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SÓFOCLES

ÁJAX

Tradução e notas de
Maria Luísa Resende

1
Prólogo

(Entra Ulisses, seguido de Atena)


ATENA
Sempre te tenho visto, filho de Laertes, 1 à caça de uma ocasião para te
medires com os teus inimigos;
e vejo-te agora perto das tendas que estão junto das naus
de Ájax, onde ocupa o posto mais afastado1.
Há muito que farejas e examinas 5 os seus rastos recentes, para perceberes
se está ou não lá dentro. Certeira te leva, ao teu fim,
a tua marcha, como a de uma cadela de bom faro da Lacónia2.
O homem encontra-se agora lá dentro,
gotejando-lhe o suor da cabeça e das mãos que matam com a espada. 10 Já
não é preciso espreitares para o interior
desta porta, mas diz-me antes com que fim
te dispuseste a este esforço, para que aprendas com quem sabe3.

ULISSES
Ó voz de Atena, a deusa que me é mais cara,
com que facilidade ouço as tuas palavras 15 e as apreendo no meu espírito,
embora estejas invisível4,

1
Já na Ilíada (Hom. Il. 8.224-6; 10.113; 11.7-9) o acampamento de Ájax se situava numa das extremidades do
exército grego, sendo o outro limite ocupado por Aquiles. Estas posições eram consideradas honrosas por
estarem mais expostas e, portanto, serem mais perigosas; cf. Hogan (1991: 181) e Garvie (1998: 124-125).
Segundo Rose (2012: 258), a audiência da peça poderia estabelecer um paralelo entre Ájax e Aquiles e
lembrar-se que, na Ilíada, o acampamento de Ulisses se situava no meio, no ponto mais seguro (Hom. Il.
8.222-3; 11.5-6). O local que Ájax ocupa pode ainda revelar o isolamento que, ao longo da tragédia, o
caracteriza; cf. Finglass (2011: 139).
2
Segundo Aristóteles (GA 781b), o cão da Lacónia distinguia-se pelo seu olfacto apurado, sendo a fêmea
superior ao macho (Arist. HA 608a), o que justifica a comparação de Ulisses com uma cadela; cf. X. Cyn.10.4;
Pl. Prm. 128c. Jouanna (1977: 170 n.2) defende que há, neste passo, reminiscências homéricas, pois, no Canto
X da Ilíada, durante a perseguição a Dólon, Ulisses e Diomedes são comparados com dois cães de caça (Hom.
Il. 10.360-4).
3
Apesar de já ter conhecimento das razões que levaram Ulisses a seguir Ájax, Atena começa por omitir esse
facto, estratégia presente no episódio homérico em que a deusa se aproxima de Telémaco como se fosse Mentes
(Hom. Od. 1.178ss).
4
O termo ἄπνπηνο é ambíguo, na medida em que tanto pode significar “visto de longe” como “invisível” ou
ainda “vagamente visível”. Seguimos Kamerbeek (1963: 22), Garvie (1998: 125) e Finglass (2011: 142), ao

2
como se saíssem da boca de uma trombeta de bronze da Tirrénia5.
E agora reconheceste bem que ando às voltas na minha marcha,
em demanda de um homem hostil, Ájax, o portador do escudo.
Há já muito tempo que estou no seu encalço, no dele e de nenhum outro. 20
Durante esta noite concluiu contra nós
um acto inconcebível, se na verdade o fez.
Não sabemos nada ao certo, mas estamos perplexos,
e eu, de bom grado, subjuguei-me a este labor.
Descobrimos há pouco tempo que todos os animais 25 do saque foram
destruídos e mortos
por mão humana, juntamente com os guardas dos rebanhos.
Na verdade, todos o culpam disto.
Uma testemunha, ao vê-lo a saltar sozinho
na planície com a espada ensopada em sangue, 30 contou-mo e revelou-mo.
E eu de imediato
me precipitei no seu encalço: mas ora indentifico os sinais,
ora me sinto aturdido e não consigo compreender onde está.
Chegas no momento oportuno; pois em tudo, tanto no passado,
como no futuro, fui guiado pela tua mão. 35

ATENA
Já sabia, Ulisses, e vim há pouco tempo para o caminho
como zelosa guardiã da tua caçada.

ULISSES
Querida soberana, será que me afadigo para atingir um bom resultado?

