente que a disposição das palavras

sugere que diversas conexões sintáticas ou associativas

podem ser realizadas entre elas, entre as duas páginas. A

leitura linear de versos é inadequada, ou impossível. As

palavras ganham características gráficas (tamanho, caixa

alta ou baixa, itálico), que provocam destaques e

influenciam as associações, criando planos de visão.

A tradução de Haroldo de Campos (Campos et al., 1974,

pp. 149-173) é precedida de um enorme preâmbulo explicativo

de termos ambíguos e expressões, o que ao fim e ao cabo

quer dizer que essa tradução, mais do que a de poemas

tradicionais, é em grande medida uma recriação. É evidente

que as conexões que se fazem em português, a partir da

68
tradução dos termos isolados em francês (fora de frase ou

verso), não são as mesmas que se fazem no texto original, o

conjunto de acepções e sentidos das palavras nunca é

perfeitamente traduzível.

Não quer dizer que esse seja um impeditivo absoluto

para a tradução, afinal não há qualquer garantia de que

leitores diferentes chegarão às mesmas conexões em qualquer

uma das línguas, nem parece ser esse o propósito. A forma

desse poema expressa justamente o não acabamento, as

possibilidades de leitura. Não se pode lê-lo, compreendê-lo

e fim. Seu sentido está sempre em aberto, as leituras não o

esgotam, ele não se executa por inteiro nunca.

Não é só nas páginas duplas que se fazem as conexões,

é também entre páginas distantes. Por exemplo, seguindo a

publicação em português, o principal “verso” do poema está

partido em letras garrafais em quatro páginas diferentes,

em cada uma, um dos pedaços: “UM LANCE DE DADOS”; “JAMAIS”;

“JAMAIS ABOLIRÁ”; “O ACASO” (Campos et al., 1974, p. 153,

155, 161, 169, respectivamente). Além de se conectarem

entre si, essas palavras se ligam a tantas outras nas

páginas em que estão, e possivelmente na página aberta ao

lado, criando outros versos e inúmeros discursos

sobrepostos. Há quem tenha interpretado essa disposição em

quatro partes como um movimento em quatro tempos musicais,

há quem diga que são as quatro estações da natureza, só

para citar leituras.

69
O que se verifica centralmente é que a disposição das

palavras ou conjuntos de palavras – que não podemos chamar

propriamente de versos, ainda que eventualmente os forme –

cria um espaço físico, que inclui elas mesmas, os brancos

ou vazios, e os planos de visão criados tipograficamente.

Essa poesia não pode mais ser declamada, por exemplo, sua

reprodução perfeita se dá apenas em cópias físicas, que se

possam ver, ou haverá prejuízo de sentido.

O próprio Mallarmé, no prefácio que anuncia e oferece

“explicações” do poema (sem precedentes), sugere que a

leitura pode ser feita como se fosse uma partitura musical,

com subir e descer de entonação: “Ajunte-se que deste

emprego a nu do pensamento com retrações, prolongamentos,

fugas, ou seu desenho mesmo, resulta, para quem quer ler em

voz alta, uma partitura” (Mallarmé apud Campos et al.,

1974, p. 154). Essa leitura em voz alta seria executada

quase como obra teatral, exigindo ensaio. O poeta sugere a

ligação com a música, ao que acrescentamos a ligação com a

arte dramática.

É preciso dizer, por fim, que a disposição descontínua

das palavras expressa um movimento: o movimento de

múltiplas conexões e intensidades próprio do pensamento.

Observemos a tradução que Haroldo de Campos (1974, p.

169) propõe para a página da palavra hasard (acaso), que

mostramos anteriormente no original.

70
(Mallarmé apud Campos et al., 1974, p. 149)

Pode-se ler na ordem “normal”, todas as palavras, da

esquerda para a direita e de cima para baixo; mas também é

possível ler, por exemplo, apenas as palavras em caixa

alta: “O número existiria, começaria e cessaria, cifrar-se-

ia, iluminaria o acaso”. Assim como somente aquelas em

caixa baixa, ou de acordo com outras conexões, como, por

71
exemplo, o “cai”, palavra mais à esquerda da parte

inferior, antes de cada um dos versos que seguem à sua

direita.

Essas são “palavras em liberdade”, que serão depois

reivindicadas pelos futuristas. Sua disposição não deixa de

remeter também a uma partitura musical (talvez sinfônica),

no que se relaciona com os simbolistas. Mas antes de falar

deles, lembremos o que havíamos apontado sobre a influência

do pensamento de Freud. A síntese que segue, da

caracterização de Mallarmé, é de Hugo Friedrich:

ausência de uma lírica de sentimento e


inspiração: imaginação guiada pelo
intelecto; destruição da realidade e da
ordem lógica e afetiva normal; manuseio das
forças impulsivas da linguagem;
substituição da inteligibilidade pela
sugestão; consciência de pertencer a uma
época tardia da cultura; dupla atitude
frente à modernidade; e equiparação da
poesia com a crítica poética, em que
predominam, além disso, as categorias
negativas. (Friedrich apud Teles, 1987, p.
60)

A época em que Mallarmé se insere é aquela que

descolou o referencial da poesia da realidade externa e

material para dentro da cabeça. Paul Valéry (1991, p. 71)

fala em “intensidade da emoção estética” levada ao extremo

– e a “emoção estética” opera no campo do inteligível, não

do sentimental, o que vale para experiências sensoriais

também quando se trata de literatura. Os movimentos do

72
pensamento, seu fluxo, seu trânsito e composição entre

consciente e inconsciente, a racionalidade, a

irracionalidade, o ilógico, o irreal e o surreal, passaram

a ser matéria da poesia. Isto efetivamente marca o debate

sobre a linguagem e o seu uso. Pode-se sugerir, em vez de

dizer; pode-se destruir, em vez de construir; a poesia

ganha traços de metapoesia.

Diversas foram as tentativas de expressar o fluxo do

pensamento, que se percebeu muito mais desordenado do que

previra a lógica cartesiana. Este é o tema do Catatau de

Leminski, um romance ideia, justamente essa ideia

desordenada, em fluxo contínuo de múltiplas conexões. Antes

dele, entretanto, James Joyce já havia “explodido” o gênero

romance. Vejamos o que diz Otto Maria Carpeaux, sobre

Ulisses, considerado a sua obra mais importante:

Joyce baseava esse seu imoralismo na


psicanálise: o subconsciente não conhece
moral. Mas não se satisfez com um
imoralismo libertino. Além da moral, o
subconsciente ignora mais outras
convenções, em primeira linha as normas
morfológicas e sintáticas da língua, que no
sonho e no romance de Joyce obedece a
outras regras, às do automatismo. […]
Representa o dadaísmo em língua inglesa;
baseando-o na psicanálise, antecipou o
surrealismo. (Carpeaux, 1958, p. 143).

Carpeaux vai defender que, se em Ulisses já não vigora

a moral burguesa, “e isso se reflete em estilo, composição

e enredo […], representa realmente o fim do gênero

73
‘romance’, como o gênero da literatura burguesa” (ibid., p.

144). Para finalizar este ponto, destacamos ainda o

desaparecimento gradual do herói que Carpeaux chama de

“novelístico”:

os personagens fictícios perdem a


homogeneidade psicológica, ficando sujeitos
a um processo de dissociação ou
desagregação. Esse processo chega ao fim
pelo “monologo interior” e pelo
correspondente fluxo dos acontecimentos, em
Ulysses. (Carpeaux, 1958, p. 145)

E com essa análise, em que o autor remete o monólogo

interior ao fluxo dos acontecimentos, a realidade volta

dialeticamente a ser referencial da literatura. De outra

maneira, está claro, pois esse fluxo de acontecimentos se

organiza de acordo com as propriedades de descontinuidade

do pensamento e da história.

Na poesia, o fluxo do pensamento traduziu-se também em

automatismo e espontaneísmo, que se tornaram tão radicais,

que foram da poesia com múltiplos sentidos àquela sem

sentido algum, salvo a expressão do acaso gratuito e do

despropósito, como foi o dadaísmo. Era o ataque a qualquer

forma pré-estabelecida de expressão. Em que pese sua

importância, em nossa opinião, como radicalização máxima da

tentativa de aniquilamento da poesia pela própria poesia,

estamos de acordo com Carpeaux:

74
já foi definido como “destruição do mundo
absurdo da guerra pelo absurdo da
literatura”, ou “ sátira triste depois da
tragédia”, ou “reação à estupidez geral”,
ou “estupidez sistematizada”, ou mesmo
“cume do l’arte pour l’art”, ou ainda “la
littérature contre la littérature”. Estas e
outras definições não revelam muita coisa
porque “Dada” não foi nem pretendeu ser um
movimento sério. Não produziu, realmente,
nenhuma obra de valor. […] desprezando a
linguagem e as línguas, “Dada” unificou os
grupos modernistas separados pelas línguas
e pela guerra. […] Alem do infantilismo,
que pode ser interpretado como desejo de
começar de novo num mundo devastado, não
havia nada de original em “Dada”. […]
Cubismo, futurismo e expressionismo,
separados durante tanto tempo, tinham-se
encontrado numa taverna de bêbados.

A expressão estética da descontinuidade teve outras

formas, mesmo nas vanguardas europeias. Mas interessa-nos

agora observar, dando um salto até o concretismo

brasileiro, como esse fenômeno, que, por um lado, foi

embrenhando-se nos descaminhos do inconsciente, na

associação fortuita e finalmente sem sentido, por outro,

foi construindo novas lógicas associativas, bastante

rígidas e formalistas em alguns momentos.

O texto que segue é o início do Plano-piloto para a

poesia concreta, escrito pelos irmãos Campos (Haroldo e

Augusto) e por Décio Pignatari, lançado em 1958. Houve

outros manifestos do movimento concretista, mas

consideramos este especialmente inspirado e expressivo.

75
poesia concreta: produto de uma evolução
crítica de formas dando por encerrado o
ciclo histórico do verso (unidade rítmico-
formal), a poesia concreta começa por tomar
conhecimento do espaço gráfico como agente
estrutura. espaço qualificado: estrutura
espácio-temporal, em vez de desenvolvimento
meramente temporístico-linear, daí a
importância da ideia de ideograma, desde o
seu sentido geral de sintaxe espacial ou
visual, até o seu sentido específico
(fenollosa/pound) de método de compor
baseado na justaposição direta – analógica,
não lógico-discursiva – de elementos. “il
faut que notre intelligence s’habitue à
comprendre synthético-ideographiquement au
lieu de anlytico-discursivement”
(apollinaire). eisenstein: ideograma e
montagem. (em Teles, 1987, p. 341; grifos
nossos)

O manifesto remete sempre a suas referências. A

citação de Apollinaire, “é preciso que nossa inteligência

se acostume a compreender sintático-ideograficamente em vez

de analítico-discursivamente”, expressa a contradição

linearidade-descontinuidade, apresentando ao mesmo tempo a

proposta concretista que se encaminha no sentido do

ideograma, da montagem, da exploração do “espaço

qualificado: estrutura espácio-temporal”. A ideia de

estrutura se dissocia da livre associação ao acaso, do

labirinto inconsciente. É a proposta das novas lógicas, não

do ilógico.

Vejamos um exemplo, o poema de Augusto de Campos

(1964), que vem com o título “acaso” grafado de cabeça para

baixo, junto da assinatura do autor (tudo em letras

minúsculas).

76
(Campos, A., 1964, p. 12)

Não as palavras, mas as letras de uma única palavra

foram embaralhadas sessenta vezes. Um dos baralhamentos

permite-nos, por acaso, ler a palavra “acaso”. A única

outra palavra que se lê é “caos”, o que nos leva a pensar

na ideia de “organização do caos”, ou “caos organizado”,

visto que as combinações estão expostas de forma plenamente

organizada em blocos iguais, que parecem construir o

movimento de um funil, talvez a parte de cima da ampulheta,

preenchida por tempo descontínuo espalhado no espaço, quiçá

77
blocos de concreto, prédios urbanos amontoados de gente ao

acaso; os blocos negros contrastando com os brancos, mesmo

que retangulares e não quadrados, não deixam de lembrar um

tabuleiro de xadrez, de alguma forma esticado e recortado.

Certeza, nenhuma. Fica em aberto.

Haroldo de campos fala-nos do poema:

fundado nas possíveis permutações de letras


dessa palavra, a qual, como que por acaso,
só é legível uma vez em todo o texto, e
esse acaso, perdido no aparente anonimato
de sequências de letras privadas (ou quase)
de semântica (digo “quase” porque numa
delas, por exemplo, se pode reconhecer a
palavras caos...), é que constitui a
informação estética, poema. (Campos,
Haroldo de, 1972, p. 31).

As palavras aqui privadas de semântica não impedem que

o conjunto do poema constitua “informação estética”, como

diz Haroldo de Campos. Não o priva de sentido, de lógica,

de expressão linguística.

A mesma análise fazemos do poema que pode ser chamado

de “Metamorfose”, de Paulo Leminski, que compõe a seção

intitulada “Invenções” do Caprichos & Relaxos. Aqui são

onze letras em dezenove combinações, também embaralhadas,

mas com algumas estruturas morfológicas e pequenas palavras

identificáveis, com algumas associações. Entretanto, com a

“pequena” diferença de que exatamente a palavra metamorfose

não aparece, está apenas subentendida, diante das diversas

metamorfoses que a combinação de suas letras sofre. Dessa

78
forma, o poema fica mais conhecido como “Metaformose”, a

última versão que traz da metamorfose, que dará título a

outra obra de Leminski – Metaformose, uma viagem pelo

imaginário grego, de prosa poético-imaginativa (digamos).

materesmofo
temaserfomo
termosfameo
tremesfooma
metrofasemo
mortemesafo
amorfotemes
emarometesf
eramosfetem
fetomormesa
mesamorfeto
efatormesom
maefortosem
saotemorfem
termosefoma
faseortomem
motormefase
matermofeso
metaformose

(Leminski, 1983, p. 149)

O jogo de dados, de cartas, de letras ou de palavras,

não é de acaso absoluto, as combinações possíveis são

finitas, de acordo com a materialidade de que se dispõe, ou

seja, de acordo com a quantidade de elementos em jogo.

Quando Mallarmé coloca que o acaso, no sentido do

imprevisível e do desconhecido, não pode ser abolido, abre

uma janela para a mudança do jogo, para o que está fora da

regra. O que está fora da regra, além disso, expressa-se

esteticamente, comprovando-se a si mesmo.

79
A última frase do poema de Mallarmé é: “Todo

pensamento emite um lance de dados” (Mallarmé apud Campos

et al., 1974, p. 173). Segundo Marx, o pensamento também é

limitado pela materialidade, suas compreensões e

formulações se dão com base no conhecido, por mais

inventivas que sejam (Cf., por exemplo, Löwy et al., 2015).

Afinal, não há contra-jogo sem jogo. Pois assim também o é

o conceito de “história aberta” de Benjamin, que garante

que se o novo é possível, o futuro não é conhecido

antecipadamente. Não se trata de um marxismo do acaso, mas

certamente de considerar alguma (e fundamental)

imprevisibilidade, oriunda provavelmente do que foge à

nossa compreensão no presente, mas eclodirá e se

esclarecerá em tempo futuro.

Voltando então (dialeticamente) ao nosso ponto de

partida, agora na perspectiva inversa - a partir da

estética –, concluímos que

o futuro não é o resultado inevitável de


uma evolução histórica dada, o produto
necessário e previsível de leis “naturais”
da transformação social, fruto inevitável
do progresso econômico, técnico e
científico – ou o que é pior, o
prolongamento, sob formas cada vez mais
aperfeiçoadas, do mesmo, do que já existe,
da modernidade realmente existente, das
estruturas econômicas e sociais atuais. […]
Isso não resulta apenas das limitações
próprias dos métodos de conhecimento em
ciência sociais, mas da própria natureza da
práxis humana. Ao contrario dos eclipses da
lua ou da próxima passagem do cometa

80
Halley, o resultado da ação histórica dos
indivíduos e dos grupos sociais continua
consideravelmente imprevisível (Löwy, 2005,
p. 149-150; grifo nosso).

Se a barbárie e as catástrofes são possíveis, também o

são enormes movimentos emancipadores, transformadores da

realidade – em vez de representativos dela, em analogia à

arte. Disse muito bem Sartre (1960) que “o homem se define

por ser projeto. Esse ser material ultrapassa perpetuamente

a condição que lhe é estabelecida”, em sua Crítica da razão

dialética.

