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Sabemos que a literatura é uma arte multimilenar e que ela está presente propriamente
em todos os povos, culturas e épocas, sob as mais variadas formas! A palavra literatura, por
sua etimologia, remete à escrita, pois deriva da palavra letra, e esse é um senso comum: asso-
ciar literatura a textos escritos. Porém, a literatura, que é um tipo de arte cujo principal instru-
mento é a palavra, possui um conceito mais amplo do que simplesmente a escrita, pois en-
globa também a oralidade, que é, de fato, a primeira manifestação da linguagem.
Ainda hoje a transmissão oral é característica peculiar das inúmeras comunidades ágra-
fas, ou seja, comunidades cujas línguas não têm um código escrito. Esta é, por exemplo, a
situação das 274 línguas faladas no Brasil por quase 900 mil índios, distribuídos em 305 etnias.
Trata-se, portanto, de culturas ágrafas, que produzem e preservam suas narrativas e poemas
por meio da oralidade. Embora algumas delas estejam atualmente fazendo alguns registros
escritos, tais comunidades continuam valorizando basicamente a transmissão oral. (Dados do
Censo Demográfico de 2010, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE,
disponíveis em: http://www.brasil.gov.br/governo/2012/08/brasil-tem-quase-900-mil-in-
dios-de-305-etnias-e-274-idiomas. Acesso em: 4 jan. 2018).
Segundo pesquisas recentes, existem no mundo umas 7.000 línguas! Algumas poucas
são usadas por milhões de pessoas, como o mandarim, na China, com cerca de 890 milhões de
usuários, e que é a língua mais falada no planeta; muitas outras são de pequenas comunidades.
O português é a quarta língua mais falada do mundo, com 261 milhões de utentes, con-
forme reportagem da Rádio e Televisão de Portugal – RTP Notícias, baseada no livro Novo
Atlas da Língua Portuguesa, publicado em 2016. (Cf. https://www.rtp.pt/noticias/pais/ au-
menta-numero-de-falantes-de-lingua-portuguesa_v962257. Acesso em: 11 jan. 2018). Como se
sabe, o português é língua oficial em nove países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, e Timor-Leste – os chamados
países lusófonos, lembrando que em alguns desses países há mais de uma língua oficial.
Mas curiosamente, dessas 7.000 línguas faladas hoje no mundo, apenas um terço são
também línguas gráficas, isto é, possuem um sistema de escrita, enquanto dois terços delas,
cerca de 4.650, são línguas ágrafas – e assim as suas manifestações literárias naturalmente se
reproduzem e são mantidas apenas por transmissão oral. Mas considerando que as línguas
ágrafas são faladas por pequenas comunidades, estatisticamente se sabe “que hoje a escrita é
praticada por cerca de 85% da população mundial – cerca de cinco bilhões de pessoas.”
(FISCHER, 2009, p. 9).
Sobre a origem multimilenar da arte literária, pesquisas revelam que cerca de 2.500 a
3.000 anos antes de Cristo, por exemplo, já circulavam poemas e narrativas produzidos na
civilização chinesa, cuja literatura seja, talvez, a mais antiga da história da humanidade. Uma
das obras clássicas da literatura chinesa é a coletânea de 305 textos, de diferentes autores anô-
nimos, intitulada Shi Jung ou Clássico da Poesia, com poemas, canções e contos que falam de
amor, de guerra e das mais variadas situações da vida cotidiana. Vários dos poemas foram
escritos por volta do ano 1.000 a. C. – grande parte deles se origina de canções populares, mas
há também poemas provenientes da nobreza. A organização e os cometários da coletânea Shi
Jing são atribuídos ao sábio Confúcio (551 a.C.- 479 a.C.), também autor de um dos mais
famosos livros da cultura chinesa – Os analectos, que quer dizer: coletânea de máximas,
provérbios ou ensinamentos morais. Nesse livro encontramos a famosa “regra de ouro”.
Por sua vez, nas origens da literatura grega vamos encontrar os poemas épicos Ilíada e
Odisseia, com narrativas que têm por referência a Guerra de Troia. Sua autoria é atribuída a
Homero, que os teria elaborado uns 800 anos antes de Cristo. Essas duas epopeias tiveram
grande circulação oral na Grécia Antiga por meio dos rapsodos, artistas ambulantes que iam
de cidade em cidade recitando episódios desses e de outros poemas. Sobre as duas obras ho-
méricas falaremos com mais detalhes no próximo capítulo.