ATENA
Fica a saber que isso é obra desse homem.

optarmos pelo sentido de “invisível”, uma vez que Ulisses afirma que reconhece a deusa pela voz (Hom. Il.
2.182; 10.512). Buxton (1980: 22 n.1) afirma que o sentido “invisível” é preferível, porque estabelece um maior
contraste com os termos que remetem para a audição (θζέγγκα, v.14; θώλεκα, v. 16; ἀθνύσ, v. 16). 5Segundo os
Scholia Vetera, o termo θώδσλ deve ser entendido como a parte mais larga da trombeta: θώδσλ θαιεῖηαη ηὸ
πιαηὺ ηῆο ζάιπηγγνο; cf. também Garvie (1998: 126). A associação de Atena à trombeta está já presente nos
Poemas Homéricos (Hom. Il. 18.217-21) e, segundo Pausânias (2.21.3), existia em Argos um santuário em
honra de Atena Salpíngica. A trombeta tem origem etrusca, segundo os Scholia Recentiora, justificando-se
assim o adjectivo que a caracteriza; cf. A. Eu. 567-8; E. Heracl. 830-831.

3
ULISSES
E com que fim se precipitou ele num ataque tão desvairado? 40
ATENA
Ficou sob o peso da ira, por causa das armas de Aquiles.

ULISSES
Porque se lançou, então, sobre os rebanhos?

ATENA
Pensava que tingia as suas mãos na vossa chacina.

ULISSES
E essa decisão foi tomada assim, contra os Argivos?

ATENA
E tê-la-ia concretizado, se eu tivesse sido negligente. 45

ULISSES
Com que espécie de ousadia e com que audácia no seu espírito?

ATENA
Durante a noite, lançou-se sozinho, traiçoeiro, contra vós.

ULISSES
E então, chegou lá e atingiu o seu objectivo?

ATENA
Até já estava junto das portas dos dois comandantes.

ULISSES
E como refreou ele a sua mão ávida de chacina? 50

4
ATENA
Eu, atirando-lhe para os olhos ilusões
intoleráveis, afastei-o da incurável6alegria
e desviei-o em direcção aos rebanhos e aos animais do saque,
ainda por dividir, à guarda dos boieiros.
Então, lançando-se sobre os animais cornígeros, chacinou-os 55 em toda a
volta, quebrando-lhes a espinha. E tanto pensava que
matava os dois Atridas com as suas próprias mãos, enquanto os dominava,
como pensava que matava ora um, ora outro, enquanto se abatia sobre eles.
E eu incitava o homem inquieto por causa da doença
da loucura e atirava-o para redes funestas7. 60 A seguir, quando descansou
deste labor,
atou com cadeias os bois que estavam vivos
e todo o rebanho, levando-os para casa,
como se fossem homens e não presas de belos cornos.
E agora, dentro da sua casa, tortura-os, mantendo-os atados. 65
Mostrar-te-ei, também a ti, esta doença manifesta,
para que proclames a todos os Argivos aquilo que viste.
Espera o homem com confiança – não recebas isto como uma desgraça,
pois eu afastarei o brilho agitado dos seus olhos,
de modo a impedi-lo de ver o teu rosto. 70 Tu, é a ti que eu chamo, a ti que
prendes com cadeias
as mãos dos cativos atrás das costas, vem!
Convoco Ájax; avança para diante da casa!

ULISSES

6
O adjectivo ἀλήθεζηνο, derivado de ἄθνο, “remédio”, pode ser entendido como “incurável” devido ao prefixo
de negação. No entanto, também é possível, como afirma Kamerbeek (1963: 29), atribuir-lhe o sentido de
“funesto” ou de “nocivo”, possibilidade que Jebb (1907:19) prefere, ao verter o adjectivo por “baneful”.
Seguimos Winnington-Ingram (1979: 1) e Garvie (1998: 29) ao optarmos pelo sentido etimológico, que
introduz a metáfora da doença que será recorrente ao longo da peça (vv. 59, 66, 186, 208, 269, 271, 274, 280,
452, 581-2, 625, 634); cf. Stanford (1963: 62). A “incurável alegria” daria origem ao assassínio de Ulisses e dos
Atridas, o que seria, sem dúvida, uma situação insanável. Além disso, este passo implica que a doença seria um
sintoma de que as sementes da loucura já se encontrariam no carácter do guerreiro; cf. Winnington Ingram
(1980: 20-41) e Introdução, p. 21-22.
7
O termo ἕξθε intensifica a ironia da situação em que Ájax se encontra, pois o guerreiro era denominado ἕξθνο
Ἀραηῶλ, na Ilíada (Hom. Il. 3.229; 6.5; 7.211); cf. Worman (2001: 235).

