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I'KI i'AKA(,Ao: Carlos Alberto Bárbaro "Se puderes, mantém a unidade

DiAdRAMAÇÃo: Carlos Volpato entre a fé e a razão."


Kl VISÃO: Iranildo B . Lopes
BOÉCIO, Vtrum Pater I V [65]

Kdivões L o y o l a
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I S H N : «.1-1.5-03145-0

(P i:i)l(;(")i;S L O Y O I . A , São Paulo, Brasil, 2005


APRESENTAÇÃO 1 1

1 — CRISTIANISMO E FILOSOFIA 17

Introdução 17
O encontro do c r i s t i a n i s m o c o m a filosofia 17
A esperança escatológica e o confront o c o m
as c u l t u r a s 20
O c r i s t i a n i s m o c o m o v e r d a d e i r a filosofia 26
A dissociação entre o domínio do teológico
e do filosófico 28
A m o d e r n i d a d e e a distinção entre filosofia
e teologia 31
O teológico n a filosofia contemporânea 35

2 — A R E A L I D A D E P R I M E I R A A Q U E TODOS DENOMINAM "DEUS" 39

Introdução 39
A existência d a R e a l i d a d e p r i m e i r a (cf. S u m a de
teologia I , q. 2 ) 41
— A existência de Deus impõe-se imediatamente
à inteligência h u m a n a ? 41
— É possível demonstrar a existência de Deus? ... 4 3
— As cinco vias p a r a demonstrar a existência
de Deus 45
Ii;msccndência e imanência (cf. Suma de teologia I , Anexo F É E RAZÃO: UMA QUESTÃO A T U A L ? 111

qq. 3-11) 55 A b e r t u r a de J u v e n a l S a v i a n F i l h o 111


— Os atributos divinos 55 Conferência de F r a n c i s c o Catão 114
— S e r i a Deus totalmente simples? 58 — A encíclica Fides et ratio: u m a questão atual?.. 114
— A metodologia tomasiana e a arquitetônica de O autor 115
seu texto 65 A encíclica
— Os outros atributos divinos 68 O binómio fé-razão 120
— D a simplicidade à infinitude e à imensidade ... 69 Circularidade intrínseca 121
O f a l a r de D e u s 71 Autonomia da razão 123
Um primeiro balanço 126
3 — S E N T I D O E P O S S I B I L I D A D E D E UMA F I L O S O F I A C R I S T Ã ,
Conferência de M a r i l e n a C h a u i 130
SEGUNDO E D I T H S T E I N 75
— O caráter autoritário d a encíclica 130
O texto de Ser finito e ser eterno I , 4 76
Debate entre F r a n c i s c o Catão e M a r i l e n a C h a u i 141
— O problema d a possibilidade de u m a filosofia
cristã 77 — P e r g u n t a s do píiblico 149
— A inspiração de Jacques M a r i t a i n e s u a — Conclusão 160
concepção de filosofia 81
— A natureza d a filosofia 82
A filosofia como ciência 82
A concepção de verdade nas ciências 84
O papel da filosofia ante as ciências naturais.... 86
— O estado cristão d a filosofia — u m perfectum
opus rationis 88
— A filosofia e a experiência pessoal de fé do
filósofo 92
Conclusão 95
— O distanciamento de M a r i t a i n e a superação
do tomismo 96
— Originalidade e atualidade do pensamento de
E d i t h Stein 98

4 — PKI-.AMBULOS À L E I T U R A DA E N C Í C L I C A FIDES ET RATIO 101

Introdução 101
A encíclica Fides et ratio e a mesa-redonda de 1999 104
A c i r c u l a r i d a d e entre fé e razão 106
E s t e livro pretende i n t r o d u z i r o leitor n o estudo do
t e m a d a s relações e n t r e fé e razão s o b u m ângulo b e m
preciso: o do encontro entre a filosofia e o c r i s t i a n i s m o .

A s s i m , o princípio q u e o r i e n t a o itinerário a q u i traçado


d e c o r r e d a n e c e s s i d a d e d e e s t u d a r esse t e m a s i t u a n d o - o e m
referência à l o n g a tradição q u e r e m o n t a a o s p r i m e i r o s sé-
c u l o s d a E r a Cristã, q u a n d o o c r i s t i a n i s m o s e s e n t i u à v o n -
t a d e p a r a i n t e r a g i r c o m a r a c i o n a l i d a d e de m a t r i z g r e g a .
N e s s e s e n t i d o , a s várias questões q u e se i m p o r i a m n e s t e
horizonte p a r e c e m resumir-se n a seguinte: c o m o e por que
se d e u o e n c o n t r o simbiótico e n t r e a m e n s a g e m cristã e o
pensamento filosófico?

F o i visando responder a essa pergunta que n a s c e r a m as


p r e s e n t e s páginas. C o m p o s t a s , a princípio, p a r a c o n t e x t o s
d i f e r e n t e s , e s e m a pretensão d e o f e r e c e r a o l e i t o r n e n h u m a
g r a n d e n o v i d a d e historiográfica, s e u m é r i to é r e u n i r , a p a r -
t i r de u m a orientação r a z o a v e l m e n t e d e l i n e a d a , vários ele-
m e n t o s q u e p e r m i t e m u m a compreensão de c o n j u n t o d a
história d o t e m a e d e s u a s implicaçõe s n o pensamento
m o d e r n o e c o n t e m p o r â n e o.

11
Fé e razão: uma questão atual? Apresentação

A s s i m , c a d a u m d o s capítulos p o d e s e r l i d o i n d e p e n - s o b a s p e s q u i s a s de história d a filosofia, quando, por exem-


d i ! i k - m e n l e , e m b o r a h a j a u m c e r t o fi o c o n d u t o r e n t r e eles: plo, se e s t u d a u m a u t o r c r e n t e e se d e p u r a a p e s q u i s a de
o liipíliilo 1 b u s c a i n v e s t i g a r , a n t e s de t u d o , c o m o s e d e u , t o d o e l e m e n t o q u e r e m e t a à s u a fé.
nas o r i g e n s d a E r a Cristã, o e n c o n t r o e n t r e o c r i s t i a n i s m o
E n t r e t a n t o , n a c o n t r a p a r t i d a d o m i t o d a auto-referência
i- a l i l o s o f i a , p a r a , e m s e g u i d a , m o s t r a r c o m o se e s t a b e l e c e u
filosófica, e s s a questão c o n t i n u a a p r o v o c a r interesse, sobre-
a o s p o u c o s a dissociação e n t r e o d o m í n i o d o filosófico e d o
t u d o n a E u r o p a a t u a l , q u e se e n c o n t r a às v o l t a s c o m o proble-
leológico, c o m s u a s conseqiiências p a r a a m o d e r n i d a d e e a
m a de c o n h e c e r s u a própria i d e n t i d a d e e q u e percebe a i m -
contemporaneidade; o capítulo 2 a n a l i s a a abordagem
p o s s i b i l i d a d e de r e s o l v e r e s s a questão u r g e n t e s e m r e s p o n d e r
t o m a s i a n a d a questão f u n d a m e n t a l de D e u s ( a quaestio Dei),
àquela o u t r a m a i s clássica q u e a n a l i s a o m o d o c o m o a s três
e, nesse s e n t i d o , t e r m i n a p o r i d e n t i f i c a r Tomás de A q u i n o
g r a n d e s tradições monoteístas (o judaísmo, o c r i s t i a n i s m o e o
c o m o u m m o d e l o d a tradição n a q u a l f i l o s o f i a e t e o l o g i a
i s l a m i s m o ) contribuíram p a r a f o r j a r o q u e se p o d e r i a s e
constituíam denominações d i s t i n t a s p a r a d i f e r e n t e s a s p e c -
c h a m a r de u m a " i d e n t i d a d e " p a r a o h o m e m o c i d e n t a l .
tos de u m m e s m o esforço, q u a l s e j a , o de c o m p r e e n d e r a
r e a l i d a d e o u a existência a p a r t i r d a R e a l i d a d e p r i m e i r a a N e s s e s e n t i d o , a s relações e n t r e fé e razão r e a p a r e c e m
que todos d e n o m i n a m " D e u s " ; o capítulo 3 , p r o c u r a n d o c o m o o b j e t o de e s t u d o n a c e n a filosófica, e i s s o se dá t a n t o
o f e r e c e r u m e x e m p l o d e c o m o e s s a questão se reflete n a n o c a m p o d a p e s q u i s a e m história d a filosofia e das men-
contemporaneidade, analisa, e m E d i t h Stein, o sentido e a t a l i d a d e s c o m o n o c a m p o d a reflexão teórico-sistemática,
p o s s i b i l i d a d e de u m a f i l o s o f i a cristã; p o r f i m , o capítulo 4 e m q u e os filósofos c o n s i d e r a m a p o s s i b i l i d a d e teórica d e
destaca os p r i n c i p a i s aspectos do pensamento exposto n a p e n s a r t a i s relações. A p e n a s p a r a c i t a r a l g u n s e x e m p l o s d a
encíclica Fides et ratio, i n t r o d u z i n d o , a s s i m , a l e i t u r a do produção bibliográfica m a i s r e c e n t e , p o d e r - s e - i a m m e n c i o -
texto d o d e b a t e d a filósofa M a r i l e n a C h a u i c o m o t e ó l o g o nar, a q u i , e n t r e o u t r o s , o c o l ó q u i o o r g a n i z a d o p o r J a c q u e s
F r a n c i s c o Catão ( o c o r r i d o e m 2 6 de m a i o de 1 9 9 9 , n a U n i - A t t a l i \a B i b l i o t e c a N a c i o n a l d e França, e o r e c e n t e l i v r o
v e r s i d a d e de São P a u l o ) , c u j a transcrição l i t e r a l aparece de A l a i n de L i b e r a ^ .
a q u i e m apêndice. , • . ;
O colóquio organizado p o r Attali o p e r a u m recorte bas-
T o d a v i a , de saída, u m a p e r g u n t a se i m p õ e : será r e a l - t a n t e p r e c i s o , p o r q u e a n a l i s a os séculos X I I e X I I I , c o m u m
m e n t e a t u a l a questão d a s relações e n t r e fé e razão? F a r i a e n f o q u e específico s o b r e Averróis, M a i m ô n i d e s e Tomás d e
sentido estudar a i n d a u m t e m a c o m o esse? A q u i n o , v i s a n d o e s t u d a r c o m o , n e s s e p e r í o d o , os três m o -
noteísmos r e p r e s e n t a d o s p o r esse s a u t o r e s , e n t r e c r u z a n d o
É c e r t o q u e s e p o d e r i a p e r g u n t a r t a m b é m p e l a s razões
m e s m a s d e s s a p e r g u n t a , m a s a l g u m a procedência p o d e ser- s u a s d i f e r e n t e s concepções de m u n d o e n t r e s i e c o m a q u i l o

llie atribuída se se t e m e m v i s t a q u e g r a n d e p a r t e d o s e x p o e n - q u e se t o r n a r i a a "ciência", p u d e r a m n u t r i r - s e r e c i p r o c a -

tes d o d i s c u r s o filosófico c o n t e m p o r â n eo defende-se m u i t a s