A ligação que propomos entre Benjamin e Mallarmé não

quer dizer que Mallarmé seja revolucionário, socialista ou

marxista, de forma alguma. Poderia ser o caso (como era o

caso de Leminski), mas não é. Quer dizer que o que é

concreto e real se expressa em diferentes fenômenos, sem

ligação aparente ou cronológica, mas que nos permitem

entender aquilo que é concreto e real.

A analogia que fazemos entre conceito de tempo e de

história, de um lado, e a destruição da linearidade na

poesia, de outro, é verdadeira até certo ponto, assim como

em outros pontos os fenômenos se distanciam e desconectam;

não são movimentos absolutamente análogos em todas as suas

relações. Mas são perfeitamente identificáveis entre eles,

e fundamentalmente úteis para entender a poética

leminskiana; esta, sim, marcada íntima e completamente pela

relação entre: sociedade e linguagem, transformação social

81
e atividade poética inovadora, enfim, descontinuidade da

história contada e pela classe dominante e poesia de

ruptura e subversão: “en la lucha de clases / todas las

armas son buenas / piedras / noches / poemas” (Leminski,

1983, p. 76).

82
2.2 – A luta entre o autômato e o sujeito histórico: sobre

a ruptura vanguardista

A criação literária corresponde a


certas necessidades de representação do
mundo, às vezes como preâmbulos a uma
práxis socialmente condicionada. Mas
isto só se torna possível graças a uma
redução ao gratuito, ao teoricamente
incondicionado, que dá ingresso ao
mundo da ilusão e se transforma
dialeticamente em algo empenhado, na
medida em que suscita uma visão do
mundo.

Antonio Candido,
Literatura e sociedade

Os movimentos modernistas – ou seja, as vanguardas,

não só literárias, que revolucionaram as artes no início do

século XX – foram antecedidos por um momento que se costuma

chamar de pré-modernismo, ou de transição pré-vanguardista.

Principalmente três poetas caracterizam essa transição:

Paulo Verlaine (que viveu entre 1844-1896), Stéphane

Mallarmé (1844-1898) e Arthur Rimbaud (1854-1891);

referenciados e antecedidos por Charles Baudelaire (1821-

1867).

Baudelaire costuma ser considerado “o criador da

lírica moderna em geral”, segundo Arnold Hauser (1973, p.

1062). Marshall Berman, autor que apresenta uma importante

83
reflexão sobre o advento da Modernidade, juntando os

aspectos artísticos e sociais, fala-nos do poeta francês:

No prefácio a Spleen de Paris, Baudelaire


proclama que la vie moderne exige uma nova
linguagem: ‘uma prosa poética, musical mas
sem ritmo e sem rima, suficientemente
flexível e suficientemente rude para
adaptar-se aos impulsos líricos da alma, às
modulações do sonho, aos saltos e
sobressaltos da consciência’. Sublinha que
‘esse ideal obsessivo nasceu, acima de
tudo, da observação das cidades enormes e
do cruzamento de suas inúmeras conexões’
(Berman, 1987, p. 144; citando Baudelaire).

Berman chama de “cenas modernas primordiais” (ibidem)

aquilo que Baudelaire expressa por meio da nova “prosa

poética”. Para o autor, esse é o ponto chave da obra de

Baudelaire, porque tais cenas nascem da vida cotidiana e

concreta da Paris daquele momento, em meio às intervenções

de Napoleão e Haussmann que “modernizaram” radicalmente o

espaço urbano (as reformas foram de 1852 a 1870), ao mesmo

tempo em que a modernidade industrial invadia a cultura das

cidades. As experiências que Baudelaire expressa estão

“impregnadas de uma ressonância e uma profundidade míticas

que as impelem para além de seu tempo e lugar,

transformando-as em arquétipos da vida moderna” (Berman,

1987, p. 144).

A obra de Baudelaire é sem dúvida muito importante

para a literatura universal, principalmente moderna. Os

arquétipos da vida moderna que ofereceu, como coloca

84
Berman. Mas para este estudo vale destacar especialmente

dois textos. O primeiro é “O pintor da vida moderna”, um

trabalho de crítica literária, em que o autor propõe uma

compreensão da arte realmente inédita: “A modernidade é o

transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte,

sendo a outra metade o eterno e o imutável” (Baudelaire,

1995, p. 859). Essa concepção, que admite a conjugação de

efêmero e eterno na obra de arte, contradiz toda a tradição

artística, que concebia a arte como expressão do verdadeiro

e do eterno (Cf. Benjamin, 1991).

O segundo é “O relógio”, prosa poética publicada em O

spleen de Paris. Nesse texto, Baudelaire traz o debate

sobre o tempo, seu curso, a noção que temos dele,

contribuindo ao debate que vínhamos fazendo. Ele começa com

o mote de que “os chineses veem as horas nos olhos dos

gatos”, contando o caso de um menino que informa as horas a

um missionário nos subúrbios de Nanquim, olhando “no branco

dos olhos” de um gato. Em seguida, Baudelaire faz a própria

reflexão.

Por mim, se me inclinar para a bela Felina,


assim tão bem chamada, que é, ao mesmo
tempo a honra de seu sexo, o orgulho do meu
coração e o perfume do meu espírito, quer
seja noite, quer seja dia, em plena luz ou
na sombra opaca, no fundo de seus olhos
adoráveis, vejo sempre a hora
distintamente, sempre a mesma, uma hora
vasta, solene, grande como o espaço, sem
divisões, nem de minutos, nem de segundos —
uma hora imóvel que não é marcada no

85
mostrador dos relógios e, entretanto, leve
como um suspiro, rápida como uma olhadela.
E se algum importuno vier me perturbar
enquanto meu olhar repousa sobre esse
delicioso mostrador, se qualquer gênio
desonesto e intolerante, qualquer demônio
do contratempo vier me dizer: “O que olhas
tu com tanto cuidado? O que procuras nos
olhos desse ser? Vês a hora, pródigo e
mortal preguiçoso?”, eu responderia, sem
hesitar: “Sim, eu vejo a hora: a
Eternidade” (Baudelaire, 2006, p. 92).

O que ele vê, na verdade, é o tempo parado – no olho

do gato. É sabido que os gregos na Antiguidade tinham três

conceitos de tempo (ou três “deuses da temporalidade”),

Cronos (Χρόνος) era apenas um deles, o que foi difundido na

sociedade ocidental como único existente: o tempo finito,

contável e mensurável, de natureza quantitativa, todo

sempre igual, em sequência, que se divide em anos, meses,

dias, horas, segundos, como já mencionamos.

Havia, entretanto, outros dois conceitos de tempo para

os gregos: Aion (Αίών), que quer dizer “sempre” – é a “hora

imóvel que não é marcada no mostrador dos relógios”; e

Kairós (καιρός), que quer dizer “momento certo” – a hora

“leve como um suspiro, rápida como uma olhadela”. Nenhum

desses tempos do ser medido e é deles que Baudelaire fala.

Aion é o tempo em suspenso, sem movimento, eterno, absoluto

e parado. Kairós é o tempo efêmero do instante, da

intensidade, daquilo que se abre uma saída, da bifurcação

para diferentes futuros, da oportunidade e do desejo. A

matéria da poesia está entre esses dois tempos, ora na

86
dimensão de um, ora na dimensão de outro (Cf. POHLMANN,

2006; por exemplo). Voltamos assim ao que Baudelaire

expressou antes sobre a arte moderna: mescla de efêmero e

imutável.

O olho do gato, quando sua pupila está contraída ao

máximo, assemelha-se a um relógio em que os ponteiros

marcam 6 horas. Esses ponteiros, todavia, em vez de se

movimentarem como os do relógio, dilatam-se em fenda, até

ocuparem quase toda a íris – deformando absolutamente a

imagem do tempo cronológico.

É notável que, com as contribuições mencionadas,

Baudelaire expressa uma compreensão de seu tempo, através

da arte, muito impressionante, o que não poderia resultar

numa influência menor do que a que ele teve daí em diante,

seja de forma velada, seja de forma clara. Rimbaud, por

exemplo, era efetivamente um devoto apaixonado de

Baudelaire. Tinham, contudo, uma discordância que garantiu

a maior contribuição de Rimbaud.

Vejamos um trecho da carta que Rimbaud escreve a Paul

Démeny, que ficou conhecida como “A carta do vidente”.

Mas observar o invisível e ouvir o inaudito


sendo coisa diferente de retomar o espírito
das coisas mortas, Baudelaire é o primeiro
vidente, rei dos poetas, um verdadeiro
Deus. Mesmo assim, viveu num meio demasiado
artista; e a forma tão elogiada nele é
mesquinha – as invenções de desconhecido

87
reclamam formas novas. (Rimbaud, 1871, s/p;
tradução nossa)11

Com “observar o invisível e ouvir o inaudito”, Rimbaud

quer falar do desconhecido – e extraordinário –, do mundo

“novo”, que Baudelaire vocaliza – o que é a sua maior

grandeza. E contra o “espírito das coisas mortas”, depois

de Baudelaire virão muitos, defendendo o esprit nouveau,

termo usado por Apollinaire em 1918, repaginado para

“espírito moderno”.

A crítica de Rimbaud a Baudelaire se dá porque este

último se recusava a aceitar mudanças na forma clássica da

poesia, seus poemas são todos tradicionais (Cf. As flores

do mal, 1985 [1857]). Para ele, uma poesia sem a métrica

clássica era um absurdo, em que pese tenha sido pioneiro no

conceito de “prosa poética”, refletindo sua observação do

mundo moderno, como citamos antes, pelas palavras de

Berman; entretanto, a prosa poética não configura uma

alteração na construção do verso, é na verdade uma

tentativa de fusão entre prosa e poesia.

Rimbaud, por sua vez, argumentava que um novo conteúdo

exigia uma nova forma – o que implementou e, com isso, em

nossa opinião, deu sua maior contribuição à poesia e ao

processo de transformação da arte de que estamos tratando.

11
Texto original: “Mais inspecter l’invisible et entendre l’inouï
étant autre chose que reprendre l’esprit des choses mortes, Baudelaire
est le premier voyant, roi des poètes, un vrai Dieu. Encore a-t-il
vécu dans un milieu trop artiste ; et la forme si vantée en lui est
mesquine — les inventions d’inconnu réclament des formes nouvelles”.

88
Segundo Paul Valéry, “uma das maiores disputas da época

foi, como se sabe, a disputa interna do verso livre” (1991,

p. 73). Sabe-se também, perfeitamente, que não só o verso

livre “venceu” essa disputa, como depois o próprio verso

chegou a ser abolido pelas Vanguardas Literárias.

Na mesma carta, Rimbaud (1871) escreve sua frase mais

famosa: “eu é um outro”, dizendo em seguida: “assisto à

eclosão do meu pensamento”, ou seja, seu sujeito pessoal

não é o responsável por esse pensamento, não é o indivíduo

soberano que se esperava: é um estranho dentro dele mesmo.

Com isso, o poeta coloca-se em outros debates pertinentes à

Modernidade que já havíamos apontado: a construção da

identidade, a atuação do inconsciente, a subjetividade do

sujeito moderno, o fluxo do pensamento (que aqui ganha ares

de grande autonomia).

As pesquisas sobre o subconsciente já haviam se

tornado predominantes com Baudelaire. O “símbolo” tornou-se

uma força expressiva fundamental da linguagem poética. Os

simbolistas buscam dar forma sensível às ideias. Rimbaud

acaba realizando a total ruptura com a tradição da

linguagem (rompendo também com as ideias e concepções

religiosas da época), prenunciando todo um fulgor criativo,

assinalando novos rumos na história da poesia ocidental

(Cf. Teles, 1987, p. 38-44).

Paul Verlaine, em seu poema intitulado “Arte poética”,

expressa o intercâmbio entre literatura e música que

89
igualmente marcará os novos rumos da poesia: “Antes de

qualquer coisa, música”. E, no mesmo poema, a ambiguidade

se faz presente em todos os futuros olhares sobre as

palavras:

É preciso também que não vás nunca


escolher tuas palavras sem ambiguidade:
nada mais caro que a canção cinzenta
onde o Indeciso de junta ao Preciso
(Verlaine apud Teles, 1987, p. 47).

A ideia da ambiguidade, posteriormente, irá extrapolar

as denotações e conotações das palavras. Irá se estender à

sua forma, grafia, disposição na página, até cores. Em

Leminski temos o seguinte poema, que vem centralizado,

grafado em letras super arredondadas, que remetem ao

sibilino do som, da voz, da palavra, da linguagem, como que

aproveitando as voltas de um túnel, ou as curvas das ondas

sonoras:

(Leminski, 1983, p. 133)

O som desses versos é, além do mais, sibilante, pela

presença da consoante alveolar surda “s” em todos os

90
substantivos, verbos e adjetivo. As sílabas se organizam

foneticamente de sibilação em sibilação, produzindo voltas.

A relação dialética entre som e silêncio se expressa,

portanto, também na musicalidade das palavras do poema e na

grafia delas.

Depois desse momento identificado como de transição

(cujos expoentes são Baudelaire, Verlaine, Mallarmé,

Rimbaud), a literatura, definitivamente, entra num processo

de contato, contágio, fusão e diálogo com todas as outras

artes. Da mesma forma, a visão e a audição participarão do

que antes era algo apenas linguístico. Música, sons,

grunhidos; imagens, desenhos; construções arquitetônicas,

montagens; enfim, serão realizadas experiências de todas as

ordens. Ao mesmo tempo, algumas ideias serão levadas ao

extremo: certos vanguardistas defenderão abertamente o fim

da literatura, vão se posicionar pela destruição da poesia,

pelo fim de tudo.

***

Para seguir esta discussão, parece-nos fundamental

ganhar a perspectiva de Paul Valéry, no início do século

XX, no ensaio “A conquista da ubiquidade”.

Nossas Belas Artes foram instituídas, assim


como foram fixados seus tipos e usos, num
tempo muito distinto do nosso, por homens

91
cujo poder de ação sobre as coisas era
insignificante se comparado ao que nós
possuímos. Mas a surpreendente expansão de
nossos meios, a flexibilidade e a precisão
que eles alcançam, as ideias e costumes que
introduzem, nos asseguram mudanças próximas
e muito profundas na antiga indústria do
Belo. Em todas as artes há uma parte física
que não pode mais ser vista nem tratada
como anteriormente, que não pode escapar da
agressividade do conhecimento e do poder
modernos. Nem a matéria, nem o espaço, nem
o tempo são, há vinte anos, o que vinham
sendo desde sempre. É preciso ter em conta
que novidades assim tão grandes transformam
toda a técnica das artes, operando,
portanto, sobre a criação ela mesma,
chegando talvez a modificar
maravilhosamente a própria noção da arte.
(VALÉRY, 1960 [1928], p. 1283; tradução
nossa.12)

Esse trecho é citado como epígrafe por Benjamin na

edição de 1948 de “A obra de arte na era de sua

reprodutibilidade técnica”. O que está em jogo é uma

mudança significativa da sociedade, que terá consequências

em todas as dimensões da vida, inclusive na arte e no

pensamento. Uma mudança que não altera apenas meios, nem

apenas produtos, mas a própria percepção da arte, ou

12 Texto original, em “La conquête de l'ubiquité”: “Nos Beaux-Arts ont


été institués, et leurs types comme leur usage fixés, dans un temps
bien distinct du nôtre, par des hommes dont le pouvoir d’action sur
les choses était insignifiant auprès de celui que nous possédons. Mais
l’étonnant accroissement de nos moyens, la souplesse et la précision
qu’ils atteignent, les idées et les habitudes qu’ils introduisent nous
assurent de changements prochains et très profonds dans l’antique
industrie du Beau. Il y a dans tous les arts une partie physique qui
ne peut plus être regardée ni traitée comme naguère, qui ne peut pas
être soustraite aux entreprises de la connais- sance et de la
puissance modernes. Ni la matière, ni l’espace, ni le temps ne sont
depuis vingt ans ce qu’ils étaient depuis toujours. Il faut s’attendre
que de si grandes nouveautés transforment toute la technique des arts,
agissent par là sur l’invention elle-même, aillent peut-être jusqu’à
modifier merveilleusement la notion même de l’art”.

92
“noção”, como diz Valéry. No decorrer do artigo, o autor –

que tem os olhos voltados mais para a música, e o evento (à

época, recente) de sua gravação e reprodução – trata da

ubiquidade, antecipando o que tomaria posteriormente

proporções imensuráveis, ou seja, a característica da obra

artística talvez não exatamente de estar em todos os

lugares ao mesmo tempo, mas de ser acessível e reproduzível

como até então nunca se havia pensado.