5
Que fazes, Atena? Não o chames cá para fora, de modo algum!
ATENA
Não quererás ficar em silêncio, para não mostrares cobardia? 75

ULISSES
Não, pelos deuses! Basta que ele permaneça lá dentro.

ATENA
Que receias que aconteça? Não era ele um homem, outrora?

ULISSES
Era meu inimigo, como ainda agora.

ATENA
Acaso há riso mais doce do que rir-se dos inimigos?

ULISSES
A mim, basta-me que ele permaneça em sua casa. 80

ATENA
Hesitas ver um homem claramente enlouquecido?

ULISSES
Estivesse ele lúcido e eu não me afastaria com hesitação.

ATENA
Mas nem mesmo agora ele verá que estás aqui perto.

ULISSES
Como, se ele vê com os mesmos olhos?

ATENA
Cobrirei de trevas a sua vista, apesar de continuar a ver. 85

6
ULISSES
Tudo pode acontecer, se um deus o urdir.

ATENA
Agora, fica calado e permanece como estás.

ULISSES
Permanecerei, mas por acaso preferia não estar aqui.

ATENA
Ájax, chamo-te pela segunda vez.
Porque te interessas tão pouco pela tua aliada? 90 (entra Ájax)

ÁJAX
Saúdo-te, Atena, filha de Zeus.
Como estiveste bem a meu lado! Serão de ouro puro
os despojos com que te coroarei por esta presa.

ATENA
Falaste bem; mas diz-me, porque mergulhaste
a tua espada de modo certeiro no exército dos Argivos? 95

ÁJAX
Vanglorio-me disso e não nego que o tenha feito.

ATENA
Acaso também levantaste a tua mão contra os Atridas?

ÁJAX
De tal modo que estes jamais desonrarão Ájax.

7
ATENA
Estão mortos os homens, tanto quanto depreendo das tuas palavras.
ÁJAX
Que me despojem das minhas armas, agora que estão mortos. 100

ATENA
Muito bem. E o filho de Laertes?
Qual foi a sua sorte contigo? Será que te fugiu?

ÁJAX
Perguntaste-me onde está aquela raposa matreira?

ATENA
Sim. Falo de Ulisses, o teu adversário.

ÁJAX
O prisioneiro mais agradável, ó soberana, 105 está sentado lá dentro; não
quero matá-lo já.

ATENA
Antes de fazeres o quê ou de conseguires mais o quê?

ÁJAX
Antes de o atar a uma coluna que sustenta o tecto da minha habitação –

ATENA
Que mal farás depois ao desgraçado?

ÁJAX
- morrerá logo que o chicote deixe em sangue o seu dorso. 110

ATENA
Não tortures assim o desgraçado.

8
ÁJAX
Recomendo que te alegres com tudo o resto, Atena,
mas ele pagará esta pena e não outra.

ATENA
Então, uma vez que te deleita agir deste modo,
serve-te da tua mão e não te poupes naquilo que planeias. 115

ÁJAX
Corro em direcção à obra. Recomendo-te
que fiques sempre a meu lado, aliada como tens sido.

(Ájax entra na tenda)

ATENA
Vês, Ulisses, quão grande é a força dos deuses?
Poderias ter encontrado algum homem mais prudente do que este
ou melhor a fazer o que era oportuno? 120

ULISSES
Não conheço ninguém. Mas, ainda assim, compadeço-me
do desgraçado, embora me seja hostil,
porque foi subjugado por um funesto desvario,
e eu reparo tanto na sua situação quanto na minha.
Vejo que nós, que estamos vivos, não somos 125 senão imagens ou ténues
sombras.

ATENA
Então, ao veres isto, jamais
digas palavras arrogantes contra os deuses,
nem exaltes o teu valor, se excedes alguém
ou pela força da tua mão ou pela profundidade da tua imensa riqueza. 130

9
De facto, um só dia derruba e reergue de novo
tudo o que é humano. Os deuses amam
os sensatos8, mas detestam os infames.

