Você está na página 1de 11

1

PELAS VEREDAS DA LITERATURA


- Uma Iniciação aos Estudos Literários -
Prof. Dr. Ubirajara Araujo Moreira1 - UEPG / 2019

CAPÍTULO 1 – NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

1. LITERATURA: ARTE MULTIMILENAR - ORAL E ESCRITA

Sabemos que a literatura é uma arte multimilenar e que ela está presente propriamente
em todos os povos, culturas e épocas, sob as mais variadas formas! A palavra literatura, por
sua etimologia, remete à escrita, pois deriva da palavra letra, e esse é um senso comum: asso-
ciar literatura a textos escritos. Porém, a literatura, que é um tipo de arte cujo principal instru-
mento é a palavra, possui um conceito mais amplo do que simplesmente a escrita, pois en-
globa também a oralidade, que é, de fato, a primeira manifestação da linguagem.

1) Etimologia: refere-se à origem e evolução das palavras, tendo em


vista a variação de suas formas e significados.
2) O português derivou do latim, antigo idioma do povo romano.
Nossa palavra literatura vem do termo latino litteratura que, por sua
vez, se formou a partir da palavra latina littera, que significa letra.

A oralidade foi, certamente, a mais antiga forma de transmissão da literatura. Um exem-


plo é o caso dos mais ou menos 40 livros iniciais da Bíblia, cuja coleção o cristianismo chama
de Velho Testamento e o judaísmo chama de Bíblia Hebraica ou Tanakh.
Tais livros se originaram de milenar tradição oral dos hebreus, um povo que teve suas
origens no Oriente Médio. Seu fundador, o patriarca Abraão, teria vivido uns 2.000 anos antes
de Cristo. Os relatos, preces e leis, entre outras formas, que faziam parte de sua história e
cultura, foram sendo repassados oralmente pelos mais velhos aos mais jovens, de geração
em geração. O registro por escrito desses livros bíblicos só se deu muito tempo depois, inici-
ado no século 10 antes de Cristo e realizado por uns 40 a 50 redatores ao longo de mais ou
menos 800 anos.
Muitos estudiosos contemporâneos consideram a Bíblia não só uma obra religiosa mas
também uma obra de grandes e específicas qualidades literárias. É neste sentido que se ori-
enta o Guia Literário da Bíblia, obra organizada por dois renomados professores, pesquisa-
dores e escritores da área da teoria e crítica literária, dedicados ao estudo da Bíblia: o norte-
americano Robert Alter e o inglês Frank Kermode. Nessa verdadeira enciclopédia, cada livro
da Bíblia (Antigo e Novo Testamento) é estudado por um especialista, que o enfoca princi-
palmente sob o ponto de vista literário.
Nesse sentido, Robert Alter, em seu livro A arte da narrativa bíblica, afirma logo no
capitulo inicial, intitulado Uma abordagem literária da Bíblia:

Qual o papel da arte literária na conformação da narrativa bíblica? Um papel cru-


cial, como tentarei demonstrar, e um papel finamente modulado a cada momento,
quase sempre determinante na escolha exata de palavras e detalhes, no ritmo da nar-
ração, nos pequenos movimentos do diálogo e em toda uma teia de relações que se
ramificam pelo texto. (ALTER, 2007, p. 15).
2