1. J . A T T A L I , Raison et foi, P a r i s , Bibliothèque N a t i o n a l e de F r a n -
v e z e s c o n t r a a intromissão de a s s u n t o s d i t o s "a-filosóficos"
ce, 2005.
( l e i a - s e " r e l i g i o s o s " ) e a c a b a p o r c r i a r o m i t o de u m a a u t o - 2 . C f . A . d e L I B E R A , Raison et foi. Archéologie d u n e crise, d'Albert
reiciência íilosófica. E s s e m i t o p o d e se e s c o n d e r mesmo le G r a n d à J e a n - P a u l I I , P a r i s , S e u i l , 2 0 0 3 .

12 13
I'é e razão: uma questão atual? Apresentação

i i u n l i ' i ' l o i í v i v e r e m tolerância. U m a d a s conclusões d o psicanalítica, e m e s m o u m clássico c o m o L a c a n , o q u a l ,


f o l o c i i i i o s u g e r e q u e esse " c h o q u e quádruplo " p r o d u z i u a aliás, se a p r e s e n t a v a c o m o un enfant de curé. C o m o se s a b e ,
concepção m o d e r n a de indivíduo e de razão, e, c u r i o s a m e n - F r e u d e r a u m entusiasta das L u z e s , e acreditava, por isso,
li-, n o s l e r m o s d o editor, q u e t a l c h o q u e t e r i a feito n a s c e r "o q u e a religião não p a s s a v a d e u m a ilusão, d e m a n e i r a q u e
i n e l l i o r d i s s o q u e s o m o s " n a civilização o c i d e n t a l . Já o l i v r o o p r o g r e s s o d o espírito científico a c a b a r i a p o r fazê-la c a i r
d c A l a i n de L i b e r a , c o m u m a a b o r d a g e m razoavelmente n o e s q u e c i m e n t o . N o c a s o de L a c a n , é j u s t a m e n t e o contrá-
t l i l e r e n t e d a q u e l a d o colóquio, o p e r a u m a a r q u e o l o g i a d a r i o q u e se lê: p a r a ele, a v e r d a d e i r a religião, n o f i m d o s
iineslão, t o m a n d o A l b e r t o M a g n o c o m o p o n t o de p a r t i d a e t e m p o s , haverá de e n v o l v e r t o d o o m u n d o e constituirá u m a
p a s s a n d o p o r Tomás de A q u i n o e o u t r o s a u t o r e s m e d i e v a i s fonte inesgotável de s e n t i d o p a r a o r e a l , o m e s m o "real"
p a r a c h e g a r até João P a u l o I L p r o d u z i d o p e l a ciência e q u e , s e g u n d o ele^°, tornar-se-á c a d a
v e z m e n o s suportável. N u m a a b o r d a g e m b a s t a n t e d i f e r e n t e ,
D e u m p o n t o de v i s t a m a i s e s p e c u l a t i v o , poder-se-iam
mas s i t u a d a e m c o n t i n u i d a d e c o m a m e s m a tradição p s i c a -
m e n c i o n a r o s e s t u d o s de M i c h e l H e n r y ^ , J e a n - L u c Marion"*,
nalítica, p o d e r - s e - i a m m e n c i o n a r , p o r e x e m p l o , os e s t u d o s
a l e m do colóquio organizado p o r François B o u s q u e t e
de A n t o i n e V e r g o t e " , d e n t r e o u t r o s .
P h i l i p p e C a p e l l e ^ etc. Já d o p o n t o de v i s t a de o u t r a s t r a d i -
ções i n t e r p r e t a t i v a s , p o d e r - s e - i a m m e n c i o n a r os estudos P o r f i m , não se p o d e d e i x a r de m e n c i o n a r a l g u n s a u -
clássicos d a tradição i n g l e s a , q u e c o n t a c o m r e p r e s e n t a n t e s tores brasileiros que a p r e s e n t a m u m pensamento original e
c o m o Peter Geach^, E l i z a b e t h Anscombe^, A n t h o n y Kenny^, v i g o r o s o s o b r e o t e m a d a s relações e n t r e fé e razão, d e n t r e
d e n t r e o u t r o s , o u o s e s t u d o s d a tradição hermenêutica, d o s os q u a i s d e s t a c a m - s e H e n r i q u e Cláudio de L i m a Vaz^^, F r a n -
q u a i s é b o m e x e m p l o o francês P a u l R i c o e u r ^ . c i s c o C a t ã o ' ^ M a n f r e d o de O l i v e i r a ' " ^ e F r a n c i s c o B e n j a m i n
Da p e r s p e c t i v a de a i n d a u m a o u t r a p o s s i b i l i d a d e de de S o u z a Neto^^.
abordagem, s e r i a possível m e n c i o n a r t a m b é m a tradição
10. C f . J . L A C A N , Le triomphe de la religion [précédé de D i s c o u r s a u x
3. Cf. M . H E N R Y , Cest moi la vérité: pour une philosophie du catholiques]. Paris, Seuil, 2 0 0 5 .
christianisme. Paris, Seuil, 1 9 9 6 . 11. C f . A . V E R G O T E , Interprétation du langage réligieux, Paris, Seuil,
4 . C f . J . - L . M A R I O N , R a i s o n e t f o i . I n : J . - M . L U S T I G E R , Dialogue entre 1 9 7 4 ; I D . , Religion, foi, incroyance: étude p s y c h o l o g i q u e , B r u x e l a s , M a r d a -
la foi chrétienne et la pensée contemporaine (Conférences N o t r e - D a m e de ga, 1 9 8 7 .
l ' a i i s ) , P a r i s , P a r o l e et S i l e n c e , 2 0 0 5 . 12. C f . H . C . L I M A V A Z , Problemas de fronteira [ E s c r i t o s de F i l o s o f i a
5. C f . F . B O U S Q U E T , Dieu et la raison: r i n t e l l i g e n c e de l a foi p a r m i les I ] , S ã o P a u l o , L o y o l a , 1 9 8 6 . I D . , Experiência mística e filosofia na tradição
lalionalités c o n t e m p o r a i n e s . P a r i s , B a y a r d , 2 0 0 5 . ocidental, S ã o P a u l o , L o y o l a , 2 0 0 0 ; I D . , F é e l i n g u a g e m , I n : Credo para
6. Cf. P G E A C H , Mental acts, L o n d o n , Routledge & K e g a n Paul, 1 9 5 7 . amanhã, Petrópolis, Vozes, 1971, 15-50.
7. Cf. E . ANSCOMBE, Intention, Oxford, B l a c k w e l l , ^ 1 9 6 7 . 13. C f . F . C A T Ã O , Falar de Deus. Considerações sobre os f u n d a m e n -
8. C f . A . K E N N Y , Action, emotion and will, L o n d o n, Routledge, 1963; t o s d a r e f l e x ã o cristã. S ã o P a u l o , P a u l i n a s , 2 0 0 1 ; I D . , Trindade: u m a aven-
111., '/'//(• aiialoDty ofsoul, O x f o r d , B l a c k w e l l , 1 9 7 3 ; I D . , The metaphysics of t u r a teológica. São P a u l o , P a u l i n a s , 2 0 0 0 .
iiiiiid, O x l o i d , O x f o r d U n i v e r s i t y P r e s s , 1 9 8 9 ; I D . , Aquinas on mind, Lon- 14. C f . M . A . O L I V E I R A , Diálogos entre razão e fé. S ã o P a u l o , P a u l i -
dres, Routledge, 1 9 9 3 . nas, 2 0 0 1 .
Cl'. P. R i c o i í U R , Nas fronteiras da filosofia [ L e i t u r a s 3 ] , São P a u l o , 15. Cf., especialmente, os c u r s o s dados n a U N I C A M P pelo prof. d r
l.ovohi, l')')o. F r a n c i s c o B e n j a m i n d e S o u z a N e t o s o b r e o De ente et essentia.

14 15
/'(.'' e razão: uma questão atual?

A menção a esses d i f e r e n t e s a u t o r e s , o b r a s e tradições


p o i l e i i a c o n s t i t u i r u m a p r o v a d a a t u a l i d a d e d a questão d a s
ri'laçòes e n t r e fé e razão? O m í n i m o q u e s e p o d e c o n c l u i r
é q u e não se t r a t a d e u m a questão d e s i n t e r e s s a n t e , e o
c o n v i t e q u e a s p r e s e n t e s páginas p r e t e n d e m f a z e r a o l e i t o r
é q u e ele m e s m o j u l g u e s o b r e t a l a t u a l i d a d e . M a i s d o q u e
conclusões a s s e n t a d a s , o q u e se há de e n c o n t r a r a q u i são
p i s t a s de reflexão, u m c o n v i t e a u m diálogo m a i s a m p l o .