(saem Atena e Ulisses. Entra o Coro)

Párodo

CORO
Ó filho de Télamon, senhor dos marítimos
fundamentos de Salamina que o mar envolve9, 135 com os teus sucessos me
regozijo.
Mas, quando um golpe de Zeus ou uma palavra
violenta e difamadora dos Dánaos te ataca,
sinto uma grande hesitação e aterrorizo-me
como o olhar de uma pomba alada10. 140 Também agora, nesta última noite,
nos envolve um grande tumulto,
para nossa infâmia, que diz que tu,
ao chegares ao prado abundante em cavalos, destruíste
o gado e o saque dos Dánaos, 145 que tinham sido conquistados pela lança e
que ainda restavam,
matando-os com o ferro fogoso.
Forjando tais palavras sussurrantes,
Ulisses transmite-as aos ouvidos de todos
e persuade-os com firmeza. Credível 150 é o que agora diz de ti, e todo
aquele que ouve
quem falou se alegra mais

8
É difícil verter numa única palavra o termo ζώθξσλ. Como afirma Garvie (1998: 137), no adjectivo grego estão
implícitos os sentidos de “disciplina”, “prudência”, “sabedoria”, “modéstia”. De acordo com
Winnington-Ingram (1980: 6), a ζσθξνζύλε é um estado mental que dirige a acção humana; como oposto da
ὕβξηο implica, como aduz Scodel (2005: 237), uma capacidade de reconhecer os limites da condição humana e
as obrigações sociais; cf. também Webster (1969: 39-40) e Budelmann (2000: 72-73).
9
A relação de Ájax com Salamina é referida, e.g., em Hom. Il. 2.557; Hes. fr. 204.44. 10 São comuns, na
literatura grega, as referências à pomba como símbolo da fragilidade (e.g., Hom. Il. 21.493- 4; 22.139-142; A.
Th. 292-4; Supp. 223-4; E. And. 1140).

10
a insultar o teu desespero.
Quem visa as grandes almas
não falhará o alvo; mas quem disser 155 tais coisas sobre mim não persuadirá
ninguém.
A inveja esgueira-se em direcção ao poderoso.
No entanto, sem os grandes, os pequenos
são uma torre de defesa11 que oscila.
Com a ajuda dos grandes o humilde erguer-se-á melhor, 160 assim como o
grande, quando assistido pelos mais pequenos.
Mas não é possível ensinar
a insensatos pensamentos destes.
Tais são os homens que te perturbam
e nós não temos força para nos 165 defendermos disto sem ti, soberano.
Quando evitam o teu olhar,
piam como bandos alados;
mas, com receio do grande abutre12,
se tu de súbito aparecesses, 170 assustar-se-iam, ficando em silêncio e sem
voz13.

Terá sido Ártemis Taurópola14, filha de Zeus


- ó poderosa notícia, ó
mãe da minha vergonha –
que te lançou contra os bois da manada que a todo o povo pertencia, 175
11
Ájax é considerado uma torre de defesa na Odisseia (Hom. Od. 11.556) e na Ilíada é designado como
“baluarte dos Aqueus”, ἕξθνο Ἀραηῶλ (Hom. Il. 3.229; 6.5; 7.211). Além disso, o seu escudo é várias vezes
comparado a uma torre (Hom. Il. 7.219; 11.485; 17.128).
12
Os abutres não caçam presas vivas, razão pela qual alguns críticos rejeitam o facto de αἰγππηόο ser um abutre.
Assim, Kamerbeek (1963: 52-53) prefere entender αἰγππηόο como um abutre-barbudo; Hogan (1991: 188)
considera que o termo se refere a um falcão, e tanto Stanford (1963: 80) como Davidson (1975: 165) preferem
“águia”. Contudo, segundo Garvie (1998: 141-142), não havia grande distinção entre águias e abutres entre os
Gregos, justificando-se assim a comparação de Ájax a um abutre que ataca pássaros mais pequenos. O passo
remete, provavelmente, para Hom. Il. 17.460 e Od. 22.302-6.
13
Segundo Gardiner (1987: 55), a expectativa do Coro de que o aparecimento de Ájax fará cessar todos os
boatos é compreensível num contexto homérico, pois remete para o temor dos Troianos quando viram
aproximar-se Aquiles (Hom. Il. 18.222-231).
14
O epíteto da deusa foi escolhido provavelmente pela associação entre ηαῦξνο e βνῦο, como defende Finglass
(2011: 190). O termo evoca o culto a Ártemis Taurópola, cujo testemunho é atestado por Estrabão, que refere a
existência de um templo dedicado a esta divindade na Ática (Str. 9.1.22). Este culto estava associado a um
poder destrutivo e, provavelmente, a orgias e a estados de loucura; cf. Davidson (1975: 170), Burton (1980: 13),
Burkert (1993: 134, 300) e Garvie (1998: 142).