Poema épico, epopeia: poema longo, de ação. Em geral tem por núcleo narra-
tivo episódios de guerra de um povo ou aventuras fantásticas de um pequeno
grupo. Destacam-se de alguns protagonistas – os heróis – que, por suas espe-
ciais qualidades e desempenho, causam admiração e servem de exemplo.
A produção, divulgação e consumo da literatura, com as reações que provoca nos indi-
víduos e nos grupos, tendem a gerar, em consequência, certo interesse por um maior conhe-
cimento a respeito dessa arte. Qual a sua natureza, seus componentes e formas de organiza-
ção? Suas modalidades, estilos, funções...? Quais as suas conexões com outras artes, como a
pintura, a música, o cinema, por exemplo? E qual a sua ligação com outros campos de inves-
tigação, como a filosofia, a psicologia, a história, a antropologia? Assim como também se in-
daga sobre quais as suas relações com a sociedade e a vida cultural dos povos.
Na cultura ocidental – que será o nosso foco – os estudos, pesquisas e debates sobre a
arte literária começam a surgir na Grécia Antiga por volta dos séculos 5º e 4º antes de Cristo,
ou seja, no chamado Período Clássico, considerado o apogeu da civilização grega, embora
bastante tumultuado por guerras. Durante esse período se destaca, do ponto de vista político
e cultural, a cidade-estado de Atenas, onde viveram os filósofos Platão e Aristóteles – tidos
como os primeiros grandes teóricos da literatura.
Manuel de Aguiar e Silva em seu livro Teoria da Literatura: “foi na segunda metade do século
XVIII que [...] o lexema literatura adquiriu os significados fundamentais que ainda hoje apre-
senta: uma arte particular, uma específica categoria de criação artística e um conjunto de textos
resultantes desta atividade criadora.” (SILVA, 1988, p. 9-10).
Entre os antigos romanos, o termo latino litteratura era o nome da disciplina escolar
dedicada ao ensino das primeiras letras, ou seja, à aprendizagem da leitura e da escrita. Com
o passar do tempo, na cultura ocidental a expressão literatura passou a designar a ciência de
modo geral, ou as humanidades, como se dizia; assim, o literato era o estudioso, o erudito, o
homem das letras, o humanista. Portanto, literatura era palavra usada para se referir generi-
camente a toda obra escrita, qualquer que fosse o seu gênero. Aliás, ainda hoje ela éutilizada
para indicar o conjunto de escritos de determinada área técnica ou científica, ou sobre qual-
quer tipo de questão, sendo sinônimo de bibliografia, como nas expressões “literatura mé-
dica”, “literatura jurídica”, “literatura marxista”, “literatura ufológica”, “literatura esotérica”,
ou como aparece nesta notícia da internet: “O Instituto Histórico-Cultural (INCAER), da Força
Aérea Brasileira, possui uma Biblioteca que reúne cerca de oito mil volumes da literatura ae-
ronáutica brasileira e estrangeira [...].”(grifo nosso) – e assim por diante.
A partir do Renascimento, por volta do século 15, o termo literatura passou a ser usado
de forma mais específica para se referir a uma arte – a chamada “belas letras”, e, finalmente,
“arte literária”. Seu emprego contemporâneo engloba as obras imaginativas, ou seja, de
cunho ficcional, que se caracterizam por especial estruturação e linguagem esteticamente tra-
balhada, como nos casos da narrativa em prosa (romance, conto...), da poesia e do teatro –
que são considerados os três gêneros clássicos da literatura.
Este filósofo viveu entre os anos 428 e 348 a. C., tendo atuado principalmente em Atenas,
sua terra natal. Descendia de família aristocrática e atuante na política. Aos 20 anos conhece o
filósofo Sócrates, tornando-se seu discípulo até 399, ano em que seu mestre, condenado à
morte por falsas razões políticas, morais e religiosas, foi sentenciado ao suicídio tendo de in-
gerir veneno, a cicuta. Platão tinha 29 anos nessa época. O último dia de
Sócrates é narrado por Platão em seu livro Fédon, quando o mestre dis-
corre serenamente sobre a vida após a morte. Sócrates, um dos fundadores
da filosofia ocidental, não deixou nada por escrito e o que dele sabemos
muito se deve principalmente às obras de Platão e de outro seu discípulo,
o historiador Xenofonte.
