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2008
https://doi.org/10.25145/j.pasos.2008.06.042
www.pasosonline.org
Cyntia Andrade ii
(Brasil)
Resumo: Igatu é um pequeno distrito do município de Andaraí – BA, com cerca de 400 habitantes, que
como a maioria das cidades da Chapada Diamantina, foi construída com a exploração do garimpo. A
percepção da memória como leitura do espaço torna-se importante instrumento de investigação em busca
de resgatar o patrimônio imaterial da localidade. Visando compreender os estreitos laços entre a memó-
ria e o lugar e o processo de construção da vila, a pesquisa utilizou das narrativas orais dos antigos mo-
radores da época do garimpo para uma leitura fiel da historia local, buscando analisar o uso do legado
cultural como instrumento de suporte para a atividade turística.
Palavras chave: Memória; Turismo; Historia oral; Legado cultural; Patrimônio imaterial.
Abstract: Igatu is a small district of the municipal district of Andaraí - BA, with about 400 inhabitants,
that as most of the cities of Chapada Diamantina, it was built with the exploration of the claim. The
perception of the memory as reading of the space becomes important investigation instrument in search
of rescuing the immaterial patrimony of the place. Seeking to understand the narrow liaisons between the
memory and the place and the process of construction of the villa, the research used of the old inhabi-
tants' of the time of the claim narratives orals for a reading faithful of the local history, looking for to
analyze the use of the cultural legacy as support instrument for the tourist activity.
ii
Cyntia Andrade. Universidad de Las Palmas de Gran Canária, ES - Doctorado em Turismo Integral, Interculturali-
dad y Desarrollo Sostenible. E-mail: cyntiand@gmail.com / cyntiand@yahoo.com.br
necessária para seu enriquecimento cultu- como ele próprio intitula, Igatu é o que se
ral.Voldman (2001: 39) adverte de forma costuma chamar de lugar pacato. As 16
precisa, “[...] nem todos viveram sua ado- ruas, o comércio composto de 03 bares, 01
lescência e sua maturidade nas mesmas pizzaria, 02 restaurantes, 01 lojinha, 04
condições sociais e políticas, e os velhos pousadas e apenas 70 pessoas que trabal-
tempos, embora tenham igualmente passa- ham com o garimpo, constitui o retrato
do, não são os mesmos para todo mundo. Do atual de uma vila que nas trilhas do garim-
ponto de vista do que há de ser singular em po vê sua história ser passada a limpo como
cada indivíduo, nenhuma testemunha se um roteiro turístico.
assemelha a outra [...]”. Atraídos pela prosperidade condicionada
Geertz (2003: 107) ainda alerta que “En- à extração de pedras preciosas, iniciada no
tender a forma e a força da vida interior de final do século XIX, mineiros vindos de
nativos – para usar mais uma vez essa pa- decadentes tentativas regionais, desbrava-
lavra perigosa – parece-me mais compreen- ram o sertão semi-árido da Bahia central
der o sentido de um provérbio, captar uma que, acolhidos pela necessidade de vingar
alusão, entender uma piada – ou, [...] inter- em terras férteis passaram a ser os princi-
pretar um poema do que conseguir uma pais responsáveis pelo nascimento de po-
comunhão de espírito”. voados que hoje constituem cidades como
A história ainda é viva na memória de Mucugê, Andaraí, Palmeiras e Lençóis na
sua gente que conta com graça e saudade e Chapada Diamantina, Bahia.
enche os olhos de lembranças arrastadas Mucugê, antiga Santa Isabel do Para-
pelo tempo, travando uma luta com a idade guaçu Diamantino, surge como a cidade
que confunde datas, mas espelha sabedoria mais antiga da chapada, sendo o primeiro
colhida através da experiência vivida. Que lugar de exploração de ouro e diamantes.
nas palavras de Nora (1993: 9) diz que: “a Em 1844, as margens do rio Mucugê, foram
memória é a vida, sempre carregada por encontradas pedras de diamantes no leito
grupos vivos e, nesse sentido, ela está em do rio, que desencadeou o processo de
permanente evolução, aberta ‘a dialética da exploração e resultou na formação de
lembrança e do esquecimento, inconsciente cidades que compõem a rota turística do
de suas deformações sucessivas, vulnerável Circuito do Diamante5 . Alguns moradores
a todos os usos e manipulações, susceptível antigos afirmam que os portugueses foram
de longas latências e de repentinas revitali- os primeiros habitantes, atraídos pelas
zações”. noticias que corria em cidades como Lavras
A narrativas rememoradas pelos mora- e Grão Mogol, zona de mineração de Minas
dores antigos, traçam o caminho da cons- Gerais. A.L.S., de 65 anos, comerciante,
trução do lugar, onde os momentos marcan- conta que “os mineiros vieram para Mucugê
tes desenham os mapas calcados na memó- e de Mucugê vinheram para cá (...) Mucugê
ria afetiva de cada um. Joutard (2001: 54) já tinha extração dos diamantes e descobri-
reforça que “[...] o testemunho oral é o do- ram Igatu, eles que descobriram aqui. Co-
cumento mais adaptado por sua ambivalên- meçaram e viviam aqui (...) muito diamante
cia. Os defeitos que lhe atribuem, as dis- naquela época”. Como enfatiza Misi e Silva
torções ou os esquecimentos tornam-se uma (1994: 39): “A principal riqueza mineral da
força e uma matéria histórica”. As lem- Chapada Diamantina oriental, o diamante,
branças recolhidas e alinhavadas entre a foi responsável pelo crescimento das
memória e o lugar, contam as histórias cidades principais e de diversos povoados
contadas, ouvidas e vividas que dão suporte da região, a partir de meados do século
ao sentimento de pertença que pereniza o passado. Desde 1844, quando se iniciaram
lugar. as primeiras lavras intensivas no rio Mu-
cugezinho, em local hoje pertencente ao
Pedra sobre pedra: a formação da vila município de Mucugê, a região das lavras
Seus pouco mais de 300 habitantes, ou diamantinas enfrentou períodos de apogeu
melhor, 3733, nas contas de um cidadão e declínio, graças ao diamante”.