11
ou por causa de uma vitória que não lhe trouxe recompensa,
ou por ter sido enganada em ínclitos despojos,
ou por a teres privado de oferendas numa caçada ao veado?
Ou poderá ter sido Eniálio de couraça de bronze15,
que, ressentido como teu companheiro de lança, 180/1 se vingou do ultraje
com estratagemas nocturnos16?
Jamais, ó filho de Télamon, enveredaste,
por tua iniciativa, por caminhos ínvios,
que te levassem a abateres-te sobre os rebanhos. 185 Seria uma doença
divina. Queiram
Zeus e Febo distanciar a funesta notícia dos Argivos!
Mas se os grandes reis
enganam com falsas histórias,
tal como o descendente da condenada linhagem de Sísifo17, 190 não,
soberano, não faças a funesta notícia crescer mais,
mantendo o teu rosto dentro das tendas junto ao mar.

Ergue-te do teu assento,


onde te demoras
nesse longo repouso da batalha, 195 inflamando um desvario que chega aos
céus.
A insolência dos inimigos lança-se assim, intrépida,
pelos vales expostos ao vento18,

15
Ainda que Eniálio seja uma das divindades que aparece nas Tabuinhas de Linear B, como referem Burkert
(1993: 102-103) e Finglass (2011: 194), e Aristófanes o distinga de Ares (Ar. Pax 457), neste passo há,
provavelmente, uma identificação de Ares com Eniálio, frequente, aliás, na literatura grega: Eniálio é aposto de
Ares em Hom. Il. 17.210-11 e é um nome alternativo deste em Hom. Il. 13.519; E. And. 1015-16; X. HG 2.4.17;
cf. Burkert (1993: 335).
16
De acordo com Fialho (1992: 24), o adjectivo ἐλλύρηνο tem duas interpretações possíveis: “que acontece de
noite” ou “que tem a natureza da noite”. Assim, como refere a estudiosa, a dupla acepção do adjectivo confere
ambiguidade ao passo, que, desta forma, remete para as circunstâncias em que o ataque de Ájax foi cometido, e,
ao mesmo tempo, evoca a loucura que afligiu o guerreiro, pois não esqueçamos que também a demência da
personagem está associada à escuridão (cf. v. 85). Para uma análise da relação estabelecida entre a loucura e a
noite cf. Fialho (1992: 24-26).
17
Ao longo da tragédia, atribuem-se duas genealogias a Ulisses: filho de Sísifo neste passo, ele aparece como
filho de Laertes noutros versos desta mesma tragédia (S. Aj. 1, 101, 380 e 1393). Segundo a versão do mito
presente neste verso, Anticleia, mãe de Ulisses, já estaria grávida de Sísifo quando casou com Laertes. A
relação estabelecida com Sísifo realça as características negativas da personagem, entre as quais a utilização do
dolo (cf. v. 148: ηνηνύζδε ιόγνπο ςηζύξνπο πιάζζσλ). Note-se, no entanto, a ironia presente no passo: o Coro
atribui a Ulisses um carácter pérfido ao apresentá-lo como filho de Sísifo, mas, na verdade, foi Ájax quem
tentou atacar o exército, durante a noite, como fizera Ulisses na Ilíada (Hom. Il. 10.249ss).
12
enquanto todos se riem às gargalhadas
com palavras que causam pesadas dores.
Mas para mim permanece o desespero. 200

Primeiro Episódio
(entra Tecmessa)
TECMESSA
Assistentes da nau de Ájax,
descendentes da linhagem dos ctónicos Erectidas19,
ao cuidarmos, de longe, da casa de Télamon,
temos razão para nos lamentarmos.
Agora o terrível Ájax, 205 poderoso e de fortes ombros,
jaz, doente, vítima de uma sombria tempestade.

CORO
Que pesar é que esta noite recebeu
<…> em troca do dia20?
Filha do frígio Teleutas21, 210 fala, uma vez que pertences ao impetuoso
Ájax,

18
De acordo com uma leitura presente nos Scholia Vetera, fica implícita, neste passo, a metáfora do fogo que se
propaga com facilidade, quando impelido pelo vento. Contribui para esta imagem a referência, no verso 196, a
θιέγσλ, que associa a loucura de Ájax ao fogo; cf. Kamerbeek (1963: 60) e Finglass (2011: 200). Foi esta a
leitura que procurámos seguir ao traduzirmos o adjectivo εὐάλεκνο por “exposto ao vento”. Davidson (1976:
133) sugere, no entanto, que ἐλ εὐαλέκνηο βάζζαηο seja interpretado como “em vales abrigados”. O adjetivo é
usado com este sentido em Eurípides Andr. 749. De acordo com esta interpretação, os inimigos de Ájax ter-se
ão sentido seguros ao ridicularizá-lo, por não esperarem qualquer retaliação.
19
De acordo com a Ilíada, Erecteu foi um rei de Atenas que nasceu da terra. Alimentado por Atena, foi
cultuado pelos Atenienses com oferendas (Hom. Il. 2.547-51). Lembremos que Eurípides atribui aos Atenienses
o epíteto de ἖ξερζεΐδαη (E. Med. 824). Apesar de o Coro ser originário de Salamina e não de Atenas, havia uma
relação próxima entre as duas regiões, como se depreende do verso 861, em que Ájax se refere aos Atenienses
como ζύληξνθνλ γέλνο. Além disso, já na Ilíada se encontra uma associação entre Salamina e Atenas (Hom. Il.
2.557-8).
20
Há uma lacuna no texto e as possibilidades de correcção são rejeitadas por Finglass (2011: 205-206), razão
pela qual o filólogo opta por imprimir a lacuna, assim como Dawe (1996:11).
21
Não há provas de que Tecmessa fosse uma personagem do mito, pois não aparece na literatura pré sofocliana.
Há uma referência, na Ilíada, a um prémio de Ájax, mas o seu nome não é referido (Hom. Il. 1.136- 9). Para
Garvie (1998: 147-148) o facto de ser identificada, primeiro, pelo seu patronímico, pois só no verso 331 é
nomeada, poderá significar que seria facilmente identificável pela sua linhagem. Para Finglass (2011: 206), pelo
contrário, mesmo que pertencesse ao mito, seria pouco conhecida. Mas, porque o Coro a apresenta de modo
completo, nos versos que se seguem, ao esclarecer que ela foi conquistada pela lança e que pertencia
a Ájax, não podemos descurar a possibilidade de Sófocles estar a introduzir uma nova personagem no mito; cf.
Gardiner (1987: 58).

13
tu que te sujeitas a um tálamo conquistado pela lança,
pois não serão ignaras as tuas palavras.

TECMESSA
De que modo hei-de narrar uma história inenarrável?
Na verdade, conhecerás um sofrimento semelhante à morte. 215 Preso pela
loucura, o nosso glorioso Ájax
ultrajou-se, durante a noite.
Verás, dentro da tenda, essas
vítimas despedaçadas pelas suas mãos, cobertas de sangue,
sacrifícios daquele homem22. 220

CORO
Que notícia intolerável e inelutável 221/2 do homem fogoso23 nos revelaste,
222/3 pelos poderosos Dánaos divulgada 224/5 e pela poderosa história
engrandecida!
Ai de mim! Temo o que se acerca. O homem 227/8 morrerá à vista de todos, por
ter massacrado, 229/30 com a espada negra na mão demente, 231/2 as ovelhas e
os pastores que as guardavam a cavalo.

TECMESSA
Ai de mim! Foi de lá, então, que veio,
conduzindo o rebanho acorrentado!
Degolava alguns lá dentro, sobre a terra; 235 e dilacerava outros,
trespassando-lhes o flanco.

22
Estas palavras têm de ser interpretadas à luz do limitado conhecimento de Tecmessa, que só saberá que os
feitos de Ájax foram causados pela loucura originada por Atena quando o próprio Ájax o referir (v. 401-403;
447-459). Assim, Tecmessa tenta explicar o que viu com termos que remetem para o sacrifício de animais; cf.
Jong (2006: 87-88). Segundo Finglass (2011: 207), a alusão a sacrifícios aumenta o horror da descrição, pois
está patente o contraste entre a ordem do ritual e a loucura desenfreada de Ájax. Além disso, a execução do
morticínio dentro da tenda perverte as normas sacrificiais. Para uma descrição da prática comum dos sacrifícios
cf. Burkert (1993: 127-133).
23
Além de indicar o temperamento ardente e impetuoso de Ájax, o epíteto αἴζσλ associa-o à sua espada (v. 147)
e poderá também remeter para a Ilíada, nomeadamente para a comparação de Ájax com um “fulvo leão” (Hom.
Il. 11.548); cf. Stanford (1963: 90) e Garvie (1998: 148).
14
Prendeu então dois carneiros de pés brancos24:
a um, ceifou a cabeça e a extremidade da língua
e arremessou-as25; a outro, atou-o em pé
ao alto da coluna 240 e, agarrando numa grande corda de atar cavalos,
feriu-o com o duplo chicote de som sibilante,
injuriando-o com palavras funestas
que uma divindade, e não um homem, lhe ensinou26.

CORO
É já a hora de qualquer um de nós, cobrindo a cabeça 245/6 com um véu27,
fugir a pé,
ou, sentando-se no banco veloz do remador,
deixar ir a nau pelo mar fora. 250 Tais são as ameaças que os prepotentes
Atridas
lançam contra nós! Temo partilhar a dor
da delapidação de Ares28, ficando ferido como aquele 255/6 que um implacável
destino retém.

TECMESSA
Já não. Como o Noto29, que se precipita,

24
Os dois carneiros são, provavelmente, Agamémnon e Ulisses, os principais inimigos de Ájax, entre os
Gregos. O primeiro carneiro será Agamémnon, a quem Ájax corta a língua por ter proferido a sentença do
Julgamento das Armas contra si, e o segundo é Ulisses, de acordo com as palavras que Ájax profere nos versos
105-10; cf. Garvie (1998: 149) e Finglass (2011: 212).
25
A linguagem de Tecmessa remete novamente para o tema do sacrifício invertido (cf. n. 42), pois ἀλαηξέσ é
utilizado, na Odisseia, como um termo sacrificial (Hom. Od. 3.453-4) e a extracção da língua dos animais era
uma prática ritual (Hom. Od. 3.341); cf. Segal (1999: 139).
26
Segundo Dodds (1951: 68), era comum, na cultura grega, a associação da loucura a forças sobrenaturais,
havendo a crença de que as pessoas que se encontravam sob o efeito da loucura eram capazes de falar línguas
divinas; cf. Dodds (1951: 85, n. 24).
27
O acto de cobrir a cabeça é um sinal de vergonha (e.g., Hom. Od. 8.83-86; E. Hipp. 243-244); cf. Cairns
(1993: 6).
28
Como deus da guerra, Ares sugere destruição e morte. Segundo Burton (1980: 18), a morte por delapidação
era o castigo reservado aos que cometiam crimes contra a comunidade. De facto, ao destruir o gado do saque
que ainda não estava distribuído, informação repetida diversas vezes ao longo da tragédia (S. Aj. 26, 54, 144-
146, 175), Ájax praticou um crime não apenas contra os dois Atridas, mas contra todo o exército. Pearson
(1922: 131-132) cita várias situações, na literatura grega, em que está presente a ameaça deste tipo de morte
(e.g., Hom. Il. 3.56-57; A. Th. 199; E. Tr. 1039).
29
Vento do Sul.

15
penetrante, sob o fúlgido raio, também ele amaina;
e agora, lúcido, domina-o uma nova dor.
Ver o sofrimento próprio, 260 sem que nenhum outro o inflija,
prolonga os grandes tormentos.

CORO
Mas se já parou, penso que é afortunado,
pois fala-se menos do mal depois de ele partir.

TECMESSA
O que preferirias, se alguém te desse a escolher: 265 afligires os teus amigos
e teres prazer,
ou partilhares as suas mágoas e sofreres com eles?

CORO
Um duplo mal, mulher, é sem dúvida maior.

TECMESSA
Agora que ele não está doente, padecemos nós.

CORO
Que estás a dizer? Não percebo o que dizes. 270

TECMESSA
Aquele homem, enquanto estava sob o efeito da doença,
comprazia-se com os males que o dominavam.
Mas a nós, que estávamos lúcidos, afligia-nos a sua companhia.
E agora que acalmou e recuperou da doença30,
é completamente perseguido por uma funesta angústia 275 e nós, de igual
modo, não estamos melhor do que antes.
Não é isto passar de um simples mal para males duas vezes maiores?

30
A expressão θἀλέπλεπζε ηῆο λόζνπ sugere a respiração irregular provocada pela loucura; cf. Finglass (2011:
220).

16
CORO
Concordo contigo e receio que se trate de um golpe
de um deus. Como poderia não ser isto, se, agora que a doença já passou, não
sente mais alegria do que quando estava doente? 280

TECMESSA
É necessário que saibas que é assim que as coisas são.

CORO
Como se iniciou o mal que, um dia, sobre ele se abateu?31
Revela-nos o que aconteceu, a nós que partilhamos contigo a tua dor.

TECMESSA
Tomarás conhecimento de todo o sucedido, pois também te diz respeito. No
auge da noite, quando as tochas do entardecer 285 já não ardiam, ele,
agarrando na espada de duplo gume,
ansiava por se esgueirar para uma vã missão.
Eu repreendo-o e digo: “Ájax, que estás a fazer?
Porque te lanças nesta tentativa, sem seres chamado, nem convocado
por mensageiros, e sem teres ouvido o toque da trombeta? 290 Além de que
agora todo o exército está a dormir.”
Ele disse-me poucas palavras, e sempre as mesmas:
“Mulher, o silêncio é o ornamento das mulheres32.”
Eu, ao compreender, cessei de falar, e ele apressou-se sozinho.
E o que lhe sucedeu aí, não consigo contar. 295 Quando entrou, trazia touros
atados uns aos outros,
cães pastores e uma presa coberta de lã.
Cortava o pescoço a uns e, virando outros ao contrário,
31
O verbo πξνζπέηνκαη evoca a imagem dos pássaros, introduzida pelo Coro no Párodo (S. Aj. 140, 167-71). Há
uma certa ironia na referência, pois Ájax, comparado no versos 169-171 a um abutre que assustava os pássaros
mais pequenos, é agora vítima da doença da loucura.
32
Este juízo é um lugar comum na cultura grega, como se infere da referência que Aristóteles faz ao verso
sofocliano (Arist. Pol. 1260a30). Segundo Kamerbeek (1963: 75), a frase tem valor proverbial (e.g., E. Heracl.
476-7; Hipp. 394-399); cf. também Bowra (1965: 23-24). Assim, como afirma Webster (1969: 57), Ájax não é
violento nem rude para com Tecmessa, está apenas a agir de acordo com os preceitos atenienses; cf. também
Winnington-Ingram (1983: 241).

17
degolava-os e quebrava-lhes a espinha; aos restantes, que estavam presos,
torturava-os como se fossem pessoas, embora se abatesse sobre rebanhos. 300
Por fim, precipitou-se pelas portas e, voltando-se para uma sombra,
lançou uma enxurrada de palavras; umas contra os Atridas,
outras acerca de Ulisses, com muitas risadas33
por se ter vingado deles de modo tão excessivo na sua incursão.
Em seguida, regressando de novo a casa, 305 a custo e com o tempo,
recuperou o juízo.
Quando viu a habitação plena de desvario,
gritou, batendo na cabeça. Destroçado, sentou-se
entre os destroços dos carneiros chacinados,
arrepelando os cabelos com as unhas, entre as suas mãos. 310 Ficou sentado
sem voz durante a maior parte do tempo.
Em seguida, ameaçou-me com palavras terríveis,
se não lhe mostrasse todo o sofrimento que lhe acontecera.
[E perguntou em que situação se encontrava34].
E eu, amigos, receosa, disse-lhe 315 tudo o que tinha feito, tanto quanto
sabia.
De imediato ele soltou gemidos deploráveis,
que jamais eu lhe ouvira antes.
Dantes considerava gemidos destes
próprios de um ser infame e pusilânime. 320 Mas sem o estridor de
queixumes penetrantes,
lamentava-se como um touro a mugir.
Agora, prostrado por tão funesta sorte,
o homem está sem comer e sem beber, sentado em silêncio,
caído no meio do gado que matou com a espada. 325 E é evidente que deseja
fazer algum mal,
[pois ora fala nesse sentido, ora se atormenta35].

33
Segundo Halliwell (2008: 17-18), é comum associar-se o riso à loucura, o qual pode ser entendido como um
sintoma de demência.
34
Finglass (2011: 231), Dawe (1996: 16) e Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 14) optam pela supressão deste verso,
porque ele repete o que foi dito nos versos precedentes, além de que é surpreendente a mudança de tom em
Ájax. Segundo Finