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De volta a

Roland Barthes
Leyla Perrone-Moisés
Maria Elizabeth Chaves de Mello
(Organizadoras)

De volta a
Roland Barthes

Editora da Universidade Federal Fluminense


Niterói, RJ - 2005
Copyright © 2005 by Leyla Perrone-Moisés e Maria Elizabeth Chaves de Mello
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Edição de texto: Icléia Freixinho
Revisão: Tatiane de Andrade Braga e Rozely Campello Barrôco
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: José Luiz Stalleiken Martins
Ilusração da capa: Retrato de Roland Barthes, de Robert Lajou Jude. Óleo sobre
tela, 1965. Coleção Particular, Strasburg. Extraído do catálogo
da Exposição do Centre Georges Pompidou. Edições do Centre
Pompidou, Paris, 2002.
Supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo

Dados Internacionais de Catalogação-na-fonte - CIP


M714 Perrone-Moisés, Leyla
De volta a Roland Barthes / Leyla Perrone-Moisés, Maria Elizabeth Chaves
de Mello (organizadoras) — Niterói : EdUFF, 2005.
145 p. : il. ; 21 cm. —
Inclui bibliografias.
ISBN 85.228-0405-2
1. Linguagem. 2. Roland Barthes. I. Título.
CDD 400

Este livro, publicado no âmbito do programa de auxílio à publicação,


contou com o apoio do Ministério Francês das Relações Exteriores.
Cet ouvrage, publié dans le cadre du programme d’aide à la publication, bénéficie du
soutien du Ministère Français des Affaires Etrangères.

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Virgínia Maria Gomes de Mattos Fontes
Sumário

Apresentação, 7
Leyla Perrone-Moisés e Maria Elizabeth Chaves de Mello

Barthes moderno e antimoderno


ou O romance de Roland Barthes, 13
Antoine Compagnon

Barthes, Brecht e Marx, 29


Philippe Roger

Retrato de Roland Barthes em Don Juan, 47


Françoise Gaillard

O horror à estereotipia e o discurso político, 63


João Batista Natali

Um mundo enclausurado:
a polêmica entre Barthes e Camus, 69
Manuel da Costa Pinto

A paixão isenta (o “pequeno Barthes”), 81


Evando Nascimento

O rumor do autor em Fragmentos


de um discurso amoroso, 99
Marcelo Jacques de Moraes

O que existe para mim: fichas,


cores, fragmentos, 113
Lúcia Teixeira

A prática da Aula nos cursos


do Collège de France, 131
Leyla Perrone-Moisés

Colaboradores deste livro, 143


Apresentação

É com grande prazer que apresentamos ao leitor este livro. Há cinco


anos atrás, os 20 anos da morte de Barthes foram lembrados em
colóquios realizados nos Estados Unidos e na França. Um pouco
mais tarde, de dezembro de 2002 a março de 2003, o Centre Georges
Pompidou de Paris homenageou-o com uma grande exposição. Na
mesma ocasião, suas obras completas foram publicadas numa edição
corrente, em cinco volumes, e os últimos cursos por ele ministrados,
no Collège de France, começaram a ser editados. Vários números
especiais de revistas lhe foram consagrados. Assim, depois de um
período de relativo esquecimento, purgatório habitual por que pas-
sam os famosos recém-falecidos, Barthes voltou aos catálogos das
editoras, às pautas universitárias e às manchetes dos jornais. O livro
que apresentamos ao leitor em 2005 faz parte desse movimento de
volta a Barthes.
Por que voltar a Barthes? Porque mais de três décadas depois do es-
truturalismo e da “aventura semiológica”, de que ele foi um dos mais
famosos representantes, torna-se cada vez mais evidente que ele foi
muito mais, ou coisa diversa, do que um estruturalista ou semiólogo
literário. De fato, Barthes resiste a estas e outras etiquetas, porque
sua carreira intelectual caracterizou-se pelo que ele chamou de “tática
do deslocamento”, o que consistia em mudar de conversa logo que
determinado discurso “pegava”, tornando-se estereotipado, repetitivo,
morto. Assim, podemos distinguir em sua obra três etapas principais:
a primeira, nos anos 50, de fundamentação sociológica e marxista;
a segunda, nos anos 60, estruturalista e semiológica; e a terceira, a
partir de O prazer do texto (1973), em que sua ética da linguagem se
afirma plenamente e seus textos se libertam de todo constrangimento
sistemático, para se assumirem como gozo pessoal da linguagem, isto
é, escritura, escrita literária.
Embora a literatura tenha sido sua maior paixão, a obra de Bar-
thes recobre uma vasta gama de temas, e interessa a especialistas
de várias áreas. Suas Mitologias, análises dos mitos da socieda-
de francesa dos anos 50 mantêm, quase meio século depois, sua
extraordinária agudeza, seu humor, sua justeza, em suma, sua
vitalidade. Essa crítica ideológica dos ícones da comunicação
de massa tornou-se fonte de inspiração para determinado tipo
de crítica cultural que só ganhou status universitário global depois
de sua morte. Seus escritos sobre teatro, reunidos em recente edição,
impressionam por uma coerência interna que não se percebia antes,
quando estavam dispersos. Seus textos sobre a fotografia, em especial,
A câmara clara, inspiram hoje numerosos ensaios dedicados a essa
arte. Os Fragmentos de um discurso amoroso, comentário refinado
e erudito das principais figuras do tema, alcançaram um enorme pú-
blico, tornando-se um supreendente best-seller. Além disso, Barthes
deixou textos sobre artes plásticas, moda, gastronomia e numerosos
outros assuntos, todos caracterizados por sua maneira pessoal de nos
mostrar as coisas como se nunca as tivéssemos visto antes.
Aqui no Brasil, Barthes tem sido referido na imprensa desde o fim
dos anos 60 e editado desde 1970, quando foram traduzidos Crítica
e verdade e uma seleção dos Ensaios críticos, por Leyla Perrone-
-Moisés. Depois disso, num ritmo ininterrupto, todos os seus livros
têm sido traduzidos e publicados por diversas editoras. De 1988 a
1991, os Fragmentos de um discurso amoroso, numa bela adaptação
teatral de Teresa de Almeida, protagonizada por Antônio Fagundes,
foram vistos por milhares de espectadores através do Brasil.
Na universidade, as referências a Barthes têm sido intermitentes.
Nos anos 60 e 70, período em que uma grande massa de estudantes
brasileiros se deslocou para Paris, em busca de ares políticos menos
repressivos e de novas fontes teóricas, grande parte dos professores
universitários de literatura, atuantes nas décadas seguintes em várias
partes do país, sofreu direta ou indiretamente a influência de Barthes.
Na década de 1980, aquele Barthes estruturalista e semiológico foi
rejeitado pela academia, como já havia sido abandonado por ele
mesmo. As referências a ele nos trabalhos universitários tornaram-se
mais raras. Em compensação, ele continuou a ser descoberto e lido

8
pelas gerações mais jovens, independentemente das bibliografias
universitárias.
O que faz com que Barthes continue exercendo esse interesse, que
mais se parece com um encantamento? A influência de Barthes é
sutil, manifesta-se mais numa postura diante do saber do que numa
adesão conceitual. O principal de sua obra não contém uma teoria
forte, nem modelos analíticos aplicáveis. Mas tem o charme de sua
escritura e o atrativo de sua personalidade liberal, no sentido estrito
dessa palavra. Apesar de todos os seus deslocamentos, Barthes se
manteve sempre firme na luta contra as linguagens estereotipadas,
a ideologia disfarçada em natureza, a arrogância e o autoritarismo
discursivos. O saber presente em sua obra, embora vasto, nunca
se tornou pesado, mas foi por ele explorado como fonte infinita de
prazeres. Nos textos de Barthes encontramos essa coisa rara: a pre-
sença da sensualidade, do afeto e do humor no discurso acadêmico.
Um saber com sabor. Numa época como a que vivemos, de barbárie
política e cultural, a inteligência e a delicadeza de Barthes aparecem
como, ao mesmo tempo, anacrônicas e necessárias. E é por isso que,
hoje, voltamos a ele.
O presente livro é uma coletânea de trabalhos apresentados em dois co-
lóquios sobre o autor. O primeiro, intitulado Colóquio Roland Barthes
com Saber e Sabor, realizado na Universidade de São Paulo (USP),
de 29 de setembro a 10 de outubro de 2003, e o segundo, o Colóquio
Roland Barthes, que aconteceu no dia 3 de outubro de 2003, na Uni-
versidade Federal Fluminense (UFF/Niterói, Rio de Janeiro). Ambos
resultaram de parceria entre as pós-graduações das respectivas univer-
sidades e o Bureau du Livre da Embaixada da França, responsável pela
participação, nos dois colóquios, dos professores franceses Antoine
Compagnon, Françoise Gaillard e Philippe Roger, que apresentaram
seus trabalhos nas duas universidades. É graças a essa parceria que
este livro obteve os meios para ser publicado pela EdUFF.
O livro se abre com o texto da comunicação proferida por Antoine
Compagnon, da Columbia University e Paris IV, “Barthes moderno
e anti-moderno”, que propõe reflexões sobre a literatura, o romance

9
e a própria obra de Roland Barthes, a partir do seu último curso, “A
preparação do romance”, em que Barthes teria questionado todo o
seu percurso teórico, em busca de outros caminhos.
Do mesmo modo, “Barthes, Brecht e Marx”, o texto de Philippe
Roger, da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, apresenta
o afastamento de Barthes do cientificismo e da militância, ao final da
vida, como formas de tentar novas vias de reflexão sobre a literatura,
a arte e a vida.
Ainda da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, o texto de Fran-
çoise Gaillard, “Retrato de Roland Barthes em Don Juan”, persegue essa
mesma via dos múltiplos Barthes, estabelecendo relações entre Barthes e
Don Juan, pela colocação das razões do mundo longe de Deus e por um
suposto donjuanismo de ­espírito, que teria levado Roland Barthes a flertar
com inúmeros objetos e trocar de amor a cada livro.
Estudando essa troca permanente de amores, o jornalista João Batista
Natali, ex-orientando de pós-graduação de Barthes, no seu texto,
“O horror à estereotipia e o discurso político”, analisa a relação de
Barthes com o discurso do poder e da política em geral, insistindo na
“ausência ativa” barthesiana.
Por sua vez, o também jornalista e autor de um livro sobre Ca-
mus, Manuel da Costa Pinto, no texto “Um mundo enclausurado
– a polêmica entre Barthes e Camus”, apresenta reflexões sobre
a questão do engajamento, que, em Barthes, adquire curiosos aspectos,
quando se trata da ordem política e moral.
Ainda nessa linha, em “A paixão isenta (o pequeno Barthes)”, Evan-
do Nascimento insiste no permanente autoquestionamento do autor,
ao afirmar que, para Barthes, rever seus textos passados tratava-se
principalmente de não restaurar uma suposta verdade anterior, mas
ver-se como um sujeito que circula acompanhando a rotação per-
manente do simbólico. Evando Nascimento nos remete a Barthes
falando das múltiplas vozes que o habitam e que ele quer fazer ouvir
em sua multiplicidade.

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Multiplicidade que se faz presente também no texto de Marcelo
Jacques de Moraes, que apresenta uma reflexão sobre o modo como
a simulação do discurso amoroso empreendida nos Fragmentos or-
questra, com as vozes que os compõem, uma certa “experiência de
rumor”, por meio da qual se “[desenha] uma inteligência”, um estilo,
encenando e reconfigurando – com ou contra o próprio Barthes – a
noção de autoria.
Na área da semiótica, Lúcia Teixeira, estabelecendo uma relação
entre as fichas e a escritura plástica de Barthes, a partir de dois tex-
tos, O Roland Barthes por Roland Barthes e o catálogo da exposição
R/B: Roland Barthes, detém-se sobre a análise dos suportes dessas
escrituras e um certo modo de organização, pensando na relação entre
fragmentar e disciplinar, divagar e ordenar, brincar e conter, que se
expressa nesses dois tipos de escritura, tendo sempre presente a idéia
do que Barthes chama de “a estrutura como garantia de liberdade”.
Prosseguindo nessa questão da liberdade, encerrando o livro, o texto
de Leyla Perrone-Moisés, “A prática da aula nos cursos do Collège”,
apresenta os cursos como uma proposta da “linguagem refletindo
sobre a linguagem”. Essa concepção do método, segundo a autora,
estava expressa na Aula, quando Barthes dizia que, em seu ensino, o
método não seria heurístico, isto é, visando produzir deciframentos
e apresentar resultados, mas, como propunha Mallarmé, seria uma
ficção. Assim, o projeto utópico de Barthes seria o de uma pequena
comunidade móvel, na qual cada um dos membros pudesse viver ao
mesmo tempo em companhia e em liberdade.
Nosso livro oferece, assim, não só aos pesquisadores da área de
Letras, mas a todos os interessados em refletir sobre a linguagem,
material rico e diversificado tanto em informações e reflexões que
contém sobre Roland Barthes, quanto na rede teórica que o mobiliza.
Leyla Perrone-Moisés
Maria Elizabeth Chaves de Mello
(Organizadoras)

11
Barthes moderno e antimoderno ou
o romance de Roland Barthes1

Antoine Compagnon

Em 23 de fevereiro de 1980, a última aula de Roland Barthes no


Collège de France foi melancólica. Ele chegava a conclusões, após
dois anos de ensino, sobre A preparação do romance, romance
que não foi concluído. Dois anos mais tarde, Barthes foi vítima de
um acidente perto do Collège, acidente que não poderia lhe ofe-
recer risco de vida, mas do qual ele nunca se recuperou. Algumas
pessoas não deixaram de atribuir um sentido a essa coincidência.
“Qual seria a conclusão desse curso? – A própria obra.”, questio-
nava e respondia Barthes, em 23 de fevereiro (BARTHES, 2003,
p. 377). Mas o curso terminava sem a obra: “Infelizmente, no que
me diz respeito, isso não está em questão: não posso tirar nenhu-
ma Obra do meu chapéu, e, com certeza, certamente não seria o
caso do Romance cuja Preparação eu quis analisar” (BARTHES,
2003, p. 377). O advérbio infelizmente, que exprime o lamento,
vale por uma confissão: Barthes não teria ficado contrariado se o
curso tivesse terminado com um romance; um romance não teria
sido uma conseqüência inoportuna do curso.
A isso se seguia uma passagem rasurada, ou melhor, duas, que Bar-
thes não pronunciou em 23 de fevereiro de 1980. A primeira delas:
“Será que eu conseguirei um dia? Não é evidente, nem mesmo para
mim, hoje, quando escrevo estas linhas (1 de novembro de 1979),
que ainda escreverei coisas que não sejam banais, adquiridas, re-
petitivas. Nada na linha da Inovação, da Mutação” (BARTHES,
2003, p. 377). Barthes renunciou a fazer essa confidência amarga,
a manifestar em voz alta sua insegurança quanto ao futuro dos
seus trabalhos; não quis expor o embaraço que vivia, marcado,
é bem verdade, três meses antes, por um dia pouco favorável a

1
Traduzido do francês por Maria Elizabeth Chaves de Mello.
Antoine Compagnon

projetos, o feriado de Finados. Faltava-lhe a inspiração ou o vigor


para continuar a inventar, para pôr em prática o que ele chamava
há vários anos de sua Vita Nova, vida liberada da repetição, do
“nhém-nhém-nhém”, vida inteiramente consagrada à escrita.
Ora, uma segunda passagem, entre parênteses, formulada de ma-
neira análoga como pergunta e resposta, já havia sido rasurada num
primeiro momento. Por ocasião da redação do feriado de Finados,
a constatação da ausência de qualquer romance e a explicação
pela incapacidade de inovação eram seguidas de um comentário
ainda mais pessoal, demasiadamente íntimo, sem dúvida, para que
Barthes tenha pensado por muito tempo em fazê-lo em público:
“Por que essa dúvida? – Porque o luto que citei no início deste
curso, há dois anos, mudou profunda e obscuramente o meu de-
sejo do mundo” (BARTHES, 2003, p. 105). Barthes interpretava,
nesse Dia de Finados de 1979, sua dificuldade em escrever um
romance, ou mesmo qualquer coisa de novo, como conseqüên­
cia do luto pela sua mãe, morta dois anos antes, em outubro de
1977. A escrita do romance exige generosidade, amor do mundo,
vontade de abraçá-lo.
Entretanto, Barthes acabava de publicar La Chambre claire,
lançado nas livrarias na semana da última aula do Collège, e o
curso sobre A preparação do romance começara com energia, no
outono de 1978, pela narrativa da decisão de Vita Nova. Barthes
­resumira suas primeiras aulas sobre o desejo de escrever numa
das melhores conferências de sua vida, “Longtemps, je me suis
couché de bonne heure”, pronunciada no Collège de France, em
outubro de 1978, depois na New York University, em novembro,
na qual Proust servia como modelo para a vontade de mudar de
vida e de escrever. E os dois anos do curso haviam sido marca-
dos por sugestões sobre o prosseguimento da sondagem sobre A
preparação do romance, sobre a frase ou o estilo, por exemplo.
Entretanto, após algumas aulas entusiasmadas, o curso havia se
desviado rapidamente, a pretexto de uma reflexão sobre a notação
prévia do romance, para considerações variadas sobre o haicai,
antes de voltar rapidamente e como conclusão, para a passagem

14
Barthes moderno e antimoderno ou o romance de Roland Barthes

da notação no desenvolvimento romanesco. E, no segundo ano,


Barthes chegara rapidamente à constatação de seu fracasso,
diante da primeira prova da iniciação ao romance – a escolha
fundamental da forma a adotar, fragmentária ou orgânica: “Há,
portanto, aqui, neste momento do Curso, uma lacuna .Eu não
resolvi a primeira prova” (BARTHES, 2003, p. 266). Ele havia se
engajado, naquele momento, numa descrição minuciosa da “vida
metódica” do escritor (expressão de Chateaubriand): seu egoísmo,
disciplina, horários, alimentação, farmacopéia, proxêmica, ritos,
manias. Com que intuito, já que o obstáculo da forma romanesca
não havia sido transposto: “[P]ensar demasiadamente no Quarto,
na Casa, na Vita Nova, é preencher artificialmente, talvez, um certo
vazio da Obra, uma certa esterilidade”, observava para si mesmo
(BARTHES, 2003, p. 305). Se a vontade reside nisso, escrevemos
em qualquer lugar e de qualquer maneira, no café, com uma Bic,
e não comemos, nem dormimos.
Assim, nos dois cursos, a metade tivera ar de digressão, e podia se
instalar a sensação de que o romance não seria feito, assim como
a de que não haveria Vita Nova, nem Barthes romancista após o
Barthes crítico. No segundo ano, após o seu inventário detalhado
do quotidiano de um celibatário da arte, Barthes chegara a obser-
vações amargas, inspiradas nas Memórias de além túmulo, sobre
a literatura como arcaísmo e sua marginalização no mundo con-
temporâneo, como se o romance com o qual sonhara – romance
romântico, proustiano, total – estivesse irremediavelmente fora de
moda no final do século XX. Daí a conclusão quase desencantada
da última lição de 23 de fevereiro de 1980.

O romance de Roland Barthes II


Os cursos de Barthes no Collège de France haviam se tornado um
tumulto, do qual ele se queixava. Transformado em vedete da mídia
desde Fragmentos de um discurso amoroso, no momento em que
a morte de sua mãe o deixava desamparado, ele pedia aos amigos
para não virem escutá-lo e conseguia silenciar, a duras penas, uma
multidão apaixonada que transbordava a sala. Não fui ouvir o seu

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Antoine Compagnon

curso sobre A preparação do romance, mas falávamos dele, e,


durante a semana da sua última aula, ele fizera uma conferência na
Escola Politécnica, na qual eu ensinava. Muitos anos antes, tendo
conhecimento das notas manuscritas de seu curso colocadas na
IMEC, eu descobrira a pasta que continha os papéis reunidos para
essa conferência. Evidentemente, para mim era difícil conseguir
separar a leitura de suas anotações de aulas de minhas lembranças
das últimas semanas de sua vida, assim como as de minhas visitas
ao hospital, inclusive a derradeira.
A leitura do manuscrito me deixara desolado. Pela sua escrita, pela
grafia, principalmente a dos últimos acréscimos, era evidente que
Barthes não ia bem. Como eu não fora capaz de ser mais sensível
ao seu sofrimento? Meu ponto de vista foi certamente marcado
por isso: ler o manuscrito de um amigo, 20 anos após sua morte,
é como encontrar uma carta deixada em sofrimento. Pela cor da
tinta, pelo traçado das letras, reconhecemos um corpo. Parecia-me
que Barthes, muitas vezes, estava escrevendo arrastado, estican-
do a linha, como nas páginas sobre o haicai ou sobre a vida do
escritor. Eu achava que ele mesmo sabia quais eram os melhores
momentos do curso, já que os havia preparado e incluído em se-
parado – em alguns textos contemporâneos – entre os seus mais
bem-sucedidos, como “Longtemps, je me suis couché de bonne
heure” e “On échoue toujours à parler de ce qu’on aime”, deixado
na sua máquina de escrever no dia do acidente (LE ROMAN...,
2002). Tudo isso eu escrevi. Mas a aula sobre La préparation du
roman está atualmente publicada, como as dos dois anos anteriores,
Comment vivre ensemble e Le Neutre. Impressas, elas tornam a
leitura mais distante, menos envolvida, menos culpada. Será que
a forma do livro modifica minhas impressões, redigidas após a
leitura das notas manuscritas? Certamente.
Inicialmente, porque fica evidente que os quatro anos de cursos
formam um todo. Barthes os preparou um após o outro, lendo,
tomando notas durante o verão, redigindo às pressas no início
do outono, e proferindo as aulas durante o inverno, sem muitas
revisões nem improvisos. Sua bibliografia é sempre restrita e

16
Barthes moderno e antimoderno ou o romance de Roland Barthes

quase totalmente de segunda mão, sem preocupação de buscar


as fontes. Assim, quase todos os exemplos de poesia francesa
que ele confronta com o haicai são provenientes de uma curiosa
Anthologie du vers unique, de Georges Schehadé (1977), pois ele
se preocupa, antes de mais nada, com a repercussão dessa cultura
compósita na sensibilidade.
E, mais importante do que isso, o projeto se revela o mesmo, do
início ao fim: fantasmático, ético, existencial. Em Comment vivre
ensemble, a decisão de Vita Nova já está implícita: a sondagem
sobre a idiorritmia do monte Athos é inspirada pelo voto de mu-
dar de vida. E Le Neutre, verdade do conjunto, a meu ver, o mais
bem-sucedido, o mais bem acabado dos três volumes, enuncia,
ao mesmo tempo, a intenção do Vivre ensemble, de regularizar
uma vida disciplinada, e a ambição do haicai, de se unir à escrita
do desapego. Lido como um prolongamento do curso sobre Le
Neutre – um “grande mergulho”, segundo o termo empregado por
Barthes para falar do retorno de temas e personagens em Proust –,
o excursus sobre o haicai parece menos artificialmente relacionado
a La Préparation du roman.
Assim, os quatro cursos do Collège são, na verdade, um só, vol-
tado inteiramente para a busca de uma outra via de escrita. Hoje,
relendo La préparation du roman, “a preparação do romance” me
comove menos – é ela que me parece artificial e classificatória
com suas três provas, suas duas formas, suas três separações do
mundo – do que dois leitmotiv despercebidos da primeira vez.
Sou especialmente sensível a dois temas pouco desenvolvidos
por Barthes, mas recorrentes e essenciais: a morte da literatura
e sua sobrevivência no poema. Então, o “embaraço” de Barthes
no final do curso se explica facilmente. Esses dois temas, ligados
dialeticamente, rompem de tal maneira com suas idéias habituais
que ele hesita em assumi-los. La Préparation du roman não é
uma “preparação do romance”, mas uma busca do poema como
salvação da literatura.

17
Antoine Compagnon

A morte da literatura
Logo à primeira vista, diante do “ramerrão” da sua vida, Barthes
entrevê duas soluções: o abandono, o silêncio, o Neutro no sentido
passivo, ou, então, a Vita Nova, um novo combate, um Neutro
ativo. Ora, quando ele escolhe o segundo termo, apesar da sedução
do primeiro, é por um “sentimento de perigo”, o “[s]entimento de
que é preciso se defender, que é uma questão de sobrevivência”
(BARTHES, 2003, p. 30). Qual seria o perigo iminente? O que
estaria morrendo e precisaria ser protegido? Barthes ainda não o
diz, mas o saberemos logo: “Alguma coisa ronda nossa História: a
morte da literatura; ela está errando a nosso redor; é preciso encarar
esse fantasma frente a frente” (BARTHES, 2003, p. 49). Se Bar-
thes renuncia à tentação Zen da abstinência, se ele se decide pelo
trabalho, trabalho “ao mesmo tempo inquieto e ativo, é porque “o
Pior não é certo”, a morte da literatura talvez possa ser retardada.
São incessantes os retornos desse tema durante os dois anos de
curso. Por exemplo, após a passagem sobre o haicai, Barthes,
descrevendo a passagem das notas ao romance, aborda o que ele
chama de processo da frase, da “Frase absoluta, depositária da
literatura”, e é novamente sobre a sua fragilidade que ele insiste,
sobre o seu ser-para-morrer (BARTHES, 2003, p. 150). Não so-
mente se fala hoje menos bem o francês, mas a textualidade e a
vanguarda destroem “as ‘leis’ da linguagem”. Estranho lamento
essa defesa da língua francesa, da frase francesa, inesperada da
parte de um homem de progresso, de um velho companheiro de
viagem das vanguardas, e do campeão da textualidade que aca-
bara de vir em socorro de Sollers écrivain (1979). E que evocara
“Flaubert, artista e metafísico da Frase absoluta, [que] sabia que
sua arte era mortal: “Escrevo [...], não para o leitor de hoje, mas
para todos os leitores que poderão surgir, enquanto a língua
for viva”. Oração – “enquanto a língua for viva” – que Barthes
considera realista, ou mesmo pessimista. Se a literatura vai mal,
é porque a língua e a frase estão se desmanchando; se Flaubert
está ameaçado, é porque ele uniu seu destino (bem como o da
literatura) à Frase (BARTHES, 2003, p. 150).

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Barthes moderno e antimoderno ou o romance de Roland Barthes

Realista ou pessimista, o ceticismo de Barthes sobre o futuro da


língua e da literatura já é inegável e volta, estrategicamente, no
início do segundo ano: “A ameaça de enfraquecimento ou extinção
que pode pesar sobre a literatura soa como uma exterminação da
espécie, um tipo de genocídio espiritual” (BARTHES, 2003, p.
190), declaração tão grave, talvez tão excessiva, que Barthes a
riscou no manuscrito e não ousou dizê-la em voz alta.
Mas sua queixa se refere a tudo: assistimos à “diminuição da quota
da literatura”, “a literatura aparece como um objeto passado (em
via de desaparição)” (BARTHES, 2003, p. 199). “Ele tem a im-
pressão de que a literatura [...] está, não em crise (fórmula fácil
demais), mas pode estar morrendo” (BARTHES, 2003, p. 353).
Aqui vemos um Barthes desconhecido, arraigado às tradições,
recriminando a dessacralização do livro – não o encadernam mais,
nem mesmo o encapam com papel brilhante (BARTHES, 2003,
p. 242) –, protestando contra a sua transformação em mercadoria,
contra a sua coisificação: “O livro, espaço sagrado da linguagem,
está dessacralizado, esmagado: compram-no [...] um pouco como
pizzas congeladas” (BARTHES, 2003, p. 243). Os manuscritos que
lhe enviam são desprezados, e ninguém mais ousaria começar um
livro como Rousseau o fez em suas Confissões, com tanta coragem.
Sob a influência de Chateaubriand, Flaubert, Mallarmé, Proust,
Kafka, todos heróis e mártires do Livro, Barthes reconhece, no
final: “Este curso é tão essencialmente arcaico, que seu objeto,
em um certo sentido, não tem mais lugar nas letras: ou seja, a
noção de Obra” (BARTHES, 2003, p. 355)”. Sem nem mesmo
se lembrar do papel que ele mesmo representou na substituição
da Obra pelo Texto.
Evidentemente, “A Literatura e a Morte” é uma antiga obsessão
de Blanchot, ilustrada pelo “Mito de Orfeu”, presente em Bar-
thes em Le degré zéro de l’écriture, mas, a partir daí, Barthes o
entende num sentido realista, sociológico e político. Na escola, a
“degradação da Figura do Professor de letras” é fato indiscutível
(BARTHES, 2003, p. 354). Aliás, não se aprende mais a ler: “Re-
jeição ‘modernista’ do ‘estilo’ como escolar”, observa Barthes, que

19
Antoine Compagnon

denuncia Céline, que criticava o “estilo acadêmico” de Voltaire,


Renan, France, e que recrimina até mesmo seu amigo Foucault,
que não acredita na explicação de texto! Barthes é defensor da
frase de Anatole France,2 da pedagogia da explicação de texto:
dir-se-ia uma página de Le Figaro e isso é surpreendente. De-
pois, percebemos que há todo um sistema nisso: “A Retórica se
degradou, tecnocratizou-se” e foi substituída pelas “técnicas de
expressão”; “não há mais ‘transmissão’, pois a aprendizagem não
se fundamenta mais na imitação da tradição, nem nos ‘conselhos’
do mestre” (BARTHES, 2003, p. 356).
Barthes também fica consternado com o fato de que a França não
tenha mais escritores como entre as duas guerras: Mauriac, Mal-
raux, Claudel, Gide, Valéry não foram substituídos; Aragon é o
último; Sartre permanece apenas como “a figura da auto-destruição
do mito” (BARTHES, 2003, p. 355). E “os romances ­atuais, ou
seja, uma poeira de romances e não ‘grande romance’, não mais
parecem ser os depositários de nenhuma intenção de valor (BAR-
THES, 2003, p. 363). “Não...mais”: a própria figura da nostalgia.
Cúmulo da decadência, não sem um toque de ironia, apesar de
tudo, “não há mais, na França, ‘Nobelizáveis’” (BARTHES, 2003,
p. 355). Barthes não viu surgir Claude Simon. Enfim, resumindo,
a degradação da escola e da literatura está relacionada à “perda
do sentimento de que a escrita está ligada a um trabalho” (BAR-
THES, 2003, p. 357). Com efeito, “o trabalho não está na moda!”
(BARTHES, 2003, p. 357). Antes da lei das 35 horas, dir-se-ia já
Raffarin, mas um Raffarin dando a voz aos pequeninos – um quê
de populista? – e clamando que “a literatura não é mais sustentada
pelas classes ricas”, mas sim por uma “clientela de desclassifica-
dos”: nós, os últimos (BARTHES, 2003, p. 365).
As páginas redigidas para as duas últimas lições do Collège, muito
sacrificadas à linguagem oral – por falta de tempo, mas talvez
também por pudor – multiplicam as queixas e atingem o cerne da

2
A preocupação com a língua francesa já se manifestava em Le Neutre (2002b, p. 136):
“Les Paradis artificiels são um dos livros mais bem escritos do mundo, assim como os
Pensamentos de Pascal, e talvez também Montaigne”. Era no tempo em que o mundo
falava francês.

20
Barthes moderno e antimoderno ou o romance de Roland Barthes

inquietação de Barthes: é a língua francesa que está desaparecen-


do. Ele toma como testemunhas as dificuldades de expressão dos
franceses (o cabeleireiro, o porteiro) (BARTHES, 2003, p. 370),
ou os “inúmeros erros de francês no Rádio” (BARTHES, 2003,
p. 373). E não é só a língua falada que está em causa: “o ‘escrever
bem’, arrastado pela decadência estética da burguesia, não é mais
‘respeitado’ [...] tende a se tornar uma língua bem minoritária e
excluída” (BARTHES, 2003, p. 373). Do mesmo modo, os que
falam ou escrevem ainda na bela língua tornam-se excluídos: “É
possível que 95% dos livros escritos hoje escapem aos problemas
de que tratei” (BARTHES, 2003, p. 352).
Inútil insistir, a não ser para lembrar que essa angústia do abandono
se manifestava em cada envio de crônica que Barthes mantinha
no semanário Le Nouvel Observateur durante o mesmo inver-
no (uma delas tinha como título: “Enquanto a língua viver”).
O estado da língua e da literatura dá a Barthes um sentimento
de solidão, de exílio interior e de nostalgia: “Eu não amo nem
entendo nada atual, amo e compreendo o ultrapassado; vivo o
Tempo como uma degradação de Valores” (BARTHES, 2003, p.
360), decreta Barthes, que chama de “Policarpismo” sua atitude,
numa referência a Flaubert, que queria adotar como divisa o grito
de São Policarpo: “Meu Deus! Meu Deus! Em que século você
me fez nascer?” (BARTHES, 2003, p. 361). Nas últimas lições,
Barthes identifica-se também com Flaubert, protestando contra o
seu tempo, enquanto Chateaubriand atravessa todo o segundo ano
do curso, desde a epígrafe sobre “as melancolias das saudades,
da ausência e da juventude” (BARTHES, 2003, p. 184), até as
últimas páginas, citando longamente das Mémoires d’outre-tombe
seu “Prefácio testamentário”: “Eu fico para enterrar o meu século”
(BARTHES, 2003, p. 361).
Desde então, a “vida melancólica” do escritor que Barthes se com-
praz em descrever constrói um refúgio, pois “é preciso lutar até a
morte contra inimigos” (BARTHES, 2003, p. 267). O escritor que
entra em resistência – primeiro gesto: ele não abre a sua corres-
pondência – torna-se um herói. Barthes admite de bom grado que

21
Antoine Compagnon

sua “casuística do egoísmo”, segundo uma expressão de Nietzsche


em Ecce Homo (BARTHES, 2003, p. 297), testemunha “um certo
passadismo” (BARTHES, 2003, p. 303), mas o desejo passadista e
arcaico de escrita se converte em heroísmo, assumindo o passado
contra “um mundo que fez da Inovação (desde o século XVIII: a
Neomania) um mito” (BARTHES, 2003, p. 199).
Tomando partido contra a Inovação ou a Neomania, contra o dogma
do progresso que arrasta a literatura para a morte, Barthes adota,
uma a uma, as características do antimoderno.3 A violência da
modernidade contra a literatura o atinge, e ele defende os clássi-
cos, enquanto um haicai lhe inspira esse fantasma reconciliado:
“Trabalhar textos clássicos (sem a agressão da modernidade)
aconchegado, no inverno” (BARTHES, 2003, p. 96). Para além dos
clássicos, românticos e modernos, buscando uma reconciliação,
ele “imagina um ‘Clássico moderno’”, como Gide no início da
NRF (BARTHES, 2003, p. 229).
A marginalidade não é um privilégio da juventude ou das vanguar-
das (BARTHES, 2003, p. 351). Numa sociedade cuja maioria é
jovem, em que o vanguardismo tornou-se uma moda ou um mito, é
o apego ao passado que, por uma inversão dialética, constitui uma
marginalidade ou mesmo uma clandestinidade e, como tais, um
heroísmo. Defender hoje a língua clássica, isso se torna novo, pois
– frase que Barthes guardará no bolso – “o que é frágil é sempre
novo” (BARTHES, 2003, p. 374). “Porque a escrita literária não
é mais durável”, porque ela está ameaçada de desaparição, “ela
perde o seu peso conservativo” – Barthes não diz “conservador”
–, e torna-se “algo leve, ativo, embriagador, fresco”. A condi-
ção minoritária e o estado frágil da tradição são suficientes para
resgatá-la. Decadentes, quase morrendo, os clássicos tornam-se
novamente atraentes.
É isso que autoriza Barthes a classificar como “Trágica” a condição
de quem deseja e defende hoje a língua e a literatura, comparando
3
Na via do antimoderno, em Le Neutre, as provocações mais intolerantes de Joseph
de Maistre eram inocentadas, pois ele foi “um puro escritor, sem influência, e, aliás,
defasado”, “um entusiasta, um intrépido, mas não um arrogante” (BARTHES, 2002b,
p. 203, 207).