símbolo da vila, Amarildo dos Santos, que Pouco se tem registrado sobre a histo-
anualmente perfaz “Um levantamento riografia do lugar. Embora a memória pos-
geral do que temos em Igatu, ano 2004”4 , sa trair a verdade, o tempo contado firma-
se sobre a fase quando o diamante ainda histórias contadas pelo seu pai: “Primeiro
aflorava na terra seguida pela decadência veio à escravidão, veio os escravos que
do lugar, o que marca a época do final da deixaram a construção da igreja, tem
década de 1930 até os anos conturbados e muitas construções, tem tanques, caminhos
que levara a vila ao completo despovoamen- pelas serras, tudo feito pelos escravos. Co-
to por volta da década de 1950. As fases que mo meu pai que ainda pegou a época dos
antecedera essa época foram pinceladas escravos (...) ele sempre falava pra gente,
mediante a sinalização dos informantes, que ele era garimpeiro, ele gostava do ga-
que por hora divagavam por tempos não rimpo, eu fui criado na serra e ele mostrava
vividos, mas responsáveis pela sua história. as coisas: - Isso aqui foi os escravos quem
Por volta de 1844 a 18466 o garimpo fez. As primeiras trilhas de garimpo foi
teve início em Xique-Xique (Fig. 2) desde a criada pelos escravos”.
sua descoberta e construção, passando pela Na concepção de Bolle (1984: 12): “Nessa
fase da escravidão e dos coronéis, que comunicação de pai para filho temos
traçou todo um território marcado pelas literalmente a transmissão de um
explorações, aberturas de garimpos, patrimônio, um elo de continuidade de
iniciando um processo de construção do geração para geração” (grifo do autor).
lugar. O curso da história política com a Pro-
Antes da abolição da escravatura, com a clamação da Republica (1889) acompan-
sanção da Lei Áurea em 13 de maio de hada da então anunciada libertação dos
1888, os escravos foram responsáveis pelas escravos desenhou uma sociedade que se
destacava com o poder político e econômico,
mudando as estruturas sociais do lugar.
Surge o que ficou conhecido como a “epop-
éia dos coronéis”, que funcionava como o
poder central da Chapada, independente
das forças externas.
Região marcada por grandes diferenças
sociais e concentrações de renda, a Chapa-
da Diamantina foi, da segunda metade do
século XIX até década de 1930, um barril
de pólvora comandado por poucos e muito
poderosos coronéis. As tradicionais famílias
proprietárias de terra davam abrigo e em-
prego para os colonos e exploradores a pro-
cura de riquezas, e em troca conquistavam
a gratidão e fidelidade dessas pessoas.
Formaram-se assim verdadeiros exércitos
de jagunços dispostos a defender com a
Figura 2. Entrada da vila. Fonte: foto da autora, própria vida os interesses dos patrões
2004. (D’Andrea, 2004)7 .
Era a lei local, traçada pelo poder e obe-
primeiras marcas da história política e decida pela submissão. Uma estrutura so-
cultural da vila. Sabe-se que os escravos cial e econômica que marcou a história polí-
tica do nordeste como um todo e que deixou
tiveram participação ativa na mão-de-obra
pesada resultando nas construções de sinais ainda hoje sustentados pelos neoco-
símbolos marcantes do lugar. A igreja de ronéis da contemporaneidade. Segundo a
concepção de Leal (1993: 20), “o
São Sebastião construída no século XIX, por
volta de 1854, traz consigo a força de uma ‘coronelismo’ é, sobretudo um compromisso,
população que ergueu a fé montada na uma troca de proveitos entre o poder
público, progressivamente fortalecido, e a
ideologia do poder. As trilhas dos primeiros
garimpos, tantos ainda pouco conhecidos, decadente influência social dos chefes
locais, notadamente dos senhores de
tiveram na força negra, mais uma vez a
terras”.
raiz da história baiana. Como lembra
M.S.M., 68 anos, garimpeiro e lavrador, nas O coronel mais famoso da Chapada foi
Horácio de Matos que liga a sua história a rreu e acabou. Não teve mais negócio de
cidade de Mucugê. Igatu tinha o seu poder coronel. Acabou coronel!
nas mãos do coronel Aureliano de Britto A vila resiste. Xique-Xique de Andaraí
Gondin (Fig. 3), que durante bons anos ou simplesmente, Xique-Xique como ainda
ditou as regras na vila. Garimpeiro, de 68
anos, M.S.M. busca na memória as histó-
rias que cresceu escutando:
Na época dos coronéis, o primeiro coro-
nel daqui foi seu Juca de Carvalho, que não
era daqui. Era descendente do exterior, ta
mais para português [...]. Seu Aureliano foi
depois e era de Riacho de Santana, perto
da lapa de Bom Jesus. Ele veio embora
para aqui, chegou aqui e foi em 1914, mas
não tenho certeza. Aí Seu Aureliano aqui e
Seu Juca gostou dos modos dele e botou ele
como jagunço dele, né? Ele era o capanga
de Seu Juca, de confiança. Então Seu Juca
morreu, na Passagem8 , ai passou a
patente para ele. [...] Quando Seu Juca
morreu passou para Aureliano de Brito
Gondim.
Complementado a história, M. C. O., 83
anos, aposentada, vasculhando os tempos Figura 3: Túmulo do Cel. Aureliano de Britto
de infância relembra: Gondin. Fonte: http://www2.uol.com.br/mochila-
Conheci Seu Aureliano, que morava on- brasil/imagens/ igatu28.jpg. Acesso em
de é a pousada. Dizem que ele já morou no 15.ago.2004.
sobrado, mas eu era menina. Eu ia comprar
folhas ou qualquer coisa na casa dele e ele hoje é chamado por muitos moradores do
tava sentado. O povo obedecia, mandava no lugar, principalmente o mais antigo, ainda
povo e qualquer coisa tomava as providên- mantinha na atividade do garimpo seu
cias dele. Era o dono da cidade, quem co- principal personagem geoeconômico. Inse-
mandava era ele [...]. rida geograficamente, no sertão baiano,
A época dos coronéis durou até meados caracterizado pela vegetação da caatinga, a
da década de 20, quando as tropas da Colu- presença de cactáceas é lugar comum no
na Prestes chegam a Chapada e as forças cenário paisagístico do lugar, representado
sertanejas fazem o exercito recuar. M.S.M, pelo xique-xique (pilosocereus gouneillei).
68 anos, no auge da sua lucidez reporta a Conta-se ainda, que os primeiros explora-
história como se tivesse participado: dores, podem ter vindo da região do alto
Aí veio a Coluna Prestes acabar com os São Francisco, da cidade de Xique-Xique no
chefes e com esse espanto que teve aí Seu norte da Bahia, tendo apelidado o lugar.
Aureliano morreu. A Coluna que veio des- Tal semelhança causava transtornos tanto
armar os coronel. Ele não foi armado, eles no envio de mercadorias que vinham de
vieram para desarmar ele aqui, mas ele outras regiões e até mesmo de outros pai-
tinha um amigo muito forte em Salvador ses, acabava indo para Xique-Xique do São
que era juiz de direito, Arlindo Leoni, que Francisco, o que culminou em 1943 com a
livrou ele. Foi quando teve esse desarma- mudança do nome da vila para Igatu, que
mento pela Coluna Prestes para desarmar em tupi guarani significa “água boa”, o que
os coronéis ele não foi atacado [...] vieram fica claro de se entender já que a água bro-
para a atacar, mas o amigo Leoni, morava ta no meio da serra. Monteiro (1999: 13)
em Salvador, não era mais juiz, era Sena- põe mais uma forma de escrita e possível
dor e aí livrou ele. Aí ele ficou choqueado origem do nome da vila, embasado na
com aquilo e ninguém sabe porque sim por- relação com os franceses, numa visão mais
que não. [...] O primeiro ataque foi em 1926 elitista e se esquecendo da geografia do
e quando foi em 1932, em morreu. Ele mo- lugar, no qual ele retruca:
Porque Chique-Chique com CH? Este foi da identidade, sua ou de seu grupo; ela é
o primeiro nome dado pelos seus desbrava- um núcleo de sua personalidade”.
dores, derivado das belezas naturais e fruto O sentimento de pertença é aguçado sob
de influencia e domínio da cultura francesa forma da apropriação territorial, aonde
na época. Com CH, não só por essa cir- resistir ao tempo e a mudança do nome do
cunstância cultural, também para não se lugar se revela em uma forma de
confundir com o agressivo ‘xique-xique’, resistência a um elo afetivo, uma
cactácea não tão abundante na região, para declaração de identidade topofílica, da real
se tornar topônimo. Deixou de ser Chique- transformação do espaço em lugar. È
Chique por duas razões: a) não ser permiti- quando Hall (2004: 12) diz que “a
da por lei a existência de duas ou mais loca- identidade então costura [...] o sujeito à
lidades com o mesmo nome no Estado, pre- estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos
valecendo a mais antiga; b) respeitar o quanto os mundos culturais que eles habi-
Acordo ortográfico de 1943. tam, tornando ambos reciprocamente mais
A verdade é que a maioria dos unificados e predizíveis”.
moradores antigos chama a vila de Xique- A influência dos diamantes trouxe
Xique, justificado na presença viva da várias famílias vindas da região e os
vegetação (Fig. 4) que caracteriza o sertão primeiros garimpeiros que chegaram foram
brasileiro. O que confirma as palavras de povoando, iniciando o processo de
A.L.S. de 65 anos, nascido e criado na vila: exploração do lugar. A construção de casas
“Toda vida nós chamava Xique-Xique, [...] segue a topografia local, onde se aproveita-
porque quando eles descobriram aqui, tinha va a arquitetura natural e tocas iam se
muito esse xique-xique na serra [...]”. espalhando, dando um ar de primitiva sin-
A identidade fala mais alto, como quem gularidade. As pedras, tão abundantes e
ainda resiste às mudanças traçadas pelo excedentes da garimpagem era a matéria
tempo. Ser de Xique-Xique é ter suas lem- prima que começou a erguer a cidade de
branças preservadas, é ser fiel a sua memó- pedras.
ria, ao seu chão. É pertencer, ser daqui e Das características urbanas, as cons-
não de outro lugar, é ser raiz junto com o truções de rochas, ou pedras, saltam os
lugar. Bolle (1984: 14) reduz que a “[...] olhos. Material generoso na região, as
rochas de um modo geral são
sedimentárias, ou seja, formada por
sedimentos (areias, cascalhos9, etc)
acumuladas ao longo de milhares de anos e
que foram sedimentadas, sobrepostas em
camadas, por agentes exógenos como vento
e a água resultando na característica
geológica do lugar.
Como excedente no processo de
garimpagem, as pedras, como é
vulgarmente conhecida, passaram a
representar meio de moradia surgindo em
grutas naturais encravadas nos lajedos as
conhecidas locas ou tocas (Fig. 5), habitação
peculiar do lugar que caracterizava a vida
do garimpeiro. Essa tipologia habitacional
se espalhou pela serra abrigando famílias e
deixando sua marca na paisagem local. A
população vivia do garimpo e com ele forta-
lecia a sociedade. Era gente chegando de
Figura 4: Xique-Xique (Pilosocereus gouneillei)
na galeria Arte & Memória. Fonte: foto da todos os lugares e a teia das relações so-
autora, 2004. cioeconômicas crescia junto com as explo-
rações do diamante.
Embaixo de todas essas pedras todas
arma eficiente de resistência é a memória
morava gente. Tinha uma rua daqui até
afetiva. Dela é que depende a preservação
depois do campo de futebol, tudo cheio de rradas...e aí eles trazia tecidos, trazia lou-
gente. Tinha casas atravessando o rio, até ças, trazia material domestico, né? E ven-
em cima do João Batista. Subindo a cacho- dia essas coisas aqui e daqui pra lá levava
eira, as ruínas que se vê, tudo era cheio de diamante. Portugal se enriqueceu com nos-
gente. Até perto dos córregos dos pombos. so benefício. O diamante daqui foi todo para
o estrangeiro, para Por-
tugal, Judéia, para Eu-
ropa [...] Cada pessoa
tinha um estrangeiro
que vinha da Europa e
trazia as transações
daqui para lá.
As pessoas não
precisavam sair da vila.
Conta-se que muita
gente morreu sem con-
hecer Andaraí, o que
hoje seria praticamente
inviável, dada à de-
pendência com o lugar.
O garimpo desenhou a
configuração territorial
Figura 5: Toca de garimpeiro. Fonte: foto da autora, 2004 do espaço. Não havia
uma única terra que
Conheci tudo cheio de gente. (A. L. S., 65 não fosse revirada, um
anos, morador antigo). rio que não fosse enxugado pelas bateias e
Os dados sobre a população que Igatu peneiras, cascalhos que não retratassem a
chegou a comportar, ainda são imagem do lugar.
contraditórios. Uns falam em 9.000 outros Neste sentido, Carlos (2002: 28) coloca
contam 5.000 mil habitantes na vila e mui- que: “O lugar é produto das relações
tos outros espalhados pela serra. Não se humanas, entre homens e natureza, tecido
tem uma precisão e os números oscilam de por relações sociais que se realizam no
acordo com a imaginação e os esforços nas plano do vivido, o que garante a construção
lembranças de quem um dia já fez parte de uma rede de significados e sentidos que
desse dado demográfico. O que se sabe e, são tecidos pela história e cultura
talvez, o que mais importa, é que a vila era civilizadora produzindo a identidade. Aí o
intensamente ocupada e que sua história se homem se reconhece porque aí vive. O
construiu sob o sonho e ambição de muitos, sujeito pertence ao lugar como este a ele,
que hoje apenas fazem parte da memória pois a produção do lugar se liga
que povoou a vila até meados do século XX. indissociavelmente à produção da vida”.
O comércio era muito forte. O diamante O diamante brotava na flor da terra.
atraia a fortuna e a sociedade se abastecia Cada dia de trabalho era brindado com as
no lugar. Farmácia, cartório, bar, pensão, pedras que reluziam acalentando o sonho
casa de sinuca, dentista, lojas de tecidos de riqueza da população. “Cada boca aber-
vindos da Europa, entre outros. As transaç- ta, era uma quantidade de diamante encon-
ões internacionais, principalmente com trada. Uma porcelana de diamantes gran-
Portugal, eram constantes, já que muita des, pois os pequenos eram separados (...)
mercadoria era trocada por diamante. O com a luz do sol parecia um monte de estre-
que lembra M.S.M., 68 anos, morador anti- las”, dizia Dona A.C.S., de 70 anos, profes-
go da vila, que pela lembrança de seu pai sora aposentada, envolvida na saudade que
discorre sobre a história com um sentimen- a lembrança lhe trazia. Como um mineral
to de pertença, de orgulho de conhecer os rígido ocupando na escala de Moh’s10 o grau
passos que o trouxera até aqui. Ele dizia: 10, o diamante representa para os
O comercio era rico. Nesse tempo, dia- garimpeiros a esperança de acontecer um
mante se achava era aqui, pelos rios, enxu- “bamburro11” e mudar completamente a sua
imensa maioria aportara nas cidades cir- ficaram desocupadas viraram territórios de
cunvizinhas em busca de nova vida. Os que escavação, que viam assoalhos sendo des-
permaneceram faziam parte do lado vence- truídos por picaretas que ainda acalenta-
dor, como ainda conta M.S.M, morador an- vam sonhos. Salas, quartos, casas inteiras
tigo: “De um lado João Socorro e outro lado transformadas em garimpo, sucumbindo-se
Jose Messias. O partido deles era o de João ao desespero ou a ambição de quem ainda
Socorro, que ganhou e era do Partido Tra- estava por lá. Estarrecido Seu O.B.L. de 82
balhista com Regis Pacheco, que gan- anos rememora: “[...] o garimpo era farto
hou.Quem era do lado de Juracy Magalhães todo mundo era garimpeiro, tinha umas
não podia trabalhar na serra. E não tinha três mil pessoas aqui em Igatu, mas ao
outro meio de vida. Então por ai eles foram romper dos tempos, o tempo vai lhe mu-
se arribando, se arribando...Zé
Gomes para Mucugê, Auto pra
Mucambo, a família de Agripino
Nogueira (...) que nunca mais
voltou para aqui. Outros foram
para São Paulo e foi as-
sim...Poucos retornaram, a maio-
ria não retornou”.
Em um dialogo atemporal,
A.L.S., 65 anos reforça as
lembranças de seu conterrâneo:
“Só ficou quem era do contra. O
pessoal da parte de João Socorro,
que foi candidato a prefeito nes-
sa época do lado de Regis Pache-
co e quem ganhou foi Dr. Inocên- Figura 7: O centro da vila em meados de 1960. Fonte: Arquivo
cio do lado dele também. Aí o da Família de José Gomes da Silva.
pessoal foi todo embora, só não
foi mesmo quem não teve condiç- dando...ai foi caindo, foi caindo tanto que
ão de ir. O garimpo continuou mas era do isso aqui teve ruim, isso foi em 50, a seca e
contra. Isso deu prejuízo aí foi embora, fez ’cê sabe, metal sempre falha, né? Aonde se
fila. A família de Guilhermino Nogueira tira não bota outro né?” (grifo nosso)
foram embora, o pessoal de Telles para Igatu parecia adormecida. Bairros intei-
Brumado, Zé Gomes da Silva, seu avô, para ros foram devastados só restando ruínas do
Mucugê , era político honesto na época, era que teria sido o maior e mais movimentado
um dos grandes daqui do lado de Juracy, lugar da vila, depois do centro. O bairro
então ele não pode ficar [...] O irmão dele Luís dos Santos, atualmente o principal
Auto Gomes foi embora para o Mucambo conjunto de ruínas (Fig.8), chegou a abrigar
[...] Nós também fomos embora para o Mu- mais de 500 pessoas, o que hoje não perfaz
cambo, também não tinha condições de ir a população total da vila. Como conta
para longe aí fomos para perto. Quem tive- M.S.M, 68 anos, que “no Luís dos Santos
ram condições de ir para longe foram para (...) eu conheci casas ali, casas de negócios,
São Paulo, Rio de Janeiro, outros foram casa comercial, vendendo bebida, tecido,
para Brumado. Eu sei que fez fila em 60, carne, toucinho. Tinha carnaval, bloco de
tava uma decadência já grande”. carnaval (...), tinha muito ourives, trabal-
A partir da década de 1960 (Fig.7, p.15), hando ouro lá”. E em um suspiro de memó-
alguns moradores retornaram a vila, ao ria A. L.S., 65 anos, completa que “nas ruí-
garimpo e ao comércio, sem o mesmo brilho nas do Luís dos Santos, morava umas 500
de antes, mas com a mesma esperança de pessoas e hoje só tem Marcos...”, referindo-
enriquecimento. O lugar não mais vivia sob se a um novo morador da vila.
a luz dos diamantes refletidos na rica so- Embalado nas lembranças dos tempos
ciedade. As pedras já não eram tão abun- marcantes da vila Seu E.V.C. de 76 anos
dantes num próprio reflexo da degradação põe a saudade à sua frente e revive a
acentuada nos tempos áureos. As casas que história:
Nessa época no Luís dos Santos tinha tudo estranho (...) toda qualidade de pes-
mais de mil pessoas. Lá tinha vendada, soa. Tantas casas surgindo ai...o pessoal
tinha tudo! Fazia festa muito micareme12 e trata a gente bem, não pode também falar
bonito. Na festa de lá tinha tanta moça que mal dele, mas sinto falta do tempo que todo
fazia micareme lá e que batia no micareme mundo tinha suas casinhas e morava....e
da praça. Era separado por política, o pes- dos parentes da gente tudo junto, como
soal daqui da praça fazia um cordão e pe- agora que fiquei sozinha aqui...!”
gava campanha com o do Luís dos Santos. A.L.S., 65 anos, durante entrevista,
permanecia na saudade que os tem-
pos contados lhe trazia. O tempo de
movimento social e de crescimento
do lugar, quando rememoriza: “A
lembrança mais bonita é que tinha
umas filarmônicas muito bonita
aqui. Tinha telefone, se queria falar
com Andaraí rodava o microfonete,
aquilo é uma lembrança. Queria
falar com Mucugê, passava para
Mucugê e tinha também que sempre
descia de a pé por aí era difícil um
carro naquela época, tudo era de
animal, então...”
A lembrança nunca vem só no
destino de quem a procura. Ela está
contextualizada na eterna relação
Figura 8: Ruínas do bairro Luís dos Santos. Fonte: espaço-tempo, que nas palavras de
http://www2.uol.com.br/mochilabrasil/imagens/igatu17.jpg Carlos (2002, p.173) “implica um
Acesso em 22.out.2004. novo modo de pensar a realidade e
como o homem vive essas transfor-
Dá tristeza, hoje, porque vai lá e não ver mações num cenário sempre cam-
ninguém! biante”, e compõe a paisagem descrita. A
Os momentos de vida marcantes, memória de uma história singular remete-
narrados e registrados a luz da imaginação se ao coletivo, embora as ações sejam indi-
e da memória resgatada, traz consigo viduais. Quando questionados sobre suas
fragmentos de um tempo travado nas lembranças, os registros trazem consigo
lembranças mais bonitas pertencentes ao imagens e representações que são comuns a
lugar. É o que relata A.C.S. de 70 anos, que um território, mas sob a leitura, a visão
lembra da “infância, os colegas dos tempos cultural de um testemunho. Por mais que a
que brincava de roda, da sociedade, das história seja pano de fundo coletivo as in-
amigas, da igreja que cantavam um coro terpretações se fundamentam em experiên-
enorme... várias lembranças e a que toca cias vividas e estas são individuais (Porte-
mais é a dos meus pais (...) lembrança mais lli, 2001).
forte e bonita, meus pais aprenderam comi- A natureza que foi moldada com a explo-
go, não liam...”. A infância também povoa a ração das pedras, revirada em cascalhos e
saudade de M.C.O. que com 83 anos sente- sucumbida à degradação criou formas que
se ameaçada pela nova configuração de- contam a história, (re) significam paisagens
mográfica da vila. O intenso movimento, as e se colocam no presente para lembrar do
pessoas que entram e saem sem a ligação passado. A figura 9 (p.17) constitui uma
genealógica típica do interior, retrata um leitura, uma cartografia da memória dos
momento de insegurança da vila que ambi- moradores antigos que ao rememorar o
ciona um renascimento. Ela suspira como passado traz à tona a lembranças dos luga-
quem vê o passado a sua frente: “A lem- res que marcaram momentos e registraram
brança mais bonita é quando era criança, a história da vila.
tinha outra liberdade, que não tem hoje, do
passado...ta chegando muita gente, mas
Figura 9: Cartografia da memória – Xique-Xique de Igatu 1940-1950. Fonte: Mapa do centro urbano de
Igatu sem definição de escala, fornecido pelo IPHAN (Lençóis-BA). Elaboração: Prof. Dr.Mauricio
Moreau. (UESC-BA), com dados cedidos pela autora, 2004.
O garimpo e a sorte
Descoberto em 1844, o diamante passou
a ser a mola propulsora do desenvolvimento Figura 10: Diamantes na mão de um comprador.
Fonte: http://www2.uol.com.br/mochilabrasil-
da Chapada Diamantina. Cidades nasce-
/imagens/igatu30.jpg Acesso em 22.out.2004.
ram e decaíram com as pedras diamantífe-
ras (Fig.10). A história do diamante é a
própria história das cidades da Chapada. Os locais de mineração conhecidos como
O garimpo constituiu-se como a princi- garimpo, foram acontecendo à medida que
pal atividade econômica da região durante os próprios diamantes eram encontrados
décadas. Traçou a história política, econô- nos rios, nas rochas, espalhados na serra.
mica e toda a estrutura social narrada na Os donos do garimpo, geralmente, trabal-
memória e registrada na paisagem do lu- havam com o sistema de meia-praça, que
gar. Como toda atividade produtiva, o ga- consistia em um trabalho de parceria aonde
rimpo deixou marcas no cenário local que, havia um adiantamento em forma de feira,
sob uma ótica cultural, faz a leitura de um alimentação, enquanto o garimpeiro não
passado que não parece muito distante. encontrava a pedra. Quando acontecia, o
Ainda hoje muitos moradores estão à pro- diamante era levado para o dono do garim-
cura do diamante perdido, aquele que reali- po que tinha a “preferência” e dava o preço,
zaria o sonho de riqueza. muitas vezes abaixo do que valia, para pas-
sar adiante com uma grande margem de
lucro garantida. Como Rocha (1980, p. 50) não pagasse ai botava pra fora [...] Não
deixa claro no seu romance Maria Dusá, gosto de falar dessas coisas, garimpei a
que se passa na vila de Xique-Xique na vida toda, peguei pedras, tudo pros ou-
época de 1860: “Pois é porque ainda tenho tros...hoje não tenho nada. Me dá raiva!
coragem de arregaçar a calça e meter no pé Há quem conte ainda pelos botequins da
no trabalho, que eu gosto de contar a minha vila, que muitos proprietários de garimpo
vida. Eu fui criado no trabalho. Antes da ao receber a extração do dia pelos seus tra-
fome, eu tinha minha criaçãozinha, minha balhadores, desconfiados, davam óleo de
roça e, como pobre, sustentava a família. rícino para que não sobrasse nenhuma
Quando arrojou a seca, vendi tudo para dúvida se o que foi entregue era realmente
comer. Quando não pude mais, sai da terra. o que se tinha retirado da terra. Como ain-
Como o senhor me viu, andei mendigando, da retrata Seu E.V.C., antigo garimpeiro:
até que, por seu parecer vim pr’aqui. E por “[...] Tinha o tempo que usava a escravidão,
felicidade o trabalho não faltou. Trabalhei e para não dar ele porque judiava, engolia
alugado uns dias, fui vivendo, até que fui os diamante e no outro dia ia fazer efeito.
convidado pra trabalhar de meia-praça Agora os donos dos garimpos conhecia
num serviço de gruna13, do Bom Será14. quem fazia isso pegava e prendia o garim-
Serviço duro, senhor onde eu ia perdendo a peiro e dava óleo para o garimpeiro e espe-
vida, por ser inda reculuta. O dono teve rava sair...”