Ainda hoje a transmissão oral é característica peculiar das inúmeras comunidades ágra-
fas, ou seja, comunidades cujas línguas não têm um código escrito. Esta é, por exemplo, a
situação das 274 línguas faladas no Brasil por quase 900 mil índios, distribuídos em 305 etnias.
Trata-se, portanto, de culturas ágrafas, que produzem e preservam suas narrativas e poemas
por meio da oralidade. Embora algumas delas estejam atualmente fazendo alguns registros
escritos, tais comunidades continuam valorizando basicamente a transmissão oral. (Dados do
Censo Demográfico de 2010, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE,
disponíveis em: http://www.brasil.gov.br/governo/2012/08/brasil-tem-quase-900-mil-in-
dios-de-305-etnias-e-274-idiomas. Acesso em: 4 jan. 2018).
Segundo pesquisas recentes, existem no mundo umas 7.000 línguas! Algumas poucas
são usadas por milhões de pessoas, como o mandarim, na China, com cerca de 890 milhões de
usuários, e que é a língua mais falada no planeta; muitas outras são de pequenas comunidades.
O português é a quarta língua mais falada do mundo, com 261 milhões de utentes, con-
forme reportagem da Rádio e Televisão de Portugal – RTP Notícias, baseada no livro Novo
Atlas da Língua Portuguesa, publicado em 2016. (Cf. https://www.rtp.pt/noticias/pais/ au-
menta-numero-de-falantes-de-lingua-portuguesa_v962257. Acesso em: 11 jan. 2018). Como se
sabe, o português é língua oficial em nove países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, e Timor-Leste – os chamados
países lusófonos, lembrando que em alguns desses países há mais de uma língua oficial.
Mas curiosamente, dessas 7.000 línguas faladas hoje no mundo, apenas um terço são
também línguas gráficas, isto é, possuem um sistema de escrita, enquanto dois terços delas,
cerca de 4.650, são línguas ágrafas – e assim as suas manifestações literárias naturalmente se
reproduzem e são mantidas apenas por transmissão oral. Mas considerando que as línguas
ágrafas são faladas por pequenas comunidades, estatisticamente se sabe “que hoje a escrita é
praticada por cerca de 85% da população mundial – cerca de cinco bilhões de pessoas.”
(FISCHER, 2009, p. 9).
Sobre a origem multimilenar da arte literária, pesquisas revelam que cerca de 2.500 a
3.000 anos antes de Cristo, por exemplo, já circulavam poemas e narrativas produzidos na
civilização chinesa, cuja literatura seja, talvez, a mais antiga da história da humanidade. Uma
das obras clássicas da literatura chinesa é a coletânea de 305 textos, de diferentes autores anô-
nimos, intitulada Shi Jung ou Clássico da Poesia, com poemas, canções e contos que falam de
amor, de guerra e das mais variadas situações da vida cotidiana. Vários dos poemas foram
escritos por volta do ano 1.000 a. C. – grande parte deles se origina de canções populares, mas
há também poemas provenientes da nobreza. A organização e os cometários da coletânea Shi
Jing são atribuídos ao sábio Confúcio (551 a.C.- 479 a.C.), também autor de um dos mais
famosos livros da cultura chinesa – Os analectos, que quer dizer: coletânea de máximas,
provérbios ou ensinamentos morais. Nesse livro encontramos a famosa “regra de ouro”.

Tzu-kung perguntou “Existe


uma palavra que possa ser
um guia de conduta durante
toda a vida de alguém?”.
O Mestre disse: “Talvez,
a palavra shu [benevolência].
Não imponha aos outros
aquilo que você não deseja
para si próprio.”

(CONFÚCIO, 2015, p. 138).


3

Por sua vez, nas origens da literatura grega vamos encontrar os poemas épicos Ilíada e
Odisseia, com narrativas que têm por referência a Guerra de Troia. Sua autoria é atribuída a
Homero, que os teria elaborado uns 800 anos antes de Cristo. Essas duas epopeias tiveram
grande circulação oral na Grécia Antiga por meio dos rapsodos, artistas ambulantes que iam
de cidade em cidade recitando episódios desses e de outros poemas. Sobre as duas obras ho-
méricas falaremos com mais detalhes no próximo capítulo.

Poema épico, epopeia: poema longo, de ação. Em geral tem por núcleo narra-
tivo episódios de guerra de um povo ou aventuras fantásticas de um pequeno
grupo. Destacam-se de alguns protagonistas – os heróis – que, por suas espe-
ciais qualidades e desempenho, causam admiração e servem de exemplo.

Na Índia há o Mahabharata, um poema épico e místico, escrito em sânscrito. Seus 200


mil versos começaram a ser compilados por volta do século 5º a. C., com base em antiga tra-
dição oral. Considerado o mais longo poema do mundo, tem como núcleo narrativo a grande
guerra pela posse de um vasto território no norte da Índia. Trata-se do conflito ocorrido entre
duas famílias reais, descendentes do mesmo soberano: de um lado, os irmãos Pandavas, filhos
de Pandu; de outro, seus primos Kauravas, filhos de Dhrtarastra. Pertencendo à dinastia Kuru,
os irmãos Pandu e Dhrtarastra eram descendentes do rei Bharata, do qual provém o nome do
poema Mahabharata – que pode ser traduzido por “Relato da grande guerra dos Bharatas”.
O episódio mais famoso dessa obra é o Bhagavad-Gita: “Canção
do bem-aventurado”. Trata-se do diálogo místico e ético entre Arjuna,
o melhor arqueiro dentre os irmãos Pandavas, e Kṛṣṇa, A Suprema Per-
sonalidade de Deus. A conversa se dá quando está prestes a se iniciar a
decisiva Batalha de Kurukṣetra, e Arjuna não está convencido da
necessidade dessa luta entre familiares.
Raul Seixas (1945-1989), o nosso roqueiro autoapelidado Maluco
Beleza, escreveu a letra de sua canção Gita inspirado na leitura do Bha-
gavad-Gita, como ele mesmo esclarece numa entrevista, e que já fica
explícito no próprio título da composição. Essa entrevista e a interpre-
tação de Gita por Raul Seixas estão disponíveis em: http://verdade-
mundial.com.br/2017/01/raul-seixas-explica-a-origem-da-cancao-
gita/ Acesso em: 26 jan. 2018.