22
Barthes moderno e antimoderno ou o romance de Roland Barthes

“aquele que quer escrever” com Cassandra: “Escritor: espécie de


Cassandra do passado e do presente; verdadeiro e nunca acredi-
tado, vão testemunho do Eterno recomeçado” (BARTHES, 2003,
p. 376). “Inútil Cassandra”, como Chateaubriand se qualificava
em agosto de 1830, após a queda de Charles X, no momento de se
recusar a prestar juramento de fidelidade a Louis-Philippe e antes
de pedir demissão da Câmara dos pares.
Ainda como Chateaubriand, o escritor tira uma força paradoxal – a
energia do desespero, ou a “vitalidade desesperada” de Pasolini,
que Barthes citava em Le Neutre (BARTHES, 2002b, p. 106) do
“estatuto trágico da literatura hoje” (BARTHES, 2003, p. 376).
Sempre como Chateaubriand, ele pode nomear sua constatação
implacável do fim do mundo, não “um pessimismo – ou um
derrotismo, ou abstencionismo”, mas “uma forma intensa de
otimismo: um otimismo sem progressismo” (BARTHES, 2003,
p. 377).
Sem dúvida, Barthes terminou como verdadeiro antimoderno,
“mantenedor” (como dizia Paulhan): “uma coisa difícil de as-
sumir”, confessava ele na última página do curso (BARTHES,
2003, p.184).

A presença do poema
Nessas condições, qual poderia ser o romance da Vita Nova?
Barthes duvida logo da sua possibilidade. Escrevem-se romances,
é lógico, e “eles têm uma certa dificuldade para serem vendidos”,
mas, desde Proust, nenhum “parece ‘transpor’, alçar à categoria
do Grande Romance” (BARTHES, 2003, p. 38). Embora Barthes
chame o romance de uma “terceira forma”, covarde, heterogênea,
a morte da literatura parece arrastar consigo o fim do romance. Ele
intitulou o seu curso de La préparation du roman, e não voltará
atrás nesse título, mas a leitura reserva uma surpresa – ou a relei-
tura, uma vez que vimos que a palavra “romance” era um engano
e que as reflexões sobre o romance contavam entre as páginas
mais decididas –, pois a preparação do romance se revela, aos
poucos, uma busca do poema: “Poesia = prática da sutileza em um
23
Antoine Compagnon

mundo bárbaro” (BARTHES, 2003, p. 82). Essa é, após a curva


anti-moderna, a segunda novidade do curso: Barthes, que nunca
falou muito de poesia e que não parecia, até então, muito sensível
a ela, descobre, no poema, o destino da literatura.
Só o poema pode, ainda, resgatar a literatura, devolver-lhe vida
e salvar o mundo. Assim se explica, longe de qualquer artifício,
que Barthes consagre tantas páginas ao haicai. Discreto, particu-
lar, contingente, circunstancial, defasado, efêmero, o haicai é a
encarnação do Neutro. E, sobretudo, ele se apresenta como um
resíduo, um depósito do real, um fragmento errático, um relevo do
tecido quotidiano” (BARTHES, 2003, p. 91); ele divide, individu-
aliza, atenua o mundo, em vez de abstraí-lo ou conceitualizá-lo.
E encerra um instante frágil entre a vida e a morte, tomado pela
morte; abraça uma vida ameaçada: “Dizem que, para os japoneses,
não é propriamente a flor da cerejeira que é bela; é o momento
em que, totalmente desabrochada, ela vai murchar. Tudo isso diz
o quanto o haicai é uma ação (de escrita) entre a vida e a morte”
(BARTHES, 2003, p. 93).
É por essa razão que Barthes pode aproximá-lo do Incident –
“dobra fina”, “rachadura insignificante numa superfície vazia”
(BARTHES, 2003, p. 111) –, conforme o praticou no Marrocos,
ou da fotografia, cujo poema ele expõe (“Ça a été”) em La Cham-
bre claire (BARTHES, 2003, p. 114). É ainda por essa razão que
Barthes pode assimilar Proust ao haicai, embora isso possa parecer
curioso: “Proust e o haicai se entrecruzam” na sua relação com a
sensação, o afeto e a morte (BARTHES, 2003, p. 99). A redenção
do mundo pelo poema, não é isso que acontece na Recherche? Esse
“grande drama do Querer-escrever” só poderia ter sido concebido
em “um período de recuo, de enfraquecimento da literatura: talvez
a “essência” das coisas apareça quando elas vão morrer” (BAR-
THES, 2003, p. 198). Graças a Proust, a literatura conseguiu um
sursis. E hoje, que sursis podemos lhe ­conceder?
Junto ao filão antimoderno, ligado a ele como sua trama dialética,
progride, ao longo do curso, um filão poético, totalmente inédito
em Barthes, que reabilita a poesia e redime a literatura pela poesia.

24
Barthes moderno e antimoderno ou o romance de Roland Barthes

Assim, ele proclama a “necessidade hoje de lutar pela Poesia: a


Poesia deveria fazer parte dos ‘Direitos do Homem’; ela não está
‘decadente’, ela é subversiva: subversiva e vital” (BARTHES,
2003, p. 82). A inversão é a mesma para os clássicos: minoritá-
rios, marginalizados, ameaçados, o antigo e o poético tornam-se
subversivos, novos, vitais.
O poema tem a faculdade de salvar o mundo porque é adesão –
discreta, particular, residual – ao ser. Mesmo se isso não espanta
um leitor de Bonnefoy ou de Jaccottet, é o que o haicai ensina a
Barthes: “O haicai é adesão ao que é” (BARTHES, 2003, p.110),
ou seja, presença à beira da ausência, presença destacada da ausên-
cia. Satori (Zen), kairos (os céticos), epifania (Joyce), momento
de verdade (Proust), instante pleno (Diderot), incidente, esses
são os nomes que Barthes dá ao poema, cuja intencionalidade é –
­belas expressões – a de “despojar a realidade” (BARTHES, 2003,
p. 110), de “captar um fragmento de presente” (BARTHES, 2003,
p. 137). O poema “capta ao vivo” a vibração do mundo, como um
“pacto instantâneo entre o que é visto, observado e o que é ­escrito”,
ou, pelo menos, ele dá essa sensação, pois é sempre produzido
pela Memória (BARTHES, 2003, p. 139), nem que seja por uma
“memória imediata”, no caso do hacai (BARTHES, 2003, p. 86):
Descascando uma pêra
Ternas gotas
Escorregam ao longo da faca

Citando esse haicai – “muito bonito”, segundo ele –, Barthes vê a


“divisão do real” ao máximo, que define o poema como “o cúmulo
do particular” (Proust): a presença do fruto na gota ao longo da
faca não seria a abstração, mas sim a expressão. E conclui: “Isso
poderia ser a definição da Poesia: ele seria, em suma, a linguagem
do real, no que ele não [pode] mais se dividir ou não se interessa
em se dividir mais” (BARTHES, 2003, p. 119).
O mais curioso, talvez, nesse reconhecimento da poesia como pre-
sença, é que Barthes se aproxima de Claudel, escritor (embora ele
pensasse no dramaturgo) de quem ele falava muito mal nos anos
50, e cuja frenesia assertiva parecia-lhe ainda típica da arrogância

25
Antoine Compagnon

moderna em Le Neutre (BARTHES, 2002b). “Isso me parece ter


sido dito por Claudel”: “Só o poeta tem o segredo desse instante
sagrado em que a picada essencial se introduz de repente [...] a
solicitação de uma forma” (BARTHES, 2003, p. 119-120). Fór-
mula que, doravante, Barthes considera uma “admirável definição
de haicai”. Ele até encontra em Claudel o único verso ocidental
que define, sem reservas, como um haicai, após tê-lo dividido em
três (BARTHES, 2003, p. 76):
A chuva
Cai
Nas florestas de seis horas

Perfeita ilustração do poema como “co-presença”, ou como “li-


gação instantânea” (BARTHES, 2003, p. 121). Assim, o poema,
no não-romanesco da presença, é assunção do ser num “deslum-
bramento de linguagem” (BARTHES, 2003, p. 188), ou ainda
“apagamento da linguagem em prol de uma certeza de realidade”
(BARTHES, 2003, p. 113). Em Proust, isso seria a madeleine
suspensa, deixada tal como é, sem fazer dela a sedução de toda
uma história, sem mergulhar os “pedacinhos de papel” japoneses
na água para extrair Combray inteiro.
A preparação do romance se revela uma propedêutica do poema, ou
de uma “terceira forma” poética levada ao sinal da pura presença,
para a captura da “própria coisa”: “Ah, essa violeta”, como um
haicai faz surgir a flor, sem nada dizer dela, a não ser essa indica-
ção, principalmente sem interpretar (BARTHES, 2003, p. 123).
O poema se contenta em dizer que não se pode dizer (BARTHES,
2003, p. 125):
“Que coisa, que coisa”
É tudo que pude dizer
Diante das flores do monte Yoshino

Enquanto o romance, pela narração, interpretação, generalização


e abstração, pela relação entre as epifanias ou os momentos de
verdade, introduz o falso e a mentira (p.161), Barthes chama esse
movimento do poema de “retorno da letra”, ou seja, a redenção
da língua: “O haicai (a frase bem feita, a poesia) seria o término

26
Barthes moderno e antimoderno ou o romance de Roland Barthes

de caminho, a assunção em direção da letra” (BARTHES, 2003,


p. 126).
O romance de Barthes não teria sido, não era um romance, e,
princi­palmente, não era um Texto, mas sim um poema: “Por roman-
ce deve-se entender, pouco a pouco, Romance Absoluto, ­Romance
Romântico, Romance Pórtico, Romance da Tendência-a-Escrever;
em outras palavras, toda obra”, sugeria ele em seguida (BARTHES,
2003, p. 203). Depois, bem no final do curso, retomando por sua
conta a reflexão de Mallarmé sobre o Livro, não mais hesitava em
afirmar: “A Prosa essencial é Verso” (BARTHES, 2003, p. 372).

*
Ao final da sua última aula, após lamentar não ter nenhuma obra
para produzir, Barthes esboçava, mesmo assim, como dizia, o
“perfil da Obra que eu queria – ou escrever, ou que alguém escreva
hoje para mim” (BARTHES, 2003, p. 377). Essa obra desejada,
ele a definia com três adjetivos: simples, filial e desejável, três
qualidades que desconcertam ou parecem uma provocação, se
percebermos que todo o curso, durante quatro anos, aproxima-se,
aos poucos, de uma poética antimoderna da presença.
Simples, a obra seria legível, não irônica, sem aspas nem dobras,
toda no primeiro grau, ao contrário dos textos modernos, difíceis,
retorcidos, que Barthes elogiara até então. Seria como um desses
haicai ou poemas cuja clareza até o limite da linguagem e do
silêncio ele louvará daí por diante.
Filial, ela se filiaria à tradição, transmitiria os antigos, marcando
diferença em relação às obras de ruptura valorizadas pelas van-
guardas; ela reconheceria sua dívida para com Pascal, Chateau-
briand, Proust, evocados incessantemente por Barthes, que não
mais teme retomar as palavras de Verdi em 1870: “Voltemo-nos
para o passado, isso será um progresso”, nem dizer adeus aos
seus aliados: “A filiação deve ocorrer por deslizamento. [...] O
deslizamento opõe-se a uma palavra de ordem vanguardista, da
qual precisamos recuar lucidamente (pois as vanguardas podem
se enganar): a desconstrução” (BARTHES, 2003, p. 381).
27
Antoine Compagnon

Desejável, enfim, a obra, contrariamente ao texto “escrevível”,


ao texto de prazer, faria com que a língua francesa fosse amada:
“Parênteses das Obras da modernidade contemporânea. Espécie de
Fixação, de Regressão ao Desejo de um certo passado”, afirmava
Barthes (BARTHES, 2003, p. 384).
“Prazer dos Clássicos”, não era esse o título de um dos primeiros
textos de Barthes em 1944? “É preciso ir ao essencial: não é uma
questão de moral, é questão de prazer, e não existe maior prazer
do que uma disciplina frutuosa”.

Referências
BARTHES, Roland. La préparation du roman: notes de cours
et de séminaires au Collège de France, 1978-1979 e 1979-1980.
Texto estabelecido, anotado e apresentado por Nathalie Léger.
Paris: Seuil; Imec, 2003.
______. Comment vivre ensemble. Paris: Seuil; IMEC, 2002a.
______. Le neutre. Paris: Seuil; IMEC, 2002b.
______. Sollers écrivain. Paris: Seuil, 1979.
LE ROMAN de Roland Barthes. Revue des sciences humaines,
[S.l.], n. 266-267, 2002.
SCHEHADÉ, Georges. Anthologie du vers unique. Paris: Ramsay,
1977.

28
Barthes, Brecht e Marx1

Philippe Roger

Em 2 de dezembro de 1978, Roland Barthes inicia seu curso


anual no Collège de France – curso este sobre “a Preparação do
romance”, que terminará 15 meses mais tarde (e cujo texto será
publicado pela Editora Seuil, em novembro de 2003). Não se sabia,
naquele momento, que se tratava de seu último curso.
À guisa de introdução ao que se apresenta a partir de então, menos
como uma “pesquisa” do que como uma “busca”, Barthes toma
o auditório como testemunha de um desejo de renovação de seu
trabalho: ele quer se libertar do retorno (e do cansaço) do Mesmo.
Ora, esse desejo ou essa necessidade de ruptura ele introduz (e
justifica) com um breve auto-retrato intelectual:
Eu sou de uma geração que sofreu demais a censura do sujeito, tanto pela
via positivista (objetividade requisitada na história literária, triunfo da
filologia), como pela via marxista (muito importante, mesmo se não parece
ser mais em minha vida) (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 25).

E dando continuidade a Dante: “Nel mezzo del cammin di nostra


vita”, incipt da Divina Comédia, usado por Barthes como a fórmula
propiciadora de seu projeto de ruptura literária.
A cena parece simples: Barthes se afasta do cientificismo (não é
a primeira vez desde O prazer do texto) e toma distância do “mi-
litantismo” (o que também não é novidade). Em Roland Barthes
por Roland Barthes, confessava, sob a forma ambígua de uma
constatação falsamente impessoal: “numa situação histórica dada
– de pessimismo e de rejeição –, toda a classe intelectual é, se não
milita, virtualmente dandy” BARTHES, 2002b, t.4, p. 682). Mas o
anúncio, então, se faz, ao mesmo tempo, mais íntimo e mais teatral.
Barthes acredita assumir, sem remorsos, seu imaginário de sujeito
(“mas valem os enganos da subjetividade que as imposturas da

1
Traduzido do francês por Maria Ruth Machado Tellows.
Philippe Roger

objetividade”) (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 19); e anuncia (com


uma palavra tomada de empréstimo a Blanchot) uma “virada de
escrita” (BLANCHOT, 1969, p. xii).
Mas essa cena é realmente tão simples? Colocando em nível
de igualdade o “positivismo” (que ele sempre amaldiçoou) e o
“marxismo” (do qual ele se alimentou por muito tempo), como
faria ele o mesmo gesto? Em O prazer do texto, quando “mostra-
va seu traseiro ao Pai político” e gozava tanto a polícia marxista
quanto a polícia psicanalítica, tudo se passava, afinal, em família:
a vasta “família sem o familialismo” do pós-Maio de 68. Afastar
o marxismo é uma coisa; outra é afastá-lo como o positivismo,
pelo mesmo motivo. Barthes, aliás, não deseja que nós (seus au-
ditores ou leitores) confundamos, na mesma rejeição, o que esteve
muito próximo dele com o que lhe foi sempre estranho: ele logo
acrescenta este inciso (conforme as leis da Figura Moussu, é entre
parênteses que se trabalha o essencial). A modalização temporal
está equivocada: “em minha vida” quer dizer: em minha vida
“anterior” (como: “fiz grandes besteiras em minha vida”)? Ou é
preciso entender: “muito importante em minha vida”, assim como
essa vida, depois de tudo, prossegue seu curso, em suma: muito
importante ainda em minha vida hoje, apesar das aparências,
mesmo se o marxismo não é mais manifesto?
É em torno desse equívoco, deliberado, acredito eu, que vão se
organizar minhas reflexões.
Comecemos, então, nós também, por um retorno ao passado, por
um flash back dos anos Marx de Roland Barthes. Percorramos,
rapidamente, outra vez, essa “via marxista” cuja metáfora ele opõe,
em 1978, à do cammin da Divina Comédia, mas também à do
tao – a Via por excelência – cuja referência onipresente vale por:
saída do impasse, retomada da escrita e da vida. Ora, houve um
tempo, justamente, no qual este “indo” do pensamento, Barthes o
encontrava precisamente no “marxismo”. Vejamos, então, em que
esse marxismo, “seu” marxismo, foi para Barthes um “caminho
que anda”: um discurso importante, mas sobretudo transportante;
poderíamos dizer, de uma expressão banalizada pelo marketing:

30
Barthes, Brecht e Marx

um discurso “portador”, mas este, não no sentido banal, no qual


Barthes encontra uma alavanca eufórica de inteligência do ­mundo.

Ser ou não ser (marxista)?


Em plena Guerra Fria, um crítico que se assina André Guérin, e
que não é outro senão Jean Paulhan, o influente diretor da Nouvelle
Revue Française, pressiona Roland Barthes para dizer se, afinal,
ele é marxista ou não. Ira de Barthes, que trata o questionador de
macarthista.
Nesse meado dos anos 50, compreende-se, entretanto, que a
questão procedia.
O grau zero da escrita não é certamente o livro de um marxista
ortodoxo; ele fere levemente os romancistas comunistas franceses,
como A. Stil e R. Garaudy, que copiam o realismo jdanoviano;
mas, apesar disso, no coração do livro, há a idéia de que somente
uma transformação revolucionária da sociedade poderá fazer a
escrita moderna sair do impasse no qual ela se encontra. Para
toda revolução poética possível, Barthes atribui, como prioridade,
uma necessária revolução política. O escritor sofre a “divisão das
linguagens”. Descrevendo esta divisão com um vocabulário e de
acordo com um imaginário que devem muito a Maurice Blanchot,
Barthes concede a essa “divisão das linguagens” (e, conseqüente-
mente, à dilaceração do escritor moderno) uma origem claramente
sociopolítica.
Paralelamente, durante toda a década de 1950, a paixão predo-
minante de Barthes é pelo teatro. Essa paixão toma formas bem
militantes, particularmente na revista Théâtre populaire: denúncia
do teatro “burguês”, corrompido e aviltado; chamado à sua “re-
generação” por esse “teatro popular”, do qual Jean Vilar e outros
construíram os tablados, mas ao qual Berliner Ensemble, repre-
sentando Brecht, em Paris, em 1954, confere-lhe o modelo ideal.
Quanto às “pequenas mitologias”, cuja publicação em livro, em
1957, valem a Barthes uma repentina notoriedade, elas funcio-
nam claramente sobre um pressuposto marxista ou marxiano: a
31
Philippe Roger

convicção de que a sociedade burguesa destila permanentemente


ficções ideológicas para encobrir a realidade das relações sociais.
É claro que as Mitologias são também uma brilhante coletânea
de besteiras, atravessada por intuições e humores pessoais; e são
infinitamente mais saborosas que os pesados artigos da Nova
Crítica denunciando as mentiras ideológicas capitalistas. Mas
mesmo sendo frutos mais refinados, eles brotaram do mesmo solo,
sustentados pelo mesmo tutor – a crítica marxista da Ideologia
como reflexo e mistificação.
Até o sartrismo de Barthes, naqueles anos, o impulsiona a sus-
tentar posições facilmente identificáveis por seus adversários
àquelas dos “companheiros de estrada” do PCF. Quando Sartre,
no momento mais forte de seu breve idílio com os comunistas,
apresenta Nekrassov (uma comédia sobre um falso dissidente sovi-
ético extremamente favorável às teses comunistas), um dos únicos
artigos totalmente positivos, numa imprensa parisiense agitada e,
às vezes, enraivecida, é assinado Roland Barthes...
Então? Pode-se concluir que o mau humor de Barthes, ao responder
(ou melhor, ao se recusar a responder) a André Guérin, aliás, Jean
Paulhan, é o do partidário desmascarado? Não creio.
É, antes de tudo, a impaciência de alguém que detesta a etique-
tagem. A imagem que os outros lhe impõem, o Imago, Barthes
experimenta-a como uma injustiça e como um sofrimento. Nada é
pior para o intelectual do que ser reduzido “como uma cabeça de
Jivaro”? (Espero não ter melindrado ninguém com essa metáfora
amazonense.)
Mas é também a indignação do franco-atirador, em quem queremos
vestir um uniforme. Barthes irrita-se com um clichê dele mesmo,
que sabe ser, ao mesmo tempo, verossímil e inexato. Barthes, é
preciso lembrar, é quase o único dos grandes ­intelectuais de es-
querda, daquele período, a nunca ter aderido ao Partido Comunista.
Conseqüência lógica: não o encontramos também entre o número
de arrependidos ou em processo de arrependimento, famosos nos
anos 70. Essa não-adesão não é uma particularidade histórica: ela

30
Barthes, Brecht e Marx

sinaliza uma certa maneira de Barthes habitar sistemas conceituais


ou ideológicos, sem aderir e, ainda menos, se identificar com eles.
Barthes foi iniciado no pensamento de Marx, no final da guerra,
por um companheiro de doença, antigo voluntário e trotskista,
na Espanha. Primeiro contato decisivo, reforçado por diversos
encontros posteriores: Pascal Pia, Maurice Nadau, marxistas crí-
ticos ou trotskisantes. Barthes será, num primeiro momento, um
“dissidente”, no sentido que esta palavra possuía na França nos
anos 50 e que não é o mesmo dos anos 70: chamavam-se, então,
dissidentes os marxistas heterodoxos ou “críticos”, que se esforça-
vam a volver as armas da crítica marxista contra o stalinismo. De
maneira que podia-se dizer, sem paradoxo, que Barthes adquiriu,
ao mesmo tempo, o gosto do marxismo e a dissidência intelectual.
Neste sentido, esses anos de aprendizagem (e de aprendizagem do
métier de crítico entre outros) esclarecem vivamente a continuação
do percurso.
Vacinado, portanto, o jovem Barthes, por seus próprios inicia-
dores; o que não quer dizer imunizado, como mostra o episódio
do apoio a Nekrassov: se a peça é sobretudo boa, sua estética de
“boulevard panfletário” é completamente contrária ao que Bar-
thes defende, e sua mensagem política é um pouco fraudulenta.
Daí a importância de Brecht: pois pode-se dizer, sem piada nem
paradoxo, que Barthes foi salvo do stalinismo que rasteja por seu
brechtismo que salta.
O que é Brecht para ele? É, primeiramente, um “deslumbramen-
to” de teatro: uma fulguração de prazer diante de uma maneira
de representar, de interpretar, de usar a palavra, da qual ele não
tinha idéia – ele que sempre amou o teatro, que fez parte do grupo
de teatro antigo da Sorbonne, antes da guerra, que escreveu seu
primeiro artigo sobre “Nietzsche e a tragédia”. Diante dos atores
do Berliner, Barthes apaixona-se por uma forma; não fica obcecado
por uma teoria. O famoso distanciamento brechtiano não é para ele
um dogma; é uma técnica de teatro que funciona, e que funcio­na
tão bem que sugere a idéia de uma “moral”, que Barthes chama
de “moral da forma”. O que ele descobre e aprova em Brecht e

31
Philippe Roger

nas técnicas de interpretação do Berliner é um teatro não “libe-


rado” (Barthes detesta, no teatro, mais do que em outro lugar, a
espontaneidade, a improvisação, o happening), mas libertador,
visto que permite ao público decifrar por si mesmo a charada das
relações sociais; um teatro engajado, mas não didático, posto que
não é uma aula, mas “desengessa” o espectador.
De quê? Em princípio, e sobretudo, de todo naturalismo. Assim,
o teatro pode, melhor que qualquer outra arte, imunizar contra
a grande mistificação burguesa do “natural”. (Sabe-se que, para
Barthes, a maior mentira ideológica consiste em fazer passar por
natural o que é intrinsecamente cultural, ou seja, histórico). Mas
também, sem o gesso da pregação, da doutrinação, do moralismo,
da “moralina”. (Este neologismo humorístico vem do Sang Noir,
de Louis Grilloux, secretário do Primeiro Congresso dos escrito-
res antifascistas, em 1935, e romancista bastante esquecido nos
dias de hoje). Desengessado, então, de duas mortais “moralinas”:
a convencional, do teatro burguês que confunde valor e dinhei-
ro; a autoritária e sacrificante da doutrinação revolucionária. A
essas mistificações concorrentes o teatro brechtiano, tal como
Barthes o erige como modelo, opõe a “moral de sua forma”: a
justeza de seus gestus, ao mesmo tempo justo como gesto e justo
como signo, pelo qual o corpo do ator traduz diretamente uma
situação social, assim como um afeto pessoal. Foucault falará
mais tarde de “verdade-explosão”; Barthes, desde então, situa a
verdade estético-política nesse arco elétrico do teatro brechtiano
que curto-circuita todo desejo de doutrinação, como toda tentativa
de mistificação social. Tal teatro é capaz de driblar a naturalização
burguesa e, ao mesmo tempo, frustrar o dogmatismo político.
Descoberta decisiva, portanto. Recusar em política a distinção
entre o fundo e a forma (do fim e dos meios) não é um detalhe: é
uma verdadeira linha divisória entre responsabilidade e demissão
do intelectual. O “brechto-marxismo” de Barthes é, portanto, muito
mais que teatro (ou ideologia): é o laboratório de uma reelaboração
das relações entre formas artísticas e gestos ideológicos. Barthes
preza a idéia de teatro político; detesta a de teatro didático: contra-

30
Barthes, Brecht e Marx

riamente a um clichê muito difundido, o teatro de Brecht não lhe


aparece como um teatro pedagógico, mas como um teatro da busca,
do questionamento. E também do prazer. (Barthes retorna freqüen-
temente ao gosto pronunciado de Brecht pelos Havanas – esses
charutos que não são ainda um símbolo “castrista”, mas, ao con-
trário, o atributo estereotipado do perfeito capitalista). O “prazer
teatral” é o de uma inteligibilidade do mundo, de uma apreensão
de suas relações; é também o de uma encarnação materialista em
corpos portadores da fala e de materiais, luzes, coisas portadoras
de sentidos. (Sabe-se que Barthes se interessou intensamente por
todos os aspectos materiais do teatro e que escreveu, entre outros,
um artigo sobre as doenças do traje do teatro, um outro, também,
sobre as implicações ideológicas da maquiagem). Enfim, Barthes,
nos anos 50, enfeita o teatro com todas as qualidades que recusa à
Literatura, que lhe parece prisioneira de si mesma, alienada por seu
próprio mito, escrava do “Signo que se tornou vazio” da Literatura.
Barthes, a partir de então, jogará Brecht contra todos os “realis-
mos”, inclusive “socialistas”, da mesma maneira que joga Marx
contra todos os “positivismos” e “historicismos”. É neste sentido
que é preciso dizê-lo “brechto-marxista”: na medida em que ele
não cessa de esfregar um contra o outro, como dois sílex; e de
cujo entrechoque espera uma centelha.
Mas esse “brechto-marxista” não é apenas uma arma crítica
apontada contra os próprios dogmatismos dos quais ela passa
por inseparável. É também, e talvez sobretudo, uma “atopia
intelectual”: um espaço de onde se pode falar livremente, uma
zona intimamente liberada no interior de um “grande discurso”.
Arrisquemos uma outra imagem: inventando esse espaço, Barthes
encontra o que se pode chamar de seu “nicho ético” (como se
fala em etologia de “nicho ecológico”): uma biosfera intelectual
protegida por um “grande sistema tutelar” (aqui o marxismo, mais
tarde a psicanálise, o estruturalismo etc.) das agressões do meio
(burguês); mas também uma bolha de oxigênio privada, uma
bolsa de ar respirável para o Sujeito decidido – custe o que custar
– a salvar sua “particularidade” (o tema do “particular” está no

31
Philippe Roger

centro dos últimos escritos e cursos; mas ele já está secretamente


no coração do dispositivo organizado nos anos 50). O que Marx,
Brecht, Sartre, o teatro e a lição dos “dissidentes” trouxeram para
Barthes no pós-guerra foram menos “idéias” e “teorias”, enfim,
“conteúdos”, do que uma “postura”: a do elétron livre no campo de
um “grande sistema”. Postura que permanecerá como sua situação
intelectual de predileção.
A silhueta do Barthes dos anos 50 que acabo de esboçar não é
a do típico “companheiro de estrada”, então, muito prezado (e
desprezado ao mesmo tempo) pelos militantes comunistas. Des-
ses marxistas declarados Barthes mantém-se bem próximo; mas
continua sendo (se ouso reproduzir um título famoso de Maurice
Blanchot): “aquele que não os acompanhava”. Da mesma forma,
nas escadarias em dupla espiral do castelo de Chambord: mesmo
se subimos por elas no mesmo passo, subimos, entretanto, sepa-
radamente.
O que esse passado de um pensamento esclarece das últimas fases
da obra?
Primeira observação: enquanto abundam, nos escritos e cursos dos
últimos anos, as referências a uma “ruptura” ardentemente dese-
jada, notamos que a única ruptura brutal e definitiva no itinerário
intelectual de Barthes foi a ruptura com o teatro: ou seja, não so-
mente com a freqüentação do teatro, a volúpia do teatro, o interesse
apaixonado pelos problemas do teatro, mas ainda com o “modelo”
estético-ético forjado a partir do teatro. Não insisto na radicalidade
dessa desafeição (Barthes comentou-a muitas vezes); gostaria,
de preferência, de sublinhar um efeito dessa desafeição (Barthes
também fez alusão a esse efeito, porém, mais discretamente): esse
abandono repentino, essa cortina cerrada deixaram para sempre
intacta “a iluminação do Berliner” como programa ou utopia de
uma estética política justa. O “brechtismo” (tal como Barthes dele
se apropriou) tira sua força fantasmática, como modelo, do fato de
que ele reconduz a uma experiência única (as representações do
Berliner em Paris), não reiterável (Barthes é muito duro com as

30
Barthes, Brecht e Marx

representações francesas de Brecht), inalterável, portanto, como


cena primitiva erigida em tipo-ideal.
Segunda observação: o “marxismo” de Barthes, além de se be-
neficiar dessa espécie de imunidade imaginária que lhe conferia
sua ligação indissolúvel com a revelação brechtiana, nunca foi
o objeto, para Barthes, de uma “renúncia” com seu cortejo de
consciên­cia pesada e de excesso em compensação. E isso, por uma
dupla razão (ou por duas razões que se encaixam): a primeira é
que Barthes sempre recusou a descrição do marxismo como uma
Igreja (ele se insurgiu contra essa metáfora, num curioso artigo
de 1951: “O marxismo é uma Igreja?”); a segunda é que dessa
não-Igreja, já foi dito, ele nunca foi membro, nem adepto, nem
mesmo postulante.
Mas, se essa “inocência histórica” do sujeito Barthes esclarece
em parte a serenidade de suas referências constantes a Marx e ao
socialismo, até o final de sua vida (no momento em que “o efeito
Soljénytsine” está mudando profundamente a paisagem intelectual
francesa), é preciso acrescentar também que, contrariamente a
outros “sistemas fortes” adotados e depois rejeitados, o “brechto-
-marxismo” permanecerá, em Barthes, como uma referência
sempre disponível, freqüentemente evocada (muitas vezes ainda
no último Curso no Collège de France), enfim: uma postulação (se
não uma convicção) intacta. Por que esse privilégio? Não, creio
eu, porque o “brechto-marxismo” seria um sistema “mais forte”
que os outros (ao contrário); mas porque ele é a matriz formal da
crítica indissoluvelmente semiológica e social que Barthes adotou,
“inventada” nos anos 50, e à qual ele, de fato, jamais renunciou.
Molde originário dessa Crítica, o “brechto-marxismo” de Barthes
não pode se tornar seu objeto. Protegido da insipidez e da “de-
tumescência”, pelo congelamento súbito do desejo (visto que o
Novo Romance, por exemplo, terá o tempo de “apodrecer” como
uma fruta velha, a psicanálise de se repensar, a narratologia de
disparatar e a Teoria do texto de exceder), o “brechto-marxismo”
de Barthes guardará para ele, até o fim, seu frescor fundador e o
atrativo “adâmico” da língua materna crítica de Barthes.

31
Philippe Roger

Os anos “Teoria” que sucedem os anos Marx exigiriam uma des-


crição minuciosa. Digamos, bem rapidamente, que uma figura os
rege, que retorna (é, aliás, sua natureza) cada vez mais valorizada
nos textos de Barthes: a figura da espiral. Sem me deter na espiral
(falei sobre ela no catálogo R/B, da exposição que se deu este
ano (2003) no Beaubourg), gostaria de lembrar sua insistência e,
sobretudo, propor uma interpretação.
Sabe-se que Barthes toma de empréstimo, de Vico, a sua espiral,
via Michelet (desde 1959), e que a investe de uma dupla carga
pós-moderna, superpondo-a ao “eterno retorno” nietzschiano,
através da releitura deleuziana de Nietzsche.
Sabe-se, pelo menos, que essa figura da espiral é impulsionada
por Barthes, como uma contribuição/alternativa às proposições do
marxismo. (Sua primeira aparição se dá ao final de uma homena-
gem a Lucien Goldmann; uma das últimas glosas, em RB por RB,
confronta o “retorno como farsa” marxista e o “retorno pelo alto”
vichiano e nietzschiano). Essa figura-chave do imaginário teórico
barthesiano está, portanto, amarrada à questão de Marx, de uma
maneira particularmente ambígua e interessante. Por um lado,
ela opõe à escatologia progressista marxista (linha implacável,
apesar dos “ziguezagues”, como diz Engels) um outro esquema:
tempo cíclico e, todavia, exonerado da repetição pelo “retorno a
um outro lugar”. Mas, por outro lado, e mais secretamente, a es-
piral barthesiana opõe seu princípio de conservação ao princípio
de transformação (pela síntese dos contrários) próprio à dialética
hegelo-marxiana.
(É preciso, aqui, desenvolver e mostrar que o estranho “brechto-
-marxismo” de Barthes se desvencilha rapidamente da dialética;
se, nas Mitologias, Barthes evoca uma visão dialética do mundo,
para melhor combater o monstro da tautologia ou a impostura
essencialista, ele multiplica, em seguida, os distanciamentos em
relação a uma forma que reflete um modelo belicoso, pugilístico do
mundo, desde a dialética socrática como cerco do adversário, até
o “terrorismo” do discurso militante, em relação ao qual, Barthes
adverte, em Cerisy, em 1978, que esse prospera sobre o adubo

30
Barthes, Brecht e Marx

“gaulês” de uma cultura do afrontamento verbal permanente; como


pano de fundo dessas críticas filosófico-fantasmático-políticas da
dialética, irrigando-as secretamente, seria preciso, ainda, evocar
a recusa “selvagem” da dialética pelo sujeito amoroso, em FDA,
pois o amor, sublinha Barthes, é por natureza “indialético”).
A apologia sempre mais exaltada da espiral, em Barthes, durante
uma quinzena de anos, está nesses “idiotismos teóricos” que as-
sinalam as tensões ou contradições que pretendem resolver. Pré-
-moderna em sua concepção, pós-moderna em sua formulação, a
espiral permite a Barthes sempre postular uma posição mais “avan-
çada”, sem “abandonar” o que se encontrará em um outro lugar,
em uma outra volta da espiral: instinto de conservação e de pulsão
vanguardista encontram-se aí milagrosamente conciliados, ou seja,
fantasmaticamente protegidos de sua própria incompatibilidade.
Máquina engenhosa; mas máquina infernal; é estranho que Barthes
tenha demorado tanto a perceber. Assim como esses carros, tão
“seguros”, em que seus motoristas, confiantes demais, se matam
com mais segurança, a espiral, protegendo o sujeito de qualquer
perda (visto que tudo se reencontrará – um dia), o impele a lances
mais altos. A espiral permite, impunemente (sem soltar nenhuma
amarra, sem cortar nenhum cordão umbilical), sempre mais “di-
ferença”, sempre mais atopia, enfim, sempre mais radicalidade e
distância entre o sujeito e si mesmo (um si mesmo que ele será o
primeiro a denunciar como ficção).
Em 1971, Barthes colocava um de seus livros “sob a proteção”
dessa figura, a espiral; mas o último paradoxo da espiral é que
esse emblema protetor o terá levado sempre mais longe, não a
descoberto (o que seria um mal menor), mas “sob a cobertura” de
grandes sistemas bem mais constrangedores, apesar das ­aparências,
do que aqueles (sartrismo, marxismo) nos quais sua juventude
havia se abrigado. Ele que soube, nos anos Marx, se guardar de
qualquer “adesão” encontra-se, em meados dos nos 70, prisio-
neiro de uma rede de “solidariedades” com diversas misturas de
vanguarda – “solidariedades” sobre as quais ele mesmo insinua,
em 1975, em Roland Barthes por Roland Barthes, que elas nem

31
Philippe Roger

sempre existem sem “hipocrisia”. (A confissão é dissimulada no


breve fragmento “Hipocrisia?”, no qual Barthes faz alusão a um
de seus textos sobre Sollers, sem nomeá-lo: contraponto esotérico
aos elogios exotéricos dispensados aos “amigos de Tel Quel” em
outros fragmentos, como aquele intitulado precisamente “Tel Quel”
(BARTHES, 2002b, t. 4, p. 679, 747).
Pior ainda: consciente do jogo duplo que realiza sob a “proteção”
da espiral, não estando enganado a respeito da radicalidade que
anuncia, Barthes realiza, então, um tipo de aceleração na radicali-
zação de posições de seus amigos pós-modernos. Helène Merlin-
-Kajman, num livro recente, La langue est-elle fasciste? (2002,
p. 45-46), retoma a famosa frase de Barthes, tão criticada, de sua
aula inaugural no Collège de France: “A língua, como performance
de qualquer linguagem, não é nem reacionária, nem progressista;
ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de
dizer, é obrigar a dizer”. Ela sugere, não sem razão, que esse ar-
rebatamento teórico é o resultado de um duplo excesso: excesso
em relação à articulação de Foucault entre o poder e o discurso,
Barthes “dramatizando” a teoria foucaultiana, estendendo à língua
a análise que Foucault limitava cuidadosamente ao “discurso”; e
excesso em relação a Saussure, visto que a língua, essa parte so-
cial da linguagem, sistema ao mesmo tempo arbitrário e racional,
torna-se, na Leçon, o “código” da linguagem, mas, da linguagem
na medida em que já é uma “legislação”, seu “ordo”,2 ao mesmo
tempo, “partilha e cominação”. De fato, é de mais longe que esta
formulação controvertida chega para Barthes: a convicção, pre-
sente em O grau zero da escrita, de que a dimensão da língua é a
de um obstáculo para qualquer fala.
Não é sem razão que os dois momentos-choque da Leçon, as duas
“pequenas frases” intencionalmente sensacionalistas, sejam: de um
lado, esse excesso de Barthes sobre as mais avançadas teses da
pós-modernidade dos anos 70 (ao lado de Foucault, seria preciso
colocar Deleuze, do qual Barthes ampliará livremente a oposição
2
Ordo: calendário litúrgico que compreende as diversas partes do ano litúrgico da Igreja
universal e de uma Igreja ou de uma ordem particular (Traduzido do Dicionário Petit
Robert 1, 1987).