Walter Benjamin, por sua vez, na obra citada, partindo

do advento da fotografia, dedica-se a pensar o “aqui e

agora da obra de arte, sua evidência única” (1994 [1936],

p. 167), preocupando-se em identificar o que muda a partir

de sua reprodutibilidade técnica e denunciando a atrofia da

“aura” no processo de reprodução da obra. A obra de arte,

então, deixa de existir de forma única para existir de

forma serial (ibidem, p. 168).

Uma nova forma de existir se desenvolve no século XX.

Condizente com as radicais transformações sociais dos

tempos modernos, é ela que altera as noções da arte. A

forma como a arte se produz e se reproduz está diretamente

ligada a esta sociedade e a seu pensamento.

Muito do que Benjamin coloca sobre a fotografia terá

sentido sobre a arte em geral. O autor aponta o fenômeno da

criação de novos instrumentos e meios de expressão

artística que mudam as condições e relações de produção da

obra.

93
se escreveu […] sobre a questão de saber se
a fotografia era ou não uma arte, sem que
se colocasse sequer a questão prévia de
saber se a invenção da fotografia não havia
alterado a própria natureza da arte”
(BENJAMIN, 1994, p. 176; grifo original.)

Mudam, portanto, sua natureza e percepção, como

veremos em diversas áreas, talvez em todas, ao longo do

século XX. A partir da industrialização, da técnica e da

tecnologia, a arte conheceu a fotografia e o cinema; a

música passou a ser gravada, e reproduzida com o auxílio de

vitrolas e outros aparelhos e meios, como discos, CDs,

arquivos digitais; a arte dramática foi transportada para

telas de todos os tipos; a pintura saltou dos quadros para

as ruas, os corpos, as roupas etc. São transformações muito

significativas e muito rápidas.

Não muito tempo depois de quando escreve Benjamin, já

estamos habituados a aparelhos individuais que dão conta de

produzir e/ou reproduzir todo tipo de obra de arte, seja

por sua imagem (arquitetura, escultura, pintura, desenho,

artes cênicas), seja diretamente (fotografia, cinema,

vídeo, música, literatura), além de garantir a

telecomunicação entre as pessoas e o transporte fácil de

dados (incluindo as obras artísticas).

No mesmo sentido, mas olhando mais atrás, Antonio

Candido resgata um momento anterior à consolidação da

escrita como meio de comunicação.

94
Tanto quanto os valores, as técnicas de
comunicação de que a sociedade dispõe
influem na obra, sobretudo na forma, e,
através dela, nas suas possibilidades de
atuação no meio. Estas técnicas podem ser
imateriais – como o estribilho das canções,
destinadas a ferir a atenção e a gravar-se
na memória; ou podem associar-se a objetos
materiais, como o livro, um instrumento
musical, uma tela.
Em poesia, o refrão, a recapitulação, a
própria medida do verso estão ligados ao
fato dela se haver originado em fases onde
não havia escrita, prendendo-se, pois,
necessariamente, aos requisitos da
enunciação verbal, às exigências de
memorização, audição etc.

Claramente distante desse momento em que a medida do

verso se fazia necessária, a literatura hoje passa a ser

grafitada em muros, publicada facilmente em meios virtuais

ou em edições de pequena tiragem. É, sem dúvida, outra

forma de existência, que remete a outras significações,

conforme aponta Benjamin.

No interior de grandes períodos históricos,


a forma de percepção das coletividades
humanas se transforma ao mesmo tempo que
seu modo de existência. O modo pelo qual se
organiza a percepção humana, o meio em que
ele se dá, não é apenas condicionável
naturalmente, mas também historicamente. A
época das invasões dos bárbaros, durante a
qual surgiram a indústria artística do
Baixo Império Romano e a Gênese de Viena,
não tinha apenas uma arte diferente do que
caracterizava o período clássico, mas
também outra forma de percepção. (BENJAMIN,
1994, p. 169)

95
Vale reiterar, portanto, que, a partir de outra forma

de existência, não é só a percepção sobre a obra de arte

que se altera, mas também a consideração sobre o que é ou

não é obra de arte, sobre o valor que as coisas têm; novas

formas de arte se criam, sejam elas de fato novas, sejam

elas reinvenções ou ressignificações do que já existia de

outra forma. O central é que perceber de outra maneira

acaba por favorecer transformações da própria coisa e vice-

versa. Ainda segundo Benjamin, vemos que “transformações

sociais muitas vezes imperceptíveis acarretam mudanças na

estrutura da percepção, que serão mais tarde utilizadas

pelas novas formas de arte” (ibidem, p. 185).

Tendo estes conceitos em mente, passaremos à

observação de algumas manifestações representativas das

transformações promovidas pelas vanguardas europeias na

arte poética. Muitas delas publicadas em revistas e jornais

(tanto poemas, como manifestos), que eram à época os

principais meios de difusão da literatura. Evidentemente,

faremos isso sem a pretensão de apresentar todos os

movimentos e autores importantes, mas visando a

exemplificar as rupturas e experiências que se comprovaram

extremamente significativas, senão para a literatura de

modo geral, pelo menos para a obra de Paulo Leminski –

ainda que pensemos que se trata da primeira hipótese.

***

96
No primeiro capítulo, falamos da poesia que representa

uma imagem mental, ou seja, que não oferece ação, apenas

apresenta um quadro, como o faz o haicai. Neste capítulo,

já falamos das experimentações gráficas que expandiram a

poesia para os limites da página. Agora falaremos da poesia

em imagem visual, como o fez Guillaume Apollinaire,

partindo desta consideração de Antonio Candido:

no momento em que a escrita triunfa como


meio de comunicação, o panorama se
transforma. A poesia deixa de depender
exclusivamente da audição, concentra-se em
valores intelectuais e pode, inclusive,
dirigir-se de preferência à vista, como os
poemas em forma de objeto ou figuras, e,
modernamente, os “caligramas” de
Apollinaire. A poesia pura do nosso tempo
esqueceu o auditor e visa principalmente a
um leitor atento e reflexivo, capaz de
viver no silêncio e na meditação o sentido
do seu canto mudo. (Candido, 2006, p. 43)

Como identificamos em Mallarmé, a inclusão de uma nova

musicalidade no poema (intensidades, sensações), diferente

das rimas, estribilhos e métricas anteriores, não significa

um poema mais audível ou mais cantável. Pelo contrário, o

efeito é de imersão subjetiva e trabalho no âmbito do

pensamento, como bem expressa Candido, ao caracterizar o

leitor atendo e reflexivo que receberá essa poesia.

Carpeaux diz que “sem a psicanálise não haveria literatura

97
moderna, embora a influencia nem sempre seja direta a

admitida” (1958, p. 137).

Assim como não se pode reproduzir em voz alta “Um

lance de dados jamais abolirá o acaso”, a voz não é

suficiente para ler um caligrama de Apollinaire: é preciso

vê-lo e ater-se à relação entre palavra e figura, sua

poesia está além das palavras. Segundo Carpeaux

“Apollinaire é o maior poeta modernista, um dos maiores

poetas de todos os tempos” (1958, p. 53).

Os caligramas de Apollinaire não são todos escritos à

mão (nem o poeta só produziu caligramas), mas representam

uma “escrita-imagem (uma mistura de caligrafia e

ideograma)”, lembram a escrita infantil que mistura

desenhos e letras: “entretanto, longe de voltar para uma

certa ingenuidade que remeteria ao desejo de uma inocência

perdida, o caligrama possui o inigualável poder de erupção”

(Véronique Dahlet, 2008, p. 9).

98
(Apollinaire, 2008, p. 157)13

13
No original é possível ler o que Álvaro Faleiros traduz por:
“Encontrarão aqui / uma nova representação do universo / no que há de
mais próprio e / de mais moderno // o homem o homem o homem o homem...
// deixem-se levar / por esta arte / onde o sublime / [não... elege] /
o encanto / e o brilho / não confunde / a nuance // é a hora / agora
ou nunca / de ser sensível […]// bem terrivelmente” (Apollinaire,
2008, p. 156).

99
É a erupção da linearidade narrativa, mais uma vez. Em

seus temas, telefone, avião, automóvel, amor e

sensibilidade, representando o pensamento e a experiência

do tempo e do espaço em plena I Guerra Mundial.

Paulo Leminski não publicou poemas em caligrafia,

salvo a poesia grafitada em muros, como “Quem tem Q.I.

vai”, em alguma parede de Curitiba; e esta representação (e

defesa) do grafite, na seção “Sol-te”, de Caprichos &

Relaxos, que o poeta também andou escrevendo por aí.

(Leminski, 1983, p. 138)

O muro é o extrapolar da página, por um lado, o

basicamente artístico. E, por outro lado, o social, é a

popularização ao máximo da poesia, o que era estava na mira

do poeta curitibano.

As suas cartas ao também poeta Régis Boivicino têm um

quê de caligrama, visto que são textos datilografados, mais

ou menos em verso, cheios de intervenções posteriores

manuscritas (Cf. Leminski e Boivicino, 1999; e Rebuzzi,

2003). Trataremos delas no próximo capítulo. Mas aqui ainda

100
vale apresentar uma poesia bastante gráfica da mesma seção

“Sol-te”.

(Leminski, 1983, p. 132)

Essa poesia sem título é a única efetivamente composta

de figura e palavras. Os traços simples, tema dos versos,

pode ser visto também como um disco (LP), representando a

gravação da música, ou a própria produção intelectual –

principalmente porque Leminski também desenvolvia um

trabalho como compositor popular. E, se pensarmos na

questão da representação do real, ou da expressão do

concreto, o inseto que insiste ganhará outro sentido, muito

mais além. O inseto, razão do poema, esconde-se na sua

forma, ou esvai-se dela, à medida que só vemos o fenômeno:

só o traço existe.

Não estamos trabalhando juízo de valor em relação às

rupturas com a tradição literária. Entendemos que essas

rupturas, além de expressar outras tantas transformações

sociais (a constituição do capitalismo, suas mudanças de

101
fase, contradições, crises e guerras), tiveram

consequências, resultaram numa superação literária, na qual

Leminski se ambienta. Não podemos deixar, entretanto, de

observar que o que de um lado é positivo, de outro é

negativo, por exemplo, a partir do que aponta Valéry.

A vida moderna tende a poupar-nos o esforço


intelectual como o faz com o esforço
físico. Ela substitui, por exemplo, a
imaginação pelas imagens, o raciocínio
pelos símbolos e pela escrita ou por
mecanismos; e, frequentemente, por nada.
Ela nos oferece todas as facilidades, todos
os meios curtos para se atingir o objetivo
sem ter percorrido o caminho. E isso é
ótimo: mas muito perigoso. (Valéry, 1991
[1932], p. 121)

Não perderemos a perspectiva do “ótimo, mas muito

perigoso”. Mantemos a interpretação de as imagens e os

símbolos, ainda que Valéry tenha certa razão, também

favorecem não a economia de pensamento, mas a construção de

outras lógicas e outras reflexões. Não ignoramos,

entretanto, o que o autor aponta no que concerte à

substituição da imaginação por “nada”. As rupturas e

destruições do que existia vieram acompanhadas de criações

inventivas, mas também de radicalizações exacerbadas que

aparentemente conseguem destruir sem construir nada. David

Harvey fala da modernidade como implicando não apenas “um

rompimento impiedoso com toda e qualquer condição

precedente”, mas como “caracterizada por um processo sem-

102
fim de rupturas e fragmentações internas no seu próprio

interior” (Harvey, apud Hall, 2004, p. 16).

Os futuristas, por exemplo, que praticamente não

produziram literatura de destaque, alimentaram o movimento

com ideias e manifestos. Defendiam uma arte que expressasse

a guerra, como se o horror dela não bastasse: “Por que a

arte não pode ser senão violência, crueldade e injustiça”

(Marinetti, 1909, em Teles, 1987, p. 88); propagavam sem

pudor o fascismo. Ao mesmo tempo, vocalizaram a questão que

já mencionamos da transferência do referencial da poesia,

da realidade para o pensamento: “Nós inventaremos juntos

aquilo que eu chamo a imaginação sem fios. […] Será

necessário por isto, renunciar a ser compreendido” (idem,

p. 92). A imaginação sem fios, as palavras em liberdade, em

que pese suas impressões ou intenções iniciais, não

significariam não ser compreendido. Outras conexões

sintáticas se construíram a partir desse movimento e

radicalização inicial.

O dadaísmo, que lutou por não significar nada,

expressa ainda assim debates importantes: “Dadá é a

insígnia da abstração. / Eu destruo as gavetas do cérebro e

as da organização social” (Tzara apud Teles, 1987, p. 135).

O surrealismo dedicou-se a experimentar expressar o

automatismo do pensamento, independente de moral ou

preocupações estéticas, fugindo da razão.

103
Tzara e Marinetti representam o que há de mais

destrutivo da “literatura contra a literatura”, calcados no

individualismo e na guerra. Otto Maria Carpeaux diz que “em

última análise, essa guerra parecia absurda; e absurdas

serão as suas consequências” (Carpeaux, 1958, p. 101),

inclusive literárias.

Vejamos a poesia sem palavras (ou fonética) do

dadaísta Ludwig Kassak, que acaba sendo interessante por,

“com nada”, representar alguma coisa bem precisa.

Berr... Bum, bumbum, bum...


Ssi... Bum, papapa,bum, bumm
Zazzau... Dum, bum, bumbumbum
Prä, prä, prä... râ, äh-äh, aa...
Haho...
(Ludwig Kassak apud Teles, 1987, p. 127)

O título desse poema direciona a sua compreensão, mas

sem ele, podemos ainda assim identificar uma cena de

guerra; chama-se “A Batalha”. É um movimento de busca do

signo através da distensão dos significantes. Como

literatura, não deixa de conter certo absurdo. Mas é melhor

expressão dele a famosa “Receita de poema”, de Tristan

Tzara.

Pegue um jornal
pegue a tesoura
escolha no jornal um artigo do tamanho que
você deseja dar a seu poema
recorte o artigo
recorte em seguida com atenção algumas
palavras que formam esse artigo e meta-as
num saco

104
agite suavemente
tire em seguida cada pedaço um após o outro
copie conscienciosamente na ordem em que
elas são tiradas do saco
o poema se parecerá com você
e ei-lo um escritor infinitamente original
e de uma sensibilidade graciosa, ainda que
incompreendido do público
(Tzara apud Teles, 1987, p. 126)

O expressionismo (1910), em vez da fala, expressou os

gritos: “Nunca houve movimento literário mais noturno do

que este […]. Os poetas também falavam como que por meio de

raios: de maneira abrupta, inarticulada” (Carpeaux, 1958,

p. 82), o que foi interpretado como “literatura de gritos”.

O cubismo desmontou e remontou a realidade em formas

geométricas, explorando prismas de visão, ângulos. Seu

maior destaque é nas artes plásticas, tendo entre seus

“quadros”, por exemplo, Picasso, do qual Hauser faz uma

análise precisa.

O ecletismo de Picasso corresponde à


deliberada destruição da unidade de
personalidade; as suas imitações são
protestos contra o culto da originalidade;
a sua deformação da realidade, que está
sempre a revestir-se de formas novas, para
demonstrar com mais poder convincente o que
há nelas de arbitrário, pretende, acima de
tudo, confirmar a tese de que “natureza e
arte são dois fenômenos inteiramente
diferentes”. […] Picasso seleciona os meios
artísticos de expressão com o seu uso
indiscriminado dos diferentes estilos
artísticos tão integralmente e
obstinadamente como os surrealistas com a
sua renúncia às formas tradicionais.
(Hauser, 1972, p. 1124)

105
O autor coloca ainda, sobre o cubismo e o surrealismo

(que tem por ícone Salvador Dali), que

encontramo-nos num segundo mundo, um


supermundo que, por muitas feições da
realidade vulgar que possam manifestar,
representam uma forma de existência que
ultrapassa essa realidade e é incompatível
com ela (1972, p. 1119).

E essa incompatibilidade, essa “disformidade” entre

representação e representado, a deformação, representam o

contraditório que está presente em toda a arte moderna.

Expressam a tensão da Modernidade e do progresso

capitalista.