A g r a d e c e m o s à p r o P . d r a . M a r i l e n a C h a u i e a o p r o f . dr.
F r a n c i s c o Catão p e l a g e n t i l e z a d e a u t o r i z a r e m a publicação
do texto de s e u debate.

JUVENAL SAVIAN FILHO

Introdução

E s t e capítulo v i s a i n t r o d u z i r o leito r n a a b o r d a g e m do
t e m a d a s relações entre c r i s t i a n i s m o e filosofia, o u , se se q u i -
ser, entre teologia e filosofia, o u , a i n d a , entre fé e razão, a c o m -
p a n h a n d o , n a história do p e n s a m e n t o , os m o m e n t o s mais
decisivos p a r a a determinação dessas relações. Tomar-se-á, e m
m e i o a esse itinerário, Tomás de A q u i n o c o m o e x e m p l o de
p e n s a d o r cristão, p r o c u r a n d o - s e apontar, sob u m a p e r s p e c t i v a
histórica, p a r a a o r i g i n a l i d a d e do s e u p e n s a m e n t o .
Buscar-se-á, n u m p r i m e i r o momento, investigar c o m o se
deu, n a s origens d a E r a Cristã, o encontro entre o c r i s t i a n i s m o
e a filosofia, além d a m a n e i r a c o m o a tradição cristã m a i s a u -
têntica desenvolveu os efeitos desse encontro p r i m e i r o . E m se-
guida, procurar-se-á m o s t r a r c o m o se estabeleceu, aos poucos, a
dissociação entre o domínio do filosófico e do teológico, c o m
suas conseqiiências p a r a a modernidade e a contemporaneidade.

O encontro do cristianismo c o m a filosofia

P a r a v i s l u m b r a r c o m m a i s p r o p r i e d a d e o e n c o n t r o do
c r i s t i a n i s m o c o m a filosofia, é necessário l e m b r a r que o c r i s t i a -

16 17
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Fé c razão: uma questão atual? Crisliaiiisiiio e lilosofia

iiismo, tlosdc o princípio, apresentou-se c o m o u m caminho de necessariamente n u m a o r d e m cronológica c o m o essa) f o r a m


sdivdçdo, o u , se se preferir, c o m o u m a religião. S u a o r i g e m está estruturando, aos poucos, os p r i m e i r o s grupos cristãos, que
na c c i t e / a de que J e s u s , depois de s u a morte, c o n t i n u a v a v i v o p a s s a r a m a d a r f o r m a ao caminho cristão, no q u a l se observava
(cf. A l 25,13; 2 6 , 3 2 ) , e t a l c e r t e z a p r o v i n h a , i n d i s c u t i v e l m e n t e , o p r i m a d o do testemunho e d a fé, d a liturgia , d a mística e d a
da experiência pessoal de s u a ressurreição c o m o t e s t e m u n h a - praxis: memória de Jesus C r i s t o , conheciment o e s p i r i t u a l , espe-
da pelos seus discípulos (cf. M t 28,1-8; M c 16,1-8; L c 24,1-8; J o ra apocalíptica, ética do E v a n g e l h o , tendo-se sempre c o m o fun-
20,1-18). E s s a experiência, p o r s u a vez, c o r r o b o r a v a o teste- damento o testemunho dos apóstolos^. Poder-se-ia dizer então
m u n h o prestado pelos apóstolos, pois, n o s p r i m e i r o s tempos, que, desde o início, o c r i s t i a n i s m o c o m p o r t o u u m a "teo-logia",
a dinâmica d a expansão d a fé e m J e s u s de Nazaré c o m o o ou seja, u m d i s c u r s o inteligente sobre Deus, a p a r t i r do mistério
C r i s t o de D e u s (quer dizer, o anúncio) m o s t r a v a - se c l a r a m e n t e de C r i s t o, que também explicava , p o r conseqiiência, a realidade
f u n d a m e n t a d a n a fé e m s u a ressurreição, a f i n a l, e r a a experiên- do m u n d o . A s razões desse discurso teológico p a r e c e m ser duas^:
c i a de que ele e s t a v a v i v o que l e v a v a os discípulos a crer. Nesse uma i n t e r i o r ao próprio c r i s t i a n i s m o , que consiste e m m a n t e r
sentido, são bastante eloquentes os d i s c u r s o s de P a u l o , como , a coerência do próprio anúncio e r e n o v a r sempr e a atualidade
p o r exemplo, d i a n t e do r e i A g r i p a (cf. A t 2 5 - 2 6 ) , o u e m s u a do testemunho c o m p a l a v r a s adequadas aos diversos contextos;
c a r t a aos fílipenses, n a q u a l ele r e t r a t a c l a r a m e n t e a dinâmica o u t r a exterior, que consiste e m s i t u a r o mistério cristão c o m
e m que a fé é r e c o n h e c i d a c o m o u m d o m de D e u s , pelo reco- relação à tradição j u d a i c a e à sabedoria grega (e outras, poste-
n h e c i m e n t o p e s s o a l do C r i s t o vivo, que s u s c i t a liberdade: r i o r m e n t e ) , b u s c a n d o f o r m a s de dialogar c o m elas.
[...] tudo considero perda, pela excelência do conhecimento N o período m a i s p r i m i t i v o (séculos I - I I ) , o método d a
de Cristo Jesus, m e u S e n h o r P o r ele, perdi tudo e tudo tenho teologia"* é i n t e i r a m e n t e voltado p a r a a E s c r i t u r a , n u m a l e i t u r a
como esterco, p a r a ganhar a Cristo e ser achado nele, não
cujo critério de interpretação é s e m p r e o C r i s t o , o u seja, u m a
tendo como m i n h a justiça aquela que v e m d a L e i , m a s aque-
l e i t u r a do texto bíblico cujo sentido é s e m p r e dado e m referên-
la pela fé e m Cristo, aquela que v e m de Deus e se apoia n a
fé, p a r a conhecê-lo, conhecer o poder d a s u a ressurreição e c i a a J e s u s de Nazaré entendido c o m o "o C a m i n h o , a Verdade
a participação nos seus sofrimentos, conformando-me c o m e a V i d a " ( J o 14,6). G h i s l a i n Lafont^ c h a m a esse método de
ele n a s u a morte, p a r a ver se alcanço a ressurreição de entre
os mortos. Não que eu já o tenha alcançado ou que já seja 2. C f . o e x c e l e n t e e n s a i o s o b r e o c a m i n h o cristão e a t e o l o g i a pri-
perfeito, m a s prossigo p a r a ver se o alcanço, pois que t a m- m i t i v a e s c r i t o p e l o b e n e d i t i n o G h i s l a i n L A F O N T , História teológica da Igre-
bém já fui alcançado por Cristo Jesus. Irmãos, não julgo que ja Católica, São P a u l o , P a u l i n a s , 2000, 1 1 ss.
eu mesmo o tenha alcançado, m a s u m a coisa faço: esquecen- 3. Ibid.
do-me do que fica p a r a trás e avançando p a r a o que está 4. Convé m l e m b r a r q u e o n o m e "teologia " foi d a d o à reflexão s o b r e
adiante, prossigo p a r a o alvo, p a r a o prémio d a vocação do D e u s , t a l c o m o h o j e a c o n c e b e m o s — i s t o é, u m a r e f l e x ã o a p a r t i r d a fé,
alto, que v e m de Deus em Cristo J e s u s ' . c o m p r e s s u p o s t o s bíblicos, c u l t u r a i s etc. — , s o m e n t e n o século x i , p o r
A b e l a r d o . Até então, o q u e se e n t e n d i a p o r " t e o l o g i a " e r a a metafísica
aristotélica, q u e r e c e b i a e s s e n o m e p o r s e r c o n s i d e r a d a u m a "ciência
O jogo que se estabelece entre a experiência do R e s s u s c i -
d i v i n a " , já q u e t r a t a do d i v i n o c o m o princípio p r i m e i r o do m o v i m e n t o de
tado e a adesão inteligente e e x i s t e n c i a l a D e u s ( e m b o r a não todo o cosmo, substância e t e r n a , i m ó v e l e s e p a r a d a ( c f . ARISTÓTELES,
Metafísica V I , 1.026al0).
1. Filipenses 3 , 8 - 1 2 , Bíblia de Jerusalém, São Paulo, P a u l u s , 2003. 5. C f . L A F O N T , História teológica..., 12.

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Fé e razão: uma questão atual? Cristianismo e filosofia