Sobre o Mahabharata, esta obra monumental, vale a pena conferir a entrevista do


Prof. Dr. João Carlos Barbosa Gonçalves, da Universidade de São Paulo - USP, es-
pecialista em Língua e Literatura Sânscrita e Hinduísta, no Programa Literatura
Fundamental, da TV Cultura. Disponível em: http://tv cultura.com.br/videos/ 32825_litera-
tura-fundamental-88-o-mahabharata-joao-carlos-barbosa-goncalves.html. Acesso em: 26 jan.
2018.

Outro exemplo da antiguidade e oralidade da arte literária, agora na América Latina.


Quando os soldados espanhóis, no século 16 da era cristã, chegam ao continente americano,
em guerra de conquista, defrontam-se, no Peru, com o poderoso e bem-organizado Império
Inca, o maior império da América pré-colombiana. E aí encontram uma já bem antiga tradição
poética, assim como narrativas e peças de teatro, que permeavam toda a vida social e religiosa
incaica, sendo conservadas e transmitidas oralmente. O Império Inca teria se iniciado três
séculos antes da chegada dos europeus, compondo-se de um mosaico de diversos povos do
entorno da Cordilheira dos Andes, com suas variadas culturas e línguas.
4

Esses e muitos outros casos, pesquisados por historiadores e arqueólogos, atestam as


origens milenares da arte literária, assim como sua condição de oralidade e escrita, condição
que permanece até os dias de hoje, nas mais diferentes culturas. Lembrando-nos que a escrita,
cuja invenção costuma ser usada para marcar a divisão entre Pré-História e História, origina-
se por volta de 3.500 anos antes de Cristo, na Suméria, onde atualmente se situa parte do
Iraque e do Kuwait.
Trata-se da escrita cuneiforme, feita em tábuas ou pla-
cas de argila. Nelas vamos encontrar a famosa Epopeia de
Gilgamesh, o antigo poema épico da Mesopotâmia e uma das
primeiras obras da literatura mundial. Sua origem se deve a
diversas lendas e poemas sumérios sobre o mitológico e
gigantesco herói Gilgamesh, que circulavam oralmente ou
em fragmentos escritos. Esse material teria sido reunido no
século 7º a.C. sob as ordens de Assurbanípal, rei da Assíria. É
um longo poema, constituído por doze placas de escrita
cuneiforme, cada uma contendo cerca de 300 versos.
O poema narra as aventuras vividas pelo turbulento Gilgamesh e seu amigo Enkidu, e a
perigosa jornada empreendida pelo heroi em busca da imortalidade, após sentir-se fortemente
afetado pela morte do companheiro. Um dos episódios mais famosos é o relato de um dilúvio,
envolvendo certo personagem que, com um barco, salva sua família e animais da grande
inundação. História muito parecida com a de Noé e o dilúvio, narrado na Bíblia, no livro do
Gênesis.

2. O CAMPO DOS ESTUDOS LITERÁRIOS

A produção, divulgação e consumo da literatura, com as reações que provoca nos indi-
víduos e nos grupos, tendem a gerar, em consequência, certo interesse por um maior conhe-
cimento a respeito dessa arte. Qual a sua natureza, seus componentes e formas de organiza-
ção? Suas modalidades, estilos, funções...? Quais as suas conexões com outras artes, como a
pintura, a música, o cinema, por exemplo? E qual a sua ligação com outros campos de inves-
tigação, como a filosofia, a psicologia, a história, a antropologia? Assim como também se in-
daga sobre quais as suas relações com a sociedade e a vida cultural dos povos.
Na cultura ocidental – que será o nosso foco – os estudos, pesquisas e debates sobre a
arte literária começam a surgir na Grécia Antiga por volta dos séculos 5º e 4º antes de Cristo,
ou seja, no chamado Período Clássico, considerado o apogeu da civilização grega, embora
bastante tumultuado por guerras. Durante esse período se destaca, do ponto de vista político
e cultural, a cidade-estado de Atenas, onde viveram os filósofos Platão e Aristóteles – tidos
como os primeiros grandes teóricos da literatura.