***

Todos esses movimentos (e outros que não mencionamos,

do mesmo período) são marcados pela conjugação de

contradições, pela busca de liberdade, pela ruptura com a

tradição literária e o passado histórico, e por uma forte

obsessão pelo novo. Segundo Berman (1987, p. 100), no

Manifesto comunista, “Marx equaciona as polaridades que

irão moldar e animar a cultura do modernismo do século

seguinte”; sua visão, evidentemente centrada nas questões

sociais, não deixa de anunciar o que vimos refletido nas

vanguardas literárias:

106
o tema dos desejos e impulsos insaciáveis,
da revolução permanente, do desenvolvimento
infinito, da perpétua criação e renovação
em todas as esferas de vida; e sua antítese
radical, o tema do niilismo, da destruição
insaciável, do estilhaçamento e trituração
da vida, do coração das trevas, do horror.
(Berman, 1987, p. 100)

“A perpétua criação e renovação em todas as esferas de

vida”, o novo: o que nos parece é que isto tem duas

medidas. A primeira delas é aquela que o torna mais uma

repetição. É o “novo pelo novo”, é a novidade da moda.

Enfim, é a sua dimensão esvaziada de protagonismo (muito

mais obsessiva que criativa). Esta dimensão se insere na

afirmação do mundo como ele está, na concordância com ele,

funcionando como um aperfeiçoamento do prolongamento do

mesmo, daquilo que já existe.

Essa representação da modernidade e do progresso, em

diversos textos, é associada por Benjamin à condenação ao

“inferno”. Pelas figuras de Sísifo (condenado a

infinitamente empurrar uma pedra até o cume de um morro e

vê-la rolar de volta à base) e de Tântalo (condenado a

permanecer num vale repleto de vegetação, água e alimentos,

sem poder saciar sua sede ou fome, ou seja, condenado à

eterna insatisfação), Benjamin caracteriza o inferno.

Para Benjamin, em Das passagen-Werk, a


quintessência do inferno é a eterna
repetição do mesmo […] Sísifo e Tântalo,
condenados à eterna volta da mesma punição.
Nesse contexto, Benjamin cita uma passagem

107
de Engels, que compara a interminável
tortura do operário, forçado a repetir sem
parar o mesmo movimento mecânico, com a
condenação de Sísifo ao inferno. Mas não se
trata apenas dos operários: toda a
sociedade moderna, dominada pela
mercadoria, é submetida à repetição, ao
“sempre igual” (immergleichem) disfarçado
em novidade e moda: no reino mercantil, “a
humanidade parece condenada às penas do
inferno”. (Löwy, 2005, p. 90)

Já havíamos mencionado que o capitalismo de tudo se

apropria, arranjando contornos de mercadoria mesmo para as

produções do pensamento e da sensibilidade. Benjamin aponta

também a figura do “anjo da história”, empurrado pelo

progresso a repetir o passado catastrófico; mesmo encarando

a catástrofe de perto, ele não consegue voltar.

Os gestos repetitivos dos operários são associados por

Benjamin aos do autômato, animado por um manipulador numa

caixa cênica (Cf. Löwy, 2005). Leminski, no início de seu

Metaformose, relendo a mitologia grega, diz:

Esta lenda [a de Narciso] é a pedra de


Sísifo, a pedra que Sísifo rola até o alto
da montanha, e a pedra volta, sempre volta,
penas de Hércules, trabalhos de Dédalo,
labirintos, lembra que és pedra, Sísifo, e
toda pedra em pó vai se transformar, e
sobre esse pó, muitas lendas se edificarão.
(Leminski, 1998, p. 15)

E é porque toda pedra em pós vai se transformar, que,

na parte mais filosófica do mesmo livro, Leminski retoma o

questão:

108
Como uma coisa deixa de ser ela mesma para
ser outra coisa?
Este será o grande problema da ciência
ocidental. O saber como, a explicação das
mudanças. Há constantes no fluxo das
metamorfoses. Descobrir essas constantes é
o supremo dever do intelecto humano. […]
Essências, metamorfoses: essas as matérias
primas com que trabalha o tão estável e
instável espírito humano. (Leminski, 1998,
p. 71)

O problema já habitava o pensamento dos gregos antes

mesmo de Sócrates, chegando a Hegel, a Marx, e intrigando

ainda hoje muita gente. Conhecer o movimento da

transformação pode significar intervir conscientemente

nele, e é aí que estamos. O novo também pode traduzir o

esforço de libertação da condição de autômato; esta é a

segunda dimensão dos “modernismos”.

Segundo Löwy, “os únicos momentos de liberdade são

interrupções, descontinuidades, quando os oprimidos se

sublevam e tentam se autoemancipar” (2005, p. 117). O

combate à tradição se mostrou capaz, em diversos momentos,

de interromper e descontinuar: “explodir o contínuo da

história”.

Se a revolução burguesa provou que é possível a

mudança radical do sistema social, as vanguardas artísticas

do século XX mostraram que não há o que não possa ser

representado; e, mais que isso, não há o que não possa ser

representado de várias formas, infinitas formas. Resta

109
saber se a humanidade será capaz de levar a cabo na

sociedade o que se esboçou na arte. Por enquanto, o

autômato conseguiu se libertar em alguns espetáculos, e os

operários lideraram importantes revoluções ao longo do

século XX. A ordem burguesa, entretanto e infelizmente,

persevera. Mas literatura definitivamente não é mais a

mesma.

No próximo capítulo, apresentaremos o conjunto da obra

de Leminski, com base nos conceitos que trabalhamos aqui,

aos quais fomos levados por Leminski – que fez de sua vida

poesia e da poesia sua militância contra o autômato, jamais

abdicando de ser sujeito da história.

110
Capítulo III

A POÉTICA DO RELÂMPAGO DE PAULO LEMINSKI

PAULO LEMINSKI
no nome Paulo eu leio pau e eu leio lua
e eu leio o kê não se lê se a alma é pekena ou se
a lei é mula no nome paulo leminski eu sou sim
e eu sou não e eu sou pluma um som ki pula pula
ali na mola ká na kama lá na lama ou ali na lona nua
eu leio Paulo Leminski em mim assim komo se lê poesia

Marcelino Freire

111
Fazia poesia, era isso que fazia. Paulo Leminski

buscou fundir vida e poesia, ser poeta e mais nada, todo o

resto acabando por ser mero detalhe. Queria transformar seu

corpo por inteiro em matéria poética: “apagar-me / diluir-

me / desmanchar-me / até que depois / de mim / de nós / de

tudo / não reste mais / que o charme” (1983, p. 66). Seus

escritos, de diversas ordens, são todos poéticos. Destacam-

se poesia, prosa e canções, mas seus ensaios, críticas,

biografias e traduções tampouco dispensam o tom da poesia.

Escreveu durante a vida toda, tendo percebido que era isso

faria ainda criança. Foi o principal personagem de si

mesmo, com suas línguas e paixões. Aqui, Leminski por ele

mesmo, em Caprichos & Relaxos:

(Leminski, 1983, p. 137)

112
Esse é seu único “foto-poema”, ou poema fotográfico,

como também foi referido. KAMIQUASE, uma de suas

autodefinições, que une a cultura oriental zen – com a qual

tinha imensa relação, tanto pela prática do judô (era faixa

preta), quanto pela literatura (foi tradutor e grande

admirador de Matsuo Bashô) –, o quase de quem hesita e

mestiça (como diria Leminski), e a explosão de suas formas

– referência inevitável, já que os pilotos japoneses que

explodiam seus aviões em ataques suicidas contra os navios

dos Aliados na II Guerra Mundial ficaram conhecidos como

kamikazes. A palavra kamikaze (do japonês) significa “vento

divino”, a autodefinição do poeta significaria “quase

divino”, ou “o deus quase”. Isto expressa perfeitamente uma

das características fundamentais de sua obra: a combinação

de capricho e relaxo, ou de rigor e espontaneidade, de luxo

e lixo, e ao mesmo tempo de erudito e popular. Está nessa

“composição” ou “montagem” sua volta ao mundo, da forma

mais simples e popular possível, o que para o autor era

fundamental: “O resultado deve ser raro, os ingredientes

têm que ser simples” (Leminski apud Leminski e Bonvicino,

1999, p. 194).

São inúmeras as poesias (e alguns contos) em que fala

explicitamente de si, define-se, avalia-se, recria-se,

imagina-se. Não poderíamos citar todas, mas algumas são

dignas de nota. Este é um de seus poemas mais conhecidos e

mais significativos:

113
lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça
(Leminski, 1983, p. 59)

É evidente a dimensão paradoxal na “mestiçagem” entre

pressa e preguiça, assim como é própria da pessoa Paulo

Leminski, que dá corpo à brasilidade mestiça de todos nós –

o pai era polonês, e a mãe negra, com descendência também

indígena e portuguesa. A mistura de diferenças e a oposição

entre contrários, que ora resultam em contradição, ora em

híbrido, ora em diluição homogênea, estão presentes em

absolutamente toda a sua obra.

Um desses paradoxos, que já conhecemos dos modernos, é

a relação entre universal e particular. Ou, mais

especificamente nesse poema, entre província e capital. Na

poesia de Leminski não encontraremos a grande selva urbana

de concreto, complexos industriais, carros ou multidões.

Encontraremos aquele que hesita, diante do império da razão

e contra tantas certezas; aquele que medita ouvindo a

chuva, enquanto outros vão à missa.

Sua existência se dá na relação paradoxal, prenhe da

combinação entre o provinciano e o resto do mundo, da

comunicação, do intercâmbio, da velocidade. Leyla Perrone-

Moisés diz que “ao assumir seu provincianismo, o poeta

114
deixa de ser provinciano, porque provinciano é justamente

aquele que nem desconfia” (2013 [1983], p. 400). A mágica

de Leminski está em saber quem é, mas reinventar-se sempre.

A mesma autora completa: “Leminski era transcultural:

polonês, caboclo e “japonês”, malandro e samurai,

provinciano e internacional” (ibid., p. 402). Tão

transcultural, que não deixa de manifestar a expectativa do

“lembrem de mim”, primeiro verso, que nos remete o paradoxo

entre efêmero e perene que envolve os poetas desde que o

mundo é mundo. A vida, a morte e o acaso enriquecerão esse

ponto na obra leminskiana.

Foram muitas as definições que lhe deram, como essa de

malandro-samurai, quando não era o próprio kamiquase quem o

fazia:

o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau e pedra
a fogo e pique
senão é bem capaz
o filhadaputa
de fazer chover
em nosso piquenique
(Leminski, 1983, p. 87)

O cachorro louco, pauloleminski, filhadaputa, aquele

capaz de fazer chover no piquenique dos outros, é o estraga

prazeres. É também o contraventor, o insubmisso, o

incontrolável. E o piquenique é o mesmo das pessoas na sala

de jantar, ocupadas em nascer e morrer, de “Panis et

115
circensis”, música de Caetano Veloso e Gilberto Gil (1968),

gravada foi pelos Mutantes e tornou-se ícone da

Tropicalismo. Na música o verso é “são ocupadas em nascer e

morrer”, não “estão”. Ou seja, trata-se daqueles na

condição existencial de não fazer nada além de nascer e

morrer, que não significa nada além da repetição do mundo,

em posição de comer bem seu jantar, ou seu piquenique. E o

cachorro louco subversivo realmente estava interessado em

acabar com essa festa.

Chamaram-lhe polilíngue paroquiano cósmico, beatnik

caboclo, caipira cabotino, malandro zen, metaformoso,

colecionador de guardanapos, bandido que sabia latim,

vampiro elétrico de Curitiba, lampiro-mais-que-vampiro, a

besta dos pinheirais. Este último “codinome”, também de sua

autoria: “Detesto poesia dita profunda. Estou cagando e

andando para a psicologia. / Não tenho psique. Sou apenas

uma besta dos pinheirais” (Leminski apud Leminski e

Bonvicino, 1999, p. 194). Pois era cercado de pinheiros que

vivia em Curitiba, capital do estado do Paraná, sul do

Brasil, clima subtropical, que tudo move a vento.

moinho de versos
movido a vento
em noites de boemia

vai vir o dia


quando tudo que eu diga
seja poesia
(Leminski, 1983, p. 58)

116
Na última estrofe, a maior utopia desse poeta; nos

primeiros, uma boa contextualização: boêmio, noturno – mais

que moinho, ele mesmo era uma usina de versos movida pelo

espírito. Haroldo de Campos apontará, como elemento da

poesia de vanguarda, a “função metalinguística”, que

encontramos no que podemos chamar de “Leminski personagem

de si mesmo”.

Na poesia de vanguarda, então, o poeta,


além de exercitar aquela função poética por
definição voltada para a estrutura mesma da
mensagem, é ainda motivado a poetar pelo
próprio ato de poetar, isto é, mais do que
por uma função referencial ou outra, ele é
completamente movido por uma função
metalinguística: escreve poemas críticos,
poemas sobre o próprio poema ou sobre o
ofício do poeta. (Campos, H., 1972, p. 152-
153)

Para Leminski, não há poesia sem metalinguagem. O

referencial na realidade e a “mensagem” não estão

proibidos, mas foram completamente rebaixados. É por isso

que em várias oportunidades o poeta nega a literatura:

“Ficção é literatura, poesia não” (Leminski apud Leminski e

Bonvicino, 1999, p. 194). Identifica assim a “literatura”

com a tradição literária, combatendo-a. No prefácio que

escreveu para a mostra “X poetas e uma geração possível”,

entre os critérios e requisitos para ser um desses poetas,

encontra-se: “repúdio da ‘literatura’: poesia/signo/VIDA”.

Se a poesia não for impregnada de signo e vida, para ele,

117
não será poesia: “Quem escreve como se escrevia há vinte

anos atrás sai de livros de literatura, não da vida.

Inovar! Aprendam com a vida, que é mãe inesgotável de

processos, formas e estruturas” (Leminski, ibid., p. 198).

Veremos neste capítulo a poesia da vida de Paulo Leminski.

118
3.1 – O poeta nascido na Pororoca

Poesia é a liberdade da minha linguagem.


Paulo Leminski

As Vanguardas da Europa e o Modernismo no Brasil

estavam plenamente de acordo num ponto: era preciso superar

a literatura vigente (fosse destruindo-a, fosse

transformando-a). Também concordavam em algumas “técnicas”

do como fazê-lo: o verso livre, as palavras em liberdade,

formas telegráficas, às vezes agressividade. As

características da literatura que produziram, em linhas

gerais, são compatíveis.

A caracterização geral da poesia moderna,


feita por um crítico inglês, pode ser
utilizada para definir a que foi defendida
e praticada pelos modernistas brasileiros:
simultaneidade, condensação, imagens
vívidas e fusão de elementos diversos.
(Candido e Castello, 1968, p. 18)

Os contextos de suas atuações eram, entretanto,

definitivamente diferentes. A liberdade inspirava

essencialmente os vanguardistas na Europa, contra toda a

tradição literária e social. O caráter destrutivo de suas

experimentações ganhou imensa força.

O dadaísmo, o mais radical dentre os


movimentos da vanguarda europeia, não

119
exerce mais uma crítica às tendências
artísticas precedentes, mas à instituição
arte e aos rumos tomados pelo seu
desenvolvimento na sociedade burguesa. Com
o conceito de instituição arte deverão ser
designados tanto o aparelho produtor e
distribuidor de arte quanto as noções sobre
arte predominantes num certo período, e
que, essencialmente, determinam a recepção
das obras. (Bürger, 2012, p. 52)

Para Bürger, a vanguarda europeia, através de um

processo de autocrítica, consegue libertar a arte da práxis

vital, dando lugar à real experiência estética (que acabará

sendo assimilada pela sociedade burguesa). E essa

autocrítica se torna, por exemplo com o Dadaísmo, uma ação

contra a instituição arte em si mesma. Ou seja, se, segundo

“dadá”, qualquer coisa é arte, então tudo é arte, e nada é

arte. A arte não existe: é tudo uma brincadeira ou uma

bobagem.

O Modernismo brasileiro tem outro problema nas mãos.

Sua libertação da tradição literária significa a

emancipação da colonização, do discurso eurocêntrico, da

cultura e da lógica vindas de fora. Isso se dá num ambiente

nacional que composto por uma cultura indígena originária,

outra afrodescendente e uma terceira já resultante da

mistura dessas primeiras entre si e com a dos

colonizadores, que até então é negada através da afirmação

da cultura europeia mais “pura”. Na arte modernista

brasileira não é possível separar o ímpeto destrutivo do

construtivo. Trata-se do problema de fundar uma arte

120
genuinamente nacional, expressiva da “brasilidade”. Isto

num país, é preciso dizer, onde algo como 75% da população

era analfabeta. Antes de se preocupar com o refinamento do

gosto, o artista brasileiro lidava com o desinteresse geral

pelas artes, e com a grande inacessibilidade às Letras, num

contexto evidente de elitização da arte e afastamento dela

das massas (cf. Candido, 2006, p. 95 e p. 144).