tiiiiildgid iiicssiânica, pois a p a l a v r a analogia refere-se à seme- evangelhos, atos, escritos apocalípticos e t c ) , de sorte que o
lhança/dessemelhança entre o que e v o c a m os textos d a Bíblia intérprete, agora, deve c o m e n t a r também a s E s c r i t u r a s cristãs,
(prolecia s consignadas, figuras evocadas, eventos n a r r a d o s etc.) além de e n c o n t r a r nelas explicações canónicas p a r a as E s c r i -
e o d u p lo e único mistério de J e s u s e d a Igreja, e n q u a n t o o turas j u d a i c a s . Além disso, a d e m o r a n a realização d a
adjetivo messiânica refere-se à e c o n o m i a específica do tempo, escalologia levo u a estender-se o espaço d a missão, visto que
duração subjacente à a n a l o g i a e d e t e r m i n a d a p e l a liberdad e passou a h a v e r t e m p o p a r a isso, de m a n e i r a que o anúncio de
de D e u s e dos h o m e n s . C o m efeito, a teologia cristã c o n s i s t i a J e s u s C r i s t o l e v o u a u m confronto c o m o u t r a s c u l t u r a s , que
e m r e m e m o r a r o dado bíblico, m o s t r a n d o - o r e a l i z a d o e m J e - íinham e m s e u favor o t e m p o e os m e i o s p a r a r e s i s t i r ao tes-
sus de Nazaré dentro do desígnio d a salvação, o que a c a b a p o r t e m u n h o . É nesse contexto que se dá o e n c o n t r o do c r i s t i a n i s -
c a r a c t e r i z a r a " a n a l o g i a cristã", segundo a q u a l o m o d e l o sur- m o e d a filosofia: a filosofia exigirá do d i s c u r s o cristão u m
ge n o f i n a l e c o r o a o tempo. E s s e m o d e l o não é dado n u m sério esforço p a r a g a r a n t i r s u a coerência e inteligibilidade.
princípio mítico o u i m e m o r i a l , n e m d o m i n a o tempo, m a s s i m N o s textos de P a u l o já se o b s e r v a esse c o n f r o n t o . P a r a o
no f i m , c o n c r e t a m e n t e e m J e s u s de Nazaré, que r e v e l a a f o r m a apóstolo, d i a n t e d a autodefinição d a f i l o s o f i a c o m o b u s c a d a
r e a l p r e s s e n t i d a p e l a E s c r i t u r a e esclarece o sentido do evento s a b e d o r i a , a autocompreensão do c r i s t i a n i s m o se a p r e s e n t a
passado. A s s i m , p o r exemplo, a S a b e d o r i a que b r i n c a n a pre- sob o s i g no de u m a " l o u c u r a " , u m a l o u c u r a d i v i n a , a l o u c u r a
sença de D e u s ( P r 8,30), que a s s u s t a p o r não s a b e r m o s onde d a c r u z (cf. I C o r 1,21-25), e, p o r i s s o, e m t a l c o n f r o n t o, se
encontrá-la (Jó 2 8 ) , o u que r e c o n h e c e m o s n o l i v r o d a L e i ( B r o b s e r v a u m a desqualificação d a s a b e d o r i a grega, de m o d o
4,1), faz-se c a r n e e m J e s u s C r i s t o ( J o 1,14) e j u s t i f i c a - s e p o r que o logos cristão p a s s a a m o s t r a r - s e contraditório c o m a
s u a s o b r a s ( M t 11,19). "A p a r t i r do princípio d a a n a l o g i a r a c i o n a l i d a d e pagã (cf. I C o r 3,18-20). O que i n t e r e s s a a P a u -
messiânica, q u a l q u e r texto d a E s c r i t u r a não só pode c o m o lo, e n t r e t a n t o , é a n u n c i a r o c r u c i f i c a d o , p o i s é e s t a a c a u s a
deve ser i n v o c a d o p a r a d i z e r o c a m i n h o cristão, e m s e u a u t o r de D e u s (cf. I C o r 1,17-19). P o r o u t r o lado, ele também m o s -
e e m seus fiéis, e fornecer os princípios de diálogo o u contro- t r a p o s s u i r certo c o n h e c i m e n t o d a filosofi a p o p u l a r helenís-
vérsia c o m os outros c a m i n h o s , j u d e u e grego"^. t i c a , p o i s , e m C o l o s s e n s e s 2,8, p r e v i n e a o s destinatários de
s u a c a r t a que não se d e i x e m c o r r o m p e r p e l a " f i l o s o f i a " , que
estava ligada aos elementos do m u n d o , o u seja, às forças
A esperança escatológica e o confronto c o m as culturas
mitológicas e demoníacas, c o m u n s ao p e n s a m e n t o pagão.
A v o l t a de J e s u s C r i s t o , a P a r u s i a , esteve presente n o Além d i s s o , e m A t o s 17,16-34, e n c o n t r a - se a c o n h e c i d a c e n a
h o r i z o n t e d a prática e do p e n s a m e n t o cristãos, d u r a n t e vários de P a u l o e m A t e n a s , d i a n t e de p e n s a d o r e s e p i c u r i s t a s e estói-
séculos, c o m o dado p r i m o r d i a l d a fé. N o entanto, a d e m o r a cos, q u a n d o ele a p r e s e n t a , e ao m e s m o t e m p o defende, a fé
e m realizar-se p r o v o c o u u m a mudança n o r e c o n h e c i m e n t o do cristã. O r a , o caráter d a relação i n i c i a l e s t a b e l e c i d a entre
conjunto d a s E s c r i t u r a s , l e v a n d o os cristãos a acrescentar-lhe c r i s t i a n i s m o e filosofia é m a r c a d o por u m antagonismo apa-
u m conjunto de escritos p r o d u z i d o s no p r i m e i r o século p a r a r e n t e m e n t e insolúvel, p o i s , c o m o já d i s s e m o s a c i m a , o c r i s -
expor c defender a fé n a s c o m u n i d a d e s ( c a r t a s de apóstolos. t i a n i s m o se a p r e s e n t a c o m o u m c a m i n h o de salvação, u m a
religião, e a filosofia, u m e m p r e e n d i m e n t o h u m a n o , r a c i o n a l ,
6. Ibid., 13. sem n e n h u m apoio transcendente.

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Fé e razão: uma questão atual? Cristianismo e filosofia

No (.•iilanto, diante do a l a r g a m e n t o do espaço de missão, a d m i t i r que é possível, p a r a a razão h u m a n a , a d q u i r i r


provocado pel a esper a escatológica, o c r i s t i a n i s m o , n o e n c o n- certo c o n h e c i m e n t o de D e u s a p a r t i r de seus efeitos,
tro c o m o p e n s a m e n t o grego, não pôde c o n t i n u a r i n s i s t i n d o m e s m o antes o u p a r a além d a revelação bíblica. Des-
s i m p l e s m e n t e n o a n t a g o n i s m o entre a s a b e d o r i a do m u n d o e cartes, p o r exemplo, depois de os m e d i e v a i s t e r e m
a l o u c u r a d a c r u z . A esse respeito deve-se e s c l a r e c e r que: c i t a d o f r e q u e n t e m e n te esse texto p a u l i n o , também
recorrerá a ele p a r a l e g i t i m a r s u a p e s q u i s a metafísica;
(1) a denúncia d a s a b e d o r i a grega não supõe u m a conde-
nação d a razão^, pois, i m p l i c a d o p e l a fé (posto que a (3) além disso, todo h o m e m e n c o n t r a , e m s u a consciên-
fé é u m a f o r m a de c o n h e c i m e n t o ) , o c o n h e c i m e n t o c i a , o c o n h e c i m e n t o n a t u r a l d a l e i m o r a l ( R m 2,14-
n a t u r a l não pode ser excluído do c r i s t i a n i s m o . C o m o 15), o que também pode l e v a r ao c o n h e c i m e n t o do
Tomás de A q u i n o explicitará m a i s tarde^, antes de tudo, legislador;
" a fé é u m ato d a razão", u m p e n s a r a s s e n t i n d o, e (4) p o r outro lado, o c r i s t i a n i s m o , ao m a n t e r e a f i r m a r o
não, p r i m o r d i a l m e n t e , u m ato d a vontade, embora Antigo Testamento, v i s a n d o consumá-lo, s i t u a a histó-
este esteja i m p l i c a d o , m a s e m subordinação ao ato de ria do h o m e m , t a l c o m o a c o m p r e e n d i a m os cristãos,
inteligência. O que se p o d e r i a p e n s a r talvez fosse u m no conjunto d a história do m u n d o tal c o m o os j u d e u s
d i s t a n c i a m e n t o r a d i c a l entre o c o n h e c i m e n t o d a fé, a t i n h a m compreendido^, inserindo, pois, a história
que remete a u m f u n d a m e n t o t r a n s c e n d e n t e , e o co- cristã d a salvação n u m a c o s m o g o n ia cujo ápice está n a
n h e c i m e n t o filosófico, que o p e r a p o r demonstração revelação do próprio Javé a Moisés n o episódio d a sarça
racional, mas, ardente: ao perguntar o n o m e de Deus, Moisés recebe
(2) n a C a r t a aos R o m a n o s ( R m 1,18-21), P a u l o defende a c o m o resposta " E u s o u aquele que é. [...] A s s i m dirás
i d e i a de que os h o m e n s têm u m c o n h e c i m e n t o n a t u - aos israelitas: ' E U S O U ' m e e n v i o u até vós" ( E x 3,14).
r a l de D e u s suficiente p a r a j u s t i f i c a r a severidade d i - Ora, ao l i d a r c o m esse dado d a revelação, não h a v e r i a
v i n a p a r a c o m os que não crêem nele, o que remete possibilidade p a r a a razão cristã de esquivar-se d a t r a -
a u m a c a p a c i d a d e i n s c r i t a n a própria razão de chega r d i c i o n a l pergunta do pensamento clássico sobre o ser:
a D e u s . O escopo p a u l i n o , e m p r i m e i r o p l a n o , é d i z e r mas o ser é Deus, porque ele é e é aquele que é, sendo,
que os pagãos são indesculpáveis, m a s d e i x a eviden- portanto, o D e u s único. E tudo o que e x i s t i r diferente
temente c l a r o o p r e s s u p o s t o de que a razão pode de D e u s terá de ser, de a l g u m a f o r m a , e m D e u s , de
c o n h e c e r a D e u s a p a r t i r de s u a s o b r a s. E s s a tese já m a n e i r a que ess a t e o r i a do ser, e m b o r a de caráter
se e n c o n t r a v a n o l i v r o d a S a b e d o r i a , que foi c o m p o s - revelado, t e m a l c a n c e metafísico, e, p o r t a n t o , não
to sob influência d a c u l t u r a grega (cf. S b 13), e impõe a b o n a n e n h u m a condenação d a razão;
a todo p e n s a d o r cristão, graças a P a u l o , o dever de
(5) n o caso do prólogo do E v a n g e l h o de João, q u a n d o o
evangelista a t r i b u i ao V e r b o de D e u s o n o m e de Logos,
7. C f . E t i e n n e G I L S O N , A filosofia na Idade Média, São P a u l o , M a r t i n s c o m o também q u a n d o P a u l o a d o t a a distinção estóica
F-onlcs, 1 9 9 5 , X V I I s s .
8. C l . Summa Theologiae, i i - i i , q. 2 , a . 1, S ã o P a u l o , L o y o l a , 2 0 0 4 ,
72, v/viM. 9. Ibid. •