Decepcionado com a política, Platão viajou a estudos por várias re-
giões – Egito, África, Itália, Sicília... – e retornou a Atenas, dedicando-se à
filosofia. Aí fundou a sua Academia, considerada a primeira instituição de
ensino superior do Ocidente. Escreveu variados livros de filosofia sob a
forma de diálogos, dos quais 30 chegaram até nós - e constituem um dos
alicerces da filosofia ocidental até os dias de hoje. Platão morreu com cerca de 80 anos e es-
tava escrevendo seu último grande tratado: As Leis.
A primeira obra em foco, A REPÚBLICA, está dividida em dez capítulos ou livros – é um
de seus escritos mais importantes. Trata-se de uma utopia – nessa obra Platão expõe como se
poderia constituir uma sociedade perfeita e racional: organizada de forma ideal, justa, go-
vernada por sábios, e na qual a educação ocuparia importância decisiva. Nessa sociedade
perfeita, Platão vai permitir a presença apenas de poetas que produzam obras que sejam úteis
e instrutivas aos cidadãos e à construção da sociedade, que sejam racionais e fiéis à verdade.
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E expulsa da sua República Ideal os poetas que produzem obras onde há mentiras, ilusões,
injustiças, excessos de imaginação e emoção, que distraem as pessoas do caminho racional.
Nesse livro Platão já propõe uma primeira divisão das obras literárias em três gêneros,
com base em dois critérios – a MÍMESE (imitação) e a DIEGESE (a
narração). Assim, haveria:
1) Aquelas obras que são pura imitação (mímese), ou seja, desti-
nam-se à representação teatral, como a tragédia e a comédia – não
há narração (diegese) feita pelo poeta, mas só os diálogos das perso-
nagens em cena.
2) As obras em que há enunciação (diegese) feita pelo próprio po-
eta, ou seja, há um narrador que conta a história, como era o caso
dos ditirambos (cantos de louvor ao deus grego Dioniso).
3) E as obras de gênero misto, em que há narração (diegese) feita
pelo poeta e também imitação (mímese), por meio dos diálogos das
personagens, como ocorre nas epopeias (longos poemas narrativos).
Essa teoria está exposta no Livro III de A República. Platão
deixa de fora (de propósito, ao que parece) aquilo que hoje chamamos de poesia lírica: um
tipo de poesia em que uma voz – a voz do eu lírico – expressa, de modo subjetivo, suas ideias,
opiniões, sentimentos e emoções, o que seria contrário às propostas racionalistas de Platão.
No livro ÍON, o filósofo inventa um diálogo entre Sócrates e Íon, um rapsodo, isto é,
um declamador de poemas. Conversam sobre a poesia, os poetas e a inspiração poética. Pela
voz de Sócrates, Platão defende a tese de que o poeta não cria suas obras
por talento próprio, mas compõe sob a inspiração divina, ou seja, como
eles acreditavam, através das musas.
Em certa passagem, Sócrates afirma:
[...] o poeta é coisa leve, e alada, e sagrada, e não pode poetar
até que se torne inspirado e fora de si, e a razão não esteja mais
presente nele. Até conquistar tal coisa, todo homem é incapaz
de poetar e proferir oráculos. [... os poetas] não falam essas coi-
sas por arte, mas por uma capacidade divina [...] não são eles –
aos quais a razão não assiste – que falam essas coisas assim dig-
nas de tanta estima, mas que é o próprio deus quem fala, e por
meio deles se pronuncia a nós. (PLATÃO, 2007, p. 33-34).
Esta teoria platônica da “inspiração artística” será retomada, ao longo dos séculos até
os dias de hoje, por estudiosos (filósofos e psicólogos, por exemplo) e por artistas de diversas
áreas, sob diferentes enfoques. Vejamos um caso: a letra de Paulo César Pinheiro – um dos
maiores letristas da nossa música popular – para o samba Poder da Criação, feito em parceria
com João Nogueira. O texto assume integralmente a tese platônica da inspiração, como pode-
mos observar já nos primeiros versos da canção:
Não, ninguém faz samba só porque prefere
Força nenhuma no mundo interfere
Sobre o poder da criação
Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito
Nem se refugiar em lugar mais bonito
Em busca da inspiração
Não, ela é uma luz que chega de repente
Com a rapidez de uma estrela cadente
Que acende a mente e o coração
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Mais tarde, já no século 1º a. C., saindo da Grécia e indo para a Itália, vamos encontrar
na Roma dos Césares o seu primeiro escritor profissional, que viveu de sua fecunda produ-
ção literária, seja ela obra poética, seja obra teórica ou crítica. Trata-se de HORÁCIO, nascido
no ano 65 a. C. e falecido no ano 2 a. C.