Quatro obras principalmente servem de referência a estes primórdios dos estudos


literários: A República e Íon, de Platão; e Poética e Retórica, de Aristóteles, que
tinha sido discípulo de Platão. Ambos viveram por volta dos anos 450 a 350 antes de Cristo.
Estes dois grandes pensadores gregos iniciam a reflexão mais sistemática sobre o fenômeno
artístico hoje conhecido com o nome de LITERATURA.
O curioso é que naquela época, essa arte – a arte da palavra, em verso e prosa – ainda
não tinha um nome, conforme observa o próprio Aristóteles logo no início da sua Poética:
“Mas a arte que se utiliza apenas da palavra, seja em prosa, seja em verso, [...], eis uma arte
que até hoje não recebeu um nome.” (Cf., por exemplo: ARISTÓTELES, 1973, p. 443; 1981, p.
19; 2004, p. 38).
A palavra literatura só será aplicada a essa arte muitos séculos depois... Na verdade, faz
apenas uns duzentos e tantos anos! Como informa o professor e pesquisador português Vítor
5

Manuel de Aguiar e Silva em seu livro Teoria da Literatura: “foi na segunda metade do século
XVIII que [...] o lexema literatura adquiriu os significados fundamentais que ainda hoje apre-
senta: uma arte particular, uma específica categoria de criação artística e um conjunto de textos
resultantes desta atividade criadora.” (SILVA, 1988, p. 9-10).
Entre os antigos romanos, o termo latino litteratura era o nome da disciplina escolar
dedicada ao ensino das primeiras letras, ou seja, à aprendizagem da leitura e da escrita. Com
o passar do tempo, na cultura ocidental a expressão literatura passou a designar a ciência de
modo geral, ou as humanidades, como se dizia; assim, o literato era o estudioso, o erudito, o
homem das letras, o humanista. Portanto, literatura era palavra usada para se referir generi-
camente a toda obra escrita, qualquer que fosse o seu gênero. Aliás, ainda hoje ela éutilizada
para indicar o conjunto de escritos de determinada área técnica ou científica, ou sobre qual-
quer tipo de questão, sendo sinônimo de bibliografia, como nas expressões “literatura mé-
dica”, “literatura jurídica”, “literatura marxista”, “literatura ufológica”, “literatura esotérica”,
ou como aparece nesta notícia da internet: “O Instituto Histórico-Cultural (INCAER), da Força
Aérea Brasileira, possui uma Biblioteca que reúne cerca de oito mil volumes da literatura ae-
ronáutica brasileira e estrangeira [...].”(grifo nosso) – e assim por diante.
A partir do Renascimento, por volta do século 15, o termo literatura passou a ser usado
de forma mais específica para se referir a uma arte – a chamada “belas letras”, e, finalmente,
“arte literária”. Seu emprego contemporâneo engloba as obras imaginativas, ou seja, de
cunho ficcional, que se caracterizam por especial estruturação e linguagem esteticamente tra-
balhada, como nos casos da narrativa em prosa (romance, conto...), da poesia e do teatro –
que são considerados os três gêneros clássicos da literatura.

REPÚBLICA e ÍON, de PLATÃO

Este filósofo viveu entre os anos 428 e 348 a. C., tendo atuado principalmente em Atenas,
sua terra natal. Descendia de família aristocrática e atuante na política. Aos 20 anos conhece o
filósofo Sócrates, tornando-se seu discípulo até 399, ano em que seu mestre, condenado à
morte por falsas razões políticas, morais e religiosas, foi sentenciado ao suicídio tendo de in-
gerir veneno, a cicuta. Platão tinha 29 anos nessa época. O último dia de
Sócrates é narrado por Platão em seu livro Fédon, quando o mestre dis-
corre serenamente sobre a vida após a morte. Sócrates, um dos fundadores
da filosofia ocidental, não deixou nada por escrito e o que dele sabemos
muito se deve principalmente às obras de Platão e de outro seu discípulo,
o historiador Xenofonte.
Decepcionado com a política, Platão viajou a estudos por várias re-
giões – Egito, África, Itália, Sicília... – e retornou a Atenas, dedicando-se à
filosofia. Aí fundou a sua Academia, considerada a primeira instituição de
ensino superior do Ocidente. Escreveu variados livros de filosofia sob a
forma de diálogos, dos quais 30 chegaram até nós - e constituem um dos
alicerces da filosofia ocidental até os dias de hoje. Platão morreu com cerca de 80 anos e es-
tava escrevendo seu último grande tratado: As Leis.
A primeira obra em foco, A REPÚBLICA, está dividida em dez capítulos ou livros – é um
de seus escritos mais importantes. Trata-se de uma utopia – nessa obra Platão expõe como se
poderia constituir uma sociedade perfeita e racional: organizada de forma ideal, justa, go-
vernada por sábios, e na qual a educação ocuparia importância decisiva. Nessa sociedade
perfeita, Platão vai permitir a presença apenas de poetas que produzam obras que sejam úteis
e instrutivas aos cidadãos e à construção da sociedade, que sejam racionais e fiéis à verdade.
6