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Fé e razão: uma questão atual? Cristianismo e filosofia ^

entre psyche, pneuma e sarx, e m I T s 5,23, tem-se u m a (6) e n f i m , ao e x p a n d i r s e u espaço de missão, o c r i s t i a n i s -


expressão do dado f u n d a m e n t a l d a fé segundo o q u a l m o , n a época dos P a d r e s , b u s c a não a p e n a s u m a co-
o filho unigénito de D e u s é o que e x p l i c a a formação m u n i d a d e de l i n g u a g e m c o m o m u n d o pagão greco-
do m u n d o , a s u a sustentação n a r a i z do ser, e o que r o m a n o , m a s , também, u m a interpretação d a filosofia
r e p r e s e n t a o único princípio de libertação e salvação que dê à evangelização do m u n d o greco-roman o u m
p a r a todos. N ã o se t r a t a de d i z e r que o h e l e n i s m o caráter teórico à s u a a l t u r a " . N o d i z e r de G h i s l a i n
' a b s o r v e u o c r i s t i a n i s m o ao i m p o r a d o u t r i n a do Logos L a f o n t ' ^ , o p r i m e i r o período do c r i s t i a n i s m o (que t e m
1 ao grupo cristão, m a s de e s c l a r e c e r que o c r i s t i a n i s - v a l o r paradigmático p a r a todos os o u t r o s ) define-se
m o serviu-se de u m a noção helenística, b u s c a n d o u m a pelo escatológico, m e d i a n t e o n a r r a t i v o e s u a inter-
c o m u n i d a d e de l i n g u a g e m , p a r a e x p r i m i r u m dado d a pretação, o litúrgico e s u a celebração, o ético e m s u a
fé. N o d i z e r de E t i e n n e G i l s o n : fidelidade. Porém, a esper a escatológica p r o p o r c i o n o u
u m a intensificação do caráter anagógico, iniciático-
Partindo d a pessoa concreta de Jesus, objeto d a fé
cristã, João se volta p a r a os filósofos, p a r a lhes dizer místico, do c o n h e c i m e n t o de D e u s e, devido à e x p a n -
que o que eles c h a m a m de Logos é E l e ; que o Logos são do espaço de missão, que l e v o u ao contato c o m a
fez-se carne e habitou entre nós, de modo que, es- c u l t u r a helenística, o p e n s a m e n t o cristão, c o m s u a s
cândalo intolerável p a r a espíritos e m busca de u m a raízes deitadas no t e m a bíblico d a u n i d a d e e u n i c i d a d e
explicação puramente especulativa do mundo, nós d i v i n a , viu-se e m confronto c o m a s sabedorias do U n o ,
o vimos (João 1,14)"*.
próprias do médio-platonismo, do n e o p l a t o n i s m o e
das gnoses, de m a n e i r a que o c a m i n h o cristão p a s s o u ,
E n t r e t a n t o , deve-se e s c l a r e c er que m e s m o a a f i r m a -
nesse m o m e n t o , a s e r visto sobretudo c o m o c a m i n h o
ção segundo a q u a l C r i s t o é que é o Logos não é u m a
p a r a a união mística c o m o U n o identificad o c o m o
afirmação filosófica, m a s religiosa, e o que se o b s e r v a
D e u s - P a i d a E s c r i t u r a bíblica. C o m o esse c a m i n h o
é u m a apropriação, p o r p a r t e do c r i s t i a n i s m o , de u m a
supõe certos c o n h e c i m e n t o s que estão ligados a u m
noção que lhe é útil p a r a e x p r i m i r e até i n t e r p r e t a r
caráter de purificação, e r a f u n d a m e n t a l que se per-
filosoficamente a fé, m a s n u n c a fazendo d e s s a noção,
m a n e c e s s e n a v e r d a de inteligente a c a d a e t a p a do i t i -
e m s i m e s m a , u m elemento c o n s t i t u t i vo d a fé. E s s a s
nerário, e a c a r i d a d e , que é a atitude cristã p o r exce-
apropriações, l e g i t i m a d a s, portanto, p e l a própria E s -
lência, mostrava-se , p o r s u a vez, c o m o verdade do
c r i t u r a , m o s t r a m o intercâmbio v i t a l que se i n s t a l o u
agir. E m s u m a , talvez e s s a orientação expliqu e a
' entre a religião cristã e o p e n s a m e n t o filosófico, este
fornecendo àquela m e i o s a p r o p r i a d o s p a r a e x p r i m i r - preocupação, presente desde as origens d a teologia,
se e a q u e l a fornecendo a este u m e m p r e g o i n u s i t a d o e m dizer a verdade c o m exatidão (ortodoxia), opon-
de seus próprios conceitos, ao q u a l n u n c a c h e g a r i a do-se a proposições que i n d u z a m ao erro e entra-
p o r s i só;
11. Cf. Jean-Yves LACOSTE, Philosophie. I n : IBID. (coord.), Dictionnaire
critique de Théologie, Paris, Presses Universitaires de F r a n c e , 1998, 9 0 1 .
10. GILSON, História da..., XVIII. 12. C f . L A F O N T , História teológica..., 21-23.

24 25
Fé e razão: uma questão atual? Cristianismo e filosofia

vem o c a m i n h o d a união. Há, de fato, u m elo muito I',11 l i e os m u i t o s a r g u m e n t o s a r r o l a d o s p a r a t a l justificação, o


forte entre o conhecimento e o progresso espiritual. 11 lie se deve n o t a r é que f i c a v a c o n s a g r a d o não a p e n a s o diá-
U m a união falsa, errónea, herética, o b s t r u i r i a o
logo entre a filosofia e a teologia, sobre u m fundo de r a c i o n a -
c a m i n h o ascendente d a a l m a e i m p e l i r i a a níveis
inferiores, imediatamente acessíveis às desordens lidade c o m u m , m a s , a i n d a , u m a definição do que e r a p r o p r i a -
morais'^. mente teológico e m função de u m caráter evidente de sabedo-
ria e não m a i s de u m a oposição a ela. C o m efeito, o c r i s t i a n i s -
m o deixará de a p r e s e n t a r - s e c o m o u m a "desrazão", p a r a
O cristianismo como verdadeira filosofia
autocompreender-se c o m o guardião d a v e r d a d e i r a r a c i o n a l i d a -
Pelos séculos I I I - I V ocorre n a d a m e n o s que u m a inversão de, o r e p r e s e n t a n te d a filosofia v e r d a d e i r a , u m a existência
n a m e n t a l i d a d e segundo a q u a l à s a b e d o r i a h u m a n a se o p o r i a c o n f o r m e à n a t u r e z a d a s c o i s a s , c o m o e s c o l h a d a v i d a feliz.
a l o u c u r a d a c r u z , pois, a p a r t i r de então, o que se o b s e r v a é A João Crisóstomo ( 3 4 4 - 4 0 7 ) , ao que tudo i n d i c a , deve-se
a reivindicação, p a r a o c r i s t i a n i s m o , do estatuto de v e r d a d e i r a o emprego, p e l a p r i m e i r a v e z ' ' , d a expressão filosofia cristã, e,
s a b e d o r i a e m e s m o de v e r d a d e i r a filosofia, ao preço de, m e s - no m e s m o período, o m o n a q u i s m o cristão se a p r e s e n t a c o m o
m o reconhecendo-lhe elementos de verdade, dizer-se i r r a c i o - a encarnação d a v e r d a d e i r a v i d a filosófica'^. J e a n - Y v e s L a c o s t e
n a l o e m p r e e n d i m e n t o filosófico d a A n t i g i i i d a d e greco-roma - l e m b r a , que, q u a n d o J u s t i n i a n o f e c h o u a escola filosófica de
na'"*. P a r a c o m p r e e n d e r ess a inversão faz-se necessário l e m - Atenas, e m 529, p a r e c i a que a filosofia h a v e r i a de desaparecer,
b r a r que a teologia, não d i s p o n d o de u m vocabulário e x c l u s i - mas o m o n g e cristão, que l e v a v a a " v i d a m a i s d i g n a de ser
vo, t o m o u de empréstimo d a filosofia, p a r a e x p r i m i r c e r t as v i v i d a " , p a s s o u a ocupar, n a topologia d a experiência cristã ( n a
verdades d a fé, não a p e n a s t e r m o s m a s a i n d a , conceitos, c o m o r e t o m a d a , p e l a "contemplação" cristã, de todo o c o n j u n t o
será o c a s o , p o r e x e m p l o , do e m p r e g o do c o n c e i t o de teorético-religioso que f a z i a a theoria pagã), o posto de h e r d e i -
homoousia, pelo Concílio de Nicéia I , e m 3 2 5 , ao d i z e r que o ro do filósofo. A s s i m , não somente o c r i s t i a n i s m o diz , agora,
F i l h o é omoousios ao P a i (de m e s m a essência que o P a i ) , e o que é v e r d a d e i r o e a s s u m e e m s e u d i s c u r s o todas a s v e r d a -
pelo Concílio de C o n s t a n t i n o p l a I , e m 3 8 1 , ao a f i r m a r o Espí- des que o p a g a n i s m o t i n h a tido a graça de apreender, m a s ,
rit o S a n t o omoousios ao P a i e ao F i l h o ' ^ . Orígenes j u s t i f i c a v a a i n d a , o a s c e t a cristão v i v e a v e r d a d e i r a v i d a , a s a b e d o r i a o u
esses empréstimos dizendo que ao c r i s t i a n i s m o e r a a u t o r i z a d o esuchia (tranquilidade, repouso), que s a n c i o n a existencialmente
apossar-se das r e s e r v a s d a filosofia, a s s i m c o m o aos h e b r e u s , o r e s u l t a d o d a experiência filosófica. A s s i m , o sentido do ter-
no d i a do êxodo, foi a u t o r i z a d o t o m a r os bens dos egípcios'^. m o filosofia sofre u m a transposição, p a s s a n d o , pois, a desig-
nar, n a A n t i g i i i d a d e t a r d i a , a r a c i o n a l i d a d e filosófica engen-
13. Ibid., 22. d r a d a n o seio d a experiência cristã. Pode-se c o n c l u i r , portanto,
14. C f . L A C O S T E , Dictionnaire..., 901. que, até m e a d o s do século X , a filosofia, n o Ocidente, m a n t i -
15. P a r a u m a análise m a i s c o m p l e t a d o d e s e n v o l v i m e n t o d o d e b a t e
v e r a s e u caráter e x i s t e n c i a l , e s s e n c i a l m e n t e cristão, de m a n e i -
c r i s t o l ó g i c o - t r i n i t á r i o d o s p r i m e i r o s séculos, c o m s u a s i m p l i c a ç õ e s no
v o c a b u l á r i o d o ser, c f . J . S A V I A N F I L H O , O d e b a t e cristológico-trinitári o e o
r a que p a r e c e r i a despropositado, nesse contexto, f a l a r d a s r e l a -
v o c a b u l á r i o d o ser. I n : B O É C I O . Escritos ( O p u s c u l a s a c r a ) . Tradução, e s t u -
dos c notas de J u v e n a l S a v i a n F i l h o , São P a u l o , M a r t i n s F o n t e s , 2 0 0 5 . 17. C f . P G 4 8 , 9 5 6 , a p u d . L A C O S T E , Dictionnaire..., 901.
16. C l . Ibid. 18. Cf., CASSIANO ( 3 6 0 - 4 3 5 ) , Collatio 4, P L 4 9 , 5 8 3 C .