A Semana de Arte Moderna de 1922 ocorre em meio a um

momento político de radicalização, para a esquerda e para a

direita, e “a comoção das velhas estruturas sociais

favorece o desejo de descrever e esquadrinhar a realidade

social e espiritual do País” (Candido e Castello, 1968, p.

8). A arte finalmente ganha status de “expressão legítima

da nossa sensibilidade e da nossa mentalidade” (idem) – e

era preciso fazer por merecê-lo. O Brasil passava a

conjugar potência moderna e subdesenvolvimento, entrava na

era industrial, de progresso socioeconômico acelerado, o

proletariado se tornava numeroso e “passou a exigir sua

participação na vida política” (id., ibid., p. 9).

O Modernismo revela, no seu ritmo


histórico, uma adesão profunda aos
problemas da nossa terra e da nossa
história contemporânea. De fato, nenhum
outro momento da literatura brasileira é
tão vivo sob esse aspecto: nenhum outro
reflete com tamanha fidelidade, e ao mesmo
tempo com tanta liberdade criadora, os
movimentos da alma nacional. (Candido e
Castello, 1968, p. 9)

121
Principalmente esse princípio de olhar para si mesmo,

expressar a sua realidade social e popular (extremamente

diversa), diferencia os vanguardistas brasileiros dos

europeus. A expressão que Leminski dá a esse fenômeno nos

faz pensar num híbrido, não só de universal e particular,

mas também de coletivo e individual, que aparecerá em

diversos momentos de sua obra:

incenso fosse música

isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
(Leminski, 2013, p. 229)

Esse poema é de Distraídos venceremos, provavelmente a

obra poética mais madura do poeta. É inegável que, mesmo

compartilhando o mesmo princípio de libertação, o uso da

liberdade conquistada por ambos os movimentos vanguarditas,

e pelos que vieram depois deles, terá resultados bastante

diferentes.

O que os unificava [os modernistas


brasileiros] era um grande desejo de
expressão livre e a tendência para
transmitir, sem os embelezamentos
tradicionais do academicismo, a emoção
pessoal e a realidade do País. Por isso,
não se cansaram de afirmar (sobretudo Mário
de Andrade) que a sua contribuição maior
foi a liberdade de criação e expressão.
(Candido e Castello, 1968, p. 9)

122
Essa contribuição é instransponível, definitiva.

Animada pelos europeus, mas significada no contexto

nacional. No Brasil, a fusão de elementos, por exemplo,

será de outros elementos. O trabalho no campo da linguagem

será marcado pela revelação do coloquial, do falar

brasileiro em oposição ao falar português. Segundo Antonio

Candido, “as nossas deficiências, supostas ou reais, são

reinterpretadas como superioridade” (2006, p. 127). E isso

realmente começa a “nos levar além”. A estratégia dos

modernistas será o

apelo às camadas profundas do inconsciente


coletivo e pessoal. O nosso Modernismo
importa essencialmente, em sua fase
heroica, na libertação de uma série de
recalques históricos, sociais, étnicos, que
são trazidos triunfalmente à tona da
consciência literária. Este sentimento de
triunfo, que assinala o fim da posição de
inferioridade no diálogo secular com
Portugal e já nem o leva mais em conta,
define a originalidade própria do
Modernismo na dialética do geral e do
particular. (id., ibid., p. 127)

A dialética do universal e do particular se expressará

em linguagem, formas e visão de mundo daí em diante na

literatura nacional de criação. Buscaram e conseguiram

inspirar a transformação da sensibilidade, de modo a

interessá-la o novo espírito: “Cria o teu ritmo livremente”

– foi como Ronald de Carvalho (apud Candido, 2006, p. 129)

assinalou o novo estado de espírito; note-se o pronome

123
possessivo “teu”, que particulariza o ritmo universalmente

libertado.

pariso
novayorquizo
moscoviteio
sem sair do bar

só não levanto e vou embora


porque tem países
que nem chego a madagascar
(Leminski, 1983, p. 90)

É tanta liberdade, que dá pra ir ao mundo todo sem

sair do bar, num só gole de linguagem. Por trás desses

verbos inventados, claramente um “anarquizo” – o que o

autor adorava fazer. Ademir Assunção diz que Leminski

inventa neologismos, provoca deslocamentos


semânticos, com os substantivos assumindo
outra função, desestabiliza o discurso
lógico e iconiza o estado de embriaguez, o
próprio poema parece estar bêbado. E ainda
insere, entre os pequenos acidentes
etílicos dos versos, uma de suas marcas
registradas: o humor, o nonsense.
(Assunção, 2004, p. 35)

Se Rimbaud observou que novos conteúdos necessitavam

novas formas, não foi difícil perceber que a própria forma

pode ser conteúdo; assim Leminski leva bateau ivre ao poema

bêbado, e outras duas características importantes de sua

obra se evidencia, como bem coloca Assunção: o humor e o

nonsense, muitas vezes interligados. E neste ponto,

Leminski deve muito aos modernistas. Oswald de Andrade

124
certamente lhe deixou pomposa herança em forma de humor,

nonsense, provérbio e charada.

Entretanto, Leminski surge na cena poética um pouco

depois, quando já era o tempo do concretismo, que se

intitulava, este sim, o primeiro movimento literário

brasileiro original, “um movimento de vanguarda de trânsito

nacional e internacional, não subsequente a movimentos

europeus análogos” (Campos, H., 1972, p. 156). Leminski

aparece aos 18 anos (sujo e com uma garrafa de conhaque na

mão, tendo ido de carona desde Curitiba), em 1963, na

Semana Nacional de Poesia de Vanguarda (em Belo Horizonte),

onde conhece Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio

Pignatari, os poetas que, o longo de sua vida, iria chamar

de “os patriarcas” (Cf. Leminski e Bonvicino, 1999).

Não demorou a declarar-se poeta concreto, mais

concreto que os outros, porque já tinha nascido concreto

(Guimarães, 2008, p. 67). Foi um momento (bastante visível

em Caprichos & Relaxos), mas ilustra uma aproximação que

para Leminski será fundamental no caminho da ruptura e da

subversão. Em suas palavras sobre o movimento concretista:

“aquelas vanguardas [anos 1950, 60] que mexeram com o

tecido das coisas. Depois disso, tudo se tornou lícito”; em

seguida, falando de Augusto de Campos e outros, diz que

“são poetas que conduzem a língua aos extremos limites de

expressão dela” (Leminski, 1987b, p. 289). O próprio

Leminski perseguiu esses “extremos limites de expressão” no

125
fazer de toda a obra. Como mencionamos no primeiro

capítulo, Eduardo Milán diz que Leminski “concretizou a

existência, existencializou a concretude, viveu a forma.

Tomou-se como referente da palavra como se ele mesmo fosse

uma forma ou o estado de uma forma em transição, em

processo” (2004, p. 21).

O Concretismo certamente foi uma experiência estética

muito mais radical que o Modernismo. Segundo Eugen

Gomringer, “a poesia concreta é o capítulo estético da

formação linguística universal de nossa época” (Gomringer

apud Campos, H., 1972, p. 160). Essa experiência fascinou o

poeta curitibano: “o que sempre gostei na coisa concreta

foi a loucura que aquilo representa, a ampliação dos

espaços da imaginação e das possibilidades de novo dizer,

de novo sentir, de novo e mais expressar” (Leminski apud

Leminski e Bonvicino, 1999, p. 25).

Esse “capítulo estético” que o Concretismo representa

pode ser ilustrado, por exemplo, pela comparação entre

Baudelaire e Bonvicino (poeta paulista íntimo de Leminski,

com quem ele trocou correspondências por anos,

posteriormente publicadas, como veremos). Baudelaire trouxe

a vida moderna na cidade para dentro do poema, o cotidiano,

as contradições da Modernidade, como já debatemos. Também

os modernistas almejavam ser atuais, “exprimir a vida

diária, dar estado de literatura aos fatos da civilização

moderna” (Candido e Castello, p. 10). Em lugar da Paris do

126
século XIX, Régis Bonvicino mostra-nos a São Paulo da

década de 1970/80, no poema “oO”.

oO sSiILêÊnNcCiIoO
gGrRiItTaA pParRaA
oO oOlLvViIdDoO
eExXpPeErRiImMeEnNtTeE
oO aAbBsSuUrRdDoO sSoOmM
dDeE uUmMaA cCiIdDaAdDeE
(Bonvicino apud Leminski e
Bonvicino, 1999, p. 181)

No concretismo, as contradições modernas ganham o

contorno dos edifícios da selva urbana, do barulho e do

movimento visual. A linearidade é atrapalhada pelo

amontoamento de letras que querem todas se expressar de uma

só vez, num texto confuso, absurdo e impossível, ao mesmo

tempo que claro.

Leminski embarcou inicialmente na canoa dos concretos,

contudo, sua literatura não se encaixa em nenhum movimento:

não é modernista, não é concretista, não é tropicalista,

nem marginal. É todas essas coisas de forma única. Diz que

“vivemos numa época total. Não tem mais essa de passado,

presente e futuro. Artisticamente, vivemos a

contemporaneidade absoluta” (Leminski apud Leminski e

Bonvicino, 1999, p. 24). Vejamos a síntese perfeita de

Maria Esther Maciel:

O presente sempre foi a matéria-prima das


poesias de Paulo Leminski. Não um presente
em que se elidem passado e futuro, mas um

127
ponto de confluências temporais. Onde a
memória do mundo se inscreve e se dissolve,
em interseção com o registro imediato da
vida cotidiana. Onde tradições e dicções
distintas se encontram, se negam e se
afirmam em pluralidade. Isso porque o agora
que o poeta dissemina em seus poemas já não
se circunscreve ao topos da modernidade
demarcada por pactos coletivos, movimentos
estéticos organizados e princípios
programáticos. O seu é o tempo vivo, em
permanente reinvenção, do qual soube
extrair uma voz própria, feitas de
distintas modulações. (Maciel, 2004, 171)

A esse tempo e espaço de confluência no presente,

Leminski nomeou “Pororoca”. Tratava-se do “encontro entre a

poesia concreta paulista e a tropicália baiana”.

Para mim, esse encontro é o mais importante


acontecimento da cultura brasileira nos
últimos dez anos. A poesia concreta é
cartesiana. A tropicália é brasileira. O
atrito entre essas duas realidades revelou-
se riquíssimo. O encontro do mar com o rio.
Amazonas versus Atlântico. (Leminski apud
Leminski e Bonvicino, 1999, p. 207)

No encontro das águas, que vêm de bacias hidrográficas

longínquas estão a mistura (mestiçagem) e o atrito sobre os

quais se fundará a poética leminskiana. Esse atrito é fogo,

relâmpago, gozo: “tudo / sucede súbito // eu não faço /

expludo”, escreve Leminski Caprichos & Relaxos (1983, p.

127), colocando numa só forma o “explodir tudo” – expludo,

seu Big Bang particular.

Na apresentação de A linha que nunca termina (2004),

André Dick e Fabiano Calixto colocam que “Leminski

128
conciliou o erudito e o popular, o carnaval e a bossa-nova,

a Tropicália e a poesia concreta, o ruído do rock n’ roll e

o silêncio do pensamento zen. Provocador dos mais

elétricos” (Dick e Calixto, 2004, p. 13). Provocador

kamiquase mergulhando fundo na Pororoca.

129
3.2 O capricho e o relaxo do malandro faixa-preta

O poema não é uma forma literária, mas o


lugar de encontro entre a poesia e o homem.
Octavio Paz, O arco e a lira

Leminski é conhecido principalmente como poeta. Seus

livros de poemas são oito, a começar por Quarenta clics em

Curitiba (1976), obra claramente inicial. Depois vieram

Polonaises e Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e

era quase, os dois em 1980, que posteriormente foram

republicados, com alguns cortes, como seções de Caprichos &

Relaxos (1983) – em cuja apresentação encontramos uma

introdução a toda a sua obra poética: “Aqui, poemas para

lerem, em silêncio, / o olho, o coração e a inteligência. /

Poemas para dizer, em voz alta. / Poemas, letras, lyrics,

para cantar. / Quais, quais, é com você, parceiro”. Tal

livro, em nossa opinião, é seu trabalho mais importante e

original, concordando com Fabiano Calixto.

Caprichos & relaxos é um livro-síntese.


Síntese de uma paixão pela poesia, pela
vida e de uma devoção exemplar. Um livro
que é sempre novidade, pelo seu caráter
originalíssimo. A hesitação entre o
capricho e o relaxo, cujas fronteiras ditam
escolhas fundamentais para a construção de
uma obra, levaram Leminski a uma exploração
ostensiva daquilo que ele sempre procurou:
a poesia – a coisa mais importante para
quem é poeta. (Calixto, 2004, p. 134)

130
Em vida, Leminski ainda publicou Distraídos venceremos

(1987), talvez sua obra mais “madura e equilibrada”, e

deixou organizados La vie en close (1993) e O ex-estranho

(1996). Sua obra poética completa compõe o Toda poesia

(2013), volume com mais de 400 páginas, em que se

acrescentaram aos livros alguns poemas inéditos.

Publicou apenas dois “romances”, um deles bastante

importante, Catatau (1975), prosa poética, experimental; um

tanto ilegível (argumentariam alguns), um “romance-ideia”

(subtitularia o autor). Sua outra narrativa, Agora é que

são elas (1984), de menor projeção, segue o tom de

experimento. É tão experimental e desagradou tanto à época

que o próprio Leminski deixou de defendê-la, mas esse

“romance contra o romance” tem certamente seu valor. Há

ainda o texto Metaformose, uma viagem pelo imaginário grego

(1995), que se constrói entre a prosa poética e o ensaio,

contando com uma seção filosófica; e a fábula infanto-

juvenil Guerra dentro da gente (1986).14 Escreveu também as

biografias de Cruz e Souza, Matsuo Bashô, Jesus Cristo e

Leon Trotsky, reunidas em seguida no volume Vida

(republicado em 2014).

Poucos sabem que escreveu contos. Um texto solitário

foi produzido na década de 1960 e é considerado o embrião

14
O autor conta com outros dois trabalhos infanto-juvenis, de poemas
reeditados. Trata-se de “A lua foi ao cinema” (1989), poema de
Distraídos venceremos (1987) que ganhou ilustração de Alonso Alvarez,
e, mais recentemente, uma seleção de poemas de Leminski compôs o
infantil O bicho alfabeto (2014), ilustrado por Ziraldo.

131
do Catatau: chama-se “Descartes com lentes” (1993[1969]).

Somente em 2004, quinze anos após sua morte, quando

completaria 60 anos, veio a público o volume intitulado

Gozo fabuloso. O título fala da poética leminskiana, agora

editada em narrativas curtas.

Produziu uma obra crítica um tanto esparsa, publicada

em jornais e revistas, e em publicações de ensaios, o que

finalmente (ainda não em sua completude) em Ensaios e

anseios crípticos (2011). Compôs canções, pichou versos em

muros, foi faixa preta no judô, professor de história,

publicitário e tradutor poliglota (de livros escolhidos a

dedo por ele mesmo; cf. Dick e Calisto, 2004, p. 402).

Resta-nos constatar que deu voz à própria voz de todas as

(muitas) maneiras que pôde.

Vale mencionar que Paulo Leminski foi um poeta

militante. Não se organizou em partido, movimento político

ou algo que o valha, sua militância se dava no campo da

estética, ainda que jamais se dissociasse do resto da vida.

Declarou-se marxista (ou zenmarxistaconcretista), ainda que

depois tenha se afastado dessa nomenclatura por achar as

correntes políticas da esquerda demasiado obtusas e

impositivas (no que tinha toda a razão). Entretanto, não

abandonou nunca a atividade sempre transformadora (e

“metamorfósica”), a consciência revolucionária: “me

enterrem com os trotskistas / na cova comum dos idealistas

/ onde jazem aqueles / que o poder não corrompeu // me

132
enterrem com meu coração / na beira do rio / onde o joelho

ferido / tocou a pedra da paixão” (“para a liberdade e

luta”, Leminski, 1983, p. 54).

Como militante poético foi duro contra a literatura

“tradicional”, como pontua Joca Reiners Terron.

Era contra o moinho de vento do realismo


requentado que se insurgiram os bigodões de
Paulo Leminski, claro em frases como:
“(...) está sendo muito pequeno o
contributo do conto para o progresso do
texto de imaginação entre nós.”, ou “Essa
nossa emergente prosa de ficção apresenta
nível de redundância e banalidade
estrutural só comparável ao soneto do
passado”. (TERRON, 2004, p. 179. Supressões
de texto originais.)