E expulsa da sua República Ideal os poetas que produzem obras onde há mentiras, ilusões,
injustiças, excessos de imaginação e emoção, que distraem as pessoas do caminho racional.

Nesse livro Platão já propõe uma primeira divisão das obras literárias em três gêneros,
com base em dois critérios – a MÍMESE (imitação) e a DIEGESE (a
narração). Assim, haveria:
1) Aquelas obras que são pura imitação (mímese), ou seja, desti-
nam-se à representação teatral, como a tragédia e a comédia – não
há narração (diegese) feita pelo poeta, mas só os diálogos das perso-
nagens em cena.
2) As obras em que há enunciação (diegese) feita pelo próprio po-
eta, ou seja, há um narrador que conta a história, como era o caso
dos ditirambos (cantos de louvor ao deus grego Dioniso).
3) E as obras de gênero misto, em que há narração (diegese) feita
pelo poeta e também imitação (mímese), por meio dos diálogos das
personagens, como ocorre nas epopeias (longos poemas narrativos).
Essa teoria está exposta no Livro III de A República. Platão
deixa de fora (de propósito, ao que parece) aquilo que hoje chamamos de poesia lírica: um
tipo de poesia em que uma voz – a voz do eu lírico – expressa, de modo subjetivo, suas ideias,
opiniões, sentimentos e emoções, o que seria contrário às propostas racionalistas de Platão.
No livro ÍON, o filósofo inventa um diálogo entre Sócrates e Íon, um rapsodo, isto é,
um declamador de poemas. Conversam sobre a poesia, os poetas e a inspiração poética. Pela
voz de Sócrates, Platão defende a tese de que o poeta não cria suas obras
por talento próprio, mas compõe sob a inspiração divina, ou seja, como
eles acreditavam, através das musas.
Em certa passagem, Sócrates afirma:
[...] o poeta é coisa leve, e alada, e sagrada, e não pode poetar
até que se torne inspirado e fora de si, e a razão não esteja mais
presente nele. Até conquistar tal coisa, todo homem é incapaz
de poetar e proferir oráculos. [... os poetas] não falam essas coi-
sas por arte, mas por uma capacidade divina [...] não são eles –
aos quais a razão não assiste – que falam essas coisas assim dig-
nas de tanta estima, mas que é o próprio deus quem fala, e por
meio deles se pronuncia a nós. (PLATÃO, 2007, p. 33-34).
Esta teoria platônica da “inspiração artística” será retomada, ao longo dos séculos até
os dias de hoje, por estudiosos (filósofos e psicólogos, por exemplo) e por artistas de diversas
áreas, sob diferentes enfoques. Vejamos um caso: a letra de Paulo César Pinheiro – um dos
maiores letristas da nossa música popular – para o samba Poder da Criação, feito em parceria
com João Nogueira. O texto assume integralmente a tese platônica da inspiração, como pode-
mos observar já nos primeiros versos da canção:
Não, ninguém faz samba só porque prefere
Força nenhuma no mundo interfere
Sobre o poder da criação
Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito
Nem se refugiar em lugar mais bonito
Em busca da inspiração
Não, ela é uma luz que chega de repente
Com a rapidez de uma estrela cadente
Que acende a mente e o coração
7

Segundo a mitologia grega, as musas, em número de nove, eram as filhas de Mnemosine,


a deusa da memória, e Zeus, o rei ou pai dos deuses, e elas teriam o dom de inspirar a criati-
vidade artística e científica.
Nesse sentido, era um verdadeiro protocolo dos poemas épicos começarem com a invo-
cação à musa ou deusa, como lemos, por exemplo, no início da Ilíada e da Odisseia, respecti-
vamente, conforme as traduções clássicas de Manuel Odorico Mendes: “Canta-me, ó deusa,
do Peleio Aquiles / A ira tenaz”; sendo Aquiles o principal protagonista da Ilíada; e “Canta,
ó Musa, o varão que astucioso, / Rasa Ílion santa”. Entenda-se “Rasa Ílion santa” como “Ar-
rasa Troia sagrada”, e o varão astucioso é Ulisses, herói da Odisseia, que lutou da Guerra de
Troia, cidade-fortaleza, também conhecida com o nome de Ílion.