26 27
Fé e razão: uma questão atual? Cristianismo e filosofia

(,()os entre c r i s t i a n i s m o e filosofia ( o u entre fé e razão) e m bida e p r a t i c a d a , c a d a v e z m a i s , c o m o u m a técnica s e m liga-


l e r m o s de c o n c i l i a b i l i d a d e entre a m b o s , a f i n a l , eles sequer ção necessária c o m a experiência cristã. E s s a técnica p a s s a r i a
a p a r e c i a m separados. a ser v i s t a c o m o u m prelúdio a u m saber m a i s alto.
A distinção entre filosofia e teologia tornou-se m a i s nítida
q u a n d o a própria teologia se a t r i b u i u u m caráter científico,
A dissociação entre o domínio do teológico p e r m i t i n d o fazer o m e s m o p a r a a filosofia, t a l c o m o já a p a r e c e
e do filosófico na o b r a de G u i l h e r m e de A u x e r r e ( 1 2 3 7 ) , porém, c o m a c o n -
N o entanto, esse caráter unitário, que p e r d u r o u , p o r u m dição de que a filosofia se integrasse n u m currículo científico
certo período d a I d a d e Média, também n o Oriente'^, há de ser que c u l m i n a s s e n o e n s i n o d a teologia. A s s i m , a razão filosófica
t r a n s f o r m a d o p o r volt a do século X , q u a n d o se o b s e r v a u m a p a s s a v a a ser v i s t a c o m o u m a razão p r o f a n a , ignorant e dos
dissociação e s t r i t a do filosófico e o teológico n o t r a b a l h o u n i - mistérios d a fé, de m a n e i r a que, p o r s i m e s m a , e l a sequer
versitário. J e a n - Y v e s Lacoste^'' l e m b r a que o período m e s m o p a r e c i a interessante, m a s a p e n a s e m função dos serviços que

e m que a teologia começou a e x i s t i r c o m o n o m e de theologia ela p o d i a p r e s t a r à inteligência d a fé. N o d i z e r de B o a v e n t u r a


de Bagnoreggio , se o a m o r d a E s c r i t u r a pode s e r a c o m p a n h a -
e começou a s e r p e n s a d a c o m o ciência v i u organizar-se, c o m
do de u m a m o r p e l a filosofia, é porque esta pode " c o n f i r m a r "
efeito, u m a divisão r i g o r o s a do t r a b a l h o i n t e l e c t u a l n o q u a l a
a fé^^. P a r a Tomás de Aquino , entretanto, "o estudo d a filosofia,
filosofia p e r d e u p r o g r e s s i v a m e n t e o sentido global e e x i s t e n -
t o m a d a n e l a m e s m a , é autorizado e louvável e m virtude d a
c i a l que e l a possuía antes, e d e i x o u de s e r t e m a t i z a d a senão
verdade pela q u a l os filósofos f o r a m tocados"^'*, m a s , m e s m o
c o m o atividade teórica. E r a a i n d a possível, nas escolas do século
a s s i m , não é p o r e l a m e s m a que o teólogo recorre à filosofia, e
XII, falar-se de Moisés c o m o o " m a i s inteligente dos filóso-
a existência de u m a relação de subordinação p e r m i te à teologia
fos"^', m a s , desde o século X I , a questão que o p u n h a "dialéticos"
i m p o r determinação à filosofia e u t i l i z a r seus conteúdos p a r a
a "antidialéticos"^^ já h a v i a m o s t r a d o que a filosofia e r a perce-
dar m a i s evidência aos seus próprios encadeamentos de razões.
Note-se, entretanto, que e s s a subordinação d a filosofia à
19. Cí. l^kcosTE, Dictionnaire..., 9Q2.
20. Cf. Ibid.
teologia — sendo a m b a s limítrofes m a s de f o r m a que a filoso-
21. T h i e r r y d e C h a r t r e s , a p u d : L A C O S T E , Dictionnaire..., 902. fia r e c e b a seus princípios d a teologia (que, p o r s u a vez, recebe
22. P o r "questão e n t r e dialéticos e antidialéticos" f i c o u conhecido seus princípios d i r e t a m e n t e d a ciência d i v i n a ) e forneça-lhe,
o a n t a g o n i s m o i n s t a l a d o , n o século x i , e n t r e e s t u d i o s o s q u e m a n i f e s t a -
p o r s u a vez, u m a r e s e r v a de i n s t r u m e n t o s c o n c e i t u a i s — não
ram grande interesse pelos estudos medievais d a Dialética (chegando
m e s m o a e x t r a i r conclusões t e o l o g i c a m e n t e i n f u n d a d a s , m a s s a l v a n d o - s e
o procedimento argumentativo) e seus opositores, que p r o c u r a v a m evi- r e v e l a v a t a l ênfase n o a s p e c t o f o r m a l d o d i s c u r s o , q u e a a r g u m e n t a ç ã o
d e n c i a r o c o n t r a - s e n s o d e s u a s c o n c l u s õ e s . A D i a l é t i ca e r a u m a d a s d i s - c o n d u z i a , m u i t a s vezes, a conclusões a b s u r d a s se c o n s i d e r a d a s d a p e r s -
c i p l i n a s d o trivium (Gramática, Dialética e R e t ó r i c a ) , a o l a d o d a s d i s c i - pectiva das verdades d a fé, o q u e f o i , a o s p o u c o s , c o n t r i b u i n d o para
d e s f a z e r a q u e l a u n i d a d e v i t a l e n t r e o d o m í n i o filosófico e o teológico,
p l i n a s d o quadrivium ( G e o m e t r i a , Aritmética, A s t r o n o m i a e M i i s i c a ) , d o i s
típica d o s t e m p o s a n t e r i o r e s . É n e s s e c o n t e x t o d e d e b a t e s q u e s e i n s e r e m
núcleos d e e s t u d o s q u e c o m p u n h a m o s currículos u s u a i s n a I d a d e M é -
Pedro Abelardo e A n s e l m o d e Cantuária, o s q u a i s l o g r a r a m apresentar
dia. N o c a s o d o trivium, a gramática e r a e s t u d a d a a p a r t i r de P r i s c i a n o
um pensamento mais conclusivo.
e D o n a t o ; a dialética, a p a r t i r d o Organon d e A r i s t ó t e l es e d o Isagoge de
Poilíiio, ambos traduzidos e comentados p o r B o é c i o ; e a retórica, a 23. C f . L A C O S T E , Dictionnaire..., 902.
p;ii l i r d o De inuentione d e C í c e r o . Vê-se, p o i s , q u e o i n t e r e s s e p e l a dialética 24. C f . Summa theologiae, I l - I I e , q . 1 6 7 , a . 1, a d . 3 m .

28 29
Fé e razão: uma questão atual? Cristianismo e filosofia

i m p l i c a u m a desqualificação do teológico n e m u m a redução foiísidera-o segundo a s p r o p r i e d a d e s d a s pessoas divinas^^.