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Barthes, Brecht e Marx

língua majoritária/língua minoritária, vinda de Kafka, e já “distor-


cida”, é verdade, em Mille Plateaux, pelo próprio Deleuze e seu
cúmplice Guattari); e, de outro lado, o famoso enunciado de seu
credo literário: “se, não sei por que excesso de socialismo ou de
barbárie, todas as nossas disciplinas, menos uma, devessem ser
expulsas do ensino, é a disciplina literária que deveria ser salva,
pois todas as ciências estão apresentadas no monumento literário”
(BARTHES, 2002a, t. 5, p. 433).
Pequena emoção de época (menos durável que a provocada pela
língua “fascista”): uma parte do público entende essa “barbárie”
como uma alusão ao livro de sucesso de B. H. Lévy (do qual
sabe-se que Barthes é próximo): La Barbarie à visage humain,
incriminação radical do socialismo. Mas como não pensar, numa
outra repercussão, no grupo Socialismo ou Barbárie, que encar-
nou, nos anos Marx, uma alternativa socialista não bárbara para
o stalinismo?
Vemos, portanto: em pleno elogio do “monumento literário” (e
não do movimento literário...), enquanto Barthes, a partir de então,
orienta-se para uma semiologia impura guiada pelo “fantasma
pessoal”, enquanto começa sua busca ativa de uma Forma em
ruptura de metalinguagem, há um espectro que assombra ainda
sua busca: o espectro do “brechto-marxista” fundador, do qual
Barthes decididamente não abandonou nem a linguagem, nem
o gesto. Assim, reencontramos, no desenrolar do último curso,
o imutável gestus brechtiano, que se tornou o mais inesperado
dos intermediários entre o haicai japonês e a narrativa ocidental
(BARTHES; LÉGER, 2003, p. 135); ou, ainda, mais inesperado,
uma menção da peça eminentemente política de Michel Vinaver,
Aujourd’hui ou les Coréens (defendida por Barthes, em 1956),
que retorna, em 1979, para ilustrar, não um “engajamento” teatral
(contra a guerra da Coréia), mas “a aquiescência do que é”, auge
nietzscheo-zen dos novos valores barthesianos e a “rarefação do
Ideológico”, que Barthes descreve (sempre em 1979) como uma
volúpia “quase embriagante, tanto ela provoca euforia e pacifica”
(BARTHES; LÉGER, 2003, p. 110). Até o próprio “socialismo”

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Philippe Roger

é novamente evocado: “Seria o próprio sentido do Socialismo


mudar esta natureza, esta Normalidade”, onde a vida humana
é apenas a laboriosa rotina de sua própria recondução; “o que é
preciso arrancar”, acrescenta Barthes, num léxico perfeitamente
militante, “é o resto, o excesso, o luxo” – as rosas, dizia Marx, e
não somente o pão.
Não é menos significativo que, nesse último curso, misturam-
-se solidariamente reminiscências marxistas e “reclamação” da
Literatura. Tudo se passa como se Barthes, agitando o jugo auto-
-imposto das solidariedades vanguardistas, assumisse plenamente
sua inapetência pela nova cultura pós-moderna, de que ele passa
a suspeitar que seja reciclagem intelectual da cultura vendável
de massa. Sua contra-ofensiva intempestiva não possui, hoje,
nada de démodé. Ela se reencontraria, por exemplo, com a crítica
amarga do pós-modernismo de um Slavoj Zizek (2002). Barthes
(re)encontraria aí, ainda melhor, suas marcas, colocadas por ele
discretamente, as estacas na margem de sua busca do Romance. O
último Curso, de fato, não é uma busca egotista (“Como eu poderia
eventualmente escrever alguns de meus livros futuros”...); é uma
meditação sobre as novas condições de impossibilidade propostas
à Literatura. Novas: quer dizer totalmente diferentes daquelas que
eram objeto do Grau zero da escrita.
Nos anos do pós-guerra, a Literatura era descrita como tomada de
impedimento, a “obra-prima moderna” decretada “impossível”. Ao
menos, havia um culpado, claramente identificado: a sociedade
de classes reconduzindo a “divisão das linguagens”. Portanto,
um remédio: seu próprio desaparecimento. Toda ambigüidade
do Grau zero da escrita é deixar entrever, na noite obscura da
impossibilidade blanchotiana, escapes “adâmicos” em direção a
uma linguagem entregue a seu “frescor”, pela revolução social.
Esta postulação terá constituído o contínuo dos textos de Barthes
durante 20 anos, a “Revolução de Maio” e, sobretudo, o discurso
revolucionarista do pós-Maio trazendo-lhe uma caução i­ nesperada.
Os Cursos de 78 a 80 são também assombrados pela Morte da
literatura: “Alguma coisa ronda nossa História: a Morte da litera-

30
Barthes, Brecht e Marx

tura; isto erra em torno de nós; é preciso olhar este fantasma de


frente [...]” (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 49). Como prova a
própria imagem empregada por Barthes, longe desse “fantasma”
de sombra estimada, há, sempre ameaçada de desaparecimento,
Literatura-Eurídice dos anos 50 – essa Eurídice que, justamente,
conforme o mito grego, o escritor não podia, nem devia “olhar de
frente”, salvo para vê-la desaparecer. Eis chegado (em 1978) o
tempo dos assassinos. Eurídice não morre mais, não re-morre mais
da inabilidade amorosa e trágica de Orfeu; ela é enviada, ­executada
sem frases, como no canto de um bosque, nesta floresta de ban-
didos que se tornou “nossa História”. À figura desconcertante de
Orfeu e ao mito dilacerante de Eurídice sucede a silhueta patética
e insignificante de Cassandra: “A literatura libera incessantemente
uma Crítica dos Discursos que não é ouvida [...]”, nota Barthes
(BARTHES; LÉGER, 2003, p. 376) e acrescenta, lapidar, essa
pedra sobre o túmulo do escritor: “Escritor: espécie de Cassandra
do passado e do presente; verdadeiro e jamais acreditado; vã tes-
temunha do Eterno recomeço.” Ao escritor-Cassandra a sociedade
não opõe mais sua hostilidade; somente a obtusa indiferença de
um: “fale sempre!”
Novo esquema, portanto, radicalmente diferente do primeiro. A
Literatura não perece por causa dos escritores, paralisados por
uma contradição que poderia acabar, que acabará, talvez, com
a revolução – e que, por ser funesta, não deixa de ser fecunda
(como atesta a obra de Blanchot). Ela é traída, vendida, ridicula-
rizada, liquidada pela própria História. Ela morre vítima de uma
mudança de direção da espiral que se tornou descendente. Não
somente o melhor não aconteceu, mas o pior aconteceu: primo,
desaparecimento do “proletariado” como idéia reguladora; se-
cundo, “ascensão, desabrochar da pequena burguesia na cultura”
(BARTHES; LÉGER, 2003, p. 364); tercio, abandono definitivo
da Cultura pela Burguesia (“a literatura não é mais mantida pelas
classes ricas”, p. 365) e “delegação” do poder cultural à pequena
burguesia, que a Burguesia “recompensa”, dessa forma, por aceitar
sua hegemonia social.

31
Philippe Roger

Assim, a batalha estava historicamente perdida há muito tempo.


Desde quando, exatamente? Desde 1848, sem dúvida, março de
1848, precisa Barthes, esse último momento de aliança entre o
proletariado e a pequena burguesia. A esta pequena burguesia,
ressalta Barthes, “Marx havia designado o papel de pivô, a propó-
sito da Revolução de 1848” (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 364).
As voltas em torno desse pivô, desde 1848, foram quase sempre
dadas para o lado ruim. Mas, doravante, nesse final do século XX,
só poderão ser dadas para o lado ruim. Ou melhor, elas já foram
efetuadas definitivamente para o lado da burguesia, pela simples e
boa razão de que o proletariado nos países capitalistas avançados
é sociologicamente evanescente e ideologicamente decadente.
(Esse proletariado anulado como chave da nova situação de clas-
se encontra-se, também, em Zizek: “o proletariado de Marx não
pode mais ser definido positivamente, a partir de uma posição na
relação de produção, mas, de preferência, a partir de uma relação
fundamental de privação [...ele] tornou-se concretamente um
princípio negativo, a ‘não-classe dentre as classes’, mais que um
grupamento de indivíduos com qualidades semelhantes”.3
Daí a estranha paisagem do último Curso e sua iluminação cre-
puscular.
Por um lado, uma carga excitada, quase maníaca, contra o mundo
tal qual ele é; um furor de “policarpismo”; uma violência verbal ra-
ramente atingida por Barthes, mesmo pelo viés da citação (a “maré
de merda”, da qual falava Flaubert e que Barthes aplica à cultura
da mídia e da “eterna Reportagem”) (BARTHES; LÉGER, 2003,
p. 374); uma raiva, uma amargura que contrastam violentamente
com a zombaria triunfante das pequenas mitologias, saídas da pena
de um escritor “historicamente feliz”. O próprio Brecht, no Casa-
mento dos pequeno burgueses, parece ingênuo ao lado de Barthes,
obstinado em descrever a ignomínia do lupanar burguês, desde
que a pequena burguesia tem, nele, função de sub-proprietária...
Por outro lado, uma meditação solitária, ou melhor, isolada, sobre
a Literatura a prezar, salvaguardar, perpetuar: que é preciso amar
3
Laurent Jeanpierre postface à SLAVOJ (2002, p. 121).

30
Barthes, Brecht e Marx

porque é bela, que é preciso defender porque está só. Defender,


portanto, Kafka, certamente, o solitário por excelência. Defender
também Flaubert, clamans in deserto, não como misantropo, mas
como “misocrono”, que odeia seu tempo. Defender Mallarmé,
“republicano e grevista”, lembra Barthes, e “em literatura, aris-
tocrata refinado” (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 382). Defender
Pascal, em quem, num retorno revelador, Barthes reconhece, a
partir de então, a “verdade da forma” (p. 353) – o mesmo que fazia
o preço e o valor de Brecht! Defender os Clássicos, não somente
pelo prazer que eles dão (como escrevia o jovem Barthes num
de seus primeiros artigos), mas porque a forma clássica é “uma
forma que o desenrolar e a inversão da História estão tornando
nova” e que, pelo mesmo movimento, o “escrever-bem”, a língua
“respeitada” e “observada” tende a se tornar, paradoxalmente, a
língua minoritária, excluída e humilhada.
Se esse Barthes pode parecer bem diferente do polemista impetuo­
so dos anos ascendentes, ele não lhe é estranho, entretanto, nem por
suas paixões, nem por suas repugnâncias. Mas, em “uma situação
histórica de pessimismo e de rejeição”, a hora não é mais para a
ofensiva, mas para a Resistência e para a Secessão, que é também
uma forma de resistência. Os cursos precedentes, sobre o Neutro
e o Viver-juntos já exploravam formas possíveis de autodefesa do
Sujeito, modalizações históricas ou utópicas de resistência ou de
depreciação – diversos cenobitismos em relação ao “não-querer-
-compreender”. Talvez, o segredo dessas últimas reflexões deixa-
das por Roland Barthes seja associar seu “amor avassalador pela
Literatura” a uma nova análise, crepuscular, das relações sociais,
de maneira que o escritor, buscando a via da obra no “cume de seu
particular” (como ele diz de uma fórmula muito bela a respeito de
Proust), possa, então, fazê-lo não somente sem falsa vergonha, nem
má fé, mas com a enraivecida convicção de que a Obra vindoura,
recolhendo amorosamente os sofrimentos daqueles que viveram
a fim de não “morrerem por nada”, e oferecendo asilo e santuário
à língua molestada, assuma, de fato, uma só e mesma tarefa que
pode resumir essa palavra, muito estranha, que está no centro da
conferência sobre Proust, de 1978: a palavra Cáritas.

31
Philippe Roger

Referências
BARTHES, Roland ; LÉGER, Nathalie. La préparation du roman:
notes de cours et de séminaires au Collège de France, 1978-1979 e
1979-1980. Texto estabelecido, anotado e apresentado por Nathalie
Léger. Paris: Seuil; Imec, 2003.
______. Le degré zero de l’écriture. Paris: Seuil, 1953.
______. Le plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973.
______. Leçon. In: ______. Oeuvres Complètes. Paris: Seuil,
2002a. t. 5.
______. Mythologies. Paris: Seuil, 1957.
______. Roland Barthes par Roland Barthes. In: ______. Oeuvres
Complètes. Paris: Seuil, 2002b. t. 4.
BLANCHOT, Maurice. L’Entretien infini. Paris: Gallimard, 1969.
DEULEUZE, G.; GATTARI, F. Mille Plateaux. Paris: Minuit,
1980.
LÉVY, B.-H. La baraire à visage humain. Paris: Grasset et Fas-
quelle,1997.
MERLIN-KAJMAN. La langue est-elle fasciste? Paris: Seuil,
2002.
SLAVOJ, Zizek. Le Spectre rôde toujours: actualité du Manifeste
communiste. Paris: Nautilus, 2002.

30
Retrato de Roland Barthes em Don Juan1

Françoise Gaillard

Uma das vaidades que o discurso acadêmico ou ensaísta inventou


foi o adendo. O adendo tem um encanto erudito meio fora de moda,
que não teria desagradado a Roland Barthes, embora ele mesmo só
o tenha usado muito raramente. Mas o adendo possui ainda uma ou-
tra virtude, bem mais barthesiana, a de demonstrar. “Demonstrar”
é a expressão que Roland Barthes utiliza para pontuar os lugares
do discurso nos quais a função sinalética é mais importante que
a significação. O exemplo que ele dá dessa “demonstração” é o
da retórica revolucionária do panfleto, do populista e enraivecido
Hébert. Como vocês devem se lembrar, é na introdução do Grau
zero da escritura: “Hébert nunca começava um número do Père
Duchêne sem colocar alguns ‘diabos’ e alguns ‘bugres’”. Essas
grosserias não significavam nada, mas elas sinalizavam. O quê?
Toda uma situação revolucionária.” À diferença dos “diabos” e
dos “bugres” de Hébert, a citação geralmente escolhida para ser-
vir de adendo tem uma significação intrínseca. Ela significa. Ela
até significa poderosamente. É a razão pela qual ele a escolheu.
Mas o adendo é uma operação perversa que se apóia no sentido
para transformá-lo em sinal. Em sinal de quê? Em sinal de uma
conivência. Essa conivência aqui é filosófica. Meus dois adendos
não fogem à regra. Eles assinalam. Assinalam o quê? Assinalam
ao mesmo tempo uma posição filosófica e o lugar que, a meu ver,
Roland Barthes aí ocupa. Em outras palavras, elas servem para
demonstrar:
Para quem pergunta – “para que serve a filosofia?” – é preciso responder:
a quem pode interessar, a não ser que seja para criar a imagem de um
homem livre, para denunciar todas as forças que precisam do mito e da
perturbação da alma para assentar seu poder? (DELEUZE, 1969).

Quando é que todas as sombras de Deus deixarão de nos obscurecer?


(NIETZCHE, 1989).
1
Traduzido do francês por Maria Cristina Batalha
Françoise Gaillard

Difícil falar de Roland Barthes. Nunca tomamos a distância correta.


Estamos perto demais, em uma empatia que nos leva à paráfrase.
Estamos longe demais, em uma incompreensão que beira a recusa.
Estamos junto do homem que conhecemos e muitas vezes amamos,
mas, doravante, nos sentimos ao mesmo tempo longe do pensador
do qual rejeitamos certos compromissos intelectuais (seria melhor
dizermos um certo excesso ou uma certa radicalidade teóricos,
como o artigo – amplamente mal-interpretado – sobre a morte do
autor, ou a análise da novela de Balzac – Sarrasine – o famoso
S/Z, recentemente destruído por Thomas Pavel e Claude Brémond).
Ou então nos sentimos longe do homem que permanece um es-
trangeiro (o teríamos apreciado humanamente?), e, no entanto,
com o qual continuamos a compartilhar a moral da inteligência
que só conhece a busca permanente de significação. Lembremos
desse fragmento do Roland Barthes par Roland Barthes, que eu
aprecio particularmente, por encontrá-lo aí da mesma maneira
que ele encontrou sua mãe na modesta fotografia do jardim de
inverno: “Paixão constante (e ilusória) de acrescentar a qualquer
fato, até o mais insignificante, não a questão da criança: por quê?,
mas a questão do antigo grego, a questão do sentido, como se
todas as coisas pulsassem de sentido: o que que isso quer dizer”
(precisaríamos ler a totalidade do fragmento; eu vou oferecê-lo a
vocês, como sobremesa, ao final de minha intervenção, como “o
melhor da festa”, como costumamos dizer). A distância correta,
tudo depende disso. Esse foi um problema para Berthold Brecht.
Ele fez uma teoria a respeito. Foi uma preocupação para Roland
Barthes. Hoje, é um desafio para o barthesiano. E, como que para
complicar essa tarefa, Roland Barthes nos manifestou seu desa-
grado a respeito de qualquer palavra que se associe a seu nome ou
a sua pessoa. Portanto, toda vez em que me encontro na situação
de ter de falar dele, não posso deixar de pensar naquilo que ele
parece ter escrito, de propósito, para as pessoas que, como eu, ou-
sam aventurar-se. O Fragmento tem como título: O adjetivo. Ele é
muito conhecido. Vou, contudo, me permitir relembrá-lo a vocês:
Ele não pode suportar qualquer imagem de si mesmo, não gosta de ser
nomeado. Considera que a perfeição de uma relação humana se deve a
essa vacância da imagem: abolir entre si, de um para o outro, os adje-

48
Retrato de Roland Barthes em Don Juan

tivos; uma relação que se adjetiva está do lado da imagem, do lado da


dominação, da morte.

Ele gostaria, sem a menor dúvida, de abolir também o comentário,


que é a forma distendida do adjetivo desprezado, uma maneira
acadêmica de adjetivação e, por conseguinte, de uma morte erudita.
Teria querido ele com isso condenar-nos ao silêncio? O oukase é
um gênero pouco barthesiano. E, em última instância, não é dele
que eu sempre falei, mas de um pensamento cuja força viva não
deve temer o caráter mortífero da objetivação. Esse pensamento,
eu teria a audácia – apesar de Roland Barthes e de sua discreta
prevenção – de qualificá-lo com uma palavra (e, ainda por cima,
um adjetivo): ateu. O termo é forte, talvez até violento, inesperado,
sem dúvida, mas eu o arrisco. Eu arrisco sob a autoridade das duas
citações colocadas em adendo, e cuja função de demonstração se
esclarece agora.
Chamo de “ateu” um pensamento que, não contente em descrer
de Deus (origem e fim de todas as coisas), tampouco acredita em
seus substitutos metafísicos (que devemos às Luzes), como a Ra-
zão, a Natureza, a Verdade que falam a favor de uma imanência
de valores e de um convencionalismo do sentido. Esse ateísmo
não está na moda hoje em dia, em tempos de absolutização dos
valores. Entretanto, ele nunca foi tão necessário. É por isso que
gostaria de escutar sua radicalidade tranqüila no texto e no discurso
de Roland Barthes.
O Roland Barthes ateu não nasceu com a semiologia. Ele não
saiu da leitura do Curso de Lingüística Geral de Ferdinand de
Saussure, nem tampouco da leitura de “A estrutura dos mitos”,
de Claude Lévi Strauss, embora tenha encontrado no paradigma
estrutural e nas aventuras do signo matéria para alimentar seu
ateísmo. Seu nascimento intelectual é mais antigo. Ele remonta
aos primeiros escritos sobre o teatro, notadamente àqueles que ele
dedicou ao repertório e às encenações do teatro nacional popular
(TNP), dirigido, à época, por Jean Vilar. O Roland Barthes ateu
é filho do Don Juan de Molière. Para esclarecer: do Don Juan de
Molière montado e interpretado por Jean Vilar. Ele tem, na história

49
Françoise Gaillard

do pensamento, outros ancestrais de prestígio, mas, se insisto no


parentesco com Don Juan, é simplesmente porque a confissão (ou
quase confissão) de sua filiação ao pensamento ateu, ele a fez em
dois artigos escritos, ambos, na saída de uma representação da
peça. Don Juan/Roland Barthes: a relação é surpreendente, devo
admitir. Sobretudo não queiram ver nessa filiação longínqua uma
possível alusão a um suposto donjuanismo de espírito, que teria
levado Roland Barthes a flertar com inúmeros objetos e trocar de
amor a cada livro. Seria fácil, mas falso. Fácil porque significaria
nos contentarmos com a lista dos milhares de assuntos de seu inte-
resse intelectual para concluir sobre sua inconstância propriamente
donjuanesca. Falso, porque Roland Barthes, assim como Don Juan,
é muito fiel, fiel aos princípios estruturantes de seu pensamento,
que já estão colocados desde o início dos anos 50, anos do Grau
zero da escritura, das Mitologias, do Teatro popular, do Michelet.
Conheço poucos pensadores tão constantes...
A aproximação entre Roland Barthes e Don Juan não é um jogo
mental. Ela se impõe na leitura desses dois artigos dedicados à
representação da peça de Molière pelo TNP. (Confesso aqui minha
dívida com relação ao editor da coletânea de textos de Roland
Barthes sobre o teatro: Jean Loup Rivière). Os dois artigos em
questão são intitulados respectivamente: “Os silêncios de Don
Juan” e “Don Juan” (1954). Para o meu propósito, os dois têm valor
emblemático. Interpretado por Jean Vilar, Don Juan, nos explica
Roland Barthes, “volta a ser uma belíssima peça de Molière, uma
obra forte, plena, admiravelmente coerente, deslumbrante em
audácia, nua e metálica, um desses grandes textos que são ver-
dadeiramente a honra dos homens”. Por quê? Porque “passamos
enfim ao procênio verdadeiro, nu, aberto solenemente, onde um
ateu total e totalmente responsável apresenta-se de frente.” (Os
grifos são meus). Destacaria ainda que a palavra “ateísmo” aparece
oito vezes em menos de três páginas. Don Juan é o ateu, o ateu
encarnado, o ateu emblemático, e Jean Vilar dirige esse ateísmo
como um escândalo no coração do público. Aí reside a força do
espetáculo. E daí vem também o entusiasmo de Roland Barthes.
O Don Juan de Jean Vilar é, nos diz ele,

50
Retrato de Roland Barthes em Don Juan

mais dotado de certeza do que privado de crença, e essa certeza é silencio­sa


porque ela sente-se justificada, forte por ter colocado as razões do mundo
tão longe de Deus, e que o próprio prodígio participa de um desconhecido
provisório e não de um mistério eterno. Já há um pouco de Sade nesse
Don Juan... .

Um Sade que pensa que, depois de ter desdivinizado Deus, é preci-


so desdivinizar a Natureza, e esta é apenas um avatar do primeiro.
Um Sade que recusa colocar o bem e o mal na ordem natural. Um
Sade que denuncia (como o Roland Barthes das Mitologias) o álibi
da natureza. Um Sade que, debochando da moral, faz do jogo do
desejo uma combinatória. Em suma, um Sade barthesiano. Um
Sade do Sade, Fourier, Loyola.
Quem é Don Juan? É o homem, nos diz Roland Barthes, de uma
certeza, uma certeza silenciosa e forte “por ter colocado as razões
do mundo tão longe de Deus”. Tão longe de Deus, quer dizer,
tão longe de todas as figuras da transcendência acariciadas pelo
mito, a religião, a metafísica... Tão longe, portanto, da Razão, da
Natureza, da Causa... Tão longe de todas as crenças, dos referen-
tes transcendentes ou maiores nos quais o homem ocidental não
pára de querer colocar sentido. Tão longe de todas essas formas
dissimuladas do teológico ou de seus retornos mascarados e às
quais não escapa uma semiologia incapaz de optar, como Roland
Barthes, pela isenção do sentido. Roland Barthes é esse Don Juan
que colocou as razões do mundo tão longe de Deus que elas fica-
ram sem razão, destituídas de qualquer razão que lhes dê razão.
Lembrem-se, à pergunta infantil: “por quê?” Roland Barthes
preferia a pergunta do antigo grego: “o que isso quer dizer?”,
porque ele a entendia, não como a pergunta do sentido, mas sim
como a da significação, ou seja, como a manifestação do interesse
dos homens pela fabricação de sentido, e não como a expressão
da busca de um sentido, do sentido do mundo... Isso vale para o
texto ao qual Roland Barthes recusa a fixação de um sentido, o
certo. “Uma ciência da literatura terá por objeto a inteligibilidade
do texto e não seu sentido”. Em outras palavras, sua tarefa será a
de descrever segundo qual lógica os sentidos são engendrados, e
não a de pronunciar-se sobre o sentido de seus sentidos. Sabemos

51
Françoise Gaillard

o quanto esse agnosticismo em matéria de comentário ou de in-


terpretação literária lhe rendeu inimigos. E ainda não acabou. A
resposta aos detratores da época, nós a encontramos em Crítica e
Verdade (1966). Roland Barthes afirma nesse texto o jogo infinito
do sentido. Qualquer sentido capturado faz surgir um outro sentido,
pois a linguagem do texto. Assim como a do mundo, é plural e
o instrumento menos adaptado para apreender essa pluralidade é
ainda a conotação. Ele procurou administrar a prova disso em sua
leitura da novela de Balzac, Sarrasine, o que resultou na publicação
de S/Z. A conotação agrada a Roland Barthes a despeito do pecado
de colocação de sentido que a persegue: a denotação. A conotação
agrada a Roland Barthes porque, com ou sem jogo de palavras,
ela desenraiza a linguagem. E Raymond Picard não se recuperou
disso. Ela a arranca de um eventual pedestal de verdade, de um
possível fundamento referencial. Aliás, na roda do sentido, não
há mais nem denotação, nem conotação, nem sentido primeiro,
nem sentido segundo, mas uma circulação livre dos sentidos em
que a significação ocorre.
A significação, essa redescoberta do mundo pelo sentido a fim de
torná-lo habitável para nós, homens modernos, representa, para
Roland Barthes, o objeto de uma atenção e de uma interrogação
constantes, e isso desde os seus primeiros escritos. “Nós sabemos
hoje muito bem, escreve ele, que aquilo que separa o homem do
animal não é a comunicação (os animais se comunicam muito
bem), é a significação; e esse importante fato antropológico, nos-
so século explora com uma paixão muito particular”. Na idade
clássica, a inteligibilidade vinha às coisas pela classificação, pela
colocação em quadro (Michel Foucault mostrou isso em As pala-
vras e as coisas); na aurora da idade moderna, a inteligibilidade
começou a vir às coisas pela história; a partir daí, será preciso
incluir em sua inteligibilidade o próprio processo da significação.
Todo o pensamento de Roland Barthes parte desse postulado que
ele tomou para si: “Ao lado das diferentes determinações (econô-
micas, históricas, psicológicas), é preciso agora prever uma outra
qualidade do fato: o sentido” (o sentido e não seu sentido; o senti-
do, quer dizer, sua capacidade de fazer sentido; quer dizer ainda,

52
Retrato de Roland Barthes em Don Juan

de entrar no sistema geral da significação). E esse postulado que


abre para a semiologia um espaço de exploração que se estende
ao conjunto das práticas humanas (lembrem-se: “Se as tarefas da
semiologia não param de crescer, é que, de fato, nós descobrimos
cada vez mais a importância e a extensão da significação no modo
de pensar do mundo moderno, um pouco como o ‘fato’ constituiu
precedentemente a unidade da reflexão da ciência positiva”) não
é destituído de conseqüência para o teórico, para aquele que ele
prefere chamar modestamente, quando se trata de si próprio, “o
amador de signos”. Uma questão “se apresenta incessantemente”
para este último: “como os homens fabricam sentido? como o
sentido vem aos homens?”.
A significação é um objeto de estudo para o Roland Barthes
pensador, e eu ousaria dizer, filósofo. A significação é também
o objeto de seu maior júbilo intelectual. A significação é a zona
erógena de sua inteligência. Pois, trazidas à pura positividade
dos signos, à pura positividade dos códigos, as coisas no mundo
tornam-se também assim objetos de puro gozo, livres de qualquer
inquietação metafísica; tornam-se objetos de alegria sensual livre,
experimentada na exploração do diverso. Foi a significação que ele
foi buscar no teatro. Foi ela que ele pensou encontrar na tragédia
antiga (“a tragédia antiga trabalha para fazer com que signos de
emoção sejam lidos, mais do que para representar a emoção em
si mesma; nisso ela assemelha-se ao catch”). É ela, cujo processo
lhe parecia encarnado pela dramaturgia de Brecht, “que busca, não
a exprimir o real, mas a significá-lo”. Em Brecht, a significação
trabalha na demonstração, isto é, mais no sinal do que no signo
propriamente dito, ou então no signo produzido e tomado em uma
sinalética. Essa concepção do signo só poderia estar sintonizada
com as expectativas de Roland Barthes que confessou que, no
fundo, a ciência que ele desejava, na qual ele acreditava, não
era uma semiologia (sem dúvida porque esta última permanecia
tributária demais de um idéia de um referente maior, de um Ur
signo ou de um metassigno, garantia da semiosis), mas uma sina-
lética, quer dizer, um jogo ou um sistema de signos sem o álibi
referencial; no fundo, uma semiologia atéia. Sobretudo porque ele

53
Françoise Gaillard

conhece os efeitos sísmicos que uma tal semiologia p­ roduz. “O


teatro de Brecht é um teatro do signo, mas essa semiologia é uma
sismologia”, e cabe a nós acrescentar que o teatro de Brecht é uma
sismologia precisamente porque é um teatro do signo, o teatro de
uma semiologia atéia. Don Juan, Don Juan encarnado por Jean
Vilar e interpretado por Roland Barthes, teria gostado desse signo
que não sinaliza nada senão ele mesmo, nada além dele mesmo
e que limita-se – e não é pouco! – a “ser o princípio gerador de
todas as relações, de todas as formas possíveis”.
Roland Barthes, de uma certa maneira, antecipa a reflexão de Gilles
Deleuze para quem a sinalética teatral tem o poder de produzir um
efeito, não mais no sentido causal, mas no sentido de “signo” saído
de um processo de sinalização. O filósofo também vê nisso uma
depreciação da metafísica que envolve o pensamento do ­signo.
A causa, ou melhor, a idéia da causalidade, essa necessidade de
referir-se a uma instância original que seja, ao mesmo tempo, uma
instância de verdade, é o inimigo do ateísmo do pensamento, do
qual o Don Juan de Molière é uma das encarnações mais fortes.
Mas, antes dele, os sofistas Górgias e Protágoras; mas também
Lucrécio; mas também Spinoza; mas também Hume; mas também
Nietzche – e sobretudo Nietzche a quem devemos essa confissão
em O prazer do texto: “J´avais la tête pleine de Nietzche –; mas
também Barthes... Deleuze..., a lista não é exaustiva, mas de
qualquer maneira, ela não seria assim tão longa... O ateísmo do
pensamento é uma coisa rara. Para essa filosofia, chamada clas-
sicamente de “anti Natureza” e que permanece eminentemente
racional, o signo é um objeto ideal, pois, no dizer de Roland
Barthes, “é possível denunciar-lhe ou celebrar-lhe o arbitrário;
é possível desfrutar dos códigos e imaginar, com nostalgia, que
um dia eles serão abolidos: tal um outsider intermitente, eu posso
entrar ou sair da socialidade pesada, conforme meu humor – de
inserção ou de distância”.
Em um breve artigo publicado no Corriere della Sera, em 1969,
Roland Barthes enumera dez razões para escrever. Elas são, como
já era de se prever, ecléticas, passando do humor aos humores,

54
Retrato de Roland Barthes em Don Juan

da frivolidade à reflexão filosófica. Em primeiro lugar na lista, é


claro, o prazer, mas, na décima e última posição (lugar de eleição
tanto quanto o primeiro), ele escreve: “Para desmascarar a idéia, o
ídolo, o fetiche da Determinação Única, da Causa (Causalidade e
“boa causa”) e credenciar assim o valor de uma atividade pluralista,
sem causalidade, finalidade, nem generalidade, tal como o próprio
texto.” “Sem causalidade, nem finalidade”, essa é uma tomada
de posição filosófica. Eu já havia indicado que essa tomada de
posição tinha predecessores ilustres. Aqui, Roland Barthes limita,
como sempre, seu alcance, ou sua validade, simplesmente ao texto.
Devemos então falar a respeito de um ateísmo reduzido ao único
pensamento do texto? Seria não compreender nada do horizonte
filosófico sobre o qual se pode tirar sua reflexão sobre o texto.
Mallarmé desejava que o mundo se realizasse em um livro.
Roland Barthes pensa que o texto é como o mundo, e ele pensa
neles, tanto num como no outro, fora de qualquer metafísica da
causa e da finalidade, fora de qualquer metafísica da origem e do
fim. Isso pode desagradar. Mas aí reside sua maior subversão. Aí
reside o lugar daquilo que chamei de radicalidade tranqüila de seu
ateísmo. Aí está também o sentido do lugar de seu (único?) verda-
deiro compromisso: o signo. Alguns dirão que, sobre o texto, ele
enganou-se, pois este tem uma origem que se chama autor, e um
fim, que se chama intencionalidade, mas não são essas evidências
que Roland Barthes combatia. O desafio filosófico de seu traba-
lho de desconstrução era de um outro alcance. Da mesma forma,
qualquer processo que pudéssemos levantar contra ele na base de
uma leitura tão ingênua, não iria muito longe. Infelizmente, isso foi
feito muitas vezes! Roland Barthes só se levantava contra a crença
da crítica, clássica na ocasião, em uma relação de transparência
entre o sujeito e a linguagem. Ele teve a audácia de afirmar que,
já que era o sujeito que entrava na linguagem, e não o contrário, o
sujeito estava sempre destinado a não dar certo, nem na, nem pela
linguagem, e que a literatura era a marca escrita desse encontro im-
possível. Ideologema de época? Não estou certa. Eu tenderia, mais
uma vez, para uma manifestação de seu ateísmo do pensamento.