pena de mim, foi me adiantando o saco toda E por ai as histórias ganham imaginaç-
a feira, porque eu não tinha outro jeito. ão nessa relação social que em meio às re-
Depois de um mês de trabalho, em que foi ações negativas ainda se faz presente. En-
preciso arrebentar co broca um emburrado riquecer famílias era sua sina dada a sua
dos diados, também a gente catou diamante sorte. Os dentes de ouro, o luxo, a
que foi um gosto! Como meia-praça, me ostentação material e a luxuria eram
coube uns quatro contos, e eu comprei esta produtos de quem tirara a sorte grande e
casinha e botei esse negócio, porque no fim apurou um uma pedra de qualidade15 ou,
o diamante ficou cumprido”. (grifos do au- como diziam: - “fulano bamburrou!”. Já vai
tor) longe a história de quem se enriqueceu de
É o que reafirma A.C.S. 70 anos, saindo dia e a noite a “carruagem virou abóbora”.
da obra literária para a vida vivida: “Quem O período entre estar rico e ficar pobre é
não trabalhava no Brejo ou nas grunas, nos tão fugaz que dura o tempo de um jogo ou
garimpos com água ou a seco, por conta ou de uma noite bem paga nas casas badala-
para o patrão, os chamados meia-praça, das na movimentada noite da vila. Como
vendia para o patrão ou comercializava retrata Rocha (1980, p.50): “[...] Garimpo é
para terceiros”. Outro antigo garimpeiro, um jogo. Só deve jogar quem não tem muito
E.V.C., de 75 anos, fala com ressentimento a perder, e ganhando, deve sair e não vol-
da relação conflituosa e muitas vezes injus- tar, enquanto tiver dinheiro. Quer uma
ta que separa os estratos de uma sociedade: prova? Olhe, o homem que primeiro me
[...] trabalhar para pegar o diamante era alugou, estava quase rico; pois já gastou
o mais fácil, mais difícil era o que comer tudo com o serviço, com o luxo, e está infu-
né? Todo mundo podia garimpar [...] na sado que mete dó! Esta semana me veio
época de 60, 1950...dava muito diamante, o pedir o saco fiado, e eu não tive jeito senão
comercio tava maravilha ainda do garimpo, fiar”.
né? Agora o cativeiro era demais...porque o A vida do garimpeiro está entre os
garimpeiro pegava o diamante e quem dava cascalhos revirados incansavelmente dia
, quem dava a farinhazinha, fornecia cha- após dia, a espera da sorte grande, que
mado fornecimento, dava a farinha com- quando encontrada segue um já
prava o diamante [...] o garimpeiro tinha predestinado no meio:
aquela besteirinha de nada e não fazia na- Quem trabalha nos garimpos, provavel-
da, nada, nada e hoje tá mio [...] acabou o mente por influencia do meio, raro escapa
garimpeiro na serra, não tá tendo quase, tá ap mau hábito de tornar-se gastador. Se
tendo pouquinho e uma tal de uma porcen- bafejado pela sorte, tem prazer em ostentar
tagem que eles cobravam antigamente, prodigalidade: seguindo o exemplo dos
chamada quinto, hoje não tem mais [...] companheiros bamburristas, como que se
sente na obrigação de esbanjar boa parte do Seu M.S.M., 68 anos, reforça as lem-
seu ganho, promovendo beberetes e dissi- branças em uma leitura poética e com um
pando o dinheiro em outras futilidades. novelo de esperança sobre o lugar: "O Co-
(minha vida nos garimpos,1980, p.37) usa Boa foi um ponto de muita pedra, tem
O dialogo entre personagens do romance até aquela história de Maria Dusá [...] um
Maria Dusá, é um fiel retrato da realidade garimpo muito bom era Bom Será, e o re-
que perdurou na vida de tantos e tantos cente o Brejo que deu muita pedra. Não se
garimpeiros. Os diamantes brilharam e sabe se ainda tem muita pedra, se tiver lá
ofuscaram os sonhos num eterno processo por debaixo do segredo, só Deus sabe.” (gri-
dialético entre o perder e o ganhar. Seu fo nosso).
A.S. de 69 anos lembra que “dinheiro de Na figura do garimpeiro repousa a in-
garimpo é como dinheiro de jogo, tinha quietação, a coragem, o desbravamento e
aquela alegria e quando acabava ia para inevitavelmente a esperança. A saída diá-
serra de novo pegar outro”. ria, ainda no raiar do sol, hoje já aliada à
Em outra passagem pelo romance, Ro- outra fonte de renda, não se vive só do ga-
cha (1980, p. 86) escreve: rimpo, discorre a feição de um importante
Eis por que em todas as minas de di- documentário vivo e ativo da sociedade do
amantes, por grandes que sejam suas ri- diamante.
quezas, gira com rapidez maior que em O genuíno garimpeiro é uma organizaç-
qualquer outra industria, a roda da Fortu- ão especial, de educação física e moral algo
na e ninguém sabe ao justo, quando se aba- semelhante à dos marinheiros. [...] A dife-
tem os muros e levam-se os monturos, rença entre as duas classes está em que o
acontecendo ainda que aquele que se abate marinheiro obra disciplinadamente, e o
hoje, levanta-se amanhã, e assim sucessi- garimpeiro, por impulso, ambição, entu-
vamente. siasmo, ou valentia, transfigurando-se, por
O “Cousa boa” , como o próprio nome su- vezes, em mártir ou herói, é sempre o velho
gere, foi um garimpo responsável pela as- garimpeiro, o incorrigível sonhador das
censão da então vila de Xique-Xique. A bandeiras e entradas de aventureiros, vi-
abundância de diamantes cobriu de pedras vendo romanticamente, nutrido moralmen-
a sociedade local. Outros garimpos também te por um ideal de riquezas inexauríveis.
tiveram importância como o Bom Será, o (Rocha, 1980, p.80).
Criminoso, Califórnia, Angico, Piaba, Luís O garimpo contou sob intermináveis
dos Santos, Borrachudos, Bicano, Torres, montanhas de cascalhos, as chamadas
Gererê, Caetano Martins, Gameleira, Ra- montoeiras17, a história do lugar, onde a
poso, Capão, Verruga e o Brejo (Santos, própria geografia local é testemunha. Áreas
2001). Mais recente, o garimpo do Brejo reviradas, paisagens modificadas e vidas
marcou época, sendo considerado por mui- acalentadas pelo garimpo que ainda é pra-
tos como uma fonte inesgotável de diaman- ticado, mesmo sobre as sombras do medo da
tes. Dona A.C.S. de 70 anos, descreve a fiscalização. Depois da febre do diamante
relação social existente na época: datada até meados dos anos 40, segundo
O garimpo Cousa Boa, na Passagem, informantes, os garimpos continuavam
dava muito diamante, que não alcancei por trabalhando, mas agora atendendo a sua
ser menina. A segunda etapa de maior ex- população e alguns aventureiros que tei-
ploração foi no Brejo, onde a gruna foi aber- mavam em sonhar com a riqueza.