do v e r d a d e i r a m e n t e r a c i o n a l ao filosófico. A f i r m a r isso s e r i a I.iilic-lanto, e s sa h a r m o n i a d a prática filosófica e a prática
c o n t r a r i a r o equilíbrio v i s a d o pelos escolásticos e a f i r m a r o teológica não s e r i a m a i s possível a p a r t i r do século X V I , o u , se
a b s u r d o de u m a fé que não pressupusess e a atividade r a c i o n a l , S C cinisei; do século de O c k h a m , pois, a i n d a que não fossem
pois, c o m o f o r m u l a Tomás de A q u i n o n a Summa theologiae aniileológicos, os filósofos de então b u s c a r i a m u m a atividade
I I - I I , q. 2, a . 1, a fé é u m a f o r m a de c o n h e c i m e n t o , u m p e n s a r filosófica c a d a v e z m a i s autónoma e u m a r a c i o n a h d a d e c a d a
assentindo. D i t o de o u t r a m a n e i r a , a distinção r a d i c a l entre vez m a i s d e s v i n c u l a d a dos p r o b l e m a s teológicos. A o r i g i n a l i -
filosofia e teologia e a redução do r a c i o n a l ao filosófico pode- tlade d a episteme que desponta n o s séculos X I V e X V reside n o
r i a c o n d u z i r à ilusão de d i z e r que a filosofia opera à luz da l a l o de que a filosofia ( e m situação universitária o u não) p a s s a
razão e a teologia à l u z d a revelação, c o m o se a teologia t a m - a ser p r a t i c a d a e m situação de independência crescente e de
bém não operasse à l u z d a razão {objectum formate sub quo), emancipação c o m relação aos laços i n s t i t u c i o n a i s de produção
mas c o m o dado d a revelação {objectum materialeY'^. de textos teológicos.
E n t r e t a n t o , vale l e m b r a r que, m e s m o e m m e i o ao contex-
to escolástico a c i m a d e s e n h a d o , pôde d e s e n v o l v e r - s e u m
A modernidade e a distinção entre filosofia e teologia
a r i s t o t e l i s m o p u r a m e n t e filosófico entre os professores de ar-
tes (todo o p r o b l e m a d a coexistência entre o filosófico e o Deve-se dizer, entretanto, que a filosofia m o d e r n a não
teológico e r a regrado p e l a F a c u l d a d e de A r t e s e a F a c u l d a d e parece r e c u s a r n e c e s s a r i a m e n t e submeter-se aos juízos teoló-
de Teologia d a U n i v e r s i d a d e de P a r i s ) , c o m o foi o caso de gicos ( c o m o é o caso de D e s c a r t e s ) o u , ao m e n o s , de debater
S i g e r de B r a b a n t ( 1 2 4 0 - 1 2 8 4 ) e Boécio de Dácia ( 1 2 7 0 ) . E r a já c o m os teólogos (desde M o n t a i g n e a L e i b n i z e Hegel), e n q u a n -
possível e n c o n t r a r entre os m e s t r e s de artes a reivindicação de to, p o r s e u t u r n o , a teologia não abandonará, seja n o século
u m a legítima independência d a razão profana , e o aristotelismo XIV, seja n a m o d e r n i d a d e , o hábito de t o m a r emprestado à
a v e r r o i z a n t e dos filósofos p a r i s i e n s e s c o n t i n h a já os f u n d a - filosofia o a r s e n a l de conceitos que lhe pareça útil. M a s não se
m e n t o s de u m a desqualificação d a razão teológica e de u m a pode m a i s falar, a p a r t i r dos m o d e r n o s , d a filosofia c o m o ciên-
redução do r a c i o n a l ao filosófico. c i a a u x i l i a r , o u , m e n o s a i n d a , s u b a l t e r n a à teologia. A filosofia
chega a receber d a teologia auxílio p a r a a consolidação de
H e n r i de G a n d ( 1 2 9 3 ) e x p r i m i u a p o s t u r a epistemológica
suas ordens de razões, m a s não estabelecerá n o v a m e n t e c o m
do século X I I I , a t r i b u i n d o ao filosófico e ao teológico u m ob-
ela o intercâmbio típico dos m e d i e v a i s . N a verdade, a d e l i m i -
jeto único, tratado p o r a m b a s a s d i s c i p h n a s de m a n e i r a dife-
tação do teológico e do filosófico d e i x o u de s e r u m a questão
rente: o c a m i n h o do filósofo v a i d a s c r i a t u r a s ao c o n h e c i m e n -
de p r i m e i r a importância p a r a os teólogos m o d e r n o s p o r u m a
to de D e u s , e n q u a n t o o do teólogo v a i de D e u s às c o i s a s c r i a -
razão s i m p l e s : e n q u a n t o e s s a delimitação r e p r e s e n t a v a u m
das. O filósofo c o n s i d e r a D e u s p o r m e i o d a s determinações
p r o b l e m a (teológico) m a i o r p a r a Alberto Magno, Tomás de
gerais pelas q u a i s este se r e v e l a n a s c o i s a s c r i a d a s ; o teólogo
A q u i n o o u D u n s Scoto, p o r q ue eles e r a m teólogos de p r i m e i r o
p l a n o e c o n t a v a m entre os grandes génios filosóficos de s u a
25. C a s o não s e j a a s s i m , c o m o se e x p l i c a o a r t i g o 8 d a questão 1
da P r i m e i r a P a r t e d a Suma: utrum haec doctrina [sacra doctrina] sit
argumentativa? [ E s t a d o u t r i n a se vale de a r g u m e n t o s ? ] . 26. H E N R I D E G A N D , Summae quest. ordin., a . 7, q. 1, f o i . 4 8 E .

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Fé e razão: uma questão atual? Cristianismo e filosofia

época, isso d e i x a de ser u m p r o b l e m a n a escolástica t a r d i a o u K iiice pçã o do estudo de filosofia. T a l divisão f u n d a m e n t a v a - s e


n a escolástica b a r r o c a , p o r não se contar, entre seus r e p r e s e n - iiiiiii e s q u e m a geral c o m o o que segue:
tantes, c o m quase n e n h u m espírito v e r d a d e i r a m e n t e filosófico 1 — Lógica:
(no sentido d a criação de u m p e n s a m e n t o o r i g i n a P ' ) , ao passo 1.1. Lógica formal o u menor — trata d a forma d a razão
que a história d a filosofia de então pôde s e r e s c r i t a s e m refe- em seus atos próprios;
rência, o u quase s e m , à teologia o f i c i a l d a s igrejas e das f a c u l - 1.2. Lógica material o u m a i o r — trata d a matéria con-
dades de teologia. , tida n a forma d a razão^*;

A s s i m , segundo a f o r m a c o m o se dá a impostação moder- 2 — Filosofia d a Natureza (que corresponde, no conjunto, à


n a do p r o b l e m a d a s relações entre teologia e filosofia, parece física de Aristóteles):
2.1. Cosmologia o u filosofia geral d a natureza — trata
ser possível a f i r m a r que é impossível q u a l q u e r coordenação
dos princípios d a natureza não-vivente;
entre os dois d i s c u r s o s . O texto filosófico, c o m o texto " s e p a r a -
2.2. Psicologia — trata dos princípios d a natureza v i -
do", não t e m n a d a m a i s de prévio ao teológico e é nesse c o n - vente:
texto (sobretudo n o século X I X ) que o c a t o l i c i s m o , p o r e x e m - 2.2.1. vegetativa;
plo, p a s s a a i n s i s t i r n u m a filosofia de referência, c o n s a g r a n d o 2.2.2. sensitiva;
os m a n u a i s de philosophia aristotelico-tomisticae (filosofia 2.2.3. intelectiva ou racional :
aristotélico-tomista), vazados n o espírito ádi philosophia perennis 2.2.3.1. geral (trata dos atos h u m a n o s e m ge-
ral);
(filosofia perene), p o r a d o t a r o novo estilo filosófico n a s c i d o
2.2.3.2. e s p e c i a l ( t r a t a dos atos h u m a n o s
p o r v o l t a dos séculos X V I e X V I I : nesses séculos, c r i a r a m - s e os
radicados n a vontade);
" c u r s o s " de filosofia, que constituíam "todos" completos, d i v i - 3 Ética:
didos e m tratados, sendo os m a i s c o m u n s o de João de S a n t o 3.1. geral — trata do ato h u m a n o enquanto ordenado a
Tomás e o de F r a n c i s c o de S u a r e z . u m fim;
João de S a n t o Tomás, n o século X V I I , e s c r e v e u u m cursus 3.2. especial — trata do ato h u m a n o enquanto ordena-
do a u m fim, m a s mediante o ordenamento a ou-
philosophicus que, ao que tudo i n d i c a , p r e t e n d i a m o s t r a r c o m o
tros homens;
a filosofia do jesuíta F r a n c i s c o de S u a r e z e r a incompatível
c o m a de Tomás de A q u i n o . A p a r t i r de então, a e s t r u t u r a de 4 Metafísica:
4 . 1 . geral — corresponde ao estudo do ente enquanto ente;
" s i s t e m a s " começou a i n f l u e n c i a r os estudos filosóficos e che-
4.2. especial — estuda as divisões maiores do ente (ente
gou a tornar-se u m género dos c u r s o s universitários. N a Ale-
criado e incriado), também c h a m a d a Teodicéia por
m a n h a , p o r exemplo, C h r i s t i a n Wolff, discípulo de L e i b n i z , inspiração leibniziana.
e s t r u t u r o u o estudo de filosofia dividindo-o n o s c u r s o s que,
posteriormente, se h a v e r i a m de c o n s a g r a r c o m o u m a c e r t a E s s e e s q u e m a p r e d o m i n o u n a organização dos estudos
eclesiásticos até o século X X , e m u i t a s escolas religiosas o ado-
27. Poder-se-ia m e n c i o n a r João de S a n t o Tomás, p o r e x e m p l o , p a r a
refutar essa afirmação, m a s não se pode esquecer q u e s u a o b r a c o n s i s t i u 28. Note-se q u e T o m á s de A q u i n o não c o n h e c e e s s a divisão, p o i s
m u i t o m a i s n u m a r e l e i t u r a e adaptação dos a r g u m e n t o s de Tomás de p a r a ele a Lógica é s e m p r e f o r m a l , cabendo, provavelmente, a João de
A q u i n o do que n a proposição de u m p e n s a m e n t o realmente original. S a n t o T o m á s tê-la d i v i d i d o e m m e n o r ( f o r m a l ) e m a i o r ( m a t e r i a l ) .