55
Françoise Gaillard

Mas, voltemos a Don Juan. Aquilo que ele recusa é menos este
ou aquele objeto de crença (no caso, Deus), do que a crença em
si mesma, e se seu catecismo reduz-se a dois e dois são quatro,
é que se trata de um dado fundado na convenção, e não em uma
profissão de fé, mesmo que esta estivesse assentada na razão.
Don Juan é um descrente na crença. Ele se recusa a crer que deve
(ou que possa) haver crença. Roland Barthes também recusa não
esse ou aquele conteúdo da crença (por exemplo, a crença na pos-
sibilidade de que o sabão Omo lave mais branco), mas a crença
como forma não crítica de adesão a um pensamento, a um mito,
a um objeto. Ele sabe, o que já sabia Hume quando criticava as
Luzes por ter substituído Deus pela Natureza e a Providência pelo
Progresso, que, como toda crença se define, não por um conteúdo,
mas por um modo de envolvimento, pode-se prever que qualquer
destruição de crença levará à substituição de uma crença nova que
terá a ver com um novo conteúdo/objeto, uma mesma ­maneira de
crer. (Quantos intelectuais de renome nos deram a prova disso,
trocando uma crença pela outra e mudando de causa, não ao sabor
das modas como poderíamos facilmente concluir, mas ao sa-
bor de sua novas certezas). É a razão pela qual Roland Barthes
não procura jamais destruir, mas sim subverter, impedir que ela
“pegue”, que se coagule, que se cristalize. A burrice, seu proble-
ma, não é um caso de falta de inteligência, ou de conteúdos de
pensamento burros, não, é um caso de modo de adesão. Um caso
de consistência, assim como a verdade. “Então, aquele que não
suporta a consistência, fecha-se em uma ética da verdade; solta a
palavra, a frase, a idéia, assim que eles a captam, e passam ao esta-
do sólido de estereótipo (stereos quer dizer sólido). Compreende-se
por que um tal ateísmo tenha sido incompatível com a militância.
E como a época pensava o engajamento político sob o signo da
militância, entendemos porque ele escreveu – não sem malícia, em
um dos fragmentos do Roland Barthes por Roland Barthes – que,
politicamente, ele amargou dificuldades a vida toda.
Isso leva a desenvolver uma outra estratégia: nunca entrar em
confronto direto com os objetos de crença de uma sociedade, pois
a crença ficaria salvaguardada, mas sim abalar seus modos de re-

56
Retrato de Roland Barthes em Don Juan

presentação. Atacar a crença como reflexo, e não como conteúdo.


Roland Barthes dedicou-se a essa tarefa desde muito cedo. Ao con-
trário de Voltaire, cujo combate contra a infâmia contribuirá para
instalar (e substituir) a ilusão metafísica que se chama Natureza. A
Natureza é a outra guerra de Roland Barthes, que vê nessa ilusão
filosófica a recondução do teológico. É preciso sublinhar que não
se trata da natureza em seu sentido ordinário de: simples estado
das coisas (embora essa afirmação já seja em si mesma suspeita,
pois ela supõe a crença na idéia que as coisas são dotadas de um
estado), mas em sentido metafísico (muitas vezes mascarado pela
aparente simplicidade ou banalidade dos pretextos para reflexão
como nas Mitologias); de: razão de ser o que é; razão de ser o que
é como é. Em outras palavras, a Natureza como crença na idéia
que as coisas têm uma razão da qual a Natureza é precisamente a
razão. Tradução popular: é assim porque é assim, argumento de
autoridade de qualquer pensamento que se funde na natureza como
princípio e que reforce o sentimento da evidência dos valores,
dos usos, das crenças. Contra essa Natureza/álibi do pensamento
preguiçoso (do lado oposto ao do pensamento crítico) um único
método: praticar a desnaturação, e nós sabemos quanto Roland
Barthes levou a sério essa tarefa em todos, insisto, todos os seus
escritos. Desde os artigos sobre o teatro, ele louvava Brecht por
praticar uma dramaturgia, não da imitação da natureza (pseudo-
physis), mas da convenção (antiphysis). Tratava-se então de seu
tratamento dos signos no teatro, mas esse elogio assenta-se, para
Roland Barthes, na denegação silenciosa da idéia de natureza
cujas raízes filosóficas remontam aos Sofistas. Protágoras, assim
como Górgias, como se sabe, trocaram a idéia de natureza pela
de convenção, substituindo a filosofia da physis pela de nomos.
No sentido social, que é o que interessa a Roland Barthes porque
ele trabalha sobre os objetos doutrinários e sobre os produtos da
cultura, a convenção é a ordem institucional e habitual, em suma,
é o depósito de sentido constituído ao longo da história. “Sob a
Natureza, repetia incessantemente Roland Barthes, descubram
a História” ou, “não devemos nada à natureza, tudo é histórico”,
ou ainda, a respeito da máxima: “ela é um enunciado do qual se

57
Françoise Gaillard

subtrai a História: fica o bluff da Natureza”. Como pano de fundo


do trabalho de Roland Barthes, um ateísmo, o de Lucrécio, do
qual todo o De natura rerum visa provar que não há uma natu-
reza das coisas. Afirmação que desautoriza de antemão qualquer
pensamento da natureza como princípio e como referente maior.
Todo discurso de desmistificação do processo de naturalização dos
valores ou dos objetos de crença, todo discurso então de desnatu-
ração de uma visão de mundo é, por definição, ateu.
Nada de natureza! Somente a ordem habitual, é exatamente o que
pensava Montaigne, criticando a idéia de natureza e a substituindo
pela de costume. É exatamente o que pensava Pascal: “O que são
os nossos princípios naturais senão nossos princípios costumei-
ros?”, acrescentando para reforçar: “[...] eu tenho muito medo
que a natureza não seja, ela própria, senão um primeiro costume,
como o costume é uma segunda natureza”. O costume, o nome é
fora de moda na era da semiologia; é preferível a noção de código
cultural. Não importa. Costume ou código cultural enfeitaram-se
com as bandeiras da Natureza. Uma tarefa se desenha então para
o intelectual crítico: “quebrar o costume”, em primeiro lugar,
revelando sua verdadeira natureza de costume por uma inversão
natureza/história (foi o que ele fez em Mitologias); em segundo
lugar, abrindo uma fissura no discurso que o enuncia (foi o objeto
de seu trabalho crítico e semiológico, pois, não nos deixemos en-
ganar, ele fez apenas um!). “Quebrar o costume é primeiramente
quebrar a máxima ‘o estereótipo’: sob a regra, descubra o abuso;
sob a máxima, descubra o encadeamento; sob a Natureza, descu-
bra a História”. Trata-se de desfazer nosso real, sobretudo onde
ele “pega”: no discurso da doxa; sobretudo onde ele se constrói;
na ordem da língua. Já fiz alusão à lição inaugural no Collège
de France, onde isso se enunciou de forma intencionalmente
provocante. Compreende-se que o contato com uma língua des-
conhecida por ele, como o japonês, o tenha encantado, pois ela
impõe outros recortes, outras sintaxes, outras posições do sujeito
capazes de fazer vacilar em nós todo o ocidente, toda uma cultura,
a nossa, que, ao longo dos tempos, transformou-se em natureza. O
Japão lhe agrada também porque ele pratica o abalo do sentido e

58
Retrato de Roland Barthes em Don Juan

sabemos que gostaria que o semiólogo se tornasse, como Berthold


Brecht, um sismólogo. Além disso, o Japão lhe oferece um signo
que não deve mais nada aos resquícios teológicos da lógica de
Port-Royal; um signo saído da metafísica da presença; um signo
que exibe seu caráter convencional, sem maquiagem, sem engodo,
sem máscara; um signo liberto de qualquer garantia de ­sentido;
um signo proposto à única inteligência que Roland Barthes sabe
(privilégio do ateu) que não penetrará na ordem do mundo, mas
precisamente (e somente), na ordem dos signos; um signo que
trabalha na imanência indicativa e que, por isso mesmo, está
mais próximo do sinal, como na tragédia grega, como no teatro
de Brecht, como se pode constatar: “O travesti oriental não copia
a mulher, ele a significa: ele não se embebe em seu modelo, ele
se destaca de seu significado: a feminilidade é mostrada para ser
lida, e não para ser vista” um signo que trabalha na imanência
como na utopia barthesiana de uma semiologia desteologizada,
quer dizer, que saia da Norma, do Código, da Lei, e assim, como
ele diz expressamente no texto que dedica ao livro de Jean-Louis
Scheffer, Cenografia de um quadro, que seja oriundo da teologia.
O Japão lhe agrada porque, na contramão do movimento da
metafísica ocidental, o imaginário se desenvolve nas voltas e
contravoltas ao longo de um assunto vazio. O Japão lhe agrada
porque tudo parte do vazio e para ele volta: “encontrar o objeto
que está misturado ou o significado que está no signo é jogá-lo
fora”. O Japão lhe agrada porque, no centro, não existe nada;
pouco importa que esse Japão seja uma construção barthesiana,
sua função no pensamento torna-se ainda mais significativa; pois
Roland Barthes sonhou com uma semiologia que não tenha c­ entro;
uma semiologia, não do desvio, mas da variação; uma semiologia
sem referência à Norma, ao Código, à Lei; uma semiologia que
faça gravitar a significação em torno de um vazio. Não devemos
esquecer que aquilo que interessou a ele no estruturalismo não foi
a estrutura, mas sim a estruturação.
O vazio em torno do qual se desenvolve o jogo dos signos, em
torno do qual se organiza o sentido, em torno do qual se tece a

59
Françoise Gaillard

significação é ainda o Japão, no seu Japão imaginário, na sua


utopia do pensamento ateu que ele o encontra. E esse vazio é um
vazio feliz sobre o qual não se estende a sombra de um Deus mor-
to. Pois esse vazio não é uma falta, falta de um grande referente
escondido ou mudo; não o vazio metafísico cuja necessidade de
preenchimento está na origem de qualquer pensamento religioso.
Não, é um vazio cheio de signos imanentes, que encantam, porque
aí se combinam o sentido e a sensualidade, o entendimento e o
prazer. Essa combinação se chama significância. É uma erótica
da inteligência, uma inteligência, se preferirmos, erotizada, mas
também estetizada.
Evidentemente, em matéria de erotismo e de estética, Don Juan,
que recusa a transcendência, condena-se a ignorar o gozo e o subli-
me, mas cultiva, até transformá-los em uma arte maior, o prazer e
o gosto. Roland Barthes também. E se Don Juan tivesse escrito, ele
teria escolhido o fragmento e optado, para a apresentação desses
fragmentos, pela organização arbitrária, por ser convencional, que
a ordem alfabética oferece. Roland Barthes fez isso. Uma coisa,
no entanto, os separa. Roland Barthes nunca rompeu indiscrimi-
nadamente com a religião, a sua chama-se amizade, mas ela vale
pelo rito, não pela fé:
Às vezes, na literatura antiga, encontramos esta expressão aparentemente
boba: a religião da amizade (fidelidade, heroísmo, ausência de sexuali-
dade). Mas, já que da religião apenas a fascinação do rito subsiste, ele
gostava de guardar os mínimos ritos da amizade: festejar com um amigo a
liberação de uma tarefa, o afastamento de uma preocupação: a celebração
valoriza o acontecimento, acrescenta a ele um suplemento inútil, um gozo
perverso. Assim, por magia, esse fragmento foi escrito por último, depois
de todos os outros, à maneira de uma dedicatória (3 de setembro de 1974).

Referências
BARTHES, R. Cours de Linguistique Générale. Paris: Payot, 1995.
______. Critique et vérité. Paris: Seuil, 1966.
_____. Le degré zéro de l’écriture. Paris: Seuil, 1953.
______. Le plaisir du texte. Paris: Seuil, 1982.

60
Retrato de Roland Barthes em Don Juan

______. Michelet. Paris: Seuil, 1995.


______. Mythologies. Paris: Seuil, 1957.
______. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris: Seuil, 1975.
______. S/Z. Paris: Seuil, 1976.
______. Sarrasine. [S.l.]: Flamarion, 1993.
DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Minuit, 1969.
FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966.
LEVI-STRAUS, C. La structure des mythes. Paris: Plon, 1955.
NIETZCHE, F. Le gai savoir. Trad. Pierre Klossowski. Paris:
Gallimard, 1989.

61
O horror à estereotipia e o discurso político

João Batista Natali

Brevemente eu iniciaria pela constatação meio óbvia de que


somos, individualmente, uma espécie de síntese dinâmica das
linguagens que nos irrigaram ao longo da vida. Tive o privilégio
de ter sido, entre 1972 e 1977, orientado por Roland Barthes em
minha dissertação de mestrado (A Estereotipia do Humor Político
no Brasil)1 e em minha tese de doutorado de 3o ciclo (Robespierre
e o Discurso da Exclusão).2 Carrego marcas constantes e profundas
daquele período. Como jornalista, a linguagem para mim se tornou
algo constantemente problematizável, um ponto de chegada, e não
um simples ponto de partida para que a cultura, a administração
pública ou a política se tornem objetos autônomos em relação ao
que as constituem como sistemas de significação. Trago dentro de
mim a tatuagem do signo.
Em nenhum momento, considerei que existiria um “barthesia-
nismo” como corpo doutrinário ortodoxo. Se é que a palavra
“barthesianismo” faz algum sentido, ela vale pelo que possui ao
mesmo tempo de coerente e difuso, como postura enriquecedora
porque crítica. É em nome dessa postura que procurarei alinhavar
aqui algumas idéias.
Uma primeira ressalva deve ser feita: Roland Barthes demonstrava
um interesse pela política meramente periférico. Considerava en-
fadonho o discurso produzido pela militância ou pelo Estado. Não
foi uma angulação da significação sobre a qual ele se debruçou.
As exceções – citaria o teatro de Brecht, Charles Fourrier, Maio
de 68 – valiam pelo que expunham de densidade semântica, de
1
Natali, João Batista. L’humour politique brésilien: analyse structurale des stéréotypes.
1973. 147 p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – École des Hautes Études
en Sciences Sociales, Paris, 1973. mimeo.
2
NATALI, João Batista. Une approche sémiologique du discours révolutionnaire
(Robespierre). 1976. 197 p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – École des Hautes
Études en Sciences Sociales, Paris, 1976. mimeo.
João Batista Natali

inovação ou de transgressão. Roland Barthes, em definitivo, nunca


correu atrás do signifié ou daquilo que poderia se assemelhar a
uma preocupação com conteúdos.
Mas, no início de seu percurso como autor, ele flertou com algo que
aguçaria a curiosidade dos interessados. O ano de publicação de
Mitologias, 1957, é provavelmente também a data a partir da qual
Roland Barthes passa a ser objeto de uma incessante demanda. Sua
forma de cercar teoricamente certos temas (o modelo da conotação,
no final dos anos 50) estimulava pesquisadores que acreditavam
que a ideologia não era um simples emaranhado de representa-
ções ou de significados (signifiés). No final dos anos 60 e início
dos anos 70, esses pesquisadores foram em parte marcados pela
procura legítima e quase obsessiva de um arcabouço teórico capaz
de dissecar a ideologia fora das pertinências econômicas e socio-
lógicas, mesmo porque economistas e sociólogos se mostravam
ingênuos ou incapazes de pensar o significante. A filosofia estava
capacitada a compreender o inter-relacionamento de significados
dentro de um mesmo sistema. Mas seu interesse – a começar por
Althusser, para quem a ideologia é uma forma de conhecimento
pré-científico – estava voltado para outras pertinências.
Em suma, os que se interessavam pelo político (ou pela “supe-
restrutura” dos mecanismos sociais de dominação de classe) se
aproximavam de Roland Barthes e não o encontravam no local
em que acreditavam que ele estivesse. Algo muito semelhante ao
desejo do histérico. Dele havia apenas pistas, indícios. Eram, no
entanto, indícios tão absurdamente enriquecedores e inovadores
que algum tipo de encontro chegava fantasmaticamente a ocorrer,
apesar de, insisto, Roland Barthes nele não estar presente como
corpo, como voz, como texto. É um primeiro paradoxo.
Roland Barthes tinha, a meu ver, muitas razões para se manter
nessa posição de “ausência ativa”. Ele desprezava a linguagem
enunciada sob a ilusão da funcionalidade, do mero “comunicar-se”
(a “função fática”, de Jakobson, nunca o atraiu) ou da suposta ins-
trumentalidade destinada a abastecer o interlocutor de conteúdos
informativos. Se o discurso chegava a esse plano, ele já estava em

64
O horror à estereotipia e o discurso político

definitivo contaminado pela estereotipia ou pela verossimilhança


travestida de realidade histórica. A relação de Barthes com a este-
reotipia era de pura e incontível aversão. Seus objetos discursivos
de prazer (desde Michelet e Racine) são de espessura semântica
bem maior, singular. Noto também que Barthes foi despudorado
ao enunciar e teorizar em torno de seu próprio tédio. O entusias-
mo simplório do militante era-lhe epidermicamente insuportável.
Temos então, de um lado, a linguagem espessa, polissêmica, aquela
em que se entrecortavam os “códigos” identificados com um valor
puramente indicativo (Barthes nunca quis que ela se tornasse um
modelo “teórico” de análise discursiva) por “S/Z” na novela de
Balzac. De outro lado, a linguagem medíocre do estereótipo que
provocava nos medíocres a auto-satisfação a partir de muito pouco.
Por conta disso, Barthes não se envolveu na dicotomia empobre-
cedora que permeava a França de seus últimos dez anos de vida
– com a esquerda e a direita digladiadoras e um Programa Comum
de Governo que socialistas e comunistas apresentavam como a
chave partidária para a felicidade social.
Pode parecer esquisito de minha parte evocar o Programa Comum
neste recinto. Nos anos 70, ele estava presente nos jornais franceses
com uma insistência quase obscena. Digamos, para enterrar de vez
o assunto, que se trata do tema sobre o qual Roland Barthes também
se mostrava ausente. Era-lhe algo despido de qualquer acesso a
formas de hedonismo que a literatura, ao contrário, poderia for-
necer. No seminário que ele fazia, na rue de Tournon, as eleições
presidenciais de 1974 foram um tema de “eloqüente ausência”.
Era então preferível se debruçar sobre o Werther de Goethe. Ou
então recorrer mais uma vez a Proust. Em verdade, escapava-se
da “opinião corrente” (Flaubert) e da doxa (Aristóteles) que pura
e simplesmente o enojavam. Tanto quanto lhe era repulsiva a idéia
de inexistência de algo intermediário entre o sim e o não, entre
o masculino e o feminino, oposições nas quais se fundamentam
justamente as representações ideológicas e dependentes, portanto,
do verossímil.

65
João Batista Natali

Surge aqui, a meu ver, um segundo paradoxo. O discurso do poder


político é hegemônico na esfera pública. Rejeitá-lo enquanto tal
pressupõe a adoção de uma postura interessante, “aporística”, para
usar uma palavra que Barthes apreciava, e que, a meu ver, consistiu
em reivindicar um “local” de convivência com a utopia. O discurso
político se tornava atraente à medida que ele não transportasse
em seu ventre a ilusão de uma referenciação na história real. O
poder do libertino em Sade e a ausência de poder em Fourrier (ou
melhor, sua disseminação quase absoluta) são justamente locais
de enunciação discursiva de certa esquizofrenia. O real é aquele
construído como um objeto literário e não aquele que os líderes
partidários carregam em seus estandartes como uma realidade
virtual que poderá materializar-se no futuro.
A estereotipia não é apenas o chavão linguístico (que diz respeito
ao herói, ao corajoso, ao vidente dos horizontes históricos). Ela
é também um jogo sempre estratificado e estreito de oposições
paradigmáticas. Oposições entre o velho e o novo, entre o pas-
sado e o futuro, entre a mesquinharia burguesa e a generosidade
das classes oprimidas e outras tantas oposições constitutivas de
um quadro de representações absolutamente empobrecedor. Esse
quadro é pobre – e suponho que Barthes concordaria – não porque
seja montado pela “mentira” (não tem uma ramificação histórica
consistente), mas porque é limitado do ponto de vista discursivo.
Apesar de tudo, política e prazer não se excluíam para Roland
Barthes em toda e qualquer circunstância. Havia um campo de
exceções. Em alguma região do político poderia ser encontrado
aquilo que Susan Sontag chamou de “a taxinomia da jubilação”.
Mas o político apenas deixava de ser enfadonho quando a estere-
otipia deixava de constituí-lo. Ele então dava lugar, no discurso,
a uma espécie de virtualidade ficcional, como é o caso do “povo”,
tal qual Barthes notou que ele emergia como agente da palavra e
do sonho republicano na historiografia de Michelet.
De certo modo, Barthes estimulou e, ao mesmo tempo, frustrou
aqueles que procuraram sua cumplicidade para a laboração de uma
teoria social da significação bastante ampla. Essa cumplicidade

64
O horror à estereotipia e o discurso político

inexistiu porque, volto a insistir, não há um “barthesianismo”


como doutrina formada por preceitos e capaz de gerar modelos.
E também porque, a meu ver, Roland Barthes, um dos homens
mais refinados de seu tempo, de certo modo, sabia que esbarra-
ria em formas enfadonhas de convivência com estereótipo caso
aceitasse essa parceria. Ele quis ser um crítico, um escritor. Não
um ideólogo.

Referências
NATALI, João Batista. L’humour politique brésilien: analyse
structurale des stéréotypes. 1973. 147p. Dissertação (Mestrado em
Ciências Sociais) – École des Hautes Études en Sciences Sociales,
Paris, 1973. mimeo.
______. Une approche sémiologique du discours révolutionnaire
(Robespierre). 1976. 176p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) –
École dos Hautes Études en Science Sociales, Paris, 1976. mimeo.

65
Um mundo enclausurado: a polêmica
entre Barthes e Camus

Manuel da Costa Pinto

Vou tentar resumir, em seguida, a polêmica que envolveu Barthes


e Camus em 1955, a propósito do romance A Peste, e fazer alguns
comentários sobre o significado da interpretação que Barthes fez
do livro de Camus. Antes de fazê-lo, porém, acho que é necessário
salientar que essa polêmica teve uma importância relativa muito
diferente na obra desses dois escritores.
No caso de Barthes, a polêmica traz as marcas de uma tentativa
de “politizar” uma reflexão sobre a literatura até então marcada
pela ênfase na linguagem, como podemos ler em O Grau Zero da
Escrita. De certo modo, Barthes parece utilizar a polêmica com
Camus para tingir sua própria obra com uma coloração engajada,
sintonizando-a com os acirrados debates políticos dos anos 50.
No caso de Camus, a polêmica em torno de A Peste é, na verdade,
uma espécie de rescaldo, de efeito secundário de uma polêmica
muito mais violenta e marcante: a polêmica que levou a sua rup-
tura com Sartre após uma troca de cartas publicadas na revista Le
Temps Modernes, em 1952.
Na minha opinião, existe uma clara relação de continuidade entre
as duas polêmicas. Antes de falar da polêmica Barthes-Camus, por-
tanto, seria interessante falar um pouco da polêmica Sartre-Camus.
Como se sabe, o estopim da ruptura Sartre-Camus fora o lançamen-
to, em 1951, de O homem revoltado, um longo e exaustivo ensaio
em que o autor de A peste procura mostrar que todo movimento
político tem como substrato uma revolta metafísica contra nossa
condição mortal e que o esquecimento dessa injustiça primeira
– que deveria criar a solidariedade entre os homens – faz com
que as revoluções degenerem em tirania, ou seja, numa injustiça
Manuel da Costa Pinto

secularizada, encoberta pela divinização da história e pelo mes-


sianismo político.
Esse tipo de abordagem ia na direção oposta à das posições políti-
cas adotadas pelos existencialistas, que – nesse momento marcado
por guerras imperialistas na Indochina e na Coréia e pelos rumores
sobre os processos de Moscou e os campos de trabalhos forçados
na União Soviética – se aproximavam dos comunistas como uma
das alternativas mutuamente excludentes da Guerra Fria.
Francis Jeanson (biógrafo e colaborador de Sartre em Le Temps
Modernes) escreveu, então, um longo artigo sobre o livro, afir-
mando que Camus negava qualquer papel às forças históricas e
à economia na gênese das revoluções, e detectando, em O Ho-
mem Revoltado, uma espécie de “moral de Cruz Vermelha”, um
“humanismo vago”, uma aversão à história que fazia com que
Camus recusasse qualquer forma de participação política ou de
engajamento.
Não vou entrar nos detalhes da polêmica propriamente dita, que
ocorreria em seguida à publicação do artigo de Jeanson, numa
carta que Camus endereçou a Sartre e na resposta deste a Camus
– ambas publicada no mesmo número de Les Temps Modernes,
em agosto de 1952.
Basta dizer aqui que, em resposta, Camus escreveu uma carta
dirigida não a Jeanson, mas a Sartre, em que invoca seu passado
na resistência: “Estou cansado de ver velhos militantes que nunca
recusaram nenhuma das lutas de seu tempo receberem sem trégua
lições de eficácia por parte de censores que nunca colocaram nada
além de suas poltronas no sentido da história”, escreve ironica-
mente, aludindo ao fato de que Sartre dormia em seu assento na
Comédie Française, no momento da Libertação, em 1944.
Além disso, referindo-se aos alinhamentos da Guerra Fria, Camus
se recusa a aderir de modo automático a um dos pólos ideológicos
do momento: “Não se decide sobre a verdade de um pensamento
conforme ele seja de direita ou de esquerda. Se, enfim, a verdade
me parecesse estar à direita, lá estaria eu”, diz Camus.

70
Um mundo enclausurado: a polêmica entre Barthes e Camus

A réplica de Sartre retoma alguns dos pontos de Jeanson e bate


na tecla do moralismo e do idealismo camusianos: “Instalou-se
em você uma ditadura violenta e cerimoniosa, que se apóia numa
burocracia abstrata e pretende fazer reinar a lei moral.”
E, refutando a acusação de Camus de que a eficácia política leva-
va aos campos de trabalhos forçados na União Soviética, Sartre
responde: “Sim, Camus, tal como você, acho esses campos inad-
missíveis: mas igualmente inadmissível é o uso que a chamada
‘imprensa burguesa’ faz deles a cada dia.” E Sartre assume – algo
inaceitável para Camus – que é preciso escolher uma das forças
que se oferecem na engrenagem da história: “A cortina de ferro,
diz Sartre, é apenas um espelho e cada uma das metades do mundo
reflete a outra metade. A cada volta da porca aqui corresponde uma
volta do parafuso lá, e afinal, aqui e lá, somos os parafusadores
e os parafusados.”
Enfim, não quero ir muito longe nessa polêmica Sartre-Camus, já
que nosso assunto é o debate, muito mais ameno, entre Barthes e
Camus. Mas o fato é que as críticas de Jeanson e Sartre ao ensaio
de Camus, de certo modo, se projetaram também na leitura que
Barthes faz do romance. E isso não se deve apenas à enorme reper-
cussão que aquela polêmica teve na intelectualidade francesa do
pós-guerra, mas também ao fato de que é impossível desvincular
O Homem Revoltado do romance A Peste.
Essa continuidade entre A Peste e O homem revoltado é algo afir-
mado pelo próprio Camus. Como é sabido, Camus desenvolvia al-
guns temas onipresentes em sua obra, tanto em narrativas ficcionais
quanto em ensaios filosóficos. Assim, o tema do absurdo aparece
tanto nas aventuras de Meursault, em O Estrangeiro, quanto em O
mito de Sísifo, no qual Camus afirma ser o sentimento do absurdo
aquilo que define a condição do homem, dilacerado entre o desejo
de compreender a realidade e a opacidade indiferente do mundo,
entre seu desejo de durar e seu destino de morte.
E essa noção existencial (mas não “existencialista”) de absurdo vai
encontrar um desdobramento político, coletivo, na idéia de revolta,

71
Manuel da Costa Pinto

que ele desenvolve primeiramente em chave romanesca em A Peste


(livro de 1947 que trata de uma cidade, Orã, que é sitiada por uma
epidemia e que, grosso modo, é uma alegoria da resistência ao
nazismo) e, quatro anos depois, em chave ensaística, em O Homem
Revoltado. Por isso, logo no início de O Homem Revoltado, Camus
afirma que a revolta nada mais é do que a cumplicidade no absur-
do: “O mal que apenas um homem experimentava torna-se peste
coletiva” – uma frase capital, que revela o caráter concêntrico,
repetitivo, da obra de Camus; uma frase que faz referência tanto a
O Mito de Sísifo (“o mal que apenas um homem experimentava”,
ou seja, o absurdo vivido individualmente) quanto ao romance
A Peste, já que O Homem Revoltado seria uma reflexão sobre o
absurdo como “peste coletiva”, fazendo do ensaio uma espécie
de contrapartida teórica do romance (da mesma maneira que O
Mito de Sísifo fora a contrapartida filosófica de O Estrangeiro).
Nesse sentido, portanto, essa continuidade ou complementaridade
entre as diferentes obras de Camus faz com que muitos dos reparos
violentos de Jeanson e Sartre a O Homem Revoltado reapareçam
na crítica de Barthes à Peste.
Retomando a citação acima, para Jeanson e Sartre, a aversão de
Camus à história fazia com que ele se apoiasse numa burocracia
abstrata, fazendo reinar a lei moral. E é mais ou menos isso que
Barthes fala de A Peste. Para Barthes, no texto publicado em 1955
na revista Club, Camus criou nesse romance um mundo estático
e enclausurado, em que a história é uma soma de acontecimentos
sem ordenação intrínseca e na qual – na falta de uma lei, de uma
mecânica ou de uma transcendência – só resta como recurso
uma “ética da amizade”, uma solidariedade, enfim, uma cumpli-
cidade diante da desrazão.
Como no Brasil essa polêmica só foi publicada em jornal (numa
edição do caderno Mais, da Folha de São Paulo, em 5 de janeiro
de 1997), vou destacar aqui os pontos principais da argumentação
de Barthes.

72
Um mundo enclausurado: a polêmica entre Barthes e Camus

Barthes começa seu texto discutindo o conceito de ‘’Crônica”, ao


qual o romance de Camus será associado. Segundo o dicionário
de Littré, o termo crônica pode ser definido como “1) Registro
segundo a ordem do tempo, por oposição à história, na qual os
fatos são estudados em suas causas e suas conseqüências; e 2)
Relato de pequenas histórias corriqueiras.”
E é exatamente dessa oposição entre crônica e história que vai
derivar a moral implícita no romance. Diz Barthes:
A Peste não é um romance, mas uma crônica. Isso quer dizer que todos
os temas habituais do romance – o homem, o amor ou o sofrimento – são
vistos aqui através da transparência e do distanciamento de uma história
coletiva, acompanhada dia a dia sem jamais se deixar penetrar por uma
significação propriamente histórica. A meio caminho entre a História e
o Romance, A Peste poderia ainda ter sido uma tragédia [mas, conclui
Barthes, ela é] o ato de fundação de uma Moral.

A Peste [continua ele] também é crônica à medida que Orã, submetida


à epidemia, constitui um mundo “sem causas e sem conseqüências”,
conforme a definição de Littré – ou seja, um mundo privado de História.
Os homens de A Peste não enxergam mais que a “ordem do tempo”: eles
vivem, depois a peste chega e depois a cidade é isolada, e depois eles
morrem, e depois a peste se afasta; não saberiam dizer outra coisa, e tudo
o que são capazes de pensar sobre a vida, a morte, o sofrimento ou a
solidariedade, seus erros ou seus deveres não lhes ocorre senão segundo
essa ordem anódina da peste que chega, golpeia e depois parte. Não há
qualquer estrutura ou causa na peste, nenhuma ligação entre a peste e um
alhures, que poderia ser o passado, um outro lugar ou um fato qualquer;
numa palavra, nenhuma relação.

Como resultado dessa descrição de um mundo estagnado, corri-


queiro, subitamente assolado pela epidemia, a peste não tem um
sentido purificador, transformador. Diz Barthes:
Na verdade, esse encadeamento sem ênfase não é fortuito: está encarregado
de substituir o valor de conhecimento que o argumento poderia evocar
(como Tragédia ou como História) por um valor de sentimento e assim
impregnar a crônica de uma substância que em geral lhe é desconhecida:
a Moral.

A frase de Barthes certamente ecoa a de Sartre, que acusava Ca-


mus de querer fazer reinar a lei moral na história. A “ética da ami-
zade” de Camus seria assim uma espécie de imperativo categórico
da não-violência e um projeto antiutópico: contra um Mal absoluto
73
Manuel da Costa Pinto

e abstrato, só nos resta recorrer aos valores humanos, às “armas


do médico – armas modestas, mas ao menos pacientes, objetivas,
forjadas em comum e sobretudo jamais mortíferas”.
Entretanto, sugere Barthes, essa “ética da amizade”, supostamente
mais concreta e realista, mais à medida do homem, é ela mesma
uma abstração – por isso Barthes pergunta: qual o sentido dessa
analogia entre o resistente e o médico quando o mal tem um rosto
humano? A peste pode ser um símbolo da ocupação; mas, diante
dos nazistas, não somos e não fomos obrigados a optar por uma
violência libertadora contra uma violência aniquiladora? Um
opressor com rosto não nos obriga a sermos carrascos, já que nos
recusamos a ser vítimas?
Enfim, escreve Barthes,
a História não exibe apenas flagelos inumanos: há também males bastante
humanos (guerras, opressões) e igualmente mortíferos, se não mais. Basta-
rá então ser médico e, por medo de converter-se em carrasco, contentar-se
em tratar de ferimentos sem atacar a arma que os inflige?

Por isso, ao final de sua resenha de A Peste, Barthes vê na “ética


da amizade”, personificada na amizade silenciosa de personagens
como Rieux e Tarrou, uma forma de resistência passiva que, em
nome da preservação moral, da conservação da inocência, acaba
por recusar os compromisso de seu tempo, refugiando-se na
­solidão.
A resposta de Camus, publicada numa outra edição da revista
Club, certamente tem mais interesse para os leitores de Camus
do que para os leitores de Barthes. Basicamente, Camus diz que
a prova da concretude e, portanto, da historicidade de sua alegoria
está no fato de que todos os leitores reconheceram que o conteúdo
evidente do romance era a luta da resistência européia contra o
nazismo. Segundo Camus, “A Peste é mais do que uma crônica
da resistência; em todo caso, não é menos que isso”. Ao mesmo
tempo, diz o escritor, o fato de essa alegoria transcender a experi-
ência localizável da Ocupação não cancela o nexos históricos, os
riscos e as violências da resistência, mas amplifica seus efeitos e
sua ética de compromisso. E por isso Camus diz a Barthes:

74
Um mundo enclausurado: a polêmica entre Barthes e Camus

O que esses combatentes, cuja experiência parcialmente traduzi, fizeram,


eles o fizeram justamente contra os homens e a um preço que o senhor
conhece bem. Eles o repetirão, sem dúvida, frente a qualquer terror e
qualquer que sejam suas feições – pois o terror tem várias feições, o que
justifica uma vez mais a escolha de não nomeá-lo precisamente a fim de
poder melhor atingir a todos.

Camus escreveu A Peste sob o impacto da Segunda Guerra e do


nazismo. Mas, ao responder a Barthes, após a publicação de O
Homem Revoltado e a polêmica com Sartre, sua preocupação
se volta para outra espécie de totalitarismo. Em sua réplica, ele
procura mostrar como o romance se projeta também como uma
espécie de fábula cautelar, cujo caráter simbólico ou alegórico se
aplica a outras formas de hipnose ideológica. Daí a pergunta que
ele lança: em nome de qual moral, mais completa, ele, Barthes,
considerara insuficiente a moral de A Peste?
A resposta de Barthes a essa pergunta de Camus me parece decisiva
para entender a polêmica. Em sua tréplica, na verdade um peque-
no bilhete de resposta a Camus, Barthes diz: “O senhor me pede
que declare em nome do que eu julgo insuficiente a moral de A
Peste. Não faço nenhum segredo disso: em nome do materialismo
histórico, uma vez que considero uma moral de explicação mais
completa que uma moral da expressão.”
Essa afirmação, que soa, para usar a imagem de Stendhal, como
um tiro no meio de um concerto, me parece conclusiva. O materia­
lismo histórico, o materialismo dialético marxista seria então o
fiel da balança no veredicto de Barthes sobre A Peste de Camus?
O remate dessa polêmica causa um grande estranhamento. Quem
teria mudado mais: Camus ou Barthes? O Camus de O Estrangeiro
seria tão estrangeiro em relação ao Camus de A Peste, transitando
de uma tragédia solar “opaca aos significados e transparente às
coisas” (segundo a expressão de Sartre) para uma moral de Cruz
Vermelha? Ou foi o Barthes de O Grau Zero da Escrita que se
tornou se estrangeiro para si mesmo ao ponto de não perceber ne-
nhuma continuidade entre a escrita neutra de O Estrangeiro (fonte
primeira de O Grau Zero) e a monotonia concertada de A Peste,
transitando assim ele, Barthes, de uma “metafísica da escrita como
75
Manuel da Costa Pinto

enfrentamento com a Forma essencializada” (segundo expressão de


Philippe Roger) para uma forma maquiada de realismo socialista?
Como avaliar, enfim, essa polêmica? Existem dois pontos que me
parecem fundamentais.
Em primeiro lugar, é necessário compreender que esse Barthes
de 1955 é atraído, segundo expressão de Philippe Roger no livro
Roland Barthes: Roman,
por dois pólos antagônicos [...]: de um lado, um “sentimento trágico” da
escrita (e, podemos acrescentar, do mundo); de outro, a sedução intelec-
tual que exercem sobre ele os princípios de “explicação” colocados a seu
alcance pela análise sartriana e por uma sociologia marxizante.

Entretanto, é possível perceber um certo desequilíbrio entre esses


dois pólos. Analisando as versões iniciais dos ensaios de O Grau
Zero da Escrita, tais como publicados originalmente no jornal
Combat, nos anos 40, e depois as versões publicadas em livro,
Philippe Roger mostra que
é preciso reconhecer que o livro de 1953, longe de marcar, ao cabo de
correções e acréscimos, um maior “militantismo” e uma “politização”
mais franca, assinala ao contrário, uma insistência mais patente do que
nos artigos de Combat sobre a “essencialidade” do drama da escrita, assim
como uma distância muito mais espetacular em relação às formas atuais,
observáveis, de engajamento da literatura.

Ou seja, ao mesmo tempo em que se vê obrigado pelo clima da


época, pela aproximação de Sartre aos comunistas, a tomar partido,
a obra crítica de Barthes se torna mais radical em sua defesa da
escrita como uma moralidade da forma, uma escrita neutra que
recusa as determinações históricas e naturais da língua e do estilo
– e que se transforma, assim, em ato de solidariedade histórica
justamente por seu caráter perturbador da ordem vigente, por causa
do não-sentido que a obra sustenta, por causa do silêncio e dessa
voz neutra (presente em autores como Queneau, Blanchot ou o
próprio Camus) que é a única que está de acordo com a aflição
irremediável que sucede à fratura do mundo burguês.
Portanto, todas a tentativas que Barthes fez, em entrevistas e
testemunhos, de “esquerdizar” seus escritos, de (nas palavras de

76
Um mundo enclausurado: a polêmica entre Barthes e Camus

Roger) “remeter seus textos do pós-guerra à órbita de um projeto


intrinsecamente político”, seriam assim uma espécie de “ficção
do intelecto”, além de uma “ficção cronológica” – já que, como
diz Roger, a presença do marxismo e de Sartre nos textos iniciais
de Combat, em 1947, é muito volátil.
Nesse sentido, podemos dizer que Barthes viu na polêmica com
Camus a oportunidade de “mostrar serviço”, de reparar essa
contradição, ou seja, de dar provas de um engajamento também
teórico que já vinha acontecendo em suas leituras de Brecht e em
sua aproximação da revista Théâtre Populaire, proclamando o
materialismo histórico justamente contra aquele autor que estivera
na gênese da noção de um “grau zero da escrita”.
Entretanto, como observa ainda Philippe Roger, podemos distin-
guir nitidamente dois registros na crítica de Barthes: o estético e
o moral. Ou seja, mesmo que a polêmica tenha sido uma oportu-
nidade para Barthes absorver tenuamente o jargão da militância,
ainda assim se percebe uma clara separação entre sua avaliação
estética e sua condenação ética. Tanto isso é verdade que Camus
se limitou a responder à segunda parte, reivindicando o caráter
participativo da alegoria contida em A Peste, sem contudo ques-
tionar a leitura “literária” de Barthes.
Nesse sentido, essa polêmica de 1955 entre Barthes e Camus sofre
diante do leitor de hoje uma curiosa inversão: a conclusão negativa
do crítico em relação à moral contida no romance A Peste pode
soar um tanto obsoleta, ao passo que a análise que Barthes faz
da narrativa, para justificar sua condenação, torna-se preciosa do
ponto de vista da crítica literária.
Barthes está rigorosamente certo: Camus criou no romance um
mundo estático e enclausurado, em que a história é uma soma de
acontecimentos sem ordenação intrínseca. Barthes procura em
A Peste uma estrutura, um epicentro organizador da narrativa,
que permita estabelecer uma tensão entre a realidade interna do
romance e a realidade histórica. Entretanto, ele encontra ali uma
ordem meramente aditiva de fatos “sem causas e sem s­ eqüências”,

77
Manuel da Costa Pinto

um mundo “privado de história”, que serve de cenário para o “ato


de fundação de uma Moral”.
Mas isso não me parece ir fundamentalmente contra a idéia de
literatura e de ética que percorre a obra de Camus. Como disse
anteriormente, a obra de Camus se articula ao redor de um “sen-
timento do absurdo” que é construído a partir de imagens que
reduzem a experiência geral e abstrata à dimensão concreta da
individualidade, constituindo, nas palavras do próprio Camus, um
“ponto zero” (expressão curiosa, que faz pensar imediatamente
em O Grau Zero da Escrita).
Esse enclausuramento – produzido pela própria circulação de
imagens que existe na obra de Camus, em que encontramos
­referências a O Estrangeiro dentro de A Peste, em que o enredo
de O Mal-Entendido aparece nas páginas de O Estrangeiro, em
que o narrador de A Queda comenta um trecho de A Peste – tem
um sentido preciso: assinala o caráter atemporal do absurdo, que
equivale assim a uma espécie de condição humana assimilável aos
lugares-comuns ao pessimismo clássico francês, como observou
Sartre em seu prefácio a O Estrangeiro.
Ao mesmo tempo, o absurdo é uma recusa de todo conhecimento
(Camus escreve em O Mito de Sísifo: “O método aqui definido
confessa o sentimento de que todo verdadeiro conhecimento é
impossível. Só se pode enumerar as aparências”). Portanto, se há
um “ato de fundação de uma moral” em Camus, não é uma moral
prescritiva, mas, justamente, uma moral no sentido da anatomia
da condição humana dos moralistes do século XVII; no caso de
Camus, uma anatomia da condição absurda.
Da mesma maneira, a “moral de explicação” que Barthes (na carta
que encerra a polêmica) diz considerar mais completa do que uma
“moral da expressão” não faz sentido diante da própria descrição
desse mundo fundado (como o próprio Barthes nota) sobre a equi-
valência total das coisas e seres, sua desesperante insignificância,
sua falta de epicentro e de estrutura. Conforme Camus escreve nos
seus Carnets: “O Estrangeiro descreve a nudez do homem em face

78
Um mundo enclausurado: a polêmica entre Barthes e Camus

do absurdo. A Peste, a equivalência profunda dos pontos de vista


individuais em face do mesmo absurdo. É um progresso que será
precisado em outras obras. Mas, além disso, A Peste demonstra
que o absurdo não ensina nada.”
Nenhuma experiência, portanto, é mais significativa do que outra
dentro desse mundo homogêneo, regido por um pluralismo irredu-
tível (segundo a expressão de Sartre). E se em Camus a experiência,
às vezes, nos ensina algo é porque, por uma pedagogia negativa, ela
sempre nos reconduz, em sua circularidade mítica, a esse universo
elementar em que aguçamos nosso desejo de unidade e duração
e no qual entrevemos incessantemente nosso destino de morte.
E é essa circularidade, determinada pela intuição do absurdo que
está na base da moral da revolta de Camus, que foi perfeitamen-
te captada por Barthes na leitura de A Peste – a despeito de seu
veredicto ético e político.

Referências
BARTHES, R. Política. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Iné-
ditos, 4)
______. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
CAMUS, A. Actuelles II. In:______. Essais. Paris: Bibliothéque
de la Plêiade, 1981.
______. A peste. Rio de Janeiro: Record, 1997.
______. Caligula suivi de Le Malendendu. Paris: Gallimard, 1981.
______. O estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 2004.
______. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1996.
______. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004.
JEANSON, F. Albert Camus ou L’âme revoltée. Les Temps Mo-
dernes, Paris, maio 1952.
ROGER, P. Roland Barthes: Roman. Paris: Grasset, 1986.
SARTRE, J.-P. Situations IV. Paris: Gallimard, 1964.

79
A paixão isenta
(O “pequeno Barthes”)

Evando Nascimento

Não apenas a razão dos milênios –


também a sua loucura rompe em nós
É perigoso ser herdeiros
Nietzsche

O signo é uma fratura que nunca se abre


senão sobre o rosto de um outro signo
Barthes

O legado de Barthes
Quando fui convidado por Leyla Perrone-Moisés a participar dos
colóquios sobre Roland Barthes, na USP, e por Maria Elizabeth
Chaves, na UFF, indaguei-me de imediato o que ainda tinha a
falar sobre o crítico, teórico, escritor, intelectual e semiólogo
francês. Tendo escrito uma dissertação de mestrado sob inspiração
barthesiana, e mais tarde, um ensaio intitulado “Lição de signos:
A Semiologia literária de Roland Barthes”,1 sentia-me como que
quitado em relação à imensa dívida que contraí muito cedo em
minha formação universitária para com essa obra. E, por isso
mesmo, os usos possíveis desse texto já teriam cumprido seu ciclo
na preparação intelectual. A inspiração para retornar a Barthes
veio com a releitura de um dos fragmentos de Roland Barthes
por Roland Barthes, quando ele fala justamente em voltar a tratar
de um assunto sobre o qual já se escreveu. Para Barthes, rever
seus textos passados tratava-se principalmente de não restaurar
uma suposta verdade anterior, mas ver-se como um sujeito que
circula acompanhando a rotação permanente do simbólico (2003,
p. 69-71). Do mesmo modo, para o leitor que já escreveu sobre
um crítico-escritor, há sempre algo a ser dito como suplemento
1
Publicado inicialmente na revista Contexto da UFBA e republicado no livro Ângulos:
literatura & outras artes (NASCIMENTO, 2002).
Evando Nascimento

interpretativo, que relança o giro contínuo da linguagem para além


de qualquer referente absoluto.
Começo, portanto, indagando o que resta hoje do legado de Roland
Barthes. Creio que cada um dos participantes dos dois colóquios
tentou corresponder à natureza e à intensidade desse legado.
Não diria à sua “legitimidade”, que não precisa ser demonstrada
diante da evidente importância de Barthes para a teoria e a crítica
literárias, confirmada pelas inúmeras referências que foram feitas
e que ainda se fazem a seu pensamento. Estatisticamente, a meu
ver, Barthes está bem protegido, como evidenciam a publicação
póstuma de suas aulas no Colégio de França e a reedição de seus
livros no Brasil.
Pode-se então dizer que há um “retorno a Barthes”, mas esse
­retorno deveria ser como o que importava para Lacan em seu “re-
torno a Freud”: a possibilidade de reler intensivamente os textos do
criador da psicanálise, a fim de lhes dar uma interpretação inova-
dora, não se limitando a uma mera atitude exegética. De modo tal
que, com relação a Barthes, leituras mais e mais singulares podem
ser propostas, de acordo com o desejo e a perspectiva de cada um.
Desse modo, o ponto seria: diante do Barthes que está aí, publicado
e reeditado, exposto, o que me toca particularmente nesse lote?
Qual seria meu Barthes, o Barthes que escolheria trazer para este
mundo que é o meu – lembrando uma famosa fórmula na abertura
do S/Z?2 Em outras palavras, o que Barthes significa hoje para
mim? Estou me reportando igualmente a uma das inúmeras refe-
rências ao pensamento de Nietzsche na escritura barthesiana, no
ponto em que explicita que o julgamento de um texto pelo critério
de prazer se inscreve sob o signo do para-mim nietzschiano, “é
isso para mim!” (BARTHES, 1996, p. 20-21).
Gostaria então de encaminhar a reflexão de duas maneiras, que
espero convergentes. A primeira, como acabo de enunciar, diz
respeito aos livros ou textos de Barthes que ainda, após tantas
leituras, me dão grande prazer em ler e reler (O Grau zero da
2
“[...] que textos gostaria de desejar, de investir como uma força, neste mundo que é o
meu?” (BARTHES, 1980, p. 12).

82
A paixão isenta (O “pequeno Barthes”)

escritura, L’Empire des signes, O Prazer do texto, Roland Barthes


por Roland Barthes, O Rumor da língua, inúmeros textos avulsos
das Oeuvres complètes... a lista é relativamente fácil de ser feita e
decerto arbitrária). A segunda diz respeito ao risco de uma certa
mitificação de Barthes, ou seja, de ninguém menos que o autor das
famosas Mitologias. Espero fazer convergir essas duas perspec-
tivas, justamente numa visada crítica do que Barthes nos legou,
sinalizando os paradoxos que daí emergem.
É preciso não esquecer que Barthes reinventou a possibilidade de
herdar, de que o leitor assine nas costas do autor (contra-assine,
portanto) o texto que ele teria passado à posteridade.3 Sem esta
assinatura que vem do outro, dos ativos leitores, nada de texto
nem de literatura em sentido forte. Quem assina de fato a escri-
tura é o leitor. A sobrevida do texto depende desse endosso do
público ledor, quer dizer, de todos nós. Afinal, Barthes foi um
fomentador das genealogias descontínuas, do legado que deve ser
permanentemente reelaborado, jamais recebido como um pacote
no qual não se toca ou um monumento intangível. Seu modo de
herdar não se prende mais às prescrições da “influência”, dogma
absoluto da crítica oitocentista. Dentro dessa perspectiva, Roland
Barthes por Roland Barthes fala de uma “evolução” do sujeito de
acordo com os autores que lê, mas essa “evolução” acaba sendo
uma auto-influência, a qual se faz, contudo, através do outro, “O
objeto indutor não é entretanto o autor de que falo, mas antes aquilo
que ele me leva a dizer dele; eu me influencio a mim mesmo com
sua permissão: o que digo dele me obriga a pensá-lo de mim (ou
a não pensá-lo) etc.” (BARTHES, 2003, p. 122-123).
Além disso, o legado de Barthes não é uno, nem homogêneo, ao
contrário, distribui-se em períodos não estanques mas interpene-
tráveis; e mesmo dentro de um único momento há a divisão, a
multiplicidade. Por mais que se assemelhem, os escritos de Barthes
– mesmo os contemporâneos uns dos outros – se distinguem, im-
postando diferentemente o grão da Voz. Por esse motivo, os modos
3
Em todas essas questões de herança, assinatura e contra-assinatura (como endosso ou
retificação), estou também dialogando com dois textos de Derrida: Otobiographies.
(1984) e sua bela interlocução com Elisabeth Roudinesco, De quoi demain... (2001).

83
Evando Nascimento

de herdar esse legado heterogêneo são igualmente diversificados,


podendo variar de sujeito para sujeito, ou em relação a um único
sujeito, conforme os momentos distintos da recepção, os interes-
ses, os humores, as disposições, resumindo, o Desejo. Em todo
caso e momento, é preciso que o legatário saiba filtrar a herança,
segundo suas inclinações. Quem tudo herda não herda nada, pois
não expropria o legado paterno, ficando esmagado no conjunto
dos bens deixados por esse pai dadivoso. Cabe ao herdeiro fazer a
triagem, escolhendo as temáticas e forças que lhe dizem respeito.
Acrescente-se que, do ponto de vista intelectual e criativo, quem
herda de um único pai corre o risco de ser um mero clone do
genitor, nada tampouco acrescentando à herança. Vale então
multiplicar os “pais” e as “mães”, a fim de que nenhum deles
assuma a exclusividade da cena da escrita, embora evidentemente
as ligações possam ser mais fortes com este ou aquele pai ou mãe.
Exatamente como fez Barthes, escolhendo para cada momento de
sua “evolução” um conjunto de pais intelectuais mais ou menos
identificável: a) na fase pré-estrutural, que vai aproximadamente
até 1957, a interlocução maior se faz com Brecht, Marx e Sartre;
b) em seguida, Saussure – tendo como mediador Greimas – e, mais
tarde, Lacan, são os pais da fase assumidamente estruturalista; c)
por fim, no período dito pós-estrutural (que, a meu ver, começa em
1968 com “A Morte do autor”, se afirma em 1970 com a publicação
de S/Z e L’Empire des signes, e se configura em definitivo por meio
de O Prazer do texto, de 1973, até o final), o diálogo se intensifica
com Nietzsche e Deleuze, Derrida, Kristeva, Lacan e Freud.4
“É perigoso ser herdeiro”, diz Nietzsche em Assim falou Zara-
tustra, pois herdamos não só a razão, mas também a loucura dos
milênios (BARBTHES, [1980], p. 91). Mas não há como ­atuar na
cena intelectual ou criativa sem algum tipo de herança, e mesmo
o mais louco dos legados pode conter um grão de razão, como
bem entendeu Machado de Assis, ao multiplicar em seus textos o

4
Desnecessário dizer que todas as referências às leituras de Barthes devem ser
desvinculadas aqui da categoria da influência, cujo descrédito está justamente em causa
neste contexto. Por isso mesmo, esse diálogo ativo com seus pares mereceria mais de
uma análise detida, visando pôr em crise finalmente a própria noção de “paternidade”.

82
A paixão isenta (O “pequeno Barthes”)

comércio entre loucura e razão, desdobrando, conseqüentemente,


as genealogias literárias. Afinal, o importante é que razão e loucura,
em vez de se excluírem, fecundem-se mutuamente, descentrando
mas também orientando o sujeito que lê e, portanto, escreve. Ler-
-escrevendo é a herança potente por excelência e, dentre os traços
da escrita barthesiana, é o que elejo como o que mais me estruturou
até aqui, enquanto escrevente ou crítico-escritor pretenso.
Para mim, ler – ao menos desde que leio Barthes – traz embutida
a possibilidade da escrita, de modo tal que inúmeras vezes me
vejo interrompendo a mais urgente das leituras para anotar, com-
por um esboço de texto ou mesmo desenvolver todo um ensaio a
partir de alguns poucos parágrafos sofregamente decifrados. E ao
final, nunca sei exatamente o que engendrou o que, se me ponho
a ler para escrever algo, ou se escrevo porque li uma novela, vi
um filme, analisei um ensaio, preparei uma aula. Leitura e escrita
não se confundem, mas são como que “irmãs siamesmas”, para
citar um jogo de palavras de Haroldo de Campos. O par está
­fortemente vinculado, é quase inseparável e, no entanto, cada um
dos elemen­tos tem sua singularidade, não se dissolve no outro.
Entre leitura e escrita não há sinonímia, mas tensão, interpondo-
-se entre as duas um en découdre de que fala Derrida, na abertura
de A Farmácia de Platão, devendo elas irem às vias de fato ou
às últimas conseqüências (1991, p. 7). Desse atrito resultam as
fagulhas criativas, os textos e as falas, o escritos falados, as falas
escritas, paradoxalmente implicados.
Daí a famosa e polêmica frase que encerra A Morte do autor – não
por acaso de 1968 – apontar para esse lugar de suplementação da
escrita, ou seja, a leitura, sem a qual nenhuma fala, nenhum escrito
pode ser sequer articulado: “o nascimento do leitor deve pagar-
-se com a morte do Autor” (BARTHES, 1988b, p. 70). Pois todo
escrito já é produto de leituras anteriores, e tanto mais que ele se
dá a ler no momento mesmo em que se escreve, oferecendo-se à
interpretação de seu leitor primeiro, o escriptor (assim grafado de
forma arcaizante), que corta, recorta, remaneja e enfim entrega à
publicação o resultado dúplice de suas leituras, leitura de outros

83
Evando Nascimento

autores e leitura de si mesmo como autor-leitor. “Escrever a


leitura” fala exatamente desse texto que se escreve mentalmente
no ato da leitura e cuja escrita “real” é apenas conseqüência da
“escrita” primeira, realizada no gesto de erguer muitas vezes a
cabeça, tal como foi para Barthes a experiência de interpretar a
novela Sarrasine de Balzac, que resultou no texto-leitura de S/Z
(BARTHES, 1988b, p. 40-42). Uma leitura textualizada que se
faz pelo recorte e comentário-avaliação de cada uma das frases
do texto tutor, o qual oferece a pauta da interpretação. Sob esse
regime, toda avaliação de um texto implica um grau maior ou
menor de escrita,
o texto escrevível somos nós ao escrever, antes que o jogo infinito do
mundo (o mundo como jogo) seja atravessado, cortado, interrompido,
plastificado por qualquer sistema singular (Ideologia, Gênero, Crítica)
que reprima a pluralidade das entradas, a abertura das redes, o infinito
das imagens (BARTHES, 1980, p.12).

Entendido como categoria da avaliação-interpretação, e não como


qualidade imanente de certos textos em oposição a outros, o es-
crevível remete ao valor inventivo da crítica literária praticada por
Barthes. Seria preciso lembrar nesta altura o que foi para alguns
de minha geração, que começou a se formar nos anos 80, a leitura
dos textos de Barthes que propunham uma forma inaudita de se
fazer crítica literária. Sobretudo em sua última fase, ele desen-
volveu um método crítico intransferivelmente pessoal, como se
cada livro inventasse um novo procedimento, cercado de inúmeros
dispositivos, com recurso freqüente aos aforismos, aos fragmentos
ficcionais, aos grafismos romanescos, intempestivos.
Num de seus textos curtos, jamais publicados em livro, mas reu-
nidos em suas Oeuvres complètes, em três magníficos volumes
entre 1993 e 1995, Barthes sustenta uma hipótese que é subjacente
a todos os seus escritos. “Não existe nenhum discurso que não
seja uma ficção”, é este o título e a idéia do artigo (1995, v. III,­­
p. 384-385). Não que se entenda por ficção um mundo falso, mo-
ralmente falho, onde tudo seja possível. Essa ficcionalidade do
discurso é suficientemente real para ter efeitos pragmáticos sobre
a realidade material, só que ela não se faz mais a partir do lugar

82
A paixão isenta (O “pequeno Barthes”)

de um sujeito de todo consciente e controlador absoluto de seus


atos. Exatamente por se dar num contexto, em que outras falas e
gêneros atuam, todo discurso depende de respostas, ou seja, de
leituras para provar sua eficácia. Nenhum texto é dotado de ver-
dade prévia, que escape a qualquer avaliação por parte de seus
intérpretes. Ao contrário, cabe sempre ao leitor decidir sobre os
sentidos atribuíveis aos textos, levando evidentemente em conta
a base sígnica de sua inscrição primeira, afirmando a utopia geral
do Desejo.

O pequeno Barthes
Indagaria neste ponto: é também possível renegar um legado? O
que seria uma herança cujos leitores abjurassem, deixando de se
interessar e, conseqüentemente, levando-a a se perder? Em sua
Aula inaugural, um dos manifestos críticos sobre a literatura mais
importantes do século XX, Roland Barthes defendia o direito e
mesmo a necessidade de um autor abjurar sua obra, caso ela se
tornasse objeto de involuntárias mitologias. A referência imediata
era Pasolini, que teria praticado tal gesto diante da apropriação
de sua Trilogia da vida pelo poder. Ali onde havia grande força
inaugural, uma parte da crítica e mesmo da mídia acabava por
criar um monumento e tornar o cineasta-escritor mais um mito
da cultura burguesa. O contexto dessa referência, em Aula, são
as estratégias de teimosia e de deslocamento, relativas à segunda
força de liberdade da literatura, a da representação impossível do
“real”: “Deslocar-se pode pois querer dizer: transportar-se para
onde não se é esperado, ou ainda e mais radicalmente, abjurar o
que se escreveu (mas não, forçosamente, o que se pensou), ­quando
o poder gregário o utiliza e serviliza” (BARTHES, [19—], p. 27).
A mistificação do autor é um risco tanto maior para quem, como
Barthes, escreveu ainda nos anos 50 – ou seja, antes da produção
que o tornaria mundialmente conhecido –, um livro-chave para
entender a produção de mitos culturais, as já referidas Mitologias.
Estamos diante de uma verdadeira aporia: por um lado, Barthes
não se cansou de multiplicar gestos no sentido de desmontar es-

83
Evando Nascimento

tereótipos, seja por meio da leitura de ícones culturais, seja por


uma fina teorização dos mecanismos de desejo e poder que se
instalam ali onde deveria atuar uma força de liberdade, no caso
mesmo do texto literário. Por outro lado, pode ocorrer o sobrelance
dessa investida do estereótipo na própria atuação de Barthes como
escritor, professor, semiólogo. Em outras palavras, desde quando,
nos anos 60, o movimento estruturalista teve nele um de seus
maiores articuladores, obtendo êxito internacional, Barthes passou
a representar uma dessas figuras que ultrapassam os muros da
Universidade, ganham o mundo, atingindo também, com maior ou
menor felicidade, o espaço da mídia. A ambivalência se intensifi­ca,
pois, se sair do recinto acadêmico é ampliar seu ­público, aceitando
a comunicação em seus mais diversos níveis, isso impli­ca simul-
tânea e inevitavelmente expor-se ao pior, tornar-se um o­ bjeto de
culto. Lembro, de passagem, que os Fragmentos de um discurso
amoroso estão entre os grandes best sellers da crítica universitá-
ria, lido inclusive por um público não-universitário, tendo sido
encenado no Brasil por Antônio Fagundes, no final dos anos 80.
Esse processo de mitificação se tornou mais arriscado sobretudo
a partir dos anos 70 e 80, quando, por exemplo, no Brasil pratica-
mente todos os livros importantes de Barthes estavam traduzidos,
com exceção de sua belíssima viagem ao Japão, L’Empire des
signes. Creio que o signo dessa mitificação foi o uso e o abuso
que se fizeram da palavra écriture, traduzida na maior parte das
vezes como escritura, quando em francês o termo corresponde
também ao sentido elementar do texto escrito, à escrita simples-
mente.5 Eu mesmo, em determinado momento, depois de abusar do
termo escritura, senti a necessidade de me afastar dessa tradução
e reintroduzir pedestremente a palavra escrita no campo do pen-
samento francês recente, através de Foucault, Derrida e Deleuze,
em diálogo intenso com Maurice Blanchot, e mais anteriormente
com Nietzsche e Freud, sem esquecer o contemporâneo Lacan –

5
Ao propor de maneira lúcida, no posfácio de Aula, traduzir écriture como escritura –
ao contrário dos portugueses que optaram por escrita –, Leyla Perrone-Moisés tirou o
máximo proveito de uma palavra existente em nosso idioma. Os abusos daí decorridos
por parte de muitos leitores-escritores se deram em função dos equívocos inerentes ao
ato mesmo de herdar, ou seja, de interpretar. Cf. BARTHES, [19—], p. 74-79.

82
A paixão isenta (O “pequeno Barthes”)

personagem com o qual eles estabelecerão fortes relações, não


desprovidas de conflitos. Hoje utilizo alternadamente, segundo
o contexto e a necessidade, um ou outro termo, evitando o uso
abusivo da “pura” escritura. Razão pela qual o referido retorno a
Barthes, sem jamais tê-lo esquecido, se converte de fato em vê-
-lo de outro modo, deslocando seus inevitáveis mitos. Retornar
significa relê-lo em sua materialidade textual, mas também em
sua virtualidade significativa, como deriva das leituras prévias.
Na França, o processo de mitificação sofreu seu contraponto
negativo com a publicação por Burnier e Rambaud, em 1978, do
Le Roland Barthes sans peine (Roland Barthes sem esforço), ao
que consta um medíocre pastiche que, mesmo assim, segundo os
testemunhos da época, teria feito Barthes sofrer muito (CALVET,
1990, p. 274-275). Em seu depoimento no segundo dossiê do Ma-
gazine Littéraire (1993) sobre Barthes, Umberto Eco se espanta
com o fato de ele ter sofrido tanto, já que o tornar-se pastiche é o
signo absoluto da consagração de um autor. Vale indagar se inte-
ressava a Barthes qualquer tipo de consagração, principalmente
por vias negativas.
É preciso, portanto, não monumentalizar Roland Barthes. Lem-
bremos, para isso, os momentos distintos em que refletiu sobre
os mitos de sua época e de sua classe social. Em primeiro lugar,
estão as próprias Mitologias, isto é, os textos curtos que escreveu
entre 1954 e 1956 nas Lettres Nouvelles como microexercícios
de sociologia, a fim de desmontar as mistificações da pequena
burguesia. De inspiração brechtiana e marxista, as Mitologias
atuavam como estratégias de contra-ideologia em relação ao
aparato ideológico montado pela mídia como determinação da
classe burguesa em geral.
Exemplo por excelência dessa atividade desmistificadora é a
contramitologia do “Escritor em férias” (BARTHES, 1982, p. 23-
25). Para Barthes, ao ser apresentado em férias, o escritor encena
uma contradição que só reforça o mito do gênio portador de uma
consciência universal. Por um lado, ele assume sua condição mortal
(entra de férias), o que, por outro, torna mais miraculosa ainda sua

83
Evando Nascimento

superioridade diante dos outros mortais (ser escritor). Além disso,


mesmo de férias o escritor jamais está desocupado, seja porque
continua escrevendo, seja porque lê algo próprio à sua condição.
Tudo isso expõe a “vocação” como o atributo sobrenatural de
seres que a burguesia eleva à condição de super-homens, dado
reforçado pela aparente antítese entre a frivolidade das férias e a
ininterrupção de seu ofício sagrado:
A aliança espetacular de tanta nobreza e de tanta futilidade significa que
se acredita ainda na contradição: totalmente milagrosa, como cada um
dos seus termos, perderia evidentemente todo o interesse num mundo
em que o trabalho do escritor fosse dessacralizado a ponto de parecer tão
natural quanto as suas funções vestimentares ou gustativas (BARTHES,
1982, p. 25).

Afirmava-se aí a luta de Barthes contra os estereótipos. Apren-


demos com Nietzsche que é fundamental saber escolher seus
inimigos (BARTHES, 1983, p. 64), e Barthes elegeu os clichês
culturais como os inimigos de uma vida inteira. Valores consensu-
ais que estavam biograficamente também nele, como se o Barthes
pensador da cultura tivesse de lutar contra o Roland originário da
pequena burguesia.
Mas o posfácio de 1957 ao livro Mitologias já se distanciava de
uma crítica do conteúdo e passava a privilegiar o discurso da doxa
como sistema de signos a serem interpretados em sua dupla face
de significante e de significado. Como dirá o prefácio à edição
de 1970, ou mais ainda o artigo “A Mitologia hoje”, de 1971, foi
preciso substituir uma mitoclastia (destruição de mitos, como
crítica do conteúdo) por uma semioclastia (destruição dos signos
em sua complexidade, funcionando sintaticamente dentro da frase).
O momento da semioclastia coincide, em linhas gerais, com o
período estruturalista, em que Barthes ainda acreditava numa
positividade do signo, fundada no que ele próprio chamou poste-
riormente de “sonho de cientificidade”. Sonho do qual despertará
progressivamente no contato com os textos de Derrida, Kristeva
e Lacan, até declarar na abertura do S/Z, em 1970, que os estrutu-
ralistas tinham acalentado o desejo de – tal como certos budistas
através de meditação conseguem ver uma grande paisagem numa

82
A paixão isenta (O “pequeno Barthes”)

fava – reduzir todas as narrativas do mundo, através de modeli-


zações sucessivas, a uma única estrutura geral. Com isso, dizia
Barthes, perdia-se a singularidade das narrativas, sua diferença.
A semioclastia barthesiana significava certamente um distancia­
mento em relação à naturalidade dos signos: ali onde uma signifi-
cação quer aderir naturalmente a um contexto, é preciso interferir,
descolar, desarticular e, se necessário, destruir. A semioclastia se
converteu na fase pós-estrutural num jogo com os significantes.
Deslizamento sígnico exemplarmente trabalhado em Roland
Barthes por Roland Barthes, quando, para se referir a si próprio,
utiliza tanto o “eu” quanto o “ele”, num desdobramento de papéis
que evita a adesão à subjetividade em estado puro, natural, mitoló-
gico. Nesse contexto, Brecht ressurge como referência ­inevitável:
falar de si dizendo “ele”, pode querer dizer: falo de mim como se estivesse
um pouco morto, preso numa leve bruma de ênfase paranóica, ou ainda:
falo de mim como o ator brechtiano que deve distanciar seu personagem:
“mostrá-lo”, não encarná-lo, dar à sua dicção uma espécie de piparote,
cujo efeito é descolar o pronome de seu nome, a imagem de seu suporte,
o imaginário de seu espelho (BARTHES, 2003, p. 186).

As referências a Brecht, nesse texto de 1975, demonstram que


Barthes nunca abandonou seus pais intelectuais, precisou apenas
se afastar de alguns deles estrategicamente para “evoluir”, mas
um certo olhar ligado à herança nunca se perde, acompanhando a
escritura de ponta a ponta. Identificam-se, assim, diversos olhares
em Barthes, de acordo com as referidas fases: o olhar mitoclasta
(Brecht-Marx), o olhar semioclasta ou estrutural (Saussure, Grei-
mas, Lacan) e o olhar pós-estrutural, como deslizamento e jogo
do significante (Derrida, Kristeva, Freud, Lacan, dentre outros).
Esses olhares não se contradizem necessariamente, deslocam-
-se entre si, mas podem conviver num mesmo espaço, num
mesmo livro. Daí ser complicado, tal fora dito anteriormente,
e mesmo impossível, falar em fases de Barthes como períodos
estanques, pois os olhares ora se contrapõem, ora se superpõem,
dialogam, aliciam-se etc., num jogo permanente de resistência, ou
seja, de teimosia e de deslocamento, abjurando estrategicamente
se necessário.

83
Evando Nascimento

Tudo pelo desejo de baldar o estereótipo, o qual é definido lapi-


darmente em O Prazer do texto:
O estereótipo é a palavra repetida, fora de toda magia, de todo entusiasmo,
como se fosse natural, como se por milagre essa palavra que retorna fosse
a cada vez adequada por razões diferentes, como se imitar pudesse deixar
de ser sentido como uma imitação: palavra sem-cerimônia, que pretende
a consistência e ignora sua própria insistência (BARTHES, 1996, p. 57).

Essa verdade instituída canoniza coercitivamente o significado,


naturalizando a cultura, por um jogo de inversões diagnosticado no
conceito de ideologia por Marx (BARTHES, 1988b, p. 79). Trata-se
antes de tudo de uma coalescência lingüística, pois, como já dizia
o posfácio das Mitologias, o mito é uma fala, uma fala enrijecida,
a ser fissurada por meio de múltiplas estratégias.
Assim é que o último Barthes vai sempre em busca do plural do
texto e não mais da redução estrutural, como propunha a semio-
logia lingüística dos anos 60. Esta será deslocada pela semiologia
literária, cátedra fundada para Barthes no Colégio de França, como
saber com sabor, deslocando o cientista em proveito do semiólogo
duplo de artista. Aí, então, não será mais preciso praticar nem a
mitoclastia, nem a semioclastia, pois estas supõem e acirram os
conflitos, a guerra das linguagens. Caberá ao semiólogo-artista,
tal como a literatura, jogar com os signos, trapaceando a doxa,
“ele joga com os signos como um logro consciente, cuja fasci-
nação saboreia, quer fazer saborear e compreender” (BARTHES,
[19—], p. 40).
No momento em que, foucaultianamente, Barthes percebe que o
poder está em toda parte, não é mais possível praticar um d­ iscurso
de denúncia e de simples desmistificação, pois, como dizem as crô-
nicas escritas em 1978 e 1979, não existe mais um lugar tranqüilo
de onde se possa praticar a denúncia, sem que o desmistificador
esteja preso aos mecanismos que denuncia. Pode-se dizer, com
Barthes, que a contra-ideologia, como seu próprio nome já diz,
não se exime de ideologia como exercício de poder mistificador.
Pois a ideologia é o que domina praticamente em todo discurso, em
toda parte, constituindo uma redundância a expressão “ideologia

82
A paixão isenta (O “pequeno Barthes”)

dominante”. Logo: “A luta social não pode reduzir-se à luta de


duas ideologias rivais: é a subversão de toda ideologia que está
em causa” (BARTHES, 1996, p. 45).
É assim que as referidas crônicas, publicadas originalmente em
Le Nouvel Observateur, se recusam a praticar, pelo menos de
modo frontal, a atividade do mitoclasta e do semioclasta. Apesar
de trabalhar ainda alguns dos signos-mitos mais potentes de nossa
cultura, elas evitam a todo custo “moralizar” os quadros que des-
crevem. Emblemática disso é a crônica “Chez le coiffeur” (“No
Cabeleireiro”). Num ambiente de conversa, subitamente uma voz
masculina enuncia “Eu tenho um método para adestrar os cães
e as mulheres. Mas as mulheres são mais difíceis” (BARTHES,
1995, v. III, p. 970). Toda uma dupla cena cultural do ocidente se
ilumina: por um lado, a mulher como fera a ser domada, como
as bestas perigosas; e, por outro, o cão também como um outro a
ser submetido ao poder humano, de preferência masculino. Mas
o comentário de Barthes se resume a notar que a mulher da caixa
e a manicure estão felizes com a frase de efeito, por três motivos
prováveis (todos parecem vir ao caso): a) satisfação pelo dito
engenhoso; b) lisonja por terem “temperamento” mais forte do
que os cães; c) simples conforto do estereótipo. Ele observa ain-
da o olhar triste do cão que acompanha o homem e indaga como
um animal tão nobre não percebe a estupidez de seu mestre. Em
seguida, comenta uma matéria publicitária lida dias depois do
acontecimento no cabeleireiro e que trata jocosamente as mulheres
como cadelas. Nesse texto curto, emaranham-se duas cenas: uma,
retirada do cotidiano; a outra, da mídia.
Nessa e nas outras crônicas, Barthes evita um discurso de denúncia,
como haviam feito amplamente as Mitologias, restringindo-se à
mera exposição dos fatos. Mas é a desconfiança quanto a essas
descrições não estarem isentas de certa moral que o faz dese-
jar interromper a escrita e a publicação dos textos, publicados,
não esqueçamos, num periódico não-acadêmico, o Le Nouvel
Observateur. Escreve, então, uma crônica justamente intitulada
“Pause” (“Pausa”), para explicar a seus leitores a necessidade da

83
Evando Nascimento

interrupção, ainda que provisória. Nesse miniartigo está “todo o


Barthes”, constituindo uma súmula de seus gestos de distancia-
mento, recusa, teimosia, deslocamento, abjuração. Ressaltam no
fragmento os aspectos éticos, pedagógicos, estéticos e políticos
de Roland Barthes, expostos por ele mesmo com todas as letras.
O grande legado de Barthes, hoje, estaria também nessas pequenas
iluminações do cotidiano que são as crônicas, comparadas por ele
aos haicais japoneses, às epifanias joycianas e aos fragmentos de
diário íntimo; excertos deste último gênero tiveram publicação
póstuma em Incidentes. Tem-se em “Pausa” um Barthes em tom
menor, mas ainda intensamente apaixonado pelos temas literários
e culturais que sempre abraçou: “as operações de decifração dos
signos nas sociedades ou na literatura sempre me apaixonaram”
(BARTHES, 1982, p. 155). Apóia-se em Borges para dizer que o
“menor” não significa um rebaixamento, mas é um gênero como
qualquer outro, afirmando a necessidade de um combate pela
doçura. No entanto, teme que as crônicas sejam Mitologias me-
nos bem realizadas, além de manifestar o receio maior de cair na
tipicidade do gênero crônica, ou seja, o categórico imperativo de
extrair uma moral dos relatos. “Talvez seja preciso, e na imprensa
mesmo, procurar resistir ao prestígio das grandes proporções, de
maneira a frear o entusiasmo da mídia (fato histórico novo) em
criar ela própria o acontecimento” (BARTHES, 1995, v. III, p.
991). A mídia estava apenas ensaiando os passos de sua capacidade
de engendrar fatos, em vez de informá-los...
Daí emerge um “pequeno Barthes”:6
Sei que minha linguagem é pequena [...], mas talvez essa pequenez seja
útil; pois é a partir dela que sinto por meu turno, às vezes, os limites do
outro mundo, do mundo dos outros, do “grand monde”, e é para declarar
esse incômodo, talvez esse sofrimento, que escrevo: será que não devemos
hoje fazer ouvir o maior número possível de “pequenos mundos”? Atacar

6
Durante o Colóquio na USP, Antoine Compagnon qualificou o livro Roland Barthes
por Roland Barthes como o “pequeno Barthes”. Compagnon fez, no entanto, questão
de precisar que a designação tem um sentido apenas literal, tal como se diz Pequeno
Larousse ou, como diríamos, Pequeno Aurélio, para indicar a versão reduzida dos
dicionários. Sirvo-me aqui da mesma expressão, porém em sentido metafórico, como
instrumento teórico-crítico para evitar a mitificação de Barthes.

82
A paixão isenta (O “pequeno Barthes”)

o “grande mundo” (gregário) pela divisão incansável das particularidades?


(1995, v. III, p. 991).

No interior mesmo da grandiosidade de um mundo midiatizado,


dentro da mundanidade que não pára de produzir seus mitos, é
preciso falar a partir de um lugar menor, tal como propõem Deleuze
e Guattari em relação à literatura menor de Kafka.7
Barthes fala, então, das múltiplas vozes que o habitam e que ele
quer fazer ouvir em sua multiplicidade: as crônicas constituindo
pedaços de ensaio para um futuro romance. Mas insiste no risco de
se tornarem “moralidades”, e isso o descontenta, pois tudo o que
deseja via escrita é pluralizar o sentido até suspendê-lo. Por serem
mais “escritos”, os livros dificultam a mitologia, a estereotipia,
a imobilidade, enquanto a imediatez desses escritos jornalísticos
podem facilmente conduzir à armadilha da denúncia, tanto des-
mistificadora quanto re-mistificadora.
Estamos no impasse final da obra. Barthes jamais abriu mão de
ser político, nem se trata de uma desistência, mas de dar-se um
intervalo para tomar fôlego e recomeçar de outro modo. A tarefa
político-pedagógica da escritura não tem fim e, se esses textos não
mais retornaram, as aulas no Colégio permitiram ainda por algum
tempo, bem pouco na verdade, ouvir o grão minúsculo da voz –
confirmam-no as publicações póstumas desses cursos.
Lembraria que numa entrevista publicada com Jean Ristat, escritor
do romance altamente inventivo L’Entrée dans la baie et la prise
de la ville de Rio de Janeiro em 1711, Barthes se permite discordar
de seu entrevistado quando este declara o cansaço em relação a
certos procedimentos da vanguarda:
Não creio que esse gênero de recurso esteja ultrapassado. Hoje o trabalho
do escritor é um trabalho dialético, tático, é produzido numa sociedade
que não está liberada. É um procedimento profundamente progressista, no
sentido próprio do termo, fingir apoiar-se nessa espécie de referência e de
autoridade extremamente consistente, a literatura ou a história, precisa-
mente porque elas nos vêm da infância, de nossa cultura escolar. Desferir
sobre esse corpus bastante sólido operações de prevaricação, de roubo ou

7
Agradeço a Philippe Roger a informação de que Kafka: por uma literatura menor era
um dos livros de Deleuze que Barthes mais apreciava.

83
Evando Nascimento

de arrombamento não é um trabalho ultrapassado. [...] Sabemos muito


bem que um esforço importante da literatura contemporânea e, digamos,
do texto de vanguarda ao qual sua obra está incontestavelmente ligada se
imprime na destruição das tipologias antigas: ou seja, nessa separação das
obras literárias em gêneros efetivamente distintos que reinou em nossa
literatura (BARTHES, 1993, v. II, p. 1645, grifo nosso).

Nesse diálogo publicado em 1973 como posfácio ao livro de Ristat,


Barthes continua falando desse suposto romance que expropria e
esfacela cada um dos gêneros, tornando impossível, sobretudo, o
reconhecimento do grande gênero narrativo. Percebe-se, assim,
como certos procedimentos de escritura são empregados com o
objetivo de esfacelar o monumento literário, evitando conseqüen-
temente a mitificação do Autor.
Tal como essa prática de esfacelamento dos grandes gêneros
literários, a crônica final de 1979 defende um recolhimento estra-
tégico do semiólogo-escritor, em busca de uma cada vez maior
“isenção do sentido” (BARTHES, 2003, 1995). O texto acaba por
se converter numa despedida de seus leitores. Roland Barthes veio
a falecer no ano seguinte, em conseqüência de um atropelamento
defronte ao Colégio de França. Mas na “Pausa” ficou consignado
o legado barthesiano, não, como visto, pela destruição dos signos,
mas pela travessia dos signos de maneira apaixonada. Rumo ao
Neutro, ele sustentou a necessidade política de distanciamento
e jogo, em vez de conflito niilista, reafirmando dessa maneira a
suave força de uma paixão isenta.

Referências
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Cultrix, [19—].
______. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Cas-
tañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
______. Comment vivre ensemble. Paris: Seuil, 2002a.
______. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
Perspectiva, 1982a.

82
A paixão isenta (O “pequeno Barthes”)

______. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortênsia dos


Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
______. O grão da voz: entrevistas 1962-1980. Trad. Teresa Me-
neses e Alexandre Melo. Lisboa: Ed. 70, 1982b.
______. Incidentes. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1988.
______. Le neutre. Paris: Seuil, 2002b.
______. Novos ensaios críticos / O grau zero da escritura. Trad.
Heloysa de Lima Dantas, Anne Arnichand e Álvaro Lorencini.
São Paulo: Cultrix, 1986.
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______. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Pers-
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______. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-
-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
______. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo:
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______. S/Z. Trad. Maria de Santa Cruz e Ana Mafalda Leite.
Lisboa: Ed. 70, [1980].
CALVET, Louis-Jean. Roland Barthes. Paris: Flammarion, 1990.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: pour une literature
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DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa.
São Paulo: Iluminuras, 1991.
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______. Otobiographies : L’Enseignement de Nietzsche et la po-
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______; ROUDINESCO, Elisabeth. De quoi demain…Paris:
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83
Evando Nascimento

NASCIMENTO, Evando. Ângulos: literatura e outras artes. Juiz


de Fora: Ed. da UFJF; Chapecó: Argos, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para
todos e para ninguém. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Ci-
vilização Brasileira, 1983.
ROBBE-GRILLET, Alain. Por que amo Barthes. Trad. Silviano
Santiago. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1995.

82
O rumor do autor em Fragmentos de um discurso amoroso

Marcelo Jacques de Moraes

Como o título proposto evidencia, explorarei particularmente aqui


três textos de Barthes bem conhecidos entre nós: os ensaios A morte
do autor, de 1968, O rumor da língua, de 1975, e, naturalmente,
Fragmentos de um discurso amoroso, de 1977, obra difícil de ser
enquadrada em um gênero, mas que, não sem razão, é por muitos
considerada como um texto de ficção, como uma escrita que tende
ao romance.
Retomarei primeiramente alguns aspectos dos dois ensaios,
articulando-os aqui e ali com outros textos de Barthes – especial-
mente o ensaio Durante muito tempo fui deitar-me cedo, de 1978
–, para, em seguida, introduzir uma reflexão sobre o modo como
a simulação”1 do discurso amoroso empreendida nos Fragmentos
orquestra, com as vozes que os compõem, uma certa “experiência
de rumor”,2 por meio da qual – ou, mais barthesianamente dizendo,
na superfície da qual – se “[desenha] uma inteligência”,3 um estilo,
encenando e reconfigurando – com ou contra o próprio Barthes,
às vezes me parece difícil dizer – a noção de autoria.
Em A morte do autor, Barthes buscara demonstrar que a conside-
ração do autor como origem absoluta do texto literário e, portanto,
como personagem em torno da qual seu sentido deveria ser busca-
do, é histórica, e está ligada à emergência e ao prestígio crescente

1
“On a donc substitué à la description du discours amoureux sa simulation [...]” (1977,
p. 7).
2
“[...] ce que l’on pourrait appeler des expériences de bruissement [...]” (1984c,
p. 101).
3
“[...] le dessin d’une intelligence [...]” (1984c, p. 102).
Marcelo Jacques de Moraes

do indivíduo burguês após a Idade Média.4 O “escriptor moderno”


teria alçado a linguagem ao lugar do Autor, “enterrando-o”,5 e
não pode senão imitar um gesto sempre anterior, jamais original; seu único
poder é o de mesclar escritas, contrariá-las umas às outras, de modo a ja-
mais apoiar-se sobre apenas uma delas; quisera ele exprimir-se, ao menos
deveria saber que a “coisa” interior que tem a pretensão de “traduzir” é
ela própria apenas um dicionário todo composto, cujas palavras só podem
ser explicadas por meio de outras palavras, indefinidamente.6

O passo dado por Barthes foi, como é notório, precioso para a


reflexão crítica, uma vez que pôs em primeiro plano a linguagem
em toda a sua complexidade, problematizando as noções de in-
tenção e de subjetividade e a relação da obra com o contexto de
seu aparecimento, explicitando a dimensão intertextual intrínseca
a todo texto e valorizando o papel criativo do leitor na construção
de seu sentido.
Entretanto, Barthes contextualiza historicamente esse “abalo” do
“império do Autor”7 com bastante precisão, e parece difícil, sem
levar em conta tal contexto, ler e interpretar as obras de Mallarmé,
de Valéry, de Proust e dos surrealistas, que são os autores por ele
citados no ensaio como precursores desse escriptor moderno. Ou
seja, não se pode ler o ensaio de Barthes sem se ter também a
impressão de que o contexto em que esses escritores produziram
e o modo particular como dele se apropriaram são determinantes
de certa configuração de pensamento comum a todos eles e de
certos sentidos que se podem atribuir à obra de cada um deles.
O próprio vocabulário de Barthes aponta para uma convergência
entre intenção e determinação contextual: Mallarmé “viu e pre-
viu em toda a sua amplitude a necessidade de colocar a própria
4
“L’auteur est un personnage moderne, produit sans doute par notre société dans la mesure
où, au sortir du Moyen Age, avec l’empirisme anglais, le rationalisme français, et la foi
personnelle de la Réforme, elle a découvert le prestige de l’individu, ou, comme on dit
plus noblement, de la ‘personne humaine’” (1984b, p. 64).
5
“[...] le scripteur moderne, ayant enterré l’Auteur, [...] sa main, détachée de toute voix,
portée par un pur geste d’inscription (et non d’expression), trace un champ sans origine
– ou qui, du moins, n’a d’autre origine que le langage lui même [...]” (1984b, p. 67).
6
“[...] le scripteur moderne, ayant enterré l’Auteur, [...] sa main, détachée de toute voix,
portée par un pur geste d’inscription (et non d’expression), trace un champ sans origine
– ou qui, du moins, n’a d’autre origine que le langage lui même [...]” (1984b, p. 67).
7
“Bien que l’empire de l’Auteur soit encore très puissant [...], il va de soi que certains
écrivains ont depuis longtemps déjà tenté de l’ébranler” (1984b, p. 64).

100
O rumor do autor em Fragmentos de um discurso amoroso

linguagem no lugar daquele que dela era até então considerado o


proprietário[...]”; Valéry “acentuou a natureza lingüística e como
que ‘audaciosa’ de sua atividade, e reivindicou ao longo de todos
os seus livros em prosa a favor da condição essencialmente verbal
da literatura [...]”; Proust, “a despeito do caráter aparentemente
psicológico do que chamamos suas análises, deu-se visivelmente
por tarefa turvar inexoravelmente, por meio de uma sutilização
extrema, a relação do escritor com suas personagens [...]”; os surre-
alistas “[recomendavam] incessantemente que se decepcionassem
bruscamente os sentidos esperados...” etc.8 Assim, Barthes não
deixa de lhes atribuir consciência e intencionalidade na produção
de suas respectivas estéticas, e indica que não se pode lê-los sem
perceber tais ou quais elementos mais ou menos evidentes de
suas obras; ou, em outras palavras, que, ao menos quanto a certos
aspectos, a singularidade de tais obras se deve menos à singula-
ridade da leitura que delas se pode fazer do que ao modo como
se organiza e se impõe sua linguagem. As reflexões do próprio
Barthes não permitem, pois, no limite, considerar o sujeito da
escrita como mero efeito de linguagem, como ele mesmo parece
fazer em algumas ocasiões.9
Sendo assim, quando mata o Autor – ou melhor, quando mostra
que de fato ele nunca existiu, que não passa de uma mitologia, do
produto de uma crítica marcada pelo individualismo burguês –,
Barthes obriga, na verdade, a postular uma outra noção de autoria,
fundada numa outra lógica de determinação, que não “[impõe]
ao texto uma trava”, “um significado último”, que não “[fecha]
8
“Mallarmé [...] a vu et prévu dans toute son ampleur la nécessité de substituer le langage
lui-même à celui qui jusque-là était censé en être le propriétaire [...]”; “Valéry [...]
accentua la nature linguistique et comme ‘hasardeuse’ de son activité, et revendiqua
tout au long de ses livres en prose en faveur de la condition essentiellement verbale de la
littérature [...]”; “Proust [...] se donna visiblement pour tâche de brouiller inexorablement,
par une subtilisation extrême, le rapport de l’écrivain et de ses personnages [...]”; “Le
Surréalisme [...], recommandant sans cesse de décevoir brusquement les sens attendus
[...]” (1984b, p. 64-65, grifo nosso).
9
Em Roland Barthes por Roland Barthes, ele alude a essa tendência: “Sente-se solidário
de todo escrito cujo princípio é o de que o sujeito é apenas um efeito de linguagem.
Imagina uma ciência muita vasta em cuja enunciação o sábio enfim se incluiria – que
seria a ciência dos efeitos de linguagem”. [Il se sent solidaire de tout écrit dont le principe
est que le sujet n’est qu’un effet de langage. Il imagine une science très vaste, dans
l’énonciation de laquelle le savant s’inclurait enfin – qui serait la science des effets de
langage”] (1975, p. 82).

101
Marcelo Jacques de Moraes

a escrita”,10 mas que, de alguma maneira, implica um modo de


funcionamento do texto que lhe é próprio e que o torna, até certo
ponto, semelhante a si mesmo e a outros textos do mesmo autor
ou de seus contemporâneos, por exemplo. Se, conforme a alusão
de Barthes no final do ensaio às pesquisas de Jean-Pierre Vernant
sobre “a natureza constitutivamente ambígua da tragédia grega”,
o leitor-espectador não pode não ouvir a ambigüidade das pala-
vras e a surdez das personagens,11 é porque esses elementos ali
se encontram independentemente dele, implicando, portanto, uma
“inteligência” que organiza e agencia tais elementos, e que, mais
do que isso, se dirige a um leitor, implicando, portanto, também,
minimamente, determinado alcance interpretativo de sua parte.
Como entender, então, a frase com que Barthes encerra seu artigo,
e que, aliás, sela irremediavelmente, ainda que por uma formula-
ção aparentemente excludente, a associação entre autor e leitor,
entre escrita e leitura? “O preço que se paga pelo nascimento
do leitor, escreve ele, é a morte do Autor”.12 Parece-me que o
fundamental é notar que, mais do que demonstrar a importância
capital do leitor na construção do sentido do texto, implicando uma
revisão e uma expansão criativa da atividade crítica, este passo
vai permitir a Barthes postular que, do ponto de vista lógico da
própria produção da obra, o leitor precede o autor: toda escrita
é, antes de mais nada, trabalho de um leitor. Em Durante muito
tempo fui deitar-me cedo, Barthes afirmará, por exemplo, que “o
próprio móbil da literatura” é a projeção do leitor naquilo que lê,
sua identificação seja com o pathos das personagens seja com o

10
“Donner un Auteur à un texte, c’est imposer à ce texte un cran d’arrêt, c’est le pourvoir
d’un signifié dernier, c’est fermer l’écriture” (1984b, p. 68).
11
“[...] des recherches récentes [...] ont mis en lumière la nature constitutivement ambiguë
de la tragédie grecque; le texte y est tissé de mots à sens double, que chaque personnage
comprend unilatéralement [...]; il y a cependant quelqu’un qui entend chaque mot dans
sa duplicité, et entend de plus, si l’on peut dire, la surdité même des personnages qui
parlent devant lui: ce quelqu’un est précisément le lecteur (ou ici l’auditeur)” (1984b,
p. 69).
12
“[...] la naissance du lecteur doit se payer de la mort de l’Auteur” (1984b, p. 69).

102
O rumor do autor em Fragmentos de um discurso amoroso

do próprio autor, em seu desejo de escrever.13 Escrever é sempre,


portanto, escrever leituras, a partir de leituras, com autores, contra
eles. E esse autor consciente de ser um leitor-que-escreve – que é
o escriptor moderno de Barthes – é aquele que, antes de tudo, se
sabe, a despeito de si, assombrado por outros autores, outros textos,
outras palavras. Aquele que sabe que sua língua não lhe pertence
inequivocamente, que seu dizer tem, irremediavel­mente, as marcas
do dizer do outro. Escrever é, pois, para ele, em solilóquio, tornar
seu dizer consciente dessa alteridade constitutiva e dialogar com o
outro, interrogar-se e interrogá-lo, e, assim, alterar-se, tornar-se,
por sua vez, outro. A negatividade e a busca da impessoalidade
que caracterizam a modernidade não deixam de ser um modo de
atuação deste sujeito consciente de sua deriva subjetiva.
Mas não é apenas isso. Para Barthes, que, até o fim, se põe na po-
sição de quem aspira ainda a se tornar um escritor – em 1978, já
consagrado, ele se define sempre como “aquele que quer escrever”
–, o escritor da “obra por fazer”14 é um leitor que não quer mais
“[falar] sobre alguma coisa”, mas “[fazer] alguma coisa”.15 É por
aí que Barthes pensa a passagem a uma vita nova,16 passagem da
escrita de “natureza uniformemente intelectual”, a que até então
se teria consagrado,17 para uma escrita sem metalinguagem, que
ponha em cena a dinâmica subjetiva do desejo, o enigma da
identidade deste eu permanentemente dividido, rasgado entre a
vontade de “consistência (seu prazer) e a busca da própria perda

13
“[...] dans la littérature figurative [...] il me semble qu’on s’identifie plus ou moins
(je veux dire par moments) à l’un des personnages représentés; cette projection, je le
crois, est le ressort même de la littérature; mais dans certains cas marginaux, dès lors
que le lecteur est un sujet qui veut lui-même écrire une oeuvre, ce sujet ne s’identifie
plus seulement à tel ou tel personnage fictif, mais aussi et surtout à l’auteur même du
livre lu, en tant qu’il a voulu écrire ce livre et y a réussi [...]” (1984d, p. 333-334). Mais
adiante, nesta mesma conferência, Barthes alude novamente a essa projeção do leitor e
afirma que “on reconnaît mal le pathos comme force de lecture [...]” (1984d, p. 344).
14
“[...] l’oeuvre à faire (puisque je me définis comme ‘celui qui veut écrire’) [...]” (1984d,
p. 344).
15
“Je me mets en effet dans la position de celui qui fait quelque chose, et non plus de celui
qui parle sur quelque chose [...]” (1984d, p. 346).
16
“[...] la recherche, la découverte, la pratique d’une forme nouvelle, cela, je pense, est à
la mesure de cette Vita Nova [...]” (1984d, p. 343) .
17
“[...] l’oeuvre que je désire et dont j’attends qu’elle rompe avec la nature uniformément
intellectuelle de mes écrits passées [...]” (1984d, p. 345).

103
Marcelo Jacques de Moraes

(seu gozo)”, como ele dissera em O prazer do texto.18 Para além


da ressonância com a distinção entre escrita e escrevência, entre
escrita intransitiva e escrita instrumental, postulada desde 1960,19
é num fragmento de Roland Barthes por Roland Barthes em que
o escritor se indaga sobre “o que é a influência”, que colho mais
um elemento para pensar o que está em jogo nessa passagem do
“falar sobre” ao “fazer”: “É preciso distinguir os autores sobre os
quais escrevemos [...] e os autores que lemos; mas destes, o que
me vem? Uma espécie de música, uma sonoridade pensativa, um
jogo mais ou menos denso de anagramas.” E Barthes prossegue
exemplificando: “Estava com a cabeça cheia de Nietzsche, que eu
acabara de ler; mas o que eu desejava, o que eu queria captar era
um canto de idéias-frases: a influência era puramente prosódica.”20
Sonoridade pensativa que encontra, talvez, no fragmento, justa-
mente, sua possível tradução em escrita: “O fragmento tem seu
ideal: uma alta condensação, não de pensamento, ou de sabedoria,
ou de verdade (como na Máxima), mas de música; ao ‘desenvol-
vimento’ se oporia o ‘tom’, algo de articulado e de cantado, uma
dicção: ali deveria reinar o timbre.”21 Sonoridade pensativa que
pode, talvez, ser pensada como o que Barthes postula no ensaio
sobre O rumor da língua como sendo da ordem da “música do
sentido”,22 deste sentido “indiviso, impenetrável, inominável”,
“posto ao longe como uma miragem”, e que seria “o ponto de
fuga do gozo”.23

18
“[...] il jouit de la consistance de son moi (c’est son plaisir) et recherche sa perte (c’est
sa jouissance).” (1973, p. 26).
19
Cf. 1964, p. 147-154.
20
“Il faut donc distinguer les auteurs sur lesquels on écrit [...] et les auteurs qu’on lit; mais
ceux-là, qu’est-ce qui me vient d’eux? Une sorte de musique, une sonorité pensive, un
jeu plus ou moins dense d’anagrammes. (J’avais la tête pleine de Nietzsche, que je venais
de lire; mais ce que je désirais, ce que je voulais capter, c’était un chant d’idées-phrases:
l’influence était purement prosodique)” (1975, p. 110-111). O grifo é meu.
21
“Le fragment a son idéal: une haute condensation, non de pensée, ou de sagesse, ou de
vérité (comme dans la Maxime), mais de musique: au ‘développement’, s’opposerait
le ‘ton’, quelque chose d’articulé et de chanté, une diction: là devrait régner le timbre”
(1975, p. 98).
22
“[...] une musique du sens [...]” (1984c, p. 101).
23
“[...] le sens, indivis, impénétrable, innommable, serait [...] posé au loin comme un
mirage, [...] le sens serait ici le point de fuite de la jouissance” (1984c, p. 101).

104
O rumor do autor em Fragmentos de um discurso amoroso

Essas reflexões sobre a “impossível [mas não] inconcebível”


noção de rumor da língua24 me parecem autorizar a formulação
da noção – talvez não menos impossível – mas do mesmo modo
conce­bível – de rumor do autor. Se o rumor da língua é a uto-
pia de uma “máquina” textual de funcionamento estável, de um
“imenso tecido sonoro no qual o aparelho semântico se encontra-
ria irrealizado”,25 ele não se faz ouvir, como qualquer máquina,
sem que se lhe suponha “alguma coisa como uma meta”;26 não se
faz ouvir sem “[fazer] ouvir uma isenção de sentido”, sem “[fa-
zer] ouvir ao longe um sentido doravante liberto de todas as
agressões de que o signo [...] é a caixa de Pandora”.27 Ou seja, o
rumor da língua não se faz ouvir sem a suposição de um trabalho
sobre a linguagem, sobre o sentido, sobre o corpo: no limite, sem
a suposição de um sujeito que trabalhe, isto é, de um corpo-que-
-escreve. De fato, Barthes sabe bem que a utopia da isenção de
sentido – que ele chama de “pós-sentido” em Roland Barthes por
Roland Barthes – se constitui por travessia: “é preciso atravessar,
como ao longo de um caminho iniciático, todo o sentido, para poder
extenuá-lo, isentá-lo”,28 escreve ele. E sabe também que tal tra-
vessia é impensável sem um trabalho de escrita. Uma experiência
de rumor é, pois, sempre uma operação de leitura/escrita, e seus
traços materiais – o tom, a dicção, o timbre – sempre pressupõem
uma atribuição de autor.
Assim, o rumor do autor talvez pudesse ser definido como essa
atmosfera provocada por uma máquina textual que afeta mais os
sentidos do que a mente, que solicita mais a intuição do que a aná-

24
“Mais ce qui est impossible n’est pas inconcevable: le bruissement de la langue forme
une utopie” (1984c, p. 100-101).
25
“[...] un immense tissu sonore dans lequel l’appareil sémantique se trouverait irréalisé
[...]” (1984c, p. 101).
26
“[...] quelque chose comme un but [...]” (1984c, p. 102).
27
“[...] reporté à la langue, [le bruissement] serait ce sens qui fait entendre, une exemption
de sens, ou – c’est la même chose – ce non-sens qui ferait entendre au loin un sens
désormais libéré de toutes les agressions dont le signe, formé dans la ‘triste et sauvage
histoire des hommes’, est la boîte de Pandore” (1984c, p. 101).
28
“[...] il ne s’agit pas de retrouver un pré-sens, une origine du monde, de la vie, des faits,
antérieure au sens, mais plutôt d’imaginer un après-sens: il faut traverser, comme le
long d’un chemin initiatique, tout le sens, pou pouvoir l’exténuer, l’exempter” (1975,
p. 90).

105
Marcelo Jacques de Moraes

lise, permitindo-nos experimentar essa “libertação das agressões


do signo”, mas que leva necessariamente, pela mobilização que
opera, a supor uma pensatividade própria – tomo emprestado o
termo a Michel Deguy. Experiência-limite que, como no cálculo
infinitesimal, só se pode definir por aproximação, o que, no caso
do texto, se faz por adjetivação. Como, por exemplo, a sonoridade
pensativa nietzschiana de que falava Barthes.
Nesse sentido, Fragmentos de um discurso amoroso é exemplar.
Como de uma partitura, o rumor que dele expande começa a se
desenhar desde a disposição do texto na página em branco. Ao
folhearmos o livro, vozes de autores, de personagens, de obras,
de anônimos designados por iniciais, dispostas às margens dos
fragmentos, prefiguram, qual o coro de uma orquestra afinando as
vozes antes do concerto, sonoridades e pensatividades possíveis.
Alinham-se e sucedem-se, pois, diversos outros, mais ou menos
insistentes, vozes que se entoam de modo ainda indistinto, mas
sem por isso se neutralizar. A seguinte passagem de O rumor da
língua bem poderia servir para descrever a experiência inicial do
leitor dessa máquina:
O rumor [...] implica uma comunidade de corpos: nos ruídos do prazer que
“funciona”, nenhuma voz se eleva, conduz ou se desvia, nenhuma voz se
constitui; o rumor é o próprio ruído do gozo plural – mas de modo algum
maciço (a massa, ao contrário, tem uma só voz, terrivelmente forte).29

Entretanto, folheando mais atentamente a partitura, reconhecemos


um ritmo, uma dicção, um timbre que de algum modo subsumem
a pluralidade. Blocos de parágrafos isolados, notas, citações entre
aspas, parênteses, itálicos, pontuação bem ritmada, travessões, bar-
ras, reticências... “A escrita começa pelo estilo”, afirmara Barthes
em Roland Barthes por Roland Barthes. Todas essas marcas, que
podem ser repertoriadas entre o que ele chama de os “mil traços

29
“[...] le bruissement [...] implique une communauté de corps: dans les bruits du plaisir qui
‘marche’, aucune voix ne s’élève, ne guide ou ne s’écarte, aucune voix ne se constitue;
le bruissement, c’est le bruit même de la jouissance plurielle – mais nullement massive
(la masse, elle, tout au contraire, a une seule voix, et terriblement forte)” (1984c, p. 100).

106
O rumor do autor em Fragmentos de um discurso amoroso

de [seu] trabalho do estilo”,30 não deixam dúvida: a máquina é


barthesiana.
Num outro fragmento de Roland Barthes por Roland Barthes,
em que celebra – é este o título do fragmento – “a fantasia, não o
sonho”,31Barthes refere-se de outro modo à questão do “começo
da escrita”:
O sonho me desagrada porque nele se fica completamente absorvido: o
sonho é monológico; e a fantasia me agrada porque permanece concomi-
tante à consciência da realidade (a do lugar em que estou); assim se cria
um espaço duplo, desencaixado, escalonado, no seio do qual uma voz
(eu não saberia dizer qual, a do café ou a da fábula interior), como no
andamento de uma fuga, se põe em posição de indireto: alguma coisa se
trança, é, sem pena nem papel, um começo de escrita.32

Talvez pudéssemos fazer uma analogia entre a consciência que


tem o escritor, postulada por Barthes, desde A morte do autor, da
presença de outras linguagens na sua e essa presença intermitente
da realidade na fantasia, presença que se encontra velada tanto
na ilusão monológica do sonho quanto na ilusão do Autor de
que seriam dele próprio as vozes que se encontram na origem do
que produz. O “começo de escrita” se daria justamente a partir
do reconhecimento, sempre entre o real e o fantasmático, de que,
ainda que indiscernível como tal, há sempre um outro em si, al-
teridade no mesmo. A escrita partiria, então, em última instância,
da fabulação dessa presença e do desejo de apropriar-se dela: a
incorporação da voz do outro à própria voz, da “voz do café” à voz
da “fábula interior”. Significaria, talvez, passar da monologia do
sintoma – da histeria, a que Barthes tanto se referia – à dialogia
de um estilo.

30
No fragmento intitulado “L’écriture commence par le style”, Barthes refere-se aos “mille
traits d’un travail du style” presentes em sua obra. (1975, p. 80).
31
“Le fantasme, pas le rêve” (1975, p. 90).
32
“Le rêve me déplaît parce qu’on y est tout entier absorbé: le rêve est monologique; et
le fantasme me plaît parce qu’il reste concomitant à la conscience de la réalité (celle
du lieu où je suis); ainsi se crée un espace double, déboîté, échelonnée, au sein duquel
une voix (je ne saurais jamais dire laquelle, celle du café ou celle de la fable intérieure),
comme dans la marche d’une fugue, se met en position d’indirect: quelque chose se
tresse, c’est, sans plume ni papier, un début d’écriture” (1975, p. 90).

107
Marcelo Jacques de Moraes

Mas voltemos aos Fragmentos. Ao explicar como é feito o livro,


Barthes escreve: “Substituiu-se a descrição do discurso amoroso
por sua simulação, e deu-se a esse discurso sua pessoa funda-
mental, que é o eu, de modo a pôr em cena uma enunciação, não
uma análise.”33 É interessante notar que neste prefácio, em que
explica sua, digamos, filosofia de composição, Barthes emprega o
pronome francês on, como que para prevenir o leitor da pluralidade
que o eu da enunciação dos Fragmentos recobre. Afinal, como ele
relata: “montaram-se pedaços de origem diversa. Há o que vem de
uma leitura regular [...], o que vem de leituras insistentes, [...] o
que vem de leituras ocasionais, [...] o que vem de conversas com
amigos, [...] e enfim o que vem de [sua] própria vida.”34
Diferentemente do que ocorre na obra do Barthes ensaísta, que
incita à reflexão teórica, as figuras propostas nos Fragmentos,
desenvolvidas a partir de imagens episódicas, excitam de saída
o imaginário amoroso do leitor. Longe de engajar seu espírito
analítico, tais figuras despertam e desdobram suas lembranças
amorosas, elas o convidam a instalar-se, num movimento retroativo
de identificação, no “lugar de palavra” a que Barthes alude em
sua introdução,35 conforme essas figuras lhe permitem retomar,
não sem um arrepio de prazer, não sem mobilizar-lhe o corpo,
seu próprio solilóquio amoroso mais ou menos recentemente
interrompido. E levantando a cabeça (aquele levantar a cabeça
de que Barthes falava a propósito de sua leitura de Balzac e que
o levara a escrever seu S/Z),36 ele mergulha em reminiscências
amorosas inscritas em sua memória, em seu corpo: “Como isso é
33
“On a donc substitué à la description du discours amoureux sa simulation, et l’on a
rendu à ce discours sa personne fondamentale, qui est le je, de façon à mettre en scène
une énonciation, non une analyse” (1977, p. 7).
34
“Pour composer ce sujet amoureux, on a ‘monté’ des morceaux d’origine diverse. Il y
a ce qui vient d’une lecture régulière [...] ce qui vient de lectures insistantes [...], ce qui
vient de lectures occasionnelles [...], ce qui vient de conversations d’amis. Il y a enfin
ce qui vient de ma propre vie” (1977, p. 12).
35
“[...] ce portrait [...] donne à lire une place de parole [...]” (1977, p. 7).
36
“Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, de interromper incessantemente a leitura, não por
desinteresse, mas ao contrário, por afluxo de idéias, de excitações, de associações? Em
uma palavra, nunca lhe aconteceu de ler levantando a cabeça?” [“Ne vous est-il jamais
arrivé, lisant un livre, de vous arrêter sans cesse dans votre lecture, non par désintérêt,
mais au contraire par afflux d’idées, d’excitations, d’associations? En un mot, ne vous
est-il pas arrivé de lire en levant la tête?”] (1984a, p. 33).

108
O rumor do autor em Fragmentos de um discurso amoroso

verdade! Reconheço essa cena de linguagem”,37 ele se dirá, cheio


de prazer, alçando-se à dimensão de protagonista e preenchendo
esse eu com suas pequenas ficções pessoais.
Não é exatamente uma “emoção” desse tipo que Barthes, aludindo
a certas passagens de Guerra e Paz e da Recherche proustiana,
descreverá como “momentos de verdade” de sua experiência de lei-
tor em sua Vita Nova, como “os pontos de mais-valia da anedota”
que caracterizariam o romance e que lhe inspiram a orientação da
“obra por fazer”?38 Referindo-se a esta – quem sabe inspirando-
-se em seus próprios Fragmentos, à época desta conferência já
publicados – ele diz:
Gostaria de um dia desenvolver este poder do Romance – poder afetuoso
ou amoroso [...] Posso apenas lhe pedir que cumpra, a meus próprios
olhos, três missões. A primeira seria a de me permitir dizer aqueles que
amo. [...] A segunda [...] seria me permitir a representação de uma ordem
afetiva, plenamente, mas indiretamente. [...]. Enfim e talvez sobretudo,
o Romance não exerce pressão sobre o outro (o leitor); sua instância é a
verdade dos afetos, não a das idéias.39

Parece-me que os Fragmentos já tinham de certa forma cumprido


essas três missões...
À guisa de conclusão, na figura “Estou louco”, de Fragmentos,
Barthes escreve:
Há cem anos, a loucura (literária) reputadamente consiste nisto: “Eu é
um outro”: a loucura é uma experiência de despersonalização. Para mim,
sujeito apaixonado, é exatamente o contrário: é tornar-me um sujeito, não
poder me impedir de sê-lo, que me deixa louco. Não sou um outro: é o
que constato com horror.

[...]

37
“Comme c’est vrai, ça! Je reconnais cette scène de langage” (1977, p. 8).
38
“[...] les moments de vérité sont comme les points de plus-value de l’anecdote” (1984d,
p. 344).
39
“J’aimerais un jour développer ce pouvoir du Roman – pouvoir aimant ou amoureux
[...] Je puis seulement lui demander de remplir à mes propres yeux trois missions. La
première serait de me permettre de dire ceux que j’aime. [...] La seconde [...] ce serait
de me permettre la représentation d’un ordre affectif, pleinement, mais indirectement.
[...] . Enfin et peut-être surtout, le Roman [...] ne fait pas pression sur l’autre (le lecteur);
son instance est la vérité des affects, non celle des idées” (1984d, p. 344-345).

109
Marcelo Jacques de Moraes

Sou indefectivelmente eu mesmo, e é nisso que sou louco: sou louco


porque consisto.40

Para o leitor nostálgico de grandes romances que se torna Barthes


(“um grande romance como, infelizmente, não se fazem mais”, diz
ele, por exemplo, falando de Guerra e Paz),41 a ficção, enquanto
figuração do afeto, é figuração da consistência, de “momentos de
verdade”. “A verdade está na consistência”, escreve em Roland
Barthes por Roland Barthes, citando Poe.42 Como o apaixonado,
o leitor dos Fragmentos pode se sentir louco, mas irremediável e
deliciosamente aderido a si próprio, a seu passado tornado pre-
sente, à sua própria vida, a seu próprio corpo.
Numa forma absolutamente compatível com a que Barthes
­postulou para o seu escriptor moderno, os Fragmentos produzem,
de certo modo, o efeito que produziam aqueles romances que não
se fazem mais. Seu rumor, seu pós-sentido, é, em suma, barthe-
siano e seu protagonista é o leitor. Não foi à toa que se tornou
um best-seller...

Referências
BARTHES, Roland. Écrivains et écrivants. In : _____. Essais
critiques. Paris: Seuil, 1964. p. 147-154.
______. Le plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973.
______. Fragments d’un discours amoureux. Paris: Seuil, 1977.
BARTHES, Roland. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris:
Seuil, 1975.
______. Écrire la lecture. In : ______. Le bruissement de la langue.
Paris: Seuil, 1984a. p. 33-36. (Essais critiques, 4).

40
“Depuis cent ans, la folie (littéraire) est réputée consister en ceci: ‘Je est un autre’: la
folie est une expérience de dépersonnalisation. Pour moi, sujet amoureux, c’est tout le
contraire: c’est de devenir un sujet, de ne pouvoir m’empêcher de l’être, qui me rend fou.
Je ne suis pas un autre: c’est ce que je constate avec effroi. [...] Je suis indéfectiblement
moi-même, et c’est en cela que je suis fou: je suis fou parce que je consiste” (1977, p.
142).
41
“[...] un grand roman, comme, hélas, on n’en fait plus [...]” (1984d, p. 343).
42
“La vérité est dans la consistance” (1975, p. 63).

110
O rumor do autor em Fragmentos de um discurso amoroso

______. La mort de l’auteur. In : ______. Le bruissement de la


langue. Paris: Seuil, 1984b. p. 63-69. (Essais critiques, 4).
______. Le bruissement de la langue. In : ______. Le bruissement
de la langue. Paris: Seuil, 1984c. p. 99-102. (Essais critiques, 4).
______. Longtemps je me suis couché de bonne heure. In : ______.
Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984d. p. 333-346.
(Essais critiques, 4).

111
O que existe para mim: fichas, cores, fragmentos
Lúcia Teixeira

Em A Câmara clara, Roland Barthes introduz sua “nota sobre a


fotografia” com uma espécie de angústia do objeto: do “desejo
ontológico” de querer saber o que seria a “fotografia em si” (BAR-
THES, 1984, p. 12) à impossibilidade de produzir uma classifi-
cação vinculada à sua “essência”, o pensamento do autor vagueia
em busca não só de uma metodologia, mas de uma definição mais
“científica” do objeto. Como se devesse ao leitor explicações que
pudessem justificar a escolha que acabará por fazer, Barthes inicia
sua reflexão pela impossibilidade: o que não se pode fazer, o que
a fotografia não é, o que os estudos sobre fotografia não oferecem.
Em um pequeno parágrafo expõe sua “resistência apaixonada
a qualquer sistema redutor”, referindo-se a alguns modelos de
crítica (o da sociologia, o da semiologia, o da psicanálise) e ao
desconforto de oscilar entre uma linguagem “expressiva” e outra
“crítica”. Estratégia astuciosa do discurso, que parece duvidar
de sua própria possibilidade de pertencer a um universo que lhe
confira sentido, a angústia de Barthes vai desembocar, afinal, na
soberania do sujeito:
Resolvi tomar como ponto de partida de minha busca apenas algumas
fotos, aquelas que eu estava certo de que existiam para mim. [...] Aceitei
então tomar-me por mediador de toda a Fotografia: eu tentaria formular,
a partir de alguns movimentos pessoais, o traço fundamental, o universal
sem o qual não haveria Fotografia (BARTHES, 1984, p. 19).

Essa escolha não pode ser tomada como a única possível? Como
falar do que não existe “para mim”?

As fichas
Em 2003, no inverno parisiense, a exposição R/B: Roland Barthes,
no Centre Georges Pompidou,1 fartava o espectador de imagens e
1
Agradeço a Marcelo Jacques de Moraes por todos os comentários que trocamos, por
todos os interesses comuns e diversos que nos dispersaram e juntaram entre as vitrines
e paredes do Pompidou.
Lúcia Teixeira

de objetos, na tentativa de reconstituir ali, entre dispersão e acú-


mulo, o universo de interesses de Barthes, mas não só isso: havia
também obras de artistas contemporâneos, instalações visuais e
sonoras que tentavam dar conta da “atualidade” do escritor. Como
imagens distantes, revejo a projeção luminosa de palavras que
constituiriam o léxico barthesiano, ou ouço ao longe a sonoridade
do corredor destinado a dar eco à música de sua preferência. Era
uma exposição sem janelas, sem vista para o exterior; fechados
ali, naqueles corredores largos e salas escurecidas, os espectado-
res viviam a plena experiência dos sentidos: a música na entrada
e a voz de Barthes no interior, as instalações, os canhões de luz
jorrando palavras, e o DS19, carro dos anos 30 – um carro dentro
do museu! –, com a função didática de remeter às Mitologias; e
mais as obras de Louise Bourgeois, Arcimboldo, Saül Steinberg,
Cy Twombly, desenhos de André Masson e de Klee, fotografias
da infância do homenageado, de sua presença na universidade, um
Mondrian, a foto “de dois jovens adolescentes, de pé, nus, num
cenário que evoca a Arcádia da Grécia Antiga”, de Wilhelm von
Gloeden. Fragmentos de uma visita que, entretanto, distraiu-se
das imagens mais grandiosas para fixar-se primeiro nos objetos
de trabalho: os manuscritos, os arquivos, as fichas.
Numa parede ao fundo, uma espécie de vitrine rasa e comprida
expunha, protegidas pelo vidro, algumas fichas de Barthes, a
emoção de sua letra bonita e de sua disciplina: literatura, niilismo,
democracia, burguesia, mas também bobagem, utopia, dispersão
do sentido. Anotações em forma de verbetes, indicações biblio-
gráficas, lembretes, roteiros de publicação – eram estes pequenos
fragmentos, ao lado das aquarelas e guaches de Barthes, os objetos
que “existiam para mim” naquele lugar de penumbra.
Percorre-se uma exposição como se entra num texto: de início,
sensações ainda sem discurso, a pulsação de materialidades sig-
nificantes, o sujeito imerso na inquietação do sentido ainda por
vir; em meio a isso, uma repetição, uma ruptura, uma intensida-
de, um descompasso – e o sentido começa a tomar forma. Numa
exposição, como num texto, é preciso selecionar, associar, im-

114
O que existe para mim: fichas, cores, fragmentos

primir descontinuidades, para compreender. Há uma ordem para


o percurso, há seqüências e interrupções, o tempo do movimento
marcado no espaço dividido em salas, núcleos, temas. Para chegar
às fichas, passava-se pelos cadernos de anotações, exibidos em
enorme mesa-vitrine, e dali, dessa mesa-vitrine, podia-se sentar em
pequenas banquetas estofadas, colocar um fone no ouvido e ouvir
as lições de Barthes, ou se podia, substituindo a profundidade pela
lateralidade, observar os desenhos e pinturas em papel. Qualquer
desses movimentos conferia uma direção a determinados sentidos
e fazia outros se perderem. Rememorados, transformados em
memória, apagados alguns, reforçados outros, os movimentos do
percurso produzem agora já um novo sentido para a experiência
irrepetível, a que não existe mais.
No entanto, as fichas estavam lá e me emocionavam – a lembrança
delas ainda hoje, aqui, ecoando. Lá elas me pareciam apenas o
contraponto de um espírito livre: a escritura desafiadora, obscura
às vezes, sinuosa outras, em busca de um tom menos obediente
às regras da academia (o esgotamento do saber, a explicação
rigorosa, a produção de uma verdade), ancorava-se, enfim, no
saber disciplinado, na ordem classificatória, na preocupação com
a minúcia e o rigor. Foi também como contraponto, então, que
pensei nas aquarelas, guaches, desenhos: associadas à escritura,
seriam manifestações desse mesmo espírito livre que precisava,
entretanto, da ordem, do método, da disciplina.
As fichas, o que mais poderiam ser? Em depoimento no catálogo
da exposição, o historiador de arte Jean-Louis Shefer lembra o dia
em que, muito jovem, entrou no ambiente de trabalho de Barthes,
para lhe mostrar, por interferência de um amigo de família, alguns
escritos. Conta o impacto do jovem de 19 anos diante do escritório
sóbrio, a mesa, alguns livros, as canetas ordenadas, os tinteiros
enfileirados, as caixas de sapato recicladas como arquivos de
fichas. Pergunta o jovem: “como as organiza?” E Barthes: “Faço
uma ficha por idéia” (SCHEFFER, 2002, p. 101).
Enganadora simplicidade! Uma ficha por idéia, a idéia adquirindo
aqui seu sentido mais corriqueiro, um lampejo de pensamento,

115
Lúcia Teixeira

um conceito, um tema, um assunto. Das muitas idéias fichadas


(fixadas, para repetir a associação do próprio Barthes) saíram seus
livros, suas aulas. Louis-Jean Calvet conta que, para escrever seu
livro de 100 páginas sobre Michelet, Barthes gastou 12 anos de
trabalho e produziu mais de mil fichas (CALVET, 1993, p.133-
134). O próprio Barthes assim explicava seu método:
Eu copiava nas fichas as frases que mais me agradavam, sob qualquer
pretexto, ou as que, muito simplesmente, se repetiam; classificando essas
fichas um pouco como quem se diverte com um jogo de cartas, não tive
outro caminho a não ser esbarrar numa temática (CALVET, 1993, p. 15-16).

Calvet comenta ainda que Barthes gostava de exibir suas fichas


aos visitantes, “dispondo-as sobre a mesa qual um jogo de cartas,
separando-as por temas, exercendo manualmente uma pesquisa de
estruturação que desenvolveria mais tarde na organização do livro”
(CALVET, 1993, p. 82). O caráter lúdico se associa à disciplina,
para introduzir o prazer no trabalho: “Meu corpo só está livre de
todo imaginário quando reencontra seu espaço de trabalho. Esse
espaço é, em toda parte, o mesmo, pacientemente adaptado ao pra-
zer de pintar, de escrever, de classificar” (BARTHES, 2003, p. 50).
Esse comentário aparece ao lado de três fotos selecionadas para o
livro Roland Barthes por Roland Barthes, em que o autor, em dois
diferentes locais de trabalho, pinta, escreve e classifica o material.
Aos prazeres de “pintar” e “escrever”, junta-se o de “classificar”,
e as três ações não só têm o mesmo valor sintático, mas incluem-
-se também no mesmo espaço semântico e físico do trabalho, que
vem associado ao prazer. Em todas as três fotos há – para usar
uma palavra cara ao autor – uma inflexão do corpo na direção
do trabalho, um movimento de concentração favorecido pela
ordem dos ambientes. Essa gestualidade concentrada é percebida
na coordenação entre olhos, mãos e cabeça; livre do imaginário
que o constitui, concentrado apenas nos movimentos exigidos
pelo trabalho, o corpo, essa presença do homem no mundo, não
é só fisicalidade, é também afetividade e tensividade: pende para
o objeto de desejo. Mas também pode ser que esse corpo que se
deixa fotografar não passe de ilusão: pois, para posar, “fabrico-me
instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipada-

114
O que existe para mim: fichas, cores, fragmentos

mente em imagem”, diz o próprio Barthes (1984, p. 22). Esse corpo


que sofre a inflexão, que chama a atenção para a presença ativa do
objeto, o que significa esse corpo na pose em que o contemplo?
Entregue ao trabalho e ao prazer, incorpora-se pacientemente a
uma certa ordem estética.
É de uma relação estética que se trata e, no entanto, ao contrário
do que diriam os estudiosos de poética herdeiros do mesmo estru-
turalismo do qual nasce o pensamento de Barthes, essa estetização
não advém de uma ruptura, mas de uma repetição, não se faz de
rompimento, mas de iteratividade. Quanto mais repetida a ação,
mais carregada de sentidos: dizer de novo é sempre dizer de outro
modo. Adensa-se o sentido a cada vez que o sujeito cataloga, es-
creve, classifica, tocando no corpo da palavra como quem toca na
madeira para lhe dar forma, como quem cuida de um artesanato:
Vem então o momento em que flutuo: nenhuma vontade de trabalhar; às
vezes, faço um pouco de pintura, ou vou buscar aspirina na farmácia, ou
queimo papéis no fundo do jardim, ou fabrico uma carteira, um escaninho,
uma caixa para fichas; chegam assim quatro horas e novamente trabalho
(BARTHES, 2003, p. 95).

Ainda uma vez, é a enumeração de ações ordinárias que indica


a força perturbadora do cotidiano; aqui, parece que o trabalho se
desvincula do prazer, mas não é assim que se deve ler Barthes,
não na linearidade das sentenças. O trabalho só pode existir na
vontade, é preciso cultivá-la, distraindo as idéias, deixando à de-
riva o desejo: no fogo, na aspirina, nas caixas de fichas. Vagueia
o desejo para, afinal, fixar-se no trabalho e buscar, também aí, no
que se concretiza como escritura, a ordem estética. Esse ritmo
entrecortado, esse andamento feito da retomada de movimentos
repetidos, esse encaixe-desencaixe de fragmentos – é neles que
está o sentido estético da existência.
O cotidiano então não é nem o tédio nem o transbordamento, mas
a possibilidade de flutuar na ordinariedade das ações, para que a
vontade acabe por contagiar todos os gestos. O mesmo Barthes
que, ao piano, em vez de improvisar, era um “fiel decifrador de
partituras” (CALVET, 1993, p. 131), também ao escrever, ao pintar

115
Lúcia Teixeira

(já veremos) faz da iteratividade das ações ordinárias o mecanismo


de busca da perfeição (e, no entanto, com que consciência da im-
perfeição!). Passar do silêncio à música é imprimir um corte num
continuum, criar uma quebra na continuidade por meio da qual
o sentido passa a existir. Era o próprio Barthes quem dizia que
o barulho uniforme, contínuo, era a impossibilidade de sentido,
porque impossível de estruturar. A estrutura – o sentido – exigia
a escolha: silêncio ou fala (BARTHES, 2002, p. 134).
E, no entanto, além e fora da estrutura, ou para dentro dela, mas
fora da escolha binária, é possível insistir na música, repeti-la, mo-
dular essa nova continuidade por meio de tensões, relaxamentos,
intensidades, paradas e retomadas – eis outro modo de fazer existir
o sentido. De um lado, ruptura, de outro, adensamento. Como bem
sabe todo pianista, é preciso repetir e repetir, executar à exaustão
a música que se lê na pauta. Mas repetir não é adestrar, aprimorar,
é mais, é sempre buscar, pois que dizer de novo é sempre dizer
de outro modo.
A oposição entre a música e o silêncio é apenas o mínimo estrutu-
ral a partir do qual se produz o sentido; o sentido além, o sentido
que acontece como encantamento ou como susto, como enlevo ou
como brutalidade, o sentido que me arranca da ordem rotineira e
me projeta num outro quadro de valores e referências, este ­sentido
estético que me põe em nova comunhão com o mundo, que reedita
a conjunção inicial do homem no mundo, é dado aqui pela repe-
tição, pela ordem, pela disciplina metódica que adensa o sentido.
Já Philipe Sollers dizia que a maneira de Barthes organizar sua
vida era um “gesto estético” (CALVET, 1993, p. 277): a divisão
das amizades em classes, os horários dedicados ao trabalho e à vida
mundana, os ambientes adequados a essa ou aquela experiên­cia,
tudo na vida de Barthes tem a marca da classificação e da ordem,
da disciplina. O homem que não sabia operar sem o binarismo,
sabia, entretanto, manejar a estrutura como “garantia (modesta) de
liberdade” (BARTHES, 2003, p. 134). Sabia que, entre um ponto e
outro de uma oposição estrutural, há uma escolha a ser feita, mas
sabia também explorar gradações e sinuosidades, para cultivar a

114
O que existe para mim: fichas, cores, fragmentos

possibilidade de fazer deslizarem os sentidos em variadas direções.


O texto “bonito”, então, o texto “bem escrito” é a única forma de
dar conta dessa deriva dos sentidos, o texto que parte da ordem das
fichas para perder-se na desordem estética do corpo da palavra.
No Carnet de voyage en Chine, pequena caderneta azul em espiral,
em que, com letra rápida e gesto apressado, registrou suas impres-
sões da viagem à China, Barthes reanima-se com a descoberta da
soberania do significante. Em viagem ao Japão, já havia percebido:
“um sistema quase inteiramente imerso no significante funciona
sobre um recuo incessante do significado” (BARTHES, 1995, p.
96-97). Na ocasião do lançamento de O império dos signos, dirá:
“Este ensaio se situa em um momento da minha vida em que senti
a necessidade de entrar inteiramente no significante, ou seja, de
me desprender da instância ideológica como significado, como
risco de retorno do significado, da teologia, do monologismo, da
lei” (BARTHES, 1995, p. 98).
Essa inflexão para o significante talvez explique sua dispersão
para o desenho, a pintura em guache e aquarela sobre papel. Nas
cadernetas, nas folhas timbradas da École, nas cartolinas recor-
tadas, nas pequenas folhas pautadas ou quadriculadas, em todos
esses suportes, os traços que materializam a visualidade da lin-
guagem escrita logo passarão pelo acréscimo da cor e das formas
desenhadas, para alcançar a experiência plena da sensualidade
dos ­materiais.

As cores
A relação entre desenho, pintura e palavra obedece, em Barthes, ao
mesmo movimento de selecionar um ponto da dualidade estrutural,
para, em seguida, atravessar a oposição (pela deriva, pelo deslize)
e encontrar um terceiro termo, que empurre, por um tremor, um
abalo, a coerção da estrutura para um lugar de liberdade, uma
nova região de sentidos. Ainda uma vez, é a idéia da dispersão
que permite falar em adensamento. Transitar de um significante
a outro, testar diferentes experiências sensíveis de escritura, é
eliminar uma certa idéia de escolha que implica a ou b e afirmar
115
Lúcia Teixeira

o desejo de soma, de acúmulo: a e b. Ao analisar os trabalhos de


Cy Twombly, Barthes anuncia: “De repente, porém, surge algo
novo, um desejo: o desejo de fazer a mesma coisa: dirigir-me à
outra mesa de trabalho (não a mesa da escrita), e pintar, traçar”
(BARTHES, 1990, p. 173).
Duas mesas, não importa se materialmente duas mesas, mas dois
modos de trabalho, uma diferença, portanto; mas de que trata
essa diferença? De duas gestualidades, de dois corpos que se
concentram diferentemente diante do papel, de dois materiais, de
dois modos de ocupar o suporte. No entanto, a cor interessa-lhe
primeiramente pelo nome:
Quando compro tintas, guio-me apenas por seus nomes. O nome da cor
(amarelo-indiano, vermelho-persa, verde-celádio) traça uma espécie
de região genérica no interior da qual o efeito exato, especial, da cor é
imprevisível: o nome é então a promessa de um prazer, o programa de
uma operação: sempre há futuro nos nomes plenos (BARTHES, 2003,
p. 146).

Sempre há futuro, sempre há promessa de sentidos na ausência


de lugares fixos, na possibilidade de fragmentar, de separar, esse
gesto de poder sobre o mundo: separo, divido, classifico para com-
preender, para tomar posse. Depois posso distorcer, faço do nome
uma centelha, um começo. Barthes trabalhava em duas mesas,
executava dois trabalhos diferentes, mas juntava os materiais em
sua nomeação. Ao permitir que a materialidade de um significante
provocasse a outra materialidade, fazia do verbal um tremor e da
cor uma surpresa: o acidente, o acaso.
As aquarelas e guaches que produziu na década de 1970, justa-
mente quando começou a interessar-se como crítico pela pintura e
pelo desenho, constituem um conjunto já algumas vezes exposto,
não inteiramente, mas em amostragens bastante significativas.
Na exposição de Paris, 30 desenhos e pinturas sobre papel estão
reproduzidos no catálogo e é sobre essa amostra que me detenho.
Jean-Marie Floch, em seu estudo sobre a escritura e o desenho de
Barthes (FLOCH, 1985), propõe que os traços e manchas de que se
compõem seus desenhos sejam integrados ao conjunto de sua obra.

114
O que existe para mim: fichas, cores, fragmentos

Como bom estruturalista, Floch vai reduzir o sentido do trabalho


de Barthes a duas oposições, uma axiológica, entre morte e vida,
outra aspectual, entre iteratividade e duratividade. Observa que,
em O Império dos signos, há uma oposição aspectual constante
que organiza tanto os processos temporais quanto os espaciais,
tanto os textos sonoros quanto os visuais e/ou gestuais: são sempre
processos caracterizados pela iteratividade. Da mesma maneira,
conclui que a escritura plástica de Barthes privilegia a disposição
espacial, privilegiando a mesma organização iterativa.
É preciso dizer que, quando afirmo que Floch reduz o pensamento
de Barthes a duas oposições, não uso a idéia de redução num senti-
do depreciativo: reduzir, aqui, é ser capaz de disciplinar o universo
de sentidos proposto por Barthes (e o que mais faz um analista?)
e oferecer um mínimo de sentido a partir do qual se pode penetrar
num universo rico, complexo e aberto, oferecer, portanto, a opor-
tunidade de agir como Barthes: distinguir, diferenciar, ordenar e
depois fazer deslizar o sentido, fazer provocações à disciplina do
binarismo estrutural.
Se observarmos, por exemplo, as pinturas – e vamos chamar
indistintamente de pinturas as aquarelas e guaches, uma vez que
o catálogo não identifica a técnica de cada reprodução –, não
fugiremos à tentação de estabelecer dois grupos de trabalhos: no
primeiro, há uma massa multicolorida, constituída de manchas
em contato, organizada como uma figura geométrica, em geral
um retângulo de bordas irregulares, centralizada no suporte; as
formas estão agregadas, as cores, agrupadas como volumes de
cor. No segundo grupo, as formas coloridas se soltam umas das
outras, o suporte aparece entre as manchas de cor, “respira” na
composição, que vem, então, “aerada” pelo branco do papel. É
Barthes (1990) que, ao analisar Twonbly, usa a idéia de “telas
arejadas”, em que o suporte “respira” nos espaços que circulam
em torno dos gestos do pincel.

115
Lúcia Teixeira

Figura 1 – Pintura nº 3 do catálogo. Extraida do catálogo da


exposição do Centre Pompidou. Edições do Centre Georges
Pompidou, Seuil, Paris, 2002 (p. 140).

114
O que existe para mim: fichas, cores, fragmentos

Figura 2 – Pintura nº 17 do catálogo. Extraida do catálogo da


exposição do Centre Pompidou. Edições do Centre Georges
Pompidou, Seuil, Paris, 2002 (p. 154).

Facilmente podemos identificar aqui uma oposição, no plano de


expressão das obras, entre uma organização espacial concentrada
e outra dispersiva, a que corresponde uma oposição de conteúdo
entre disciplina e deriva. A riqueza do trabalho, entretanto, não
está em aí se oferecer ao analista uma oposição que, num trabalho
explicativo, minucioso, se poderia facilmente associar ao modo
de o pensamento de Barthes manifestar-se em sua escritura. Era
Barthes quem queria “desfazer, destruir, dispersar o discurso dis-
sertativo em proveito de um discurso descontínuo” (BARTHES,
1995, p. 85). A riqueza do trabalho plástico de Barthes está em
desfazer, pelo amadorismo do ato, tanto a formalização da com-
posição plástica quanto a obrigação de analisá-la tecnicamente.
Comecemos por dizer: as pinturas de Barthes são belas e sensíveis.
Ora, nada existe nessa frase de louvável do ponto de vista da escri-
tura acadêmica. Digamos em seguida: as pinturas de Barthes não
são manifestações plásticas de qualidade artística, que envolvam,
por exemplo, as noções de sublime ou de ruptura. Segunda frase a
115
Lúcia Teixeira

ser menosprezada num texto acadêmico. E, no entanto, essas são


as frases que me motivam a escrever, isso é o que “existe para
mim”, é de onde posso começar.
Fiz o percurso: segui mesmo o método de Barthes, observei,
fichei, anotei, procurei depois as reiterações, a afirmação de uma
oposição, de uma idéia que pudesse servir de fio condutor do pensa-
mento, da análise. Observei as formas sinuosas, circulares, as cores
em combinações aparentemente aleatórias. Notei a diferença entre
duas séries de pinturas, uma com as formas agregadas, contínuas,
outra em que as formas, as manchas, os traços vão se soltando,
se descontinuando, para produzir uma idéia de emaranhado, de
arabescos às vezes. Identifiquei aí a oposição entre continuidade e
descontinuidade, concentração e dispersão. Fui adiante, associando
os procedimentos ao significado: a concentração corresponderia
à disciplina, a dispersão, à deriva, ao deslizamento dos sentidos.
No entanto, alguma coisa me incomoda nessa objetivação da
análise: é como se caísse numa armadilha. Como se destruísse o
caráter lúdico desse trabalho, como se matasse o prazer. Não cairia
aqui em outra armadilha, a do intelectual que recusa a função de
seu trabalho e acolhe a voz do senso comum, que acha que vamos
além do texto, para ajudar a destruir o prazer da leitura, logo nós
que vivemos desse gosto! Mas é preciso desconfiar da seriedade
da análise, dos óculos na ponta do nariz à procura de um traço que
segmente um outro, uma mancha que se sobreponha a outra, um
volume cromático que crie efeitos de sombra, uma margem maior
que outra, uma irregularidade de contorno – é preciso desconfiar
de Barthes. Tudo isso posso encontrar em suas pinturas, da mesma
maneira que poderia usar o estudo que faz de Twombly para, apro-
veitando as categorias com que opera, definir seu próprio trabalho
plástico como um embate entre o Rarus e o pleno, esvaziamento
e preenchimento, depuração e saturação.
Parece-me, entretanto, que Barthes brincava. Como posso obser-
var o jogo cromático se as tintas eram compradas “pelo nome”?
Como poderia analisar a utilização do branco do suporte como
matéria significante se o timbre da École me mostra o aprovei-

114
O que existe para mim: fichas, cores, fragmentos

tamento acidental do papel? Como seria possível falar do efeito


de experimentação desses trabalhos se eles são verdadeiramente
experimentação? Prefiro então dizer que os trabalhos são belos,
sensíveis, interessantes. Dizer nada. (Saberá o leitor que disse
tudo e agora desdigo. Saberá, talvez, avaliar minha incapacidade,
minha insegurança. Essa minha oscilação é, entretanto, a forma
possível de falar desse trabalho plástico de Barthes: brincadeira,
experimentação, mas também outra forma de escritura, outra
forma de afirmar seu método, seu pensamento. Enquanto parava
de escrever para pintar, Barthes continuava a trabalhar, enquan-
to deixava o pincel aproximar-se do papel, tocá-lo, marcá-lo,
preenchê-lo de cores, de arabescos, enquanto isso, era da vida
dos signos que continuava a tratar, era disso que falava sempre,
vivendo a experiência do corpo na palavra, no rabisco, na cor. Seu
desafio permanente era o da escritura, era o de desconstruir o lugar
penoso do trabalho pela introdução do prazer. Seus desenhos, suas
pinturas são um modo de dizer de novo, mas de outra maneira, o
que escrevia: corte e iteratividade. Ainda: pode ser que devesse
desconfiar dos depoimentos de Barthes. Como na pose do retrato,
ele constrói um personagem. Mas se é só desse personagem que
podemos falar, sempre...)

Os fragmentos
Chantal Thomas, em texto publicado no catálogo da exposição do
Pompidou (THOMAS, 2002), toma aquilo que na obra de Barthes
é borda, margem, para analisar a função e o sentido do fragmento,
para ela um corte que quebra o avanço retórico do discurso, sua
tendência à ênfase. O corte abre abruptamente para uma dúvida,
uma questão, uma falta: o momento em que se pensa em outra
coisa, ou na mesma coisa, mas de outro modo; fragmentar, assim,
é permitir uma mobilidade, uma escolha entre várias disposições.
Romper a continuidade do ato de escrever com a ação de pintar, por
exemplo, é impor uma quebra, para respirar, aerar o pensamento e
retornar a ele de outro modo. Ao falar de sua pintura, dizia Barthes
(2003, p. 109): “tenho o gosto [...] do pormenor, do fragmento,
do rush”). Sobre o que escrevia: “a pertinência [...] vem apenas
115
Lúcia Teixeira

nas margens, nas incisas, nos parênteses, de viés: é a voz off do


sujeito” (p. 87).
Não são a mesma coisa, o fragmento e as margens. Um se refere
a um modo de se apropriar da escrita, da linguagem. Outro diz
respeito ao que, lá no escrito, no pintado, está encoberto pelo
principal, pelo que chama a atenção. O fragmento é a parada, a
descontinuidade, as margens são a continuidade, o excedente.
Ambos têm, entretanto, um caráter semelhante: são pouco nobres.
Prefere-se a dissertação contínua ao texto interrompido, elíptico,
pouco conclusivo. Prefere-se o centro, o principal, ao acessório.
Barthes preferia o que não se prefere e é por isso que obriga ao
gesto da oscilação, porque é preciso encontrar, para além ou para
fora da linearidade, os muitos modos de produzir um pensamento.
No entanto, há uma linearidade, fragmento e margem sendo apenas
um tremor no texto, uma aeração, um Rarus na massa do discurso,
dos volumes, dos traços. Mas é por esse espaço vazio, por esse
corte que o corpo do texto respira. Logo, existe.
A obra de Barthes só pode ser lida e compreendida se seu méto-
do de trabalho for reiterado na leitura. Ler e reler, anotar, fichar,
marcar, separar, reler, juntar, então fragmentar e recomeçar. Não
há fim, não há começo, há movimento, o tempo todo, em todas as
direções. Por isso, talvez, a “palavra-maná” de Barthes seja corpo
(BARTHES, 2002, p. 146): por saber que ali está a “semente do
desejo” (p. 85), única possibilidade de insatisfação, de rebeldia,
de procura. A fragmentação é esse gesto do corpo de recusar a
profusão, a proliferação, o excesso.
Na exposição do Pompidou, o percurso se fazia entre fragmen-
tos, não só do que fora produzido por Barthes (cadernos, notas,
desenhos, voz, frases), mas também das partes dele e dos outros
que ali estavam (Louise Bourgeois, Arcimboldo, Saül Steinberg,
Cy Twombly, André Masson, Klee, Mondrian, von Gloeden), e
ainda dos objetos de que se apropriara ou de que se servia, ali (o
carro, as estantes, as vitrinas). A curadoria conseguia repetir, na
montagem da exposição, o método de Barthes, sua visão larga e

114
O que existe para mim: fichas, cores, fragmentos

curiosa, dispersiva, submetida a um pensamento estruturante, a


busca da concentração, e de novo o deslize e o retorno.
Já no título da exposição, a referência imediata ao título de uma
das obras de Barthes, S/Z, soa como provocação: R/B, em letras
grandes, volumosas, pretas, e, em vermelho, letras menores, abai-
xo do B, Barthes, acima do R, Roland, toda essa disposição não
poderia ser apenas “o demônio da analogia” (BARTHES, 2002, p.
56). Mas a analogia é inescapável, não há sentido sem ela: “assim
que uma forma é vista, é preciso que ela se assemelhe a algo: a
humanidade parece condenada à Analogia” (p. 56). Pois então o
primeiro sentido do título da exposição é esse, o da analogia com
o título do ensaio sobre a novela de Balzac (que também signifi-
cava mais, claro, do que o jogo com o par opositivo de fonemas).2

Figura 3 – Reprodução da capa do catálogo. Extraida do ca-


tálogo da exposição do Centre Pompidou. Edições do Centre
Georges Pompidou, Seuil, Paris, 2002.