POÉTICA e RETÓRICA, de ARISTÓTELES

Além de filósofo, Aristóteles era pesquisador e cientista em diversas áreas. Nasceu em


384 a. C., na cidade de Estagira, na Macedônia, por isso é muitas vezes chamado de O Estagi-
rita. Seu pai Nicômaco era médico na corte macedônica do rei Amintas, avô de Alexandre, o
Grande. Aos 17 anos foi para Atenas estudar na Academia de Platão, onde permaneceu por
vinte anos, primeiro como discípulo, depois como professor. Após a
morte de Platão, ele deixa a Academia e Atenas, e viaja, a estudos e tra-
balho acadêmico, por algumas cidades. Voltou à Macedônia na condição
de preceptor do príncipe Alexandre, então adolescente, que depois se
tornaria rei e um dos maiores conquistadores de todos os tempos. Aris-
tóteles retorna a Atenas e aí funda sua própria instituição – o Liceu. Pes-
quisou, escreveu e lecionou sobre os mais variados assuntos: filosofia,
literatura, ética, lógica, política, música, matemática, física, biologia, zo-
ologia... Sua obra filosófica é, até hoje, um dos pilares do pensamento
ocidental. Aristóteles morreu aos 62 anos, longe de Atenas, de onde teve
de fugir porque estava sendo perseguido e até ameaçado de morte por
motivos políticos.

E assim, conforme a opinião de tantos estudiosos, estes três pensadores gregos –


Sócrates, Platão e Aristóteles – formam o tripé fundador da filosofia ocidental.

A POÉTICA de Aristóteles é o primeiro livro de TEORIA LITERÁRIA do Ocidente. A


palavra “poética”, neste caso, seria um sinô-
nimo de “literatura”, termo que ainda não exis-
tia naquela época. Nesse livro o pensador se
propõe explicitamente a estudar a arte literária:
sua natureza, componentes, tipos... Logo nas
primeiras linhas apresenta seus objetivos:
Falaremos da arte poética em si e
da suas espécies, do efeito que cada
uma destas espécies tem; de como se
devem estruturar os enredos, se se
pretender que a composição poética
seja bela; e ainda da natureza e do número das suas partes. E falaremos igualmente de
tudo o mais que diga respeito a este estudo [...]. (ARISTÓTELES, 2008, p. 37).
8

No terceiro capítulo vamos retornar à Poética, destacando algumas


contribuições fundamentais de Aristóteles para o estudo da literatura.

RETÓRICA é um livro dedicado ao minucioso estudo do discurso persuasivo, ou seja,


do discurso por meio do qual se procura argumentar e convencer o interlocutor. Apresenta
seus tipos e objetivos, suas técnicas, bem como os recursos eficazes para se construir uma lin-
guagem convincente. Como diz Aristóteles no início do capítulo II: “[...] a Retórica é a facul-
dade de ver, teoricamente, o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão.”
Tendo em vista que a obra literária contém certa dimensão retórica, ou seja, ela busca
também efeitos de persuasão, então
muitos aspectos abordados por Aristóte-
les neste livro aplicam-se igualmente ao
discurso literário.

Detalhe do quadro Escola de Atenas,


de Rafael Sanzio, um dos mais importantes
pintores italianos do Renascimento.
Platão (de barba longa) e Aristóteles, ao
centro, debatendo suas ideias.

ARTE POÉTICA ou CARTA AOS PISÕES,


de HORÁCIO

Mais tarde, já no século 1º a. C., saindo da Grécia e indo para a Itália, vamos encontrar
na Roma dos Césares o seu primeiro escritor profissional, que viveu de sua fecunda produ-
ção literária, seja ela obra poética, seja obra teórica ou crítica. Trata-se de HORÁCIO, nascido
no ano 65 a. C. e falecido no ano 2 a. C.