Pisão era o sobrenome de uma rica família romana, cujo pai e filhos haviam solicitado a
Horácio orientações para a escrita literária, mais especificamente a poesia dramática, ou seja,
o teatro escrito em versos.
Dessa obra destacamos três pontos:
1) A firme orientação clássica, racionalista, de Horácio, quando
formula que a obra de arte é regida por leis próprias, que podem ser
aprendidas e aplicadas, tais como a unidade da obra, a harmonia e o
bom arranjo entre as partes, a proporção, o ritmo e o tom apropriados
a cada tema, a simplicidade etc.
2) As duas funções básicas que ele atribui à literatura: ser útil e
agradável. “Os poetas desejam ou ser úteis, ou deleitar, ou dizer coisas
ao mesmo tempo agradáveis e proveitosas para a vida. [...] Arrebata
todos os sufrágios quem mistura o útil ao agradável, deleitando e ao
mesmo tempo instruindo o leitor [...].” (HORÁCIO, 1981, p. 65).
3) Ênfase na concepção de que a obra literária resulta da harmo-
niosa cumplicidade entre dois fatores: o engenho (ou seja: o talento
natural do artista) e a arte (ou seja: o estudo, o conhecimento teórico e
prático, o domínio técnico da feitura de uma obra).
DE SUBLIME, de LONGINO
Mas, além da Poética de Aristóteles e da Arte Poética de Horácio, há uma terceira obra
que também teve importante influência na formulação de algumas vertentes teórico-críticas
da literatura e das artes em geral. Trata-se do livro DE SUBLIME, ou SOBRE O SUBLIME,
ou ainda TRATADO DO SUBLIME – atribuído a LONGINO ou PSEUDO-LONGINO, ou
ao ANÔNIMO, como hoje é habitual também se referir, pois pouco (ou nada...) se sabe sobre
o autor e as origens dessa obra.
Suposições: talvez se chamasse Dionísio Longino, teria vivido entre os séculos 1º e 3º
depois de Cristo, e deve ter sido um professor de retórica e/ou crítico literário, de tendência
neoplatônica, como a obra deixa perceber.
Nesse livro o autor defende a tese de que o “sublime” é a grande categoria estética a
ser atingida pelo escritor, mesmo que sua obra apresente pequenas falhas na linguagem. Logo
no início (Parte I, parágrafos 3 e 4) podemos ler:
[...] o sublime é o ponto mais alto e a excelência, por assim dizer, do discurso e
que, por nenhuma outra razão, primaram e cercaram de eternidade a sua glória os
maiores poetas e escritores. [...] Não é a persuasão, mas a arrebatamento, que os
lances geniais conduzem os ouvintes; invariavelmente, o admirável, com seu im-
pacto, supera sempre o que visa persuadir e agradar; o persuasivo, ordinaria-
mente, depende de nós, ao passo que aqueles lances carreiam [trazem consigo] um
poder, uma força irresistível e subjugam inteiramente o ouvinte. (LONGINO,
1981, p. 71-72; grifo nosso).
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Assim, a literatura, no decorrer dos tempos, passou a ser um objeto abordado sob vari-
ados enfoques e, em consequência, foi surgindo um vasto campo de saberes literários que
hoje chamamos de ESTUDOS LITERÁRIOS. Nele se encontram disciplinas, áreas ou ciên-
cias que mantêm entre si constantes e dinâmicas conexões, com mútuas influências e inevitá-
veis embates, além de interagirem com outros campos do saber, como a filosofia, a psicologia
e a história, por exemplo. São, principalmente, as seguintes áreas ou disciplinas:
TEORIA LITERÁRIA
CRÍTICA LITERÁRIA
HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA
LITERATURA COMPARADA
LITERATURA INFANTOJUVENIL
LITERATURA E ENSINO
TRADUÇÃO LITERÁRIA
Todas essas áreas foram e continuam se construindo num multifacetado processo so-
ciocultural e histórico, com diferentes vertentes e direções, que tanto podem se conectar e se
completar, como podem se distanciar, ou ainda se chocar e se contradizer...
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