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Fé e razão: uma questão atual? Cristianismo e filosofia

t.iin até hoje. D e qualquer modo, p a r a o t o m i s m o (que não r e - lãos manteve-se e m c o n t i n u i d a d e c o m a tradição a n t i g a m a i s
p n s e i i t a , necessariamente, a s posições teóricas de Tomás de autêntica. A p e n a s p a r a m e n c i o n a r algun s d o s m a i s c o n h e c i -
Ai|iiino), o estudo d a filosofia é o estudo desses tratados. O s dos, poder-se-ia f a l a r de K i e r k e g a a r d , S c h l e i e r m a c h e r , H u s s e r l ,
medievais, ao contrário, e s t u d a v a m textos^^, notadament e os lí,dith S t e i n , H e n r i B e r g s o n , M a u r i c e B l o n d e l e t c .
lextos de Aristóteles traduzidos inicialmente p o r Boécio, além
dos textos do próprio Boécio. N o que se refere à "teologia", l i a -
O teológico n a filosofia contemporânea
se, evidentemente, a E s c r i t u r a , m a s também os P a d r e s d a Igreja,
notadamente o Pseudo-Dionísio, Agostinho e Boécio^". A meto- M a s o p e n s a m e n t o m o d e r n o apresenta, c u r i o s a m e n t e , u m
dologia dos medievais, portanto, não c o n s i s t i a e m d i s c u t i r "te- paradoxo, o de n e m s e m p r e p r o p o r u m d i s c u r s o típico de u m a
ses", m a s e m a r t i c u l a r as questões que se f a z i a m presentes n o s ciência i n t e i r a m e n t e l i v r e de q u a l q u e r tutela teológica, e a r r o -
textos o u que v i n h a m à tona p o r d g u m interesse d o momento. gar-se, ele próprio, m u i t a s vezes, ambições teóricas m a i s c l a -
O r a , n o q u e se refere à relação entre a filosofia tomista, r a m e n t e teológicas do q u e filosóficas. I s s o r e s u l t a , d u r a n t e a
o u a filosofia d i t a "aristotélico-tomista", e a s o u t r a s filosofias, c o n t e m p o r a n e i d a d e , n u m a n o v a topologia do s a b e r m a r c a d a
vale d i z e r que, e x a t a m e n t e p o r a p r e s e n t a r e m u m d i s c u r s o "se - por d u a s características f u n d a m e n t a i s : u m a p a g a m e n t o gene-
p a r a d o " , e, portanto, p o r não s e r e m o q u e u m a filosofia "de- r a l i z a d o d o teológico e m situação e x c l u s i v a m e n t e acadêmico-
v e r i a s e r " , a s " o u t r a s filosofias " serão v i s t a s a priori como eclesiástica e a e n t r a d a episódica, n a filosofia, de questões que
suspeitas p e l a filosofia o f i c i a l . Porém, a i n d a a s s i m , t u d o o que e x i g i r i a m u m t r a t a m e n t o e x c l u s i v a m e n t e teológico^^. A s s i m ,
parecesse útil à expressão d a fé c o n t i n u a v a a s e r t o m a d o s o b não é de e s p a n t a r q u e m u i t o d a teologia recente se t e n h a
empréstimo p e l a teologia, e a s divergências c o n f e s s i o n a i s i m - constituído e m textos filosóficos o u que p a s s a m c o m u m e n t e
plicarão f o r m a s d i v e r s a s de recepção d o filosófico n o seio d o c o m o filosóficos. A razão desse fato talvez p o s s a ser b u s c a d a
teológico, e m b o r a esse processo de recepção não t e n h a sofrido n a diferença d a atividad e d i t a teológica n a e r a m o d e r n a c o m
c o m a s b a r r e i r a s c o n f e s s i o n a i s, o que constituirá u m dos p r i n - relação à escolástica, pois a u n i v e r s i d a d e m e d i e v a l p r o p u n h a
c i p a i s m o t o r e s d a evolução teológica. À m a r g e m d e s s a meto- u m ritmo orgânico q u e c u l m i n a v a n o estudo d a teologia, " r a -
dologia manualística^', u m grande número de p e n s a d o r e s c r i s - i n h a d a s ciências", de m o d o que a F a c u l d a d e de Teologia d i s -
tinguia-se p o r u m a r e f i n a d a efervescência c r i a t i v a , i n s e r i d a n o s
29. A p r i m e i r a função d o m e s t r e e m t e o l o g i a ( q u e e r a , n a v e r d a d e , debates de s e u tempo, ao passo que, depois d a I d a d e Média,
o p r o f e s s o r u n i v e r s i t á r i o ) e r a legere, "ler", "lecionar". Cf. C . A. R . NASCI-
a teologia universitária não p a r t i c i p o u senão de m o d o m a r g i -
M E N T O , Santo Tomás de Aquino — O boi mudo d a S i c í l i a, S ã o P a u l o ,
EDUC, 1992, 22ss.
nal dos debates que agitaram o mundo intelectual. N a
30. H a v e r i a q u e m e n c i o n a r , n a b i b l i o g r a f i a l i d a p e l os m e d i e v a i s , m u i t a s escolástica, a s i n f o n i a d o s conceitos filosóficos i n t e r a g i a c o m
o u t r a s o b r a s ( o Livro das causas, a s Sentenças de Pedro L o m b a r d o e t c ) , a p e s q u i s a teológica, n o i m p u l s o u n i f i c a d o p e l a r a i z r u m o à
além d e s e m e n c i o n a r a s épocas e m q u e e l a s s u r g i r a m o u m a i s e x e r c e r a m
transcendência. C o m os escolásticos m o d e r n o s , a filosofia r e -
influência. I s s o , p o r é m , f a r i a d e s v i a r u m p o u c o d o q u e s e p r e t e n d e aqui:
trata-se s i m p l e s m e n t e de insistir n a metodologia medieval de leitura de
t e x t o s , p o r o p o s i ç ã o à e l a b o r a ç ão m o d e r n a d e t r a t a d o s sistemáticos. tóteles e d e T o m á s d e A q u i n o , q u e , aliás, s ã o c i t a d o s abundantemente:
31. U m a menção deve s e r feita à o b r a de J o s e p h Gredt, que, e m - J . G R E D T , Elementa philosophiae aristotelico-thomisticae. Barcelona,Her-
b o i a s e g u i n d o o m e s m o m é t o d o neoescolático d o t o m i s m o , destaca-se, der, 1 ^ 9 6 1 , 2 v i s .
s e m dúvida, p o r s e u esforço d e m a n t e r f i d e l i d a d e a o s textos de A r i s - 32. C f . L A C O S T E , Dictionnaire..., 904.

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Fé e razão: uma questão atual?
Cristianismo e filosofia

d u z i u - s e a esquematizações m o r t a s , e a teologia, à a t i v i d a de
m ã o " . N a verdade, a filosofia tende a mostrar-se a b e r t a a toda
de controle d a o r t o d o x i a .
manifestação a u t e n t i c a m e n t e h u m a n a , e, p o r isso, de outro
U m outro dado importante a considerar no pensamento
lado, não se c o n c e b e m a i s u m tipo de filosofia que ignore
contemporâneo pode s e r expresso a p a r t i r d a preocupação
m e t o d i c a m e n t e a q u i l o que a teologia p e r m i t e p e n s a r O r a , se
heideggeriana c o m o " f i m d a filosofia", o u seja, d a i n c e r t e z a
não há divisão r e a l n o i n t e r i o r do h o m e m e se s u a t r a n s c e n -
que m a r c a a relação d a filosofia contemporânea c o m s u a pró-
dência se dá p o r u m m e s m o ímpeto que b r o t a de s e u interior,
p r i a identidade. N u m t a l contexto, a própria filosofia parece então a s v i a s d a filosofia e d a teologia m o s t r a m - s e u n i d a s n a
r e c u s a r u m estatuto de "filosofia s e p a r a d a " e abre-se à totali - r a i z d a i n t e r i o r i d a d e: d i f e r e m os m a t i z e s , m a s o i m p u l s o p a -
dade d a s manifestações a u t e n t i c a m e n t e h u m a n a s , a b o r d a n d o , rece o m e s m o .
e x a t a m e n t e p o r isso, questões de caráter m a i s p r o p r i a m e n t e
teológico do que filosófico. D e s s a f o r m a , o m u n d o c o n t e m p o -
râneo não e s t a r i a forjando u m a n o v a r a c i o n a l i d a d e ? E m b o r a
haja, s e m dúvida, filosofias a b e r t a m e n t e contrárias às razões
cristãs, há também aquelas que são t e o l o g i c a m e n te n e u t r a s , e,
tanto estas c o m o a q u e l a s p o d e m c o n t r i b u i r c o m a atividade
teológica, pois, s u b v e r t i d a s inteligentemente, a s filosofias d i t a s
"anticristãs" p o d e m f e c u n d a r a inteligência teológica d a s c o i -
sas, e n q u a n t o a s filosofias n e u t r a s , c o m o é o caso, p o r e x e m -
plo, d a filosofia d a l i n g u a g e m o u d a filosofia analítica, p o d e m
fornecer verdades " p r o f a n a s " que p o s s i b i l i t a m consistência e
pertinência linguística ao d i s c u r s o teológico.
N ã o se t r a t a de ver, nesse intercâmbio, u m e s c r a v i s m o
i m p o s t o p e l a teologia à filosofia, concepção, aliás, não a u t e n -
t i c a m e n t e m e d i e v a l , c o m o se m o s t r o u a c i m a , porém logo
e r r a d i c a d a n o R e n a s c i m e n t o , i n c l u s i v e porque, desde há m u i -
to, a teologia não r e i n a m a i s sobre a s ciências. Trata-se, s i m ,
de p o s t u l a r u m a relação de c i r c u l a r i d a d e entre teologia e filo-
sofia, fé e razão, c r i s t i a n i s m o e filosofia; c i r c u l a r i d a d e essa e m
que se r e a l i z a u m a t r o c a , n a q u a l o filosófico e o teológico
dão-se m u t u a m e n t e a pensar, s e m que a identidade d a instân-
c i a d i t a "filosófica" seja d e f i n i d a e m função d a teologia. C o m
e s s a t o p o l o g i a , e s c a p a - s e à concepção d a f i l o s o f i a como
propedêutica d a teologia o u c o m o filosofia c o n t r o l a d a p o r u m a
instituição, c o m o e r a o c a s o d a filosofia aristotélico-tomista d a
neoescolástica e d a s meta&'sicas de e s c o la do l u t e r a n i s m o a l e-
33. Cf. Ibid. 905.

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