É de um de seus poemas a conhecida expressão latina “carpe diem”, que


se traduz por “colha o dia”, isto é, aproveite o dia de hoje, enquanto é tempo.
Esta expressão é usada como verdadeiro slogan no filme
A Sociedade dos Poetas Mortos (1989),
direção de Peter Weir e roteiro de Tom Schulman, com Robin Williams
no papel de John Keating, o revolucionário professor de poesia.

À semelhança de Aristóteles, ele também escreveu um pequeno tratado de Literatura,


mas todo em verso, a CARTA AOS PISÕES, mais conhecido pelo título de ARTE POÉTICA.
9

Pisão era o sobrenome de uma rica família romana, cujo pai e filhos haviam solicitado a
Horácio orientações para a escrita literária, mais especificamente a poesia dramática, ou seja,
o teatro escrito em versos.
Dessa obra destacamos três pontos:
1) A firme orientação clássica, racionalista, de Horácio, quando
formula que a obra de arte é regida por leis próprias, que podem ser
aprendidas e aplicadas, tais como a unidade da obra, a harmonia e o
bom arranjo entre as partes, a proporção, o ritmo e o tom apropriados
a cada tema, a simplicidade etc.
2) As duas funções básicas que ele atribui à literatura: ser útil e
agradável. “Os poetas desejam ou ser úteis, ou deleitar, ou dizer coisas
ao mesmo tempo agradáveis e proveitosas para a vida. [...] Arrebata
todos os sufrágios quem mistura o útil ao agradável, deleitando e ao
mesmo tempo instruindo o leitor [...].” (HORÁCIO, 1981, p. 65).
3) Ênfase na concepção de que a obra literária resulta da harmo-
niosa cumplicidade entre dois fatores: o engenho (ou seja: o talento
natural do artista) e a arte (ou seja: o estudo, o conhecimento teórico e
prático, o domínio técnico da feitura de uma obra).

É importante realçar que a POÉTICA de Aristóteles


e a ARTE POÉTICA de Horácio são as duas obras clássicas da
TEORIA DA LITERATURA que, ao longo dos séculos até hoje, mais
influência exerceram nos ESTUDOS LITERÁRIOS da cultura ocidental.

DE SUBLIME, de LONGINO

Mas, além da Poética de Aristóteles e da Arte Poética de Horácio, há uma terceira obra
que também teve importante influência na formulação de algumas vertentes teórico-críticas
da literatura e das artes em geral. Trata-se do livro DE SUBLIME, ou SOBRE O SUBLIME,
ou ainda TRATADO DO SUBLIME – atribuído a LONGINO ou PSEUDO-LONGINO, ou
ao ANÔNIMO, como hoje é habitual também se referir, pois pouco (ou nada...) se sabe sobre
o autor e as origens dessa obra.
Suposições: talvez se chamasse Dionísio Longino, teria vivido entre os séculos 1º e 3º
depois de Cristo, e deve ter sido um professor de retórica e/ou crítico literário, de tendência
neoplatônica, como a obra deixa perceber.
Nesse livro o autor defende a tese de que o “sublime” é a grande categoria estética a
ser atingida pelo escritor, mesmo que sua obra apresente pequenas falhas na linguagem. Logo
no início (Parte I, parágrafos 3 e 4) podemos ler:
[...] o sublime é o ponto mais alto e a excelência, por assim dizer, do discurso e
que, por nenhuma outra razão, primaram e cercaram de eternidade a sua glória os
maiores poetas e escritores. [...] Não é a persuasão, mas a arrebatamento, que os
lances geniais conduzem os ouvintes; invariavelmente, o admirável, com seu im-
pacto, supera sempre o que visa persuadir e agradar; o persuasivo, ordinaria-
mente, depende de nós, ao passo que aqueles lances carreiam [trazem consigo] um
poder, uma força irresistível e subjugam inteiramente o ouvinte. (LONGINO,
1981, p. 71-72; grifo nosso).
10

Nota-se, portanto, que à noção de “sublime” associam-se as ideias de “exaltação, eleva-


ção, admiração, arrebatamento, grandiosidade, comoção, paixão”; assim, o sublime provoca
espanto e maravilhamento, inspirados seja pelo medo, seja pelo respeito. E fica evidente que
o autor se opõe à tese do “útil e agradável” de Horácio, contrapondo a estas duas qualidades
a superioridade do efeito arrebatador do “sublime”.