Não há dúvida de que, para Leminski, fazer poesia no

seu tempo, escrever no seu tempo, é transgredir a ordem

tradicional imposta – seja na arte, seja na sociedade; é

combater e superar a “redundância e banalidade estrutural”.

De toda sua obra, nem as biografias são usuais, os contos

têm em comum o incomum. O autor soube encontrar o caminho

da subversão em tudo que produziu.

A obra de Leminski é especialmente caracterizada pelo

diálogo com as outras artes, certamente com aquelas da

imagem – desenho, pintura, arquitetura – e com a música.

É preciso considerar, para compreender a


natureza e a eficácia do verso livre
modernista, que ele corresponde a uma
alteração profunda da música contemporânea,

133
ao impressionismo musical, ao atonalismo,
ao uso sistemático da dissonância, à
divulgação do jazz, à dodecafonia. (Candido
e Castello p. 20-21)

As profundas alterações de verso e música que os

modernistas promoveram, dando margem ao jazz e à bossa

nova, por exemplo, renderam frutos a Leminski. Diversas de

suas poesias foram musicadas, e ele mesmo compôs canções

com parceiros como Moraes Moreira, Itamar Assunção e outros

(cf. Dick e Calixto, 2004, p. 407-409); além daquelas

apenas suas, como “Verdura”, uma das mais conhecidas, que,

gravada por Caetano Veloso (1981), alçou Leminski

nacionalmente ao posto de compositor na Música Popular

Brasileira.

De repente
me lembro do verde
da cor verde
a mais verde que existe
a cor mais alegre
a cor mais triste
o verde que vestes
o verde que vestiste
o dia em que te vi
o dia em que me viste

De repente
vendi meus filhos
a uma família americana
eles têm carro
eles têm grana
eles têm casa
a grama é bacana
só assim eles podem voltar
e pegar um sol em Copacabana
(Leminski, 1983, p. 84)

134
Paul Valéry disse que “Rimbaud inventou ou descobriu o

poder da ‘incoerência harmônica” (apud Campos, H., 1972, p.

19). As harmonias de Leminski podem ser simples, mas sua

poesia é completamente dissonante. Em “Verdura”, ouvem-se

duas cenas desconectadas e ligadas ao mesmo tempo.

Introduzida pelo bom-humor do brasileiro cheio da verde

esperança nacional (verdura que alimenta) e por uma pitada

de romance, vê-se a desastrada realidade social do país.

Revela-se que esperança é de que os filhos possam desfrutar

o que de melhor a pátria tem a oferecer, sol em Copacabana.

O caminho, entretanto, é tortuoso; é a negação de si. Do

mesmo modo, está explicita a crítica ao tão difundido

american way of life, ridicularizado pela imagem da família

tradicional, que não oferece nada além de casa, carro,

grana e grama bacana.

Do amor à primeira vista, às trevas. É o corte

cinematográfico, a fragmentação da narrativa, a eliminação

da conjunção. O tom de uma poética, seguramente, do corte

do de repente: a poesia de Leminski se caracteriza pelo

susto, o espanto, o arrepio, como um relâmpago. É nesse

feixe de luz que está o elemento do desejo, o gozo. Para o

poeta, não há literatura senão a criativa, imaginativa, e

esta não existe sem “arrepio”. Nas palavras do próprio, “a

poesia é a surpresa, é o antidiscurso” (Leminski apud

Lopes, 2004, p. 51), ou, mais claramente, “poesia é quando

135
sai faísca do papel” (id., ibid., p. 52). O jogo é rápido e

certeiro.

Seu texto e sua existência parecem


configurar o que de rápido, movente e
conciso o poeta herdou da síntese do hai-
kai, da velocidade da publicidade, do ritmo
da música pop e dos poetas provençais, da
precisão dos golpes do judô. […]
Essa herança potente – de síntese,
velocidade, ritmo, precisão e intuição –
possibilitou ao autor o exercício de uma
letra veloz que a tudo relê, reconstruindo
signos e refazendo o texto da tradição
literária. (Soares, 2003, p. 68)

Leminski não é rápido só porque seus poemas em maioria

são curtos, mas porque as conexões lógicas, ilógicas e

poéticas que propõe são “de repente”; e geniais, como “Quem

tem Q.I. vai”. Tampouco o haicai é fundamental na obra de

Leminski porque recorrentemente o autor escreve poemas em

estrutura de haicai, mas pela síntese que representa em

Leminski, que está em sua poética do início ao fim. A

síntese é essa velocidade nascida de haicai e modernidade,

que é expressa às faíscas, raios e relâmpagos, n’“o tempo /

entre o sopro / e o apagar da vela” (Leminski, QCSC, 2013,

p. 23). São fagulhas do tempo intenso da descontinuidade,

como “um susto de quem se perde / no exato lugar onde está”

(id., ibid., p.). O poema “objeto sujeito” traz o tema do

tempo:

136
você nunca vai saber
o que vem depois de sábado
quem sabe um século
muito mais lindo e mais sábio
quem sabe apenas
mais um domingo
(Leminski, 2013, p. 229)

Entender a história como aberta significa, antes de

tudo, saber que a ela se dá repetição e continuidade; ou,

no exercício da liberdade e da subversão, pode-se “explodi-

la”. Significa também assumir não só as inúmeras

possibilidades de futuro, mas também de passado, se nos

dispusermos a resgatar a história dos vencidos, dos

massacrados e dos silenciados – considerando que outros

desenvolvimentos da história eram possíveis.

Sobretudo em suas narrativas, Leminski ocupa-se de dar

voz a quem normalmente não tem. Os contos de Gozo fabuloso

(2004a) trazem personagens de todas as partes do mundo,

trabalhadores, sertanejos, gente do campo, da selva, faraó

e escravo da Antiguidade, entre tantos outros: todos podem

ter voz. Nesta sociedade, não têm, mas na literatura

leminskiana ganham protagonismo os que estão normalmente

fora de cena. Afinal, amanhã pode ser domingo, mas pode ser

completamente outra coisa que criemos, como o poeta cria

poesia.

Leminski trabalha com várias línguas simultaneamente.

Nas poesias, pelo menos francês, espanhol, inglês e latim.

Nas narrativas curtas, acrescentem-se desde quéchua a

137
hieróglifo, sem falar no Catatau, quem tem como língua base

o português seiscentista. São personagens, línguas,

culturas: diversos universos trazidos à tona

simultaneamente. Claramente, trata-se da “fusão de

elementos diversos”, criando novas relações, ainda que essa

fusão mantenha particularidades, chame a atenção para elas,

em vez de dissolvê-las.

A história aberta está no mesmo contexto da não

linearidade, evidentemente, e ainda da simultaneidade, da

polifonia e do fragmentário. Haroldo de Campos (1972, p.

152) diz que “a não linearidade, a estética do fragmentário

e do prismático” que encontramos em Mallarmé passa pelo

futurismo e pelo cubismo, chegando ao concretismo. Sem

dúvida chegando a Leminski. O autor remete-nos a Lacan para

discutir a poesia.

Como escreve Lacan, […] “toda nossa


experiência vai contra essa linearidade”;
“tem-se apenas que prestar atenção à
poesia, coisa que talvez Saussure não
estivesse habituado a fazer, para ouvir uma
verdadeira polifonia emergindo, para
reconhecer que de fato todo discurso se
alinha nas várias pautas de uma partitura”.
(Campos, H., 1972, p. 152)

Assim, a poesia seria especificamente o que não é

linear, o que é em si descontinuidade, intensidade,

multiplicidade, e ambiguidade. Maurice Blanchot define que

“a essência da literatura escapa a toda determinação

138
essencial, a toda afirmação que a estabilize ou mesmo que a

realize; ela nunca está ali previamente, deve ser sempre

reencontrada ou reinventada” (Blanchot, 2005, p. 294). Se

precisa ser reencontrada e reinventada, é porque a forma

poética não opera no campo da clareza comunicacional, mas

no da ambiguidade. A ambiguidade que domina a função

poética da linguagem.

Não se entenda porém a palavra ambiguidade


numa acepção vinculada aos preceitos da
poesia simbolista, como sinônimo de
vagueza, imprecisão, ou,
conteudisticamente, como invólucro de
“sentimentos inarticulados”. Trata-se aqui
de uma ambiguidade operacional, que põe em
discussão o código na língua e as
expectativas criadas por seu uso normal,
revelando-lhe possibilidades insuspeitas.
(Campos, H., 1972, p. 146)

É dessas possibilidades insuspeitas que Leminski se

vale em poema ou narrativa, e dela que ele fala quando se

refere à “linha que nunca termina” (verso que nomeará

importante coletânea crítica sobre o autor – cf. Dick e

Calixto, 2004).

Vim pelo caminho difícil,


a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
(Leminski, 2013, p. 178)

139
Porque a poesia nunca termina de significar, nunca se

fecha: “Signos, sonhos, sombras, imagens, / ninguém vai

nunca saber / quantas mensagens nos trazem” (ibid., p.

252). A poesia que nunca termina de significar é o fogo,

que só existe enquanto queima. É o clarão do raio, no

instante em que não se sabe bem o que está acontecendo:

“tudo claro / ainda não era o dia / era apenas o raio”

(id., ibid., p. 240). A poesia clareia e turva, no que

deforma e reforma a realidade e o pensamento. Nada está

claro: está é vivo, aceso. Sobre o fenômeno, Octavio Paz,

em O arco e a lira, sintetiza o que tentamos evidenciar

aqui.

Através do poema vislumbramos o raio fixo


da poesia. Esse instante contém todos os
instantes. Sem deixar de fluir, o tempo se
detém, repleto de si. Objeto magnético,
secreto lugar de encontro de forças
contrárias, graças ao poema podemos chegar
à experiência poética. (Paz, 1986, p. 29)

O autor defenderá que a experiência poética, a poesia,

ultrapassa o poema, ultrapassa a literatura, estando em

toda obra de arte. Assim, a caracterização da própria arte,

a afirmação de sua existência, confunde-se com a presença

poética, com a poesia da obra – sem a qual não há obra (cf.

Paz, 1986). Não são, portanto, os gêneros, os temas, as

formas, mas a poesia, em raio fixo e tempo repleto de si,

que configuram a essência da obra de arte.

140
Valéry, por sua vez, dirá que “o princípio essencial

da mecânica poética – ou seja, das condições de produção do

estado poético através da palavra – é […] essa troca

harmoniosa entre a expressão e a impressão” (1991, p. 213).

E a impressão é particular, não vai junto com o poema.

Falando das Vanguardas Europeias, o autor observará o mesmo

fenômeno: “Perceberam que a transmissão de um estado

poético que conduz todo o ser sensível é uma coisa

diferente que a de uma ideia. Compreenderam que o sentido

literal de um poema não é, e não realiza, toda sua

finalidade” (Valéry, 1991, p. 185). Desse modo, a poesia

não pode ser “única”, ela vai se metamorfoseando ao passar

pelos olhos de quem lê, desde que acesa, isto é, desde que

seja poesia. Segundo Octavio paz, “O poeta o cria [o

poema]; o povo, ao recitá-lo, recria-o” (1986, p. 47),

confluindo, em termos gerais, com o pensamento de Valéry,

acrescentando-lhe a necessária dimensão do tempo poético:

Há uma característica comum a todos os


poemas, sem a qual nunca seriam poesia: a
participação. Cada vez que o leitor revive
realmente o poema, atinge um estado que
podemos, na verdade, chamar de poético. […]
O poema é mediação: graças a ele, o tempo
original, pai dos tempos, encarna-se num
momento. A sucessão se converte em presente
puro, manancial que se alimenta a si
próprio e transmuta o homem. A leitura do
poema mostra grande semelhança com a
criação poética. O poeta cria imagens,
poemas; o poema faz do leitor imagem,
poesia. […] Pois o poema é via de acesso ao
tempo puro, imersão nas águas originais da

141
existência. A poesia não é nada senão
tempo, ritmo perpetuamente criador. (Paz,
1986, p. 30-31)

Ainda sobre o mesmo ponto e sem destoar, Antonio

Candido traz a perspectiva social dessa compreensão

(expressada por Valéry e Paz): “A obra não é produto fixo,

unívoco ante qualquer público; nem este é passivo,

homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois

termos que atuam um sobre o outro, […] para configurar a

realidade da literatura atuando no tempo” (2006, p. 84).

Candido não nos deixa perder a ideia de que, nem a ação do

poeta, nem a ação do leitor são apenas individuais.

Certamente o são, mas também são sociais, de dentro de sua

realidade material, social, histórica. Poderá atuar de

muitas maneiras o artista, poderá provocar ou não o efeito

desejado no público. De qualquer forma, a poesia depois de

“pública”, deixa de ser privada, deixa de obedecer à ordem

do poeta para recriar-se em outros seres, independentemente

da consciência que qualquer uma das partes tenha de tal

fenômeno, ou de suas intenções.

Na concepção concretista de Haroldo de Campos, “o

poeta é um designer da linguagem, […] o poeta é um

diagramador da linguagem, tirando especial partido, no

campo onde a função poética é a dominante, das

virtualidades desses constituintes icônicos” (Campos, H.,

1972, p. 142). Se é verdade que a poesia de Leminski era

142
“musical”, como já vimos, e “desenhada” com imagens

finamente diagramadas no campo da linguagem, seguindo

Haroldo, podemos pensar também no que a literatura permite

como encenação. Essa diagramação não deixa de ser um jogo

teatral, que permite diversos discursos ao mesmo tempo,

sugestões em vez de declarações, tons, tensões: a

conjugação de todos os elementos expressivos que se possa

usar simultaneamente.

A fascinação da “simultaneidade”, a
descoberta de que, por um lado, o mesmo
individuo tem a experiência de tantas
coisas tão diferentes, distintas e
irreconhecíveis num e mesmo momento, e que,
por outro lado, diferentes indivíduos em
diferentes lugares tem, muitas vezes, a
experiência das mesmas coisas, de que as
mesmas coisas sucedem ao mesmo tempo em
lugares completamente isolados uns dos
outros, este universalismo de que as
técnicas modernas tornaram possível que o
homem contemporâneo tivesse consciência
são, talvez, a real fonte do novo conceito
de tempo e de todo o modo abrupto como a
moderna arte descreve a vida. (Hauser,
1972, p. 1132)

A conclusão de Arnold Hauser é precisa. Descrever a

vida tornou-se coisa tão diferente que possibilitou nem

descrever: “acordei bemol / tudo estava sustenido // sol

fazia / só não fazia sentido” (Leminski, 2013, p. 104).

Poesia sublime.

A precisão de Leminski na jogada, sua diagramação,

suas pedradas e relâmpagos, tinha como forte aliado o

143
humor, que pelas mãos dos modernistas foi introduzido à

literatura como elemento “sério”. Até então, o humor era

marginalizado, mais ou menos como tudo o que é popular

tende a ser diminuído.

O que nos modernistas significava o reconhecimento da

cultura nacional, ou a formação da identidade nacional, na

busca da emancipação da literatura, da língua e do

pensamento dos nossos colonizadores, em Leminski ganha

traços de emancipação social, ou seja, de real

popularização de uma literatura nacional que, apesar de já

brasileira, continua elitizada. As duas motivações

contribuem decerto para colocar o que é popular no topo do

que costumava ser-lhe de acesso interditado. Entretanto,

veremos que humor que ambos foram capazes de produzir está

longe de ser mera popularização da poesia, no sentido mesmo

da “facilitação”. Não há nada de fácil em dizer uma coisa

no sentido de outra, em fazer humor fundo e paradoxal do

duro drama de quem vive. Segundo Schlegel, a ironia é “uma

beleza lógica, por resultar de um trabalho de reflexão que

elege como objeto o próprio refletir, a ironia define o

sujeito cindido pela consciência de sua própria cisão”

(apud Rebuzzi, 2003, p. 48). Em Leminski, será uma beleza

ora lógica, ora nonsense.

Segundo Candido e Castello, “uma das grandes

conquistas dos modernos foi introduzi-lo [o humor], sob a

forma de ironia ou de paradoxo, utilizando-o como

144
instrumento de análise moral, aprofundamento das emoções e

senso da complexidade do homem e do mundo” (168, p. 21).

Leminski desfrutará dessa conquista. Já falamos da

característica paradoxal de seus escritos, o que é, não

sempre, mas muitas vezes fundido à ironia ou a algum tipo

de humorismo.