ta e vários grupos de garimpeiros trabal- Por volta dos anos 80, a Chapada passa
havam no lugar. Eram abertas portas que por uma nova procura diamantífera só que
delimitavam o espaço de exploração das dessa vez com maior presença de máquinas
‘sociedades’. O lugar era iluminado antes e equipamentos mais potentes do ponto de
por candeeiros e depois por energia elétrica, vista ambiental. São as dragas18 que
o que por si só já era uma ‘atração turísti- chegaram derrubando tudo que servisse
ca’. [...] Dizem que ainda tem a mesma como obstáculo ao seu ideal. Rochas, leitos
quantidade de diamantes, mas já morreu de rios, a própria serra se sucumbiu diante
muita gente ali, porque é um trabalho de escavações poderosas se reduzindo a
difícil e é preciso fazer as calçadas e os cascalho em pouco tempo de ação. As horas
giraus16. trabalhadas pelos antigos garimpos, agora
são minutos contados atrás dos diamantes. O garimpo que ainda sobrevive se alia a
O impacto ambiental foi intenso e irre- atividades mais segura do ponto de vista
mediável. Não se conhecia mais o lugar, o econômico. Hoje, quem é garimpeiro em
posicionamento de muitas pedras que as Igatu, também é comerciante, agricultor,
lavadeiras se encontravam para trabalhar e funcionário publico, guia de turismo, ou
contar histórias, rios assoreados que vira- seja, há a necessidade de uma atividade
vam armadilhas aos banhistas, que muitas conjugada. As dragas foram proibidas em
vezes resultou em morte com valas abertas 1996 pelo IBAMA e CRA19 e outros órgãos
no fundo do seu leito. A história que se con- responsáveis, junto a policia federal. O caos
ta não é a história que se quer. Já não se aparentemente passou, mas as marcas im-
tem o mesmo brilho da extração anterior- pressas na paisagem registram um capítulo
mente contada. A máquina aniquila o poder que mancha a história que conta à saga dos
manual. As mãos calejadas e o corpo cansa- garimpeiros na região.
do que se arriscava em busca de um sonho,
agora atende aos mandos de uma caixa de O Legado Cultural: uma aproximação para
marchas para enriquecimento industriali- o turismo
zado, muitas vezes de quem nunca tivera
por ali. Fazer um a leitura da paisagem consti-
Funch (1997: 191) narra bem essa tui um exercício de interpretação. Partindo
questão, quando diz: da noção de que “a paisagem não é um
O impacto negativo do garimpo mecani- suporte passivo, mas uma entidade ativa,
zado no meio ambiente fora multiplicado integrante e testemunha de uma dinâmica
por causa do aumento do numero de pesso- cultural que se constrói no tempo e se
as envolvidas nessa atividade e o uso de manifesta no espaço” (Oliveira, 2002: 225),
máquinas potentes nos trabalhos: crateras as etapas vividas e toda a sua produção
abertas nos leitos dos rios; cursos de água cultural são acumuladas na paisagem como
desviados e assoreados; devastação da po- uma representação contemporânea
pulação ribeirinha; detritos de maquinarias produzida em escalas temporais diferentes.
abandonados pela área e lixo acumulado A paisagem construída é uma represen-
nos acampamentos; estradas abertas pelos tação real dos tempos vividos, um reflexo do
garimpeiros para dar acesso às minas dani- modo de apropriação e dos traços culturais
ficaram trechos significativos ao longo dos dominantes, podendo ser, portanto, uma
rios da região. revisão literária da história local. Sauer
Igatu não teve a presença das dragas em (1998: 09) esclarece que “a paisagem
sua paisagem, mas muitos garimpeiros cultural é modelada a partir de uma
saíram em busca desse trabalho mecânico, paisagem natural por um grupo cultural. A
onde o impacto também subiu a serra em cultura é o agente, a área natural é meio, a
busca de condutores de uma forma mais paisagem cultural o resultado”. Com base
potente de exploração ambiental. É quando no binômio, paisagem-cultura, é que as
Nolasco (2000: 12) explica que “as dragas relações socioeconômicas desenham o espa-
não chegaram em Igatu. Os garimpos tradi- ço habitado.
cionais fizeram da região uma área sem O conceito de cultura se constrói à me-
solos, com fraturas reabertas por limpeza dida que se escuta as narrativas do local. A
do cascalho que o preenchia”. Mas o sonho apreensão dos costumes, símbolos e signifi-
do garimpo ainda vive quando se depara cados, verdadeiros instrumentos culturais,
com anseios embevecidos de saudades de pelos moradores locais estão condicionadas
Dona A.S. P. de 67 anos, “por isso que o ao modo de vida da vila. A cultura do ga-
garimpeiro vive encabulado, o pessoal quer rimpo ainda é forte na população após
acabar com o garimpo... mas a gente ainda décadas e gerações. Filho de garimpeiro,
pega um cascalho. Eu nunca peguei grosso, garimpeiro é! Essa máxima perdeu um
mais eu tinha sorte no garimpo. Ah! Se eu pouco a sua força a partir dos anos noventa,
pudesse ainda trabalharia com o garimpo!”, por conta da proibição do garimpo, embora
e Dona D.O.S. de 65 anos, “quando o negó- tenha sido válida, praticamente uma regra,
cio tá ruim a gente vai para serra. Eles nos anos de glória da atividade garimpeira.
querendo ou não, é disso que a gente veve!”. Santos (1998: 61) afirma que a “cultura,
ruas da vila, parando em sete estações pre- homens, e quando a natureza cibernética
viamente escolhidas, terminando a camin- ou sintética substitui a natureza analítica
hada na porta da igreja. Conta-se que no do passado, o processo de ocultação atinge
meio da caminhada era proibido olhar para seu auge.
trás, com o perigo de “ver as almas”, já que Um discurso que encontra apoio, com
era a hora delas. Este será o segundo ano razão, nas palavras de Yázigi (2001: 288):
que a população reviverá essa tradição. “Concordar com a espetacularização per-
Dona J.A.S.S. de 67 anos, quando meni- manente da cultura, como é norma hoje em
na tinha medo de ver a procissão passar, dia, é trabalhar para que a alienação au-
medo de ver os mortos, mas hoje faz parte mente. Mas não creio que este seja um pro-
do processo de rememoração cultural e dis- blema do turismo, mas de toda a civilizaç-
corre como acontece e o prazer que lhe dá: ão, porque toda a civilização está voltada às
O negócio dos ternos, antigamente tinha ‘produções’”.