Assim, a literatura, no decorrer dos tempos, passou a ser um objeto abordado sob vari-
ados enfoques e, em consequência, foi surgindo um vasto campo de saberes literários que
hoje chamamos de ESTUDOS LITERÁRIOS. Nele se encontram disciplinas, áreas ou ciên-
cias que mantêm entre si constantes e dinâmicas conexões, com mútuas influências e inevitá-
veis embates, além de interagirem com outros campos do saber, como a filosofia, a psicologia
e a história, por exemplo. São, principalmente, as seguintes áreas ou disciplinas:

 TEORIA LITERÁRIA
 CRÍTICA LITERÁRIA
 HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA
 LITERATURA COMPARADA
 LITERATURA INFANTOJUVENIL
 LITERATURA E ENSINO
 TRADUÇÃO LITERÁRIA

Todas essas áreas foram e continuam se construindo num multifacetado processo so-
ciocultural e histórico, com diferentes vertentes e direções, que tanto podem se conectar e se
completar, como podem se distanciar, ou ainda se chocar e se contradizer...

A partir do terceiro capítulo abordaremos as três primeiras dessas disci-


plinas: TEORIA LITERÁRIA, CRÍTICA LITERÁRIA e
HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA – tendo em vista sua relevância para
os objetivos propedêuticos dos ESTUDOS LITERÁRIOS no Curso de
Letras e suas conexões com outros temas deste nosso manual.

BIBLIOGRAFIA

ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
ALTER, Robert; KERMODE, Frank. (Orgs.) Guia Literário da Bíblia. Tradução de Raul Fiker. São
Paulo: Editora Unesp, 1997.
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo:
Difel, 1964.
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Ana Maria Valente. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian, 2008. Disponível em: http://www.eduardoguerreirolosso.com /Arist%C3%B3teles-
poetica-gulbenkian-dig-c.pdf Acesso em: 24 fev. 2017.
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. Aristóteles, Horácio, Longino - A Poética Clássica. Tra-
dução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix / Editora da Universidade de São Paulo, 1981.
11

BANDEIRA, Manuel. Noções de história das literaturas. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1969.
BOTELHO, José Francisco; GARATTONI, Bruno. Quem escreveu a Bíblia? Artigo da revista
Superinteressante, disponível em: https://super.abril.com.br/historia/quem-escreveu-a-
biblia/ Acesso em: 7 jan. 2018.
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Vol. I. 2. ed., revista e atualizada. Rio
de Janeiro: Editorial Alhambra, 1978.
CEIA, Carlos. Verbete “Literatura”, no E-Dicionário de Termos Literários. Disponível em:
http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6323/literatura/ Acesso em: 27 jan. 2018.
D’ONOFRIO, Salvatore. Da Odisseia ao Ulisses. Evolução do gênero narrativo. São Paulo: Duas
Cidades, 1981.
FISCHER, Steven Roger. História da escrita. Tradução de Mirna Pinsky. São Paulo: Editora Unesp,
2009.
GRISSAULT, Katy. 50 autores-chave de Filosofia... e seus textos incontornáveis. Tradução de João
Batista Kreuch. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
HIRSCHBERGER, Johannes. História da Filosofia na Antiguidade. 2. ed. Tradução de Alexandre
Correia. São Paulo: Herder, 1969.
HOMERO, Ilíada. Tradução de Manuel Odorico Mendes. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Editores,
1952. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/iliadap.pdf Acesso em: 1
fev. 2017.
HOMERO, Odisseia. Tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1992.
HORÁCIO. A Arte Poética de Horácio. Tradução de Dante Tringali, versão bilíngue. São Paulo:
Musa Editora, 1993.
HORÁCIO. Arte Poética. Tradução de Raul Miguel Rosado Fernandes. 3. ed. Lisboa: Editorial
Inquérito, 1992.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1978.
PLATÃO. A República. Tradução de Leonel Vallandro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
PLATÃO. Íon. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
PLATÃO. Sobre a inspiração poética (Íon); Sobre a Mentira (Hípias Menor). Tradução de André
Malta. Porto Alegre: L&PM, 2007.
PRABHUPADA, A. C. Bhaktivedanta Swuami. Bhagavad Gita Como Ele É. 4. ed. revisada. São
Paulo: Associação BBT Brasil, 2013.
SCHÜLER, Donaldo. Literatura grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 8. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1988.
THOORENS, Léon. Panorama das Literaturas. Vol. 1. Tradução de Maria de Barros e Sá Contrei-
ras, José Rolim e Ana de Paiva. São Paulo: Difel / Lisboa: Livraria Bertrand, 1975.

* * * * * *

Você também pode gostar