2
“Porque eu quis dar um monograma que emblematizasse toda a novela de Balzac, sendo
S a inicial do escultor Sarrasine, Z a inicial de Zambinella, o travesti, o castrado. [...]
de um ponto de vista muito balzaqueano, um pouco esotérico, deve-se ter em conta os
malefícios da letra Z, que é a letra do desvio, a letra desviada” (BARTHES, 1995, p.
121).

115
Lúcia Teixeira

A barra, em lingüística, separa, opõe. R/B: R é consoante fricativa


vibrante; B é oclusiva bilabial, diferem no modo e no ponto de
articulação. Roland diferencia-se de Barthes? Aproximam-se os
fonemas na sonoridade, ambos vibram, fazem vibrar o ar quando
de sua passagem pelas cordas vocais. Roland é o mesmo Barthes?
R e B são símbolos gráficos quase semelhantes, basta emendar
uma curva fechada na perna do R e se fará um B: Barthes domina
Roland?
Não chegando a ser 300, Barthes não eram dois. Não cabe nas
questões em que a resposta deve ser necessariamente a escolha
de uma posição. É preciso, então, abolir a barra, deixar que cada
termo deslize para o outro lado, rumoreje nessa passagem, roce
o corpo gráfico e sonoro do outro nesse deslizamento. Indo mais
além, será preciso, na leitura da obra de Barthes, abolir todas as
barras – mas não sem antes reforçá-las, recuperar seu valor de
distinção, curvar-se à coerção que impõem. Depois, então, esgarçar
a barra, forçá-la, fazê-la rota, frágil, mexer nela, acabar com ela.
Se falamos de uma obra que gira em torno de uma ética do signo, é
preciso começar pela barra significante/significado. Abolir a barra,
aqui, será expandir o signo em lateralidade, em profundidade, dar-
-lhe movimento, graça, algum peso, sinuosidade, soprar-lhe o ar da
vida. Para isso, libertar o signo da relação naturalizada, analógica,
explorar novas regiões de produção de sentidos. Barthes submetia-
-se à pulsação da matéria: a cor aderia ao suporte, tocar a página
branca com o pincel embebido na tinta era já expressar-se; e a tinta
era também a palavra que lhe dava nome; e a palavra, então, era o
começo e o fim. Mas não há fim, não há começo, há movimento.
Não há origem nem finalidade nos textos, sempre o que há, para
que se fale o novo, o nunca antes, é, só pode ser, experimentação
– amadorismo, risco, audácia. R/B só existe como RB se a escolha
é o salto. E o salto tanto pode ser... mas não é possível concluir
com mais um binarismo! O salto é uma inconclusão.

114
O que existe para mim: fichas, cores, fragmentos

Referências
ALPHANT, Marianne; LÉGER, Nathalie (Dir.). R/B: Roland
Barthes. Catalogue de l´exposition R/B. Paris: Seuil, 2002.
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
______. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
______. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1990.
______. O grão da voz. Rio de Janeiro: F. Alves, 1995.
______. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação
Liberdade, 2003.
CALVET, Louis-Jean. Roland Barthes: uma biografia. São Paulo:
Siciliano, 1993.
FLOCH, Jean-Marie. L´écriture et le dessin de Roland Barthes. In:
FLOCH, J.-M. Petites mythologies de l´oeil et de l´esprit: pour une
sémiotique plastique. Paris: Hadès ; Amsterdam: Benjamins, 1985.
DE LA FORTERIE, Maud. Roland Barthes: fragments savoureux.
Art Actuel, Paris, p.30-31, janv./févr. 2003.
GUÉGAN, Stéphane. Roland Barthes: mystique mytologue. Beaux
Arts, Paris, p. 35, févr. 2003.
SCHEFER, Jean Louis. Le bloc de crystal. In: ALPHANT, Ma-
rianne; LÉGER, Nathalie (Dir.). R/B: Roland Barthes. Catalogue
de l´exposition R/B. Paris: Seuil, 2002.
THOMAS, Chantal. L´orée de l´écriture. In: ALPHANT, Marian-
ne; LÉGER, Nathalie (Dir.). R/B: Roland Barthes. Catalogue de
l´exposition R/B. Paris: Seuil, 2002. p. 78-80.

115
A prática da aula nos Cursos do Collège de France

Leyla Perrone-Moisés

Em sua Aula Inaugural do Collège de France,1 Roland Barthes


traçava as linhas gerais do ensino que pretendia ministrar naquela
casa. Infelizmente, pouco tempo de vida lhe restava para cumprir
aquele programa. Apenas três cursos foram oferecidos por ele, de
1977 a 1980, anos que corresponderam ao auge de sua fama como
escritor, mas também a uma fase depressiva de sua vida pessoal,
caracterizada pelo luto por sua mãe e a perda do entusiasmo em
sua escritura.
Dois desses cursos encontram-se agora publicados: Comment
vivre ensemble e Le Neutre (Como viver junto e O Neutro).2 Os
leitores podem então conferir, com mais de 20 anos de atraso, a
realização prática dos princípios enunciados na Aula. É preciso
lembrar, inicialmente, que o texto desses cursos é constituído por
fichas preparatórias dos mesmos, apresentando variados estados
de redação, desde a simples nota ou referência até trechos mais
extensamente redigidos. A transcrição dessas fichas foi completada
com o auxílio de gravações sonoras dos cursos. Assim sendo, se
nesses dois volumes reencontramos pontualmente a inteligência,
a originalidade de visão, o humor e a auto-ironia que caracteriza-
vam o Mestre, não encontramos neles a plenitude de sua escritura.
A diferença entre o curso e o livro foi assinalada por ele mesmo.
De fato, alguns de seus cursos da École Pratique des Hautes Étu-
des haviam sido publicados, posteriormente, como livros: S/Z,
Fragmentos de um discurso amoroso. A transformação em livro
exigira uma reescritura das notas utilizadas nas aulas e, mais do que
isso, uma reestruturação das mesmas, implicando tanto expansões
como cortes e sínteses, em função do projeto geral de cada livro.
Por isso, Barthes alertava os ouvintes de suas aulas do Collège:
1
Cf. BARTHES (1978, 1980).
2
Cf. BARTHES (2002a, 2002b, 2003a, 2003b).
Leyla Perrone-Moisés

“O livro sobre o discurso amoroso é talvez mais pobre do que


o seminário, mas eu o considero mais verdadeiro” (BARTHES,
2002a, p. 178).
A Aula Inaugural tinha sido pronunciada no dia 7 de janeiro de
1977. O primeiro curso, Comment vivre ensemble, começou logo
em seguida, no dia 12 de janeiro, e corresponde ao ano letivo de
1976-1977. A proximidade temporal em relação à Aula faz com
que esta seja freqüentemente evocada no curso. Sente-se mesmo,
da parte de Barthes, a preocupação em honrar a obrigação assumi-
da, e realizar os propósitos anunciados na Aula. Assim, a primeira
aula opõe o método à paidéia ou cultura. O método é o “enca-
minhamento para um objetivo”, “um caminho reto” em direção a
resultados. A cultura, no sentido nietzchiano de “violência sofrida
pelo pensamento sob a ação de forças seletivas” (DELEUZE,
1962), corresponde à paidéia dos gregos, educação, formação no
sentido largo, percurso livre no campo do saber. O que Barthes
explicita: “Trata-se pois, aqui, pelo menos como postulação, de
cultura e não de método. Nada esperar acerca do método – a me-
nos que se tome a palavra em seu sentido mallarmaico: ‘ficção’:
linguagem refletindo sobre a linguagem” (BARTHES, 2002a, p.
34). Essa concepção do método estava expressa na Aula, quando
ele dizia que, em seu ensino, o método não seria heurístico, isto
é, visando a produzir deciframentos e apresentar resultados, mas
seria, como propunha Mallarmé, uma ficção. Lembremos que o
subtítulo do curso é: Simulações romanescas de alguns espaços
quotidianos (grifo nosso).
Barthes dizia ainda, na Aula (1980), que “a operação fundamental
desse método de desprendimento [seria], ao escrever, a fragmen-
tação, e ao expor, a digressão ou, para dizê-lo por uma palavra
preciosamente ambígua: a excursão”. Ora, o curso Comment
vivre ensemble é constituído de fragmentos, e desenvolve-se por
digressões, sem chegar (sem querer chegar) a nenhum resultado
concreto. Isso porque o objetivo do curso é reconhecido, desde o
início, como inalcançável ou irrealizável: a utopia da idiorritmia.
O projeto utópico de Barthes seria o de uma pequena comunidade

132
A prática da aula nos cursos do Collège de France

móvel, na qual cada um dos membros pudesse viver ao mesmo


tempo em companhia e em liberdade. A questão seria a seguinte:
“O grupo idiorrítmico é possível? Pode haver uma comunidade de
seres sem Finalidade e sem Causa?” A resposta é evidentemente
negativa. A vida em comunidade tende a se apoiar em crenças e
regras comuns, anulando as diferenças individuais. Por isso, o cur-
so se coloca de antemão como uma proposta romanesca, utópica.
Na escolha desse tema, Barthes realizou outra das propostas da
Aula: a de que o assunto de cada curso correspondesse a uma
fantasia (ou fantasma) pessoal. No início desse primeiro curso,
ele remete os ouvintes à Aula: “Cf. Aula inaugural sobre o ensino
fantasmático. Fazer partir a pesquisa (cada ano) de uma fantasia”
(BARTHES, 2002a, p. 34). (Referência que será repetida no se-
gundo curso: “Lembrar aula inaugural [...]” (BARTHES, 2002b,
p. 38). Essa afirmação polêmica é então retomada: “a primeira
força que posso interrogar, interpelar, aquela que conheço em
mim, embora através do logro do imaginário: a força do desejo, ou
para ser mais preciso (já que se trata de uma pesquisa): a figura da
fantasia”. A fantasia estaria na origem da cultura, como geração de
forças, de diferenças. A utopia da idiorritmia é apresentada como
um fantasma pessoal do professor.
Se o curso não chega a nenhuma conclusão, ou à conclusão de que
seu objeto é impossível, a “excursão” que ele faz é fascinante: so-
mos levados a refletir sobre (ou a sonhar com) a vida dos eremitas e
monges do Monte Atos, na alta Idade Média, os mosteiros budistas
do Ceilão, a vida solitária ou comunitária, em textos literários tão
diversos como Robinson Crusoé de Defoe, Pot-Bouille de Zola, A
montanha mágica de Thomas Mann ou La Séquestrée de Poitiers
de Gide. O caráter fantasmático da escolha é posto em evidência
no que concerne aos mosteiros do Monte Atos:
É preciso entender que, para haver fantasia, é preciso que haja cena
(roteiro), portanto, lugar: Atos (onde nunca estive) fornece um misto de
imagens: Mediterrâneo, terraço, montanha (na fantasia, a gente oblitera;
aqui, a sujeira, a fé). No fundo, é uma paisagem. Eu me vejo lá, num ter-
raço, o mar ao longe, as paredes caiadas [...] (BARTHES, 2002a, p. 37).

133
Leyla Perrone-Moisés

Não chegar a nenhuma conclusão é coerente com o desígnio prin-


cipal, enunciado na Aula, lutar contra o poder que é próprio da
linguagem. A preocupação então expressa é retomada no curso:
“Por minha linguagem, quais são as linguagens que eu rejeito?”
Trata-se, sempre, de neutralizar os poderes que se alojam nos dis-
cursos, em especial no discurso magistral. Seu próprio discurso é
situado na “perspectiva do desejo, e não da lei”, o mestre sendo
um desejante, não um guru (BARTHES, 2002b, p. 61). Um dis-
curso “à margem da margem, lá onde deve estar, infinitamente, o
verdadeiro combate” (BARTHES, 2002b, p. 51).
A busca desse discurso desprovido de poder é, também, a renúncia
ao domínio exercido sobre um tema ou sobre seus ouvintes:
Assim, quanto mais livre for esse ensino, tanto mais será necessário
indagar-se sob que condições e segundo que operações o discurso pode
despojar-se de todo desejo de agarrar. Esta interrogação constitui, a meu
ver, o projeto profundo do ensino que hoje se inaugura (BARTHES, 1980,
p. 10).

O despojamento do “desejo de agarrar”, que Barthes colhera no


ensinamento oriental, taoísta ou zen, é um topos de sua obra tar-
dia, servindo tanto para o tema do amor como para o do ensino.
No caso do curso sobre o Neutro, ele reconhece que se trata de
uma aporia: falar do Neutro num curso é transformá-lo em lei;
não falar seria renunciar ao próprio curso. E ele lembra que, na
Aula, é a própria literatura que é “a representação do mundo como
aporética” (BARTHES, 2002b, p. 102).
A questão do método, colocada na primeira aula, é retomada no
curso três meses mais tarde. O método é então considerado como
dependente de “um psiquismo fálico de ataque e de proteção”,
enquanto o não-método pertenceria ao “psiquismo da viagem,
da mutação extrema (borboletear, sugar o pólen)” (BARTHES,
2002b, p. 180). A função do professor vê-se modificada, porque
ele se apresenta apenas como o fabricante de um quebra-cabeças
que os alunos devem montar: “O curso ideal seria talvez aquele
em que o professor – o locutor – seria mais banal do que seus
ouvintes, aquele no qual o que ele diz estaria em retração com

134
A prática da aula nos cursos do Collège de France

respeito ao que suscita” (p. 181). No curso sobre o Neutro, ele


definirá o seu lugar como “fora da maestria”, já que ele “não ensina
o todo”, mas é “um artista” no sentido nietzschiano do termo (p.
97-98). A reflexão sobre a “relação de ensino” vinha de antes, na
obra de Barthes. Desde os seminários da École, ele desenvolvia
considerações sobre a maneira de “desmontar a maestria”, de criar
com os alunos uma relação mais baseada nos desejos do que nos
saberes, na produção do que na reprodução.3
O seminário consecutivo a esse primeiro curso, e que tinha por títu-
lo Tenir un discours, também é posto em relação com as propostas
da Aula, de modo explícito. No caso desse seminário, a fantasia
desencadeadora seria de outra espécie. “Persigo a exploração de
uma fantasia de irritação: a linguagem do outro [...], na medida em
que ela irrita, isto é, na medida em que ela subjuga, a linguagem
entrando [...] numa relação de força na qual me sinto ameaça-
do” (BARTHES, 2002a, p. 188). Por outro lado, esse seminário
corresponderia àquela nova semiologia anunciada na Aula, uma
semiologia que é “a desconstrução da lingüística” (BARTHES,
1980, p. 30). O que é aí buscado é um novo tipo de análise de
discurso, que levaria em conta as táticas, os subentendidos, em
suma, os afetos ditados pelo inconsciente do locutor (BARTHE,
2002a, p. 211).
Nem a “excursão” através das diversas formas de viver, junto ou
só, chega a uma conclusão, nem o novo tipo de análise de d­ iscurso
praticado no seminário serve como método científico, pois ele
se limita a jogar, de modo brilhante e prazeroso, com supostas
unidades de sentido chamadas, não sem humor, de “tactemas” ou
“explosemas”. O intertexto criado com Andromaque de Racine,
assim como os recursos à retórica de Perelmann e aos princípios
da psicanálise, agem como inspiradores da análise e não como
verdadeiras referências “científicas” ou propostas de método.
A psicanálise é comparada a “um grande véu pintado: a maia”
(BARTHES, 2002a, p. 218). A maia, no budismo, representa o
mundo como ilusão.
3
Cf. “Écrivains, intellectuels, professeurs” (1971) e, sobretudo, “Au séminaire” (1974),
In: BARTHES (1984a, 1984b).

133
Leyla Perrone-Moisés

Assim, outro ponto firmado na aula inaugural, e posto em prática


nos cursos do Collège é o que se refere à negação da metalingua-
gem:
A semiologia, embora, na origem, tudo a isso a predispusesse, não pode
ser ela mesma uma metalinguagem. É precisamente ao refletir sobre o
signo, que ela descobre que toda relação de exterioridade de uma lin-
guagem com respeito a outra é, com o passar do tempo, insustentável
(BARTHES, 1980, p. 37).

A recusa da metalinguagem corresponde, também, ao abandono da


ambição totalizadora, da conclusão, da “última palavra”. A opção
pela liberdade individual implica a aceitação da visão parcial e a
adoção da forma fragmentária de exposição.
Em vários momentos dos cursos do Collège, Barthes se refere ao
estruturalismo como uma fase que ele não renega, mas deixou para
trás. Em Como viver junto, ele coloca lado a lado uma história
medieval de eremita e um trecho da Busca proustiana, mostrando
que ambos os textos têm a mesma estrutura, que ele chama da
“loucura a dois” (BARTHES, 2002a, p. 106-110). Toda a prática
da análise estrutural da narrativa é mobilizada para isso, mas sem
a ambição estruturalista de chegar a um universal. Em outra aula
do curso, ele lembra o “esquema atuacional” de Greimas, mas é
para criar a categoria nova (e de certa forma derrisória) de “atuante
dejeto” (p. 121). Na análise do “discurso Charlus” ele procede “à
maneira estrutural”, mas observando, desde o início, que não se
trata da “descrição de um tipo (de uma gramática)”, porque esse
discurso é único, isto é, um Texto, no sentido forte do termo. Trata-
-se de “partir do conhecido [a análise estrutural] para abrir uma
porta dando sobre o menos conhecido [o aparecimento da noção
de força no campo da análise]” (p. 204-205).
Barthes teve de fornecer, ao Collège de France, o resumo de cada
um de seus cursos (BARTHES, 2002a, p. 221-222). É curioso
verificar como, ao fazer esse resumo burocrático, ele consegue
tornar os cursos mais aceitáveis pela academia sem, no entanto,
ocultar sua originalidade. Logo no início do resumo, Barthes
chama a atenção para a realização daquilo que fora proposto na

136
A prática da aula nos cursos do Collège de France

Aula, mas substitui a palavra “fantasme” por outra mais neutra,


“imaginaire”: “Na aula inaugural desta cátedra, postuláramos a
possibilidade de ligar a pesquisa ao imaginário do pesquisador.
Desejamos, este ano, explorar um imaginário particular: não todas
as formas de ‘viver junto’ (sociedades, falanstérios, famílias, ca-
sais) mas principalmente o ‘viver junto’ de grupos muito restritos,
nos quais a coabitação não exclui a liberdade individual”.
Quanto ao método, ele não diz aí que ele é “uma ficção”, mas
apresenta-o de modo muito menos polêmico: “O método adotado
foi, ao mesmo tempo, seletivo e digressivo” (BARTHES, 2002a,
p. 221). “Seletivo” faz calar, de antemão, as restrições que se
poderiam opor a “digressivo”. Também é sublinhado o aspecto
“científico” do método: “Conforme aos princípios do trabalho
semiológico, procuramos destacar, na massa de modos, hábitos,
temas e valores do ‘viver junto’, traços pertinentes, por isso mes-
mo descontínuos, e que poderiam ser subsumidos, um a um, sob
uma palavra de referência” (p. 221). E a conclusão, esperada pela
instituição, é assim explicada, e adiada: “Não retomamos esses
temas numa síntese geral. [...] Este curso só podia desembocar
num problema de ética da vida social, que será retomado sob outra
forma no curso do próximo ano” (p. 222).
O seminário sobre o “discurso Charlus” também é mais conven-
cional no resumo do que na prática do curso. De maneira muito
clássica, Barthes começa por uma formulação de ordem geral,
axiomática, para justificar a pertinência da pesquisa: “A linguagem
humana, atualizada em ‘discurso’, é o teatro de uma prova de força
entre parceiros sociais e afetivos. É essa função de intimidação
da linguagem que quisemos explorar”. O texto se encerra pela
referência de dois clássicos da literatura francesa: Proust e Raci-
ne. Esse resumo demonstraria, se necessário fosse, o domínio da
retórica clássica por Barthes.
O curso sobre o Neutro foi ministrado no ano letivo de 1977-1978.
O resumo deste segundo curso, como o do primeiro, o torna menos
esotérico. Esse resumo (BARTHES, 2003b, p. 261-262) se inicia,
astutamente, pela expressão tão pouco barthesiana “é natural

133
Leyla Perrone-Moisés

que”: “É natural que a semiologia literária se deixe guiar em suas


pesquisas pelas categorias tratadas pela lingüística. Do Neutro,
gênero gramatical, induzimos uma categoria muito mais geral à
qual demos o mesmo nome mas tentamos observar e descrever”.
Sem falsear a descrição do conteúdo do curso, Barthes o torna,
entretanto, mais claro e assertivo do que na verdade ele foi. “Ten-
tamos fazer entender que o Neutro não correspondia forçosamente
à imagem chata, profundamente depreciada que dele tem a Doxa,
mas podia constituir um valor forte, ativo”. Também é sublinhado
que o professor dialogou com os ouvintes e levou-os a “participar
ativamente do trabalho do curso”. As palavras “ativo” e “atividade”
são, evidentemente, do agrado da instituição que solicita o resumo.
Na prática, trata-se ainda de realizar as propostas da aula inaugural,
bem menos palatáveis para a Academia. Trata-se, como sempre
e desde a primeira aula, da recusa do dogmatismo e, portanto, da
própria fala magistral: “Instituição, aula ’‡preparam um lugar de
maestria. Ora, meu problema constante: desmontar a maestria”
(BARTHES, 2002b, p. 36). O próprio tema corre o risco de se
apresentar de forma dogmática, se for tratado de modo sistemático.
Por isso, ele se apressa a corrigir: o Neutro não se apresenta como
oposto à arrogância; trata-se de desmontar o paradigma, e não de
o reconstituir (p. 37). O modo de evitar que o Neutro se constitua
em valor exemplar é agrupar os temas numa ordem aleatória, “para
que o sentido não pegue”.
Como fora colocado na aula inaugural, o que Barthes procura,
nessa última fase de sua vida, é, não o saber, mas uma sabedoria
existencial: “O que eu busco, na preparação do curso, é uma
introdução ao viver, um guia de vida (projeto ético): quero viver
segundo a nuance” (BARTHES, 2002b, p. 37). E, como proposto
na Aula e já realizado no primeiro curso, a pesquisa partirá de uma
fantasia: “Lembrar a aula inaugural: promessa de que, a cada ano
de aula, a pesquisa partiria abertamente de uma fantasia pessoal.
Em síntese: eu desejo o Neutro, portanto, postulo o Neutro. Quem
deseja, postula (alucina)” (p. 38). Mais do que o “viver junto”,
o Neutro é insustentável como curso e invendável como livro.

138
A prática da aula nos cursos do Collège de France

Trata-se, portanto, apenas de “agüentar treze semanas sobre o


insustentável: em seguida, isso se abolirá” (p. 39).
Na abertura da quarta aula (11 de março de 1978), Barthes apre-
senta um belo texto acerca do próprio curso (“Suplemento II”),
mostrando de que forma os temas do mesmo se entrelaçam com
sua existência cotidiana, e estão sempre presentes em sua mente
como preocupação didática: “tenho a impressão persistente de
que não expliquei bem”, e que será portanto necessário explicar
melhor (BARTHES, 2002b, p. 79). A reflexão sobre o próprio
curso prossegue, em contraponto, de aula em aula. No dia 18 de
março, ele observará que se trata de uma aporia: “Falo do Neutro
e faço dele uma lei: ou não faço dele uma lei, mas então não digo
nada a seu respeito (e todo o curso desmorona)” (p. 102). Assim,
o curso todo é percorrido por uma preocupação, um cuidado de
natureza ética.
No fim da sessão de 11 de março, ele retoma uma das propostas
da Aula, talvez a mais importante, que engloba todas as outras:
a da moral da forma. Lembremos o que ele dizia na Aula: “O
que tento visar aqui é uma responsabilidade da forma: mas essa
responsabilidade não pode ser avaliada em termos ideológicos e
por isso as ciências da ideologia sempre tiveram tão pouco do-
mínio sobre ela” (BARTHES, 1980, p. 17). Um parêntese de O
Neutro o reafirma: “(é disto que se trata neste curso: uma moral
da linguagem)” (BARTHES, 2002b, p. 93). E é disso que sempre
se tratou na obra de Barthes: de uma ética centrada não sobre a
conduta em si, individual ou coletiva, mas sobre a linguagem na
qual se fundamenta e na qual se efetiva toda conduta humana. Seu
objeto de análise, nessas aulas do Collège, é o discurso acerca da
vida em comum e do neutro, como anteriormente seu objeto fora,
não o sujeito apaixonado, mas o discurso que produz e configura
esse sujeito.
Todos se lembram da comoção provocada pela afirmação da Aula:
“a língua é fascista”. Ora, o que conduz todo esse curso sobre o
Neutro é a recusa do “fascismo da língua”:

133
Leyla Perrone-Moisés

Lembro uma vez mais (porque criaram um caso a esse respeito) que é
nesse sentido que se pode falar de um fascismo da língua: a língua faz de
suas falhas nossa Lei, ela nos submete abusivamente às suas falhas [...] a
língua é lei e dura lex. Ora, o sed lex, o discurso (a literatura) o “revira”,
o desvia: é o suplemento, como ato de suplência: ’‡literatura = liberdade
(BARTHES, 2002b, p. 237-238).

Exatamente como na Aula, quando a polêmica afirmação do


fascismo da língua preparava o elogio daquela “trapaça salutar,
[daquele] logro magnífico que permite ouvir a língua fora do po-
der, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem: a
literatura” (BARTHES, 1980, p. 16).
Chegando próximo ao fim do curso, ele reafirma o que já havia
dito a seu respeito: que este é “perecível”: “Este curso é feito para
perecer de imediato” (BARTHES, 2002b, p. 221, nota 32). Como
ouvintes-leitores do curso, podemos entretanto dizer que ele perece
como um haicai, como um satori (evocados, então, por Barthes):
desaparece, mas permanece como momento luminoso. Embora
não pretendendo ser textos de escritura, a escrita desses cursos
apresenta várias passagens dignas do melhor Barthes, como a
análise do “discurso Charlus”, em Como viver junto, ou a notável
descrição das “ideosferas”, em O Neutro.
De fato, os cursos do Collège podem decepcionar quem busque
métodos aplicáveis e resultados conclusivos. Mas eles contêm,
mesmo na forma ainda virtual que é a das notas preparatórias,
um poder encantatório que a voz de Barthes ajudava a criar, em
momentos epifânicos de inteligência afetuosa. Apontá-los, aqui,
seria tirar-lhes o encanto, que depende, em grande parte, da emer-
gência dessas breves manifestações de afeto no fluxo discursivo
em geral fosco, neutro. Apenas como exemplo, poderíamos evocar
a observação comovente colocada no fim de uma aula: “Viver-
-Junto: somente, talvez, para enfrentar juntos a tristeza da noite.
Sermos estrangeiros é inevitável, necessário, exceto quando cai a
noite” (BARTHES, 2002a, p. 176). Ou no curso sobre o Neutro,
um momento romanesco:
Saindo, à noitinha, ao crepúsculo, recebendo com intensidade detalhes
ínfimos, perfeitamente fúteis, da rua: um menu escrito com giz no vidro

140
A prática da aula nos cursos do Collège de France

de um café (frango com purê, 16,50 francos – rins com creme de leite,
16,10 francos), um padre baixinho com batina subindo a rue de Médicis,
etc., tive a intuição viva [...] de que descer até o infinitamente fútil permitia
reconhecer a sensação da vida (BARTHES, 2002b, p. 79).

“Delicadeza”, “Cintilação”, “Minúcia” – noções que ele tentava


esclarecer naquele momento, características barthesianas que
podemos reconhecer ao longo desses cursos.
A desejada sabedoria existencial, que lhe permitiria uma “vita nuo-
va”, parece ter faltado a Barthes no final. Em vários momentos dos
cursos, ele alude a uma falta de ânimo pessoal (a acídia, a xenitéia,
a retirada, o desejo de silêncio). Ele declara que estava vivendo
um momento de xenitéia, que ele qualifica como “um fantasma
ativo: necessidade de partir, logo que uma estrutura pega”. Reco-
nhecemos nesse “fantasma ativo” o impulso para o deslocamento
que caracterizou a carreira de Barthes, sempre desconfiado dos
discursos que se tornam senso comum, que se repetem sob forma
de doxa e boa consciência. No fim de sua vida, o desejo de des-
locamento era sentido por ele como desejo de retirada. E foi esse
estado de espírito que acabou provocando o acidente fatal, à porta
do Collège. Restam-nos esses cursos como últimos testemunhos,
um pouco melancólicos, de seu inigualável charme.

Referências
BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone- Moisés. São Paulo:
Cultrix, 1980.
______. Au séminaire. ______. Le bruissement de la langue.
Paris: Seuil, 1984a.
______. Comment vivre ensemble. Paris: Seuil; IMEC, 2002a.
______. Como viver junto. São Paulo: Martins Fontes, 2003a.
______. Écrivains, intellectuels, professeurs. In: ______. Le
bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984b.
______. Leçon. Paris: Seuil, 1978.

133
Leyla Perrone-Moisés

BARTHES, Roland. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil,


1984c.
______. Le neutre. Paris: Seuil; IMEC, 2002b.
______. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003b.
DELEUZE, Gilles. Nietzche et la philosophie. Paris: PUF, 1962.

142
Colaboradores deste livro
Antoine Compagnon. É professor de literatura francesa na Sor-
bonne (Paris IV) e em Columbia University (NewYork). Suas
principais obras publicadas são La Seconde Main ou le travail de
la citation, Paris, Éd. du Seuil, 1979, rééd., 1987, 1992, 1998. Trad.
portuguesa (Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de
Minas Gerais, 1996) ; Nous, Michel de Montaigne, Paris, Éd. du
Seuil, 1980, rééd., 1992; La Troisième République des lettres, de
Flaubert à Proust, Paris, Éd. du Seuil, 1983, rééd., 1992; Proust
entre deux siècles, Paris, Éd. du Seuil, 1989; Les Cinq Paradoxes
de la modernité, Paris, Éd. du Seuil, 1990, rééd., 1997. Trad portu-
guesa (Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas
Gerais, 1996); Chat en poche. Montaigne et l’allégorie, Paris, Éd.
du Seuil, coll. «La Librairie du XXe siècle», 1993; Connaissez-
-vous Brunetière? Enquête sur un antidreyfusard et ses amis, Paris,
Éd. du Seuil, coll. «LUnivers historique»,1997; Le Démon de la
théorie. Littérature et sens commun, Paris, Éd. du Seuil, coll. «La
couleur des idées», 1998, 2000. Trad. portuguesa (Belo Horizonte,
Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 1999). Além
das traduções para o português seus livros podem ser lidos em
muitas outras límguas, tais como inglês, espanhol, italiano, grego
etc. É autor, também, de inúmeros artigos em revistas acadêmicas.
Publicou recentemente Les antimodernes, de Joseph de Maistre à
Roland Barthes, Paris, Gallimard, 2005.
Evando Nascimento. É doutor pela UFRJ, com estágios na École
des Hautes Études en Sciences e na Sorbonne, sob orientação de
Jacques Derrida e de Sarah Kofman respectivamente. Em 2001, foi
publicada pela EdUFF a segunda edição de seu livro-tese Derrida
e a literatura. Publicou diversos outros livros, dentre os quais
Ângulos: literatura e outras artes (EdUFJF/Argos) e Literatura e
filosofia: diálogos (Org., EdUFJF e Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo), bem como Jacques Derrida: pensar a desconstrução,
editada pela Estação Liberdade, com os textos do evento interna-
cional homônimo organizado em 2004. É pesquisador do CNPq
e professor adjunto de teoria da literatura na UFJF.
Colaboradores

Françoise Gaillard. Ensina na Université de Paris VII. É autora de


numerosos estudos da literatura francesa no século XIX, em seu
contexto social, político, e cultural mais amplo. Interessa-se espe-
cialmente pelas questões de ideologia e epistemologia na França.
Durante muitos anos, foi colaboradora das revistas La Quinzaine
Littéraire e Canal, e contribuiu para Le Monde des Débats. É as-
sídua colaboradora dos seminários de Cérisy-la-Salle. Organizou
uma série de debates sobre literatura e filosofia no centro Georges
Pompidou e é membro de diversas equipes de pesquisa no CNRS.
João Batista Natali. É repórter do jornal Folha de S. Paulo, e
acaba de lançar o livro Jornalismo Internacional, pela editora
Contexto. Ex-editor de Mundo e ex-correspondente da Folha em
Paris. Tanto a sua dissertação de mestrado “L’Humour Politique
Brésilien: Analyse Structurale des Stéréotypes” (1973) quanto a
sua tese de doutorado, “Une Approche Sémiologique du Discours
Révolutionnaire (Robespierre)” (1976) foram orientadas por Ro-
land Barthes, na École des Hautes Études em Sciences Sociales,
em Paris.
Leyla Perrone-Moisés. É professora emérita da Faculdade de Fi-
losofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP).
Autora de vários livros de crítica literária (sobre Lautréamont,
Roland Barthes, Fernando Pessoa etc.), tem lecionado em diversas
universidades no Brasil e no exterior. Suas obras já foram tradu-
zidas para várias línguas. Seu livro mais recente, Do Positivismo
à Desconstrução – Idéias Francesas na América, foi publicado
em 2004 pela Ed. USP. É co-organizadora deste livro, com Maria
Elizabeth Chaves de Mello.
Lúcia Teixeira. É doutora em Lingüística e Semiótica pela Uni-
versidade de São Paulo, com pós-doutorado na Universidade de
Limoges, professora de Lingüística e de Semiótica na Universidade
Federal Fluminense e pesquisadora do CNPq. Publicou As cores
do discurso (Niterói, EdUFF, 1996) e vários artigos e capítulos de
livros. Em co-autoria com Norma Discini, publicou a coleção de
livros didáticos de língua Portuguesa para o ensino fundamental (5ª
a 8ª série) Leitura do mundo (São Paulo: Ed. do Brasil, 2000.4 v.)

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Colaboradores

Manuel da Costa Pinto. É jornalista e doutorando em teoria


literária na USP, colunista da Folha de S. Paulo, autor de Albert
Camus – Um Elogio do Ensaio (Ateliê Editorial) e organizador e
tradutor da antologia A Inteligência e o Cadafalso e outros ensaios,
de Albert Camus (Editora Record).
Marcelo Jacques de Moraes. É professor de literatura francesa
da UFRJ e pesquisador do CNPq. Fez estágio de pós-doutorado
na Universidade de Paris VIII, em 2003, com bolsa da CAPES. É
autor de inúmeros artigos em revistas especializadas.
Maria Elizabeth Chaves de Mello. É doutora em Letras pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professora
de literatura francesa da Universidade Federal Fluminense, e
pesquisadora do CNPq. Lecionou literatura brasileira no Centro
de Estudos Brasileiros da Université du Québec à Montreal, em
2002. Publicou A difícil comunicação literária (Rio de Janeiro,
Achiamé, 1987) em co-autoria com Maria Helena Rouanet, Lições
de Crítica (Niterói, EdUFF, 1997) e vários artigos e capítulos de
livros. É co-organizadora deste livro, com Leyla Perrone-Moysés.
Philippe Roger. É professor e orientador de pesquisas do CNRS
(Centro de Estudos da Língua e Literatura Francesa dos Séculos
XVII-XVIII, Universidade de Paris IV), diretor de estudos da École
des Hautes Études en Sciences Sociales e, desde 1996, é diretor
da revista Critique. Além disso, é autor de Sade. La Philosophie
dans le pressoir (Grasset, 1976); Roland Barthes, roman (Grasset,
1986; Livre de Poche, 1990); L’Ennemi américain. Généalogie
de l’antiaméricanisme français (Seuil, 2002) e de uma centena
de artigos. Participou de muitas obras coletivas: Sade. Écrire la
crise (com M. Camus, Belfond, 1983); La Légende de la Révo-
lution française au XXe siècle (com J.-Cl. Bonnet, Flammarion,
1988); L’Hommes des Lumières. De Paris à Pétersbourg, (Napoli,
Vivarium & Paris, Maison des Sciences de l’Homme, 1995) e
L’Encyclopédie: du réseau au livre et du livre au réseau (avec R.
Morrissey, Champion, 2001).

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