Candido e Castello dizem que o Modernismo era dotado

de “extraordinária alegria criadora”, presente em todos os

gêneros, chegando a “alturas picarescas em Macunaíma”

(Andrade, M., 2001) – e, finalmente, “por todos manejada

como arma de luta” (Candido e Castello, 1968, p. 11).

Leminski se utiliza da ironia, do humor e do paradoxo na

alegria e na tristeza, como arma, como instrumento: de

análise, de desconstrução, de criação.

É inegável seu diálogo principalmente com Oswald de

Andrade, que, além de oferecer, segundo o próprio, “o

primeiro cadinho de nossa prosa nova” (cf. Campos, H.,

1964), havia inaugurado um novo tipo de poema: “Este gosto

pela poesia condensada, aliado ao desejo de irreverência

como arma polêmica e à alegria autêntica de um movimento

jovem, explicam o ‘poema-piada’, de que foi mestre Oswald

de Andrade” (Candido e Castello, p. 21). Ou, ainda, na

análise de Haroldo de Campos:

Para ficar só na poesia, pode-se dizer que


Oswald foi precursor da poesia concreta,
com seus poemas-minuto (reduzidos até mesmo

145
a duas palavras, como: título, amor, poema,
humor), com sua técnica de justaposição
direta de frases e situações recolhidas no
cotidiano, com sua sensibilidade que Décio
Pgnatari analisou muito bem como “dada” e
antecipadamente “pop”, com sua
elementaridade que combatia o vício
retórico nacional. (Campos, H., 1972, p.
168)

Irreverência e polêmica tampouco faltavam a Leminski.

O poeta bebeu na fonte do haicai, ao mesmo tempo em que nos

poemas minuto ou piada de Oswald de Andrade. Segundo Luiza

Lobo:

O chiste vive de curtos circuitos, de


expressões concisas, e libera da censura
significações conscientes e inconscientes
recalcadas que, sem ele, exigiriam um
esforço intelectual considerável para
realizá-lo. A economia do chiste explica,
assim, a possibilidade de se empregar, com
uma grande economia de esforço, o máximo se
significações num mínimo de significantes
[…]. O chiste implica na abolição, ainda
que temporária, do superego, provocando um
mergulho nas forças criativas do
inconsciente, longe do discurso articulado
do mundo consciente do ego, vigiado pelo
superego. (Lobo, 1993, p. 35)

Com isso, a autora nos permite localizar o chiste em

toda a obra de Leminski, aliado à sua rapidez, às múltiplas

conexões, e também a uma questão que lhe será fundamental:

a expressão do máximo no mínimo. Remetendo-nos também às

questões que já apontáramos no debate das relações de

Leminski com as Vanguardas Europeias e a literatura que

146
pretendeu dar vazão estética ao fluxo do pensamento, como

Leminski fará no Catatau posteriormente.

Leminski era colecionador entusiástico de expressões

populares, frases clássicas, provérbios e ditados –

adiciona-lhes humor, desconstrução e trocadilho, fabricando

poesia erudita e popular, caprichada e relaxada: “jamais

perde seu jeito de fazer versos, segue descriando

expectativas, segue apagando coisas que se sabem de cor”

(Tapia, 2004, p. 90-91).

Se rio de mim,
me levem a sério.
Ironia estéril?
Vai nesse ínterim,
meu inframistério.
(Leminski, 2013, p. 262)

Com seu “inframistério”, Leminski vai seríssimo, por

exemplo, atacar a ditadura: “cemitério municipal / reina a

paz e a calma / em todo o território nacional” (id., ibid.,

p. 308). Paz e calma só se fossem aquelas forjadas aos

berros de quem era torturado nos porões da pátria. E contra

a farsa e o horror, o que fazer? Derrubá-los. Em vez de

“Brasil: ame-o ou deixe-o”, o bordão15 mais conhecido dos

15
Não podemos deixar de comentar que a palavra “bordão”, além de sua
acepção mais utilizada, de palavra ou frase frequentemente repetida, o
que também pode ter efeito humorístico ou caricatural, significa
também “porrete, cacete”, precisamente “bastão com uma das pontas mais
grossas” (entre outros; cf. Dicionário Caldas Aulete, versão digital).
Praticamente piada pronta, um bordão da ditadura: comédia, não fosse
absoluta tragédia.

147
ditadores, que não se demoravam em matar ou exilar seus

opositores, Leminski propõe:

tatami-o ou deite-o

de colchão em colchão
chego à conclusão
meu lar é no chão
(Leminski, 2013, p. 318)

Na escritura do judoca: “tatami-o ou deite-o”. Seja

“na porrada” ou com delicadeza, é preciso levar a ditadura

ao chão, sí o sí, como se diria em espanhol. E ainda, no

humor nonsense: “ameixas / ame-as / ou deixe-as” (id.,

ibid., p. 91)16. Formas finas, formas grotescas, piadas

nonsense, oralidade, recriação de expressões populares,

ditados e provérbios, “descriação” do que estava pronto.

Sem deixar de lado os humores mais viscerais e a linguagem

de gozo: “essa fúria que quer / seja lá o que flor” (id.,

ibid., p. 330).

Colocará Michael Löwy, retomando a leitura de Benjamin

sobre Brecht, que “a lista das qualidades espirituais

inclui também duas que são perfeitamente “brechtianas”: o

humor e sobretudo a astúcia dos oprimidos” (2005 p. 59).

Isto para falar do papel que o “espiritual” cumpre.

16
Sobre o tema da ditadura, Leminski escreveu outros poemas.
Destacamos o “De tertulia poetarum” (Leminski, 1996, p. 44), em que a
ironia dá lugar à forma de uma prece tensa e grave – o poema é todo em
latim. Na tradução do próprio Leminski (apud André Dick, 2004, p.
166), lê-se: “Sobre a tertúlia dos poetas” // “da tortura dos soldados
/ livra-nos, senhor / da noite infinita / livra-nos, senhor / da morte
noturna / livra-nos, senhor”.

148
Existe, então, em Benjamin, uma dialética
do material e do espiritual na luta de
classes que vai além do modelo bem
mecanicista da infraestrutura e da
superestrutura: o que está em jogo na luta
é material, mas a motivação dos atores
sociais é espiritual. (Löwy, 2005, p. 59)

O humor espiritual de Leminski filia-se à linguagem

telegráfica e sintética de Oswald de Andrade,

principalmente em Memórias sentimentais de João Miramar, em

que “a realidade é trabalhada por meio de recursos

poéticos, com apelo à sugestão, à alusão, à metáfora e ao

trocadilho” (Candido e Castello, 1968, p. 25); em seu

mergulho “no folclore, na herança africana e ameríndia, na

arte popular, no caboclo, no proletário” (Candido, 2006, p.

172). Mas se filia também à tradição desconstrutiva da

representação burguesa que tem por expoente Bertolt Brecht,

que sabe que não basta desconstruir na arte, é preciso

desconstruir na vida, para reconstruí-la; assim Leminski se

encontra com a astúcia dos oprimidos que lhe é própria

(diferentemente dos modernistas17, que não a partilhavam).

Finalizando este subcapítulo, sobre o “capricho e o

relaxo” que Leminski conjugou em sua obra, vale lembrar a

17
Chamam-nos a atenção os autorretratos de Tarsila do Amaral (1923;
1924; 1926), em que se vê claramente uma figura das elites
brasileiras. No primeiro autorretrato, Tarsila aparece vestindo um
luxuoso manteau rouge, que subtitula a obra, provavelmente quente
demais para o Brasil paulistano. E nos dois últimos, imensos brincos
dourados ornamentam o rosto maquiado da pintora (este igualmente
colorido e austero nas três obras). Uma rápida lembrança da figura de
Leminski no foto-poema “KAMIQUASE” (1983) dá-nos a dimensão da
diferença de classe e de referencial dos dois artistas.

149
frase de Paul Valéry: “A maior liberdade nasce do maior

rigor” (apud Campos, H., 1972). A poética de Leminski

(mutante e mutadora, híbrida e paradoxal) nasce nesse

berço. Ainda que neste trabalho não tenha sido possível

explorar inúmeras possibilidades analíticas que o poeta nos

oferece, o que foi possível desenvolver nos permite afirmar

que seu humor não é facilitação ou esvaziamento da poesia,

sua erudição não é elitizada, sua experimentação não é

vanguardista, sua força vital e poética não é dramatização

barata – é jogada limpa, de uma bola de fogo contra o poder

estabelecido.

150
3.3 – A voz de quem mestiça

A arte só pode ser o grande aliado da


revolução na medida em que permaneça fiel a
si mesma.
Leon Trotsky

É chegada a hora de apresentar algumas conclusões

sobre a poética de Paulo Leminski, agora com os olhos

voltados para frente. Será inevitável dizer que tais

conclusões podem tornar-se imediatamente hipóteses, que se

deveriam pesquisar numa problemática mais específica da

literatura brasileira contemporânea; no caso, mais

contemporânea. Não obstante a literatura brasileira

contemporânea se relacione com outras.

Precisamente, a pergunta que nos colocamos neste ponto

é sobre o legado de Leminski. Não exatamente na perspectiva

de identificar sua herança particular, mas na de observar

que rumos tomou o processo em que ele se inseria, a que

sínteses chegou-se e, finalmente, o que justifica afirmar

que o poeta de fato entrou para a “história da literatura

brasileira”.

Estas serão conclusões de ordem geral, pois o que

importa é saber o que afinal ultrapassa Leminski, o que de

sua obra o transcende; quais são as suas conquistas para o

futuro que já chegou. A originalidade, também é preciso

dizer, não determina a entrada ou não para a “história

151
literária”. Nosso poeta, em verdade, apresenta mais

originalidade que reconhecimento histórico, ao menos por

enquanto.

***

Duas compreensões em relação à dialética entre


linguagem e realidade parecem-nos fundamentais, após todo o
debate linguístico, poético e crítico. A primeira delas
encontra-se expressa no texto de Octavio Paz.

A palavra não é idêntica à realidade que


nomeia porque entre o homem e as coisas –
e, mais profundamente, entre o homem e seu
ser – se interpõe a consciência de si
mesmo. A palavra é uma ponte através da
qual o homem tenta superar a distância que
o separa da realidade exterior. Mas essa
distância faz parte da natureza humana.
(Paz, 1986 [1956], p. 43)

Leminski andou por essa ponte, fez nela malabarismos,

cruzou com pernas de pau. Sua obra em diversos momentos

representa o movimento paradoxal de afastar-se de si – no

intuito de conhecer o que lhe é externo, seja a realidade,

seja o outro – e, ao mesmo tempo, mergulhar em si. Isto é,

dar a conhecer o eu, pelo que lhe é externo; e dar a

conhecer o externo pelo que se tem internalizado.

Considere-se esse “conhecer”, certamente, pela perspectiva

crítica e/ou poética, o que nos remete à segunda

compreensão sobre o tema.

152
A imaginação seria “uma via de
conhecimento, de acesso à realidade, tão
(ou mais) poderosa que a dita ‘razão’, só
capaz de captar os aspectos mais
superficiais da realidade”. É essa
imaginação que Leminski entenderia como
“rarefação da referência” ou “realidade”.
(Dick, 2004b, p. 166; citações de Leminski)

De acordo com Dick, e com o próprio Leminski, não se

trata apenas de tirar a lógica cartesiana de seu pedestal

no altar do conhecimento, mas de elevar a imaginação –

logo, a criação imaginativa, a poesia, a ficção, a arte – a

via de conhecimento, tão ou mais acertada. Não caberia

nesta concepção a ideia de que o entendimento se feche,

isto é, que se entenda algo e ponto final. Pelo contrário,

admite-se não só que o conhecimento é um processo em

constante transformação, como que convivem simultâneos

“certos”: “nunca cometo o mesmo erro / duas vezes / já

cometo duas três / quatro cinco seis / até esse erro

aprender / que só o erro tem vez” (Leminski, 2013, p. 265).

A verdade única e lógica sai de cena definitivamente,

pois se compreende que a realidade é o movimento de suas

relações e dinâmicas, evidentemente irrefreável. O que no

vanguardismo era um processo sem fim de fragmentações, hoje

é no mínimo desnecessário, pois a conquista da

simultaneidade nos permite fazer conviver diferentes formas

de existência, formas híbridas, artes múltiplas (em que

pese à permanência da contradição fundamental capital-

trabalho: não se confunda, portanto, o reconhecimento dos

153
diferentes com a extinção da opressão fundamental promovida

pela exploração capitalista).

O que Leminski defende, que sem imaginação não se

chega ao real, é pertinente à concepção de pensamento

crítico, aquele que se pretende capaz de ver além dos

“trilhos que a locomotiva do progresso” segue. Capaz de ver

possibilidades além da repetição e para fora da opressão,

de inventar o que necessário for: “vida que me venta / sina

que me brisa / só te inventa / quem te precisa” (Leminski,

2013, p. 271).

A defesa da imaginação não deixa de ser a defesa da

liberdade, da escritura imaginativa e libertária.

Socialmente, vale lembrar a análise, que trabalhamos no

segundo capítulo, de Stuart Hall, que apresenta cinco

descentramentos da identidade do sujeito (dos quais já

trabalhamos os três primeiros). O quarto é o que trabalha

Michael Foucault, que entende o poder desenvolvido no

século XX como “poder disciplinar”, controlador ao extremo,

que faz de todos os indivíduos reféns, encarcerados em

instituições (sejam escolas, hospitais ou cadeias): “embora

o poder disciplinar de Foucault seja o produto das novas

instituições coletivas e de grande escala de modernidade

tardia, suas técnicas envolvem uma aplicação do poder e do

saber que ‘individualiza’ ainda mais o sujeito e envolve

mais intensamente seu corpo” (Hall, 1997, p. 42).

154
O quinto e último descentramento apresentado por Hall

é o impacto do feminismo e de tudo que se possa associar ao

maio de 1968, o que também nos remete à emersão do corpo à

realidade humana, que tanto vinha sendo diminuído, seja

pela hipertrofia da razão, seja pelas imposições

teocráticas que o mundo ocidental assumiu ao longo de

séculos (obscuros e iluminados): “O slogan do feminismo

era: ‘o pessoal é político’. Isto é, ele politizou a

subjetividade, a identidade e o processo de identificação”

(ibid., p. 45).

A conclusão de Stuart Hall decerto vai ao encontro o

que estamos debatendo sobre o conhecimento, e anteriormente

sobre a poesia.

Assim, a identidade é realmente algo


formado, ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, e não algo inato,
existente na consciência no momento do
nascimento. Existe sempre algo “imaginário”
ou fantasiado sobre sua unidade. Ela
permanece sempre incompleta, está sempre
“em processo”, sempre “sendo formada”.
(Hall, 2004, p. 38)

Esta primeira linha geral conclusiva, fortemente

reverberante na obra leminskiana, parece-nos um passo dado

na literatura. Candido e Castello apontam que “as

conquistas do Modernismo foram definitivas, embora nem

sempre tenham durado as suas técnicas e posições

extremadas” (1968, p. 18), do mesmo modo, independentemente

155
das experimentações linguísticas e estéticas que se tenham

feito, ou das diferentes posições em relação a como

conhecer e atuar sobre a realidade, chegou-se a uma

compreensão geral (apresentada aqui) mais ampla e mais

livre no tocante à temática linguagem-realidade - que

estrutura fundamentalmente a obra de Paulo Leminski.

***

Houve passos definitivos também na técnica. Dois

passam por Leminski com clareza. O primeiro é o que podemos

chamar de “o máximo no mínimo e o mínimo no máximo”. Nas

Vanguardas do início do século XX já se via uma tendência

de diminuir as formas, buscar a concisão, encontrar aquele

mínimo dos mínimos que ainda comunica, expressar em poucos

traços montes de coisas por trás. No Modernismo, o poema-

minuto, curto e rápido; a poesia em poucas palavras, em

poucos versos. O Concretismo fraturou as palavras, escreveu

versos que eram uma única sílaba ou pontuação. Escreveu

sons, e também formas não só ilegíveis como

impronunciáveis, que ainda assim expressavam conteúdos

máximos.

Leminski não só teoriza sobre o tema, como o

desenvolve em poemas, e em outros o aplica efetivamente.

Solange Rebuzzi, na análise das cartas publicadas de

Leminski a Régis Boivicino, retoma o conceito de palavra-

156
valise, que é aquela em que “duas palavras são projetadas

uma dentro da outra, produzindo uma terceira, nova

totalidade, uma unidade poemática” (Leminski apud Rebuzzi,

2003, p.86). Segundo o poeta, a linguagem popular no Brasil

também se utilizaria da “palavra-montagem”. Neste contexto,

estamos tratando de palavras que trazem em si duas, ou

mais. Num contexto mais amplo, a ambiguidade cumpre o papel

de em uma palavra ou verso encontrarem-se diversos

significados. E ainda, como princípio mais geral, a

consciência de que se podem ter expressões mínimas para

conteúdos máximos, principalmente na poesia (mas não

afirmaríamos que apenas nela): “um pouco de Mao / em todo

poema que ensina // quanto menos / mais do tamanho da

china” (Leminski, 1983, p. 84).

O poeta aplica mais claramente a técnica, por exemplo,

em “xavante / muitos xxxxx / avante” (Leminski, 2013, p.

119), que em poucas palavras traz todo um debate sobre a

nossa identidade cultural. Trata-se de observar o que está

por traz, nas entrelinhas, as tantas possibilidades de

leitura e significação de uma forma artística, como na

ideia de que “a sombra máxima / pode vir da luz mínima”

(ibid., p. 177). E, no poema que se chama “o mínimo do

máximo”, maior desenvolvimento da questão.

Tempo lento,
espaço rápido,
quanto mais penso,

157
menos capto.
Se não pego isso
que me passa no íntimo,
importa muito?
Rapto o ritmo.
Espaçotempo ávido,
lento espaçodentro,
quando me aproximo,
apenas o mínimo
em matéria de máximo.
(Leminski, 2013, p. 183)

O que observamos é que, em verdade, a expressão do

máximo no mínimo, inevitavelmente, será a possibilidade

também de expressão do mínimo do máximo. A forma do haicai

é um exemplo que nos facilita esse pensamento. Por um lado,

em poucos versos, ele é capaz de condensar imensa

sabedoria, conhecimentos, questões existenciais; por outro,

é capaz de esvaziar um poema de conceitos, de narrativa,

interrompendo o curso da linguagem (como vimos no primeiro

capítulo). Veremos na prosa-poética leminskiana a expressão

disto em dimensões maiores. O texto que parece narrativa,

mas não narra, que parece prosa, mas é poesia, não só rompe

com as determinações de gênero literário, como coloca numa

só forma vários gêneros.

Leminski exasperou-se em romper limites, é verdade.

Mas também em desdobrá-los, buscando sempre um sentido a

mais. Destruir a literatura? Jamais. Leminski queria fazê-

la ir além, ser sempre mais, dizer mais, dizer de todas as

formas, dizer o indizível. Derrida debate a “limitrofia”,

anunciando que “consistirá sobretudo não em apagar o

158
limite, mas em multiplicar suas figuras, em complicar, em

expressar, em desfazer a linearidade, dobrar, dividir a

linha justamente, fazendo-a crescer e multiplicar-se”

(2006, p. 58). Assim como conteúdos serão dobrados,

redobrados, condensados, em nossa opinião.

Finalmente, trata-se de um híbrido de mínimo e máximo.

No Catatau, em duzentas páginas, montes de línguas,

elucubrações mil, quase nada: um único parágrafo, nenhuma

história, só o contexto de um personagem que é uma versão

de Descartes, sentado embaixo de uma árvore no calor e na

floresta tropical, com uma luneta e um cachimbo de maconha

na mão, pensando enquanto espera alguém (que chega bêbado

no final). Pensando ao contrário, num parágrafo e história

nenhuma, está representada toda a questão da lógica, do

indivíduo soberano; inúmeros eventos históricos, ideias,

elementos geográficos e culturais, de línguas e dialetos;

de fato, uma infinidade de coisas. Num parágrafo, um

“romance” inteiro.

Não quer dizer que máximo e mínimo sejam

proporcionais, e essa desproporção marca, de certa forma, o

fim do belo como obrigação. A beleza clássica se baseia na

proporção das formas, na simetria, na métrica, nas

combinações exatas; de diversas maneiras as Vanguardas a

atacaram, e esta é uma das formas pelas quais foi

destronada.

159
A segunda conquista no campo da técnica (e última que

abordaremos) é o que chamamos de “extensão das formas”. A

síntese do processo de “destruir a literatura”, de buscar

sempre o novo, de experimentar até o absurdo, resulta na

ampliação dos recursos expressivos disponíveis, na

convivência das possibilidades, numa liberdade em relação

às formas que mudou de fato a literatura.

Ao comentar a fase final do Modernismo no Brasil,

Candido e Castello observam o “incessante enriquecimento

formal” (1968, p. 24).

Ao lado do verso livre, voltam formas


regulares, estrofes de redondilhas,
baladas, sonetos brancos e rimados, novos
jogos com o decassílabo, mostrando que o
Modernismo suspendera, mas não abolira as
formas tradicionais, possibilitando a sua
volta quando foi possível reinterpretá-las
com ouvido e espírito novos. (Candido e
Castello, 1968, p. 24)

Com isso, a literatura que se produza hoje, se utilize

ou não de técnicas vanguardistas, tem “em mente” a dimensão

das questões outrora levantadas, além da liberdade

conquistada, para criar ou recriar seus próprios caminhos.

***

Leminski trabalhou no campo das sínteses que aqui

apresentamos. Parece-nos que sua originalidade maior esteja

160
na forma como manejou paradoxos, às vezes montando

híbridos, às vezes expondo contradições, às vezes

produzindo superações.

Se for preciso dizer em poucas palavras qual o seu

maior valor, não teríamos dúvida em mencionar a formulação

de Trotsky que se encontra na última epígrafe: “A arte só

pode ser o grande aliado da revolução na medida em que

permaneça fiel a si mesma” (em carta a André Breton, em

1938). Esta é a frase como ficou conhecida. Não tivemos

acesso ao texto original, mas o encontramos numa publicação

em português das cartas trocadas entre Breton e Trotsky,

com a seguinte tradução:

A luta pelas ideias da revolução na arte


deve começar novamente pela luta pela
VERDADE artística, não no sentido de tal ou
tal escola, mas no sentido da FIDELIDADE
INABALÁVEL DO ARTISTA A SEU INTERIOR. Sem
isso não há arte. (Breton e Trotsky, 1985,
p. 49)

Seja revolucionária a arte fiel a si mesma, ou o

artista fiel a si mesmo, Leminski, em vida e obra, foi

exatamente isso. Foi preciso que um longo processo de

rupturas, guerras e revoluções, vanguardas, movimentos e

reacionários se debatessem para que pudéssemos entender o

que tinha em mente Trotsky. E para que se pudesse produzir

de fato essa arte tão vital e tão política, como a de

Leminski e outras que nos tiram e colocam no eixo, que nos

161
chocam e afagam, que nos fazem pensar e sentir, que nos

levam – individual e coletivamente – à comunhão e ao

êxtase; à subversão poética; e à poética da subversão.

162
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A poesia do nosso tempo não pode fugir da


solidão e da rebelião, exceto através de
uma mudança da sociedade e do próprio
homem.
Octavio Paz, O arco e a lira

Leminski possibilitou-nos, ao final deste trabalho,

ver a poesia em outra dimensão. A capacidade de considerar

as diversas perspectivas possíveis e de, ao mesmo tempo,

identificar estruturas determinantes das coisas, sejam

quais forem, fez-se necessária para chegar ao nosso

propósito inicial, o de entender a poética leminskiana, em

seu tempo e mundo. Esperamos ter conseguido, ainda que

singelamente, identificar o que nela há de mais importante.

Deixamos de lado, quase gritando ao lado, pontos

interessantíssimos. A obra de Leminski é intensa e diversa,

não têm fim as perspectivas de que se poderia tratar.

Para dizer algo sobre as hipóteses iniciais que

tínhamos, vale reiterar que só é possível desenvolver uma

crítica se olharmos atentamente para a coisa, e antes de

tudo para ela. Chegar com propostas a comprovar, não só não

funciona, como não faz sentido.

Tínhamos uma primeira impressão, é verdade, a partir

de uma leitura inicial e descompromissada de Caprichos &

Relaxos (Leminski, 1983), que nos colocou a dúvida sobre o

163
que afinal era isso, que poeta era esse. A impressão era de

que Leminski fazia duas coisas: brincava com a linguagem e

posicionava-se à esquerda na sociedade. Não sabíamos bem o

que isso significava, nem o tanto que essas duas questões

estavam relacionadas. Não tínhamos ideia da complexidade da

obra de Leminski, nem de onde aquilo vinha. Isso foi há

muito tempo, muito antes de esta pesquisa começar na

prática. O que “descobrimos” nos entusiasma, porque faz

todo o sentido, porque o que não tem sentido faz sentido,

porque a arte é capaz de mover montanhas.

A análise da obra desse poeta inteiro, ou inteiramente

poeta, mais atenta aos seus livros de poesia, comprovou que

as impressões iniciais tinham razão de ser. Desenvolvemos

no primeiro capítulo o debate sobre a linguagem,

relacionando o pensamento de Roland Barthes, ao do marxista

Karel Kosik, o que permitiu-nos concluir que a “escritura”

defendida por Barthes, ou seja, a linguagem contra o poder,

que quebra o ciclo de poder, é também capaz de romper a

carapaça do aparente, dando-nos entrada ao concreto, ao

real, àquilo que realmente é. Conhecer o que é, e conhecer

a si, são atividades na contracorrente da alienação e da

reprodução do sistema social. Barthes contrapõe a escrita

de prazer à escritura de gozo, ou seja, o conforto ao

intenso “perder-se” orgástico; a isto, relacionamos o que

na sociedade é a conformidade, de um lado, e a revolução de

outro. Observamos que essa relação linguagem-sociedade é

164
indissociável do grande processo de questionamento, crises,

rupturas, movimentos, vanguardas e, finalmente,

transformações definitivas que a arte sofreu no

desenvolvimento do capitalismo, especialmente entre os

séculos XIX e XX.

No segundo capítulo, analisamos tais movimentos, de

Baudelaire às Vanguardas Europeias, relacionando-os ao

Modernismo brasileiro, numa perspectiva comparativa com o

debate do tempo histórico de Benjamin. Tentamos demonstrar

como as rupturas se deram na prática, sempre tendo em mente

a forma como ecoaram em Leminski. Vimos que “em suma, se a

poesia de Mallarmé é implosiva, a de Rimbaud é explosiva.

Duas táticas para um fim comum: o de questionar o homem,

pondo em xeque a criação que mais o caracteriza – a

linguagem” (Candido e Castello, 1968, p. 20).

Colocar a linguagem em xeque resultou numa alteração

intransponível da forma como vemos a arte, da concepção que

temos dela; resultou, finalmente, na libertação da arte das

obrigatoriedades formais e temáticas a que vinha amarrada.

Socialmente, isto se relaciona novamente com a oposição

entre dar continuidade ao curso do “progresso” ou

interrompê-lo. O que Benjamin defende é a explosão da

história; e o que vemos ao final do século XX é a conquista

de um espaço de convivência entre os diferentes, em que a

verdade única e a supremacia da lógica perderam espaço.

Segundo Valéry, “tudo isso se resume nesta fórmula: na

165
produção da obra, a ação vem sob a influência do

indefinível” (1991, p. 199). Pois será preciso ganhar a

dimensão do indefinível para romper com a obsessão pelo

progresso, que encaminha a humanidade para a barbárie.

No terceiro capítulo, tratamos de Leminski, poeta

ímpar, fazedor de poesia mesmo quando escreve em prosa.

Analisamos o que nos parece fundamental em sua obra: a

dedicação a misturar corpo e arte, a viver a poesia; a

maneira como se relacionou com a cultura oriental, as

Vanguardas Europeias, o Modernismo, o Concretismo,

Mallarmé, Rimbaud, Baudelaire, os mitos gregos, todas as

linguagens poéticas que pôde.

POESIA: “words set to music” (Dante via


Pound), “uma viagem ao desconhecido”
(Maiakóvski), “cernes e medulas” (Extra
Pound), “a fala do infalável” (Goethe),
“linguagem voltada para sua própria
materialidade” (Jackobson), “permanente
hesitação entre som e sentido” (Paul
Valery), “fundação do ser mediante a
palavra” (Heidegger), “as melhores palavras
na melhor ordem” (Coleridge), “emoção
relembrada na tranquilidade” ( Wordsworth),
“ciência e paixão” (Alfred de Vigny), “se
faz com palavras, não com ideias” (Ricardo
Reis/Fernando Pessoa), “um fingimento
deveras” (Fernando Pessoa), “criticism of
life” (Matthew Arnold), “palavra-coisa”
(Sartre), “linguagem em estado de pureza
selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to
inspire” (Bob Dylan), “design de linguagem”
(Décio Pignatari), “lo imposible hecho
posible” (Garcia Lorca), “aquilo que se
perde na tradução” (Robert Frost), “a
liberdade da minha linguagem” (Leminski,
2013, p. 246).

166
A poesia que Leminski produz é íntima e coletiva,

certamente localizada na contramão do progresso, da

concepção cronológica e única do tempo histórico. É irônica

e paradoxal, rápida e estrondosa como um relâmpago, feita

com força, intensidade e desejo. Muito desejo. E muita

poesia – a liberdade da linguagem.

Segundo André Dick, “apesar da sua postura favorável

às vanguardas, Leminski não foi um poeta vanguardista, já

que se constitui, acima de tudo, num escritor moderno (da

modernidade, não do Modernismo)” (Dick, 2004, p. 66). O que

Dick pontua remete-nos duas questões importantes: Leminski

experimentou muitas formas, mas nunca se deixou enganar

pela busca desesperada do novo, nem negou o que interessava

no passado, nem pretendeu estar à frente; ele pretendeu

estar no presente, viver o presente e intervir no presente.

Seu presente leva-nos à concepção de que “enquanto houver

ordem burguesa há modernidade” (cf. Netto, 2013). Sua

poética mestiça, de híbrido, contradição e síntese, resulta

de imensa capacidade de expressão exatamente de quem ele é

– nas dimensões do tempo, do lugar e das ideias –, poeta

subversivo.

Nossas conclusões estão trabalhadas ao longo dos

capítulos e não há necessidade de retomar delas muito mais

que isto. Terminamos este trabalho com a certeza de que ele

não é mais que uma primeira fundamentação das tantas

análises que Leminski merece.

167
Ao leitor que, por descuido, curiosidade extrema, ou

pressa (afinal o capitalismo impõe o ritmo das máquinas

também aos pesquisadores e acadêmicos), tenha aberto este

trabalho aqui em suas páginas finais, fazemos uma

declaração final, para que ninguém perca a viagem.

O que observamos dói que a literatura passou por

severo processo de transformação, tendo por expoente as

Vanguardas Europeias; abriu-se a experimentações e

destruições do que havia, como nunca antes. Convulsões

sociais claramente deram vida a subversões estéticas que

lhe são comparáveis.

Cabe, portanto, olhar para Leminski sabendo em que

momento literário ele se insere. Trata-se do tempo da

palavra como mundo de possibilidades, em que as velhas

formas e movimentos cristalizados, numa sociedade de

múltiplas identidades e contradições (ainda que permaneça

cindida pela desigualdade social), já não são suficientes,

assim como não o são apenas as experimentações radicais.

Mais especificamente, segundo o próprio Leminski, esse

tempo se dá na confluência das diferentes correntes

literárias, principalmente Concretismo e Tropicalismo: na

Pororoca.

Sua literatura é de “signo, violação e flagrante

delito” (LEMINSKI apud TERRON, 2004, p. 179), faz parte

daquela que questionou a rima, o verso, a estrutura

narrativa, os heróis, os gêneros, a representação do real,

168
a necessidade de relação com o real, enfim, a ordem. O

delito é a imaginação sem limites, a liberdade irrestrita

de criação, pelo menos no campo do pensamento, da arte e da

palavra. Isso não significa que não haja mais opressão, ou

que não se façam mais sonetos, não significa que não se

narrem histórias com início, meio e fim, de amor platônico,

herói clássico e final feliz.

Quer dizer algo bem mais complexo: que não há

obrigatoriedades instransponíveis no campo da expressão,

que personagens de qualquer estirpe podem ter voz, e que as

palavras podem vir a dizer coisas que estão muito além do

que elas pareciam se propor a dizer pelas formas

tradicionais. Tampouco serão arte todas as maluquices que

se criem, mas podem ser. Esse conhecimento que ganhamos,

este sim, não pode mais ser ignorado, o que muda tudo,

mesmo na mais banal das poesias ou historietas que agora se

escrevam. Podemos, por exemplo, continuar fazendo

fotografias em máquinas de lambe-lambe, só não podemos

fingir que não conhecemos a fotografia digital. Em

Leminski, encontramos “lambe-lambe digital” – signo de

flagrante violação do real. Oxalá nos leve a outro real.

169
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