né? Depois teve aquela parada e ficou mui- O turismo surge nas ruas da vila como a
to tempo assim... muitos anos parado. mais recente forma de apropriação do espa-
Quando é de uns dois anos pra cá que Mar- ço. Toda a característica peculiar do lugar
cos começou novamente [...] acontece na agregando suas estruturas físicas, história
quaresma da semana santa para coisar os e natureza constituem campo fértil para o
mortos, então começa das cinzas e essa reza desenvolvimento de tal atividade. Igatu
é de sete semanas [...] eu sinto muito bem, possui riquezas que vão além de uma
eu gostei muito, eu nunca participei não vitrine cultural22, ou seja, uma mera
porque nessa época o povo tinha o modo de exposição produzida com cunho
dizer que não era para olhar pra trás [...] eu mercadológico no qual as formas culturais
tinha medo de ir e não achar uma compan- são expostas sem o mínimo de zelo e
hia pra ir pra casa então eu nunca partici- respeito aos seus reais provedores,
pei. Agora com dois anos pra cá tô gostando funcionando como uma vitrine de loja cara,
de participar [...] vou no Cruzeiro , vou no na qual a população não se sente parte
Bexiguentos [...] eu acho que agora nós não integrante do que esta sendo finalizado,
ver porque começa agora oito horas e quan- mas atinge as receitas, a fala e a cara, a
do é dez horas nois tão dentro de casa e sua essência contida.
antigamente começava de onze horas em Combinar todo o legado cultural da épo-
diante e só começava chegar dentro de casa ca do garimpo, ampliando o conceito patri-
doze horas, a hora deles mesmo, dos mortos monial, dentro de princípios com base no
né, doze horas. respeito aos lugares de memória e aos laços
Considera-se um trabalho de resgate que eternizam o lugar, ainda se faz distante
que deve ser conjunto entre os principais das grandes ações práticas, vislumbrando
atores sociais que constitui uma população apenas no campo teórico.
e que, principalmente, seja para a populaç-
ão. Como coloca Ansarah (2003) que a “cul-
tura é um insumo turístico importante, mas Referências
é aquela cultura viva, praticada pela comu-
nidade em seu cotidiano. Não é um Andrade. C.S.
espetáculo que se inicia quando o ônibus 2005 “No meio do caminho tinha uma pe-
dos visitantes chega, mas uma atividade dra”: Memória, turismo e o místico na
que a comunidade exerce rotineiramente”21. paisagem de Xique-Xique de Igatu, An-
A cultura como espetáculo é uma arma daraí-BA.2005, 173f. Dissertação (Mes-
que trai a identidade local. Santos (1994: trado em Cultura e Turismo)- UESC,
23-24) reforça que: Ilhéus, Ba.
A fantasia sempre povoou o espírito dos Andrade. C.T.S.
homens. Mas agora, industrializada, ela 2002 “Um estudo etnobotânico da conexão
invade todos os momentos e todos os recan- homem/cactaceae no semi-árido baiano”.
tos da existência ao serviço do mercado e do 2002, 102f. Dissertação (Mestrado) –
poder [...] Quando o meio ambiente, como Departamento de Biologia, UEFS, Feira
natureza-espetáculo, substitui a natureza- de Santana, BA.
historica, lugar de trabalho de todos os Ansarah. M.G.R.
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Ferreira. M.M; Amado, J. (orgs.). Rio de Janeiro: Ed. FGV, p.32-41.
2001 Usos e abusos da historia oral. 4 ed. Yazigi. Eduardo.
Rio de Janeiro: FGV. 2001 A alma do lugar: turismo, planeja-
Gastal. S. mento e cotidiano em litorais e montan-
2002 “Lugar de memória: por uma nova has. São Paulo: Contexto.
aproximação teórica ao patrimônio lo-
cal”. In: Gastal. S. (org.). Turismo inves-
tigação e crítica. São Paulo: Contexto, p. NOTAS
69-81.
Geertz. C. 1
Esse artigo é parte da dissertação de mestrado
1989 A interpretação das culturas. Rio de em Cultura e Turismo (UESC-BA), orientada pela
Janeiro: Guanabara Koogan. Prof ª. Dra. Marilia Ansarah, defendida em
Joutard. P. mai/05.
2001 “Historia oral: balanço da metodologia 2
O termo nativo é aqui compreendido como as
e da produção nos últimos 25 anos”. In: pessoas que nascem no lugar.
Ferreira, M.M; Amado, J. (orgs.). Usos e 3
abusos da historia oral. 4 ed. Rio de Ja- Dado recolhido em fevereiro de 2004.
neiro: FGV, p. 42-62. 4
Produção manual feita pelo próprio morador,
Laraia. R.B. Amarildo dos Santos, colocada a venda em sua
2003 Cultura um conceito antropológico. lojinha na vila.
5
Regionalização turística da Bahiatursa.
6
Dado cedido por Amarildo dos Santos , em
sua produção “Xique-Xique: um pequeno
resumo da nossa história antiga”, 2001 ,
também a venda em sua lojinha na vila.
7
Disponível em:
http://www.cidadeshistoricas.art.br/hac/hist_0
5_p.htm#>. Acesso em:14.mar.2004
8
Localidade próxima a Andaraí.
9
Sedimentos grossos de composição e
granulometria variáveis, onde se encontram os
diamantes (MISI & SILVA, 1994).
10
Escala que mede a resistência dos minerais
de 1 a 10.
11
Ato de achar um diamante grande.
12
Micareme seria um precursor do que hoje se
conhece como Micareta, ou carnaval fora de
época.
13
Escavação feita nas rochas para retirada do
cascalho.
14
Um dos garimpos mais produtivos de Igatu.
15
O valor de um diamante depende
basicamente de quatro fatores: tamanho (peso),
forma, cor e pureza, como diz Funch (1997 p.
178).
16
Eram bases de apoio para os garimpeiros
sustentados com madeiras no interior das
grunas, para evitar que a terra desmoronasse
durante a escavação.
17
Acúmulo de fragmentos de rochas
excedentes do garimpo.
18
Bombas de água movidas a motor utilizadas
para revirar a terra a procura de diamantes.
19
Instituto Brasileiro de Meio Ambiente
(IBAMA) e Centro de Recursos Ambientais(
CRA).
20
Utilizando uma expressão de Meneses
(1999).
21
Material fornecido pela Profa. Dra. Marilia Recibido: 27 de febrero de 2008
G. dos Reis Ansarah, na disciplina Turismo, Reenviado: 18 de junio de 2008
Cultura e Lazer do mestrado em Cultura e
Aceptado: 19 de julio de 2008
Turismo (UESC/BA) em setembro de 2003.
Sometido a evaluación por pares anónimos
22
Termo e conceito designados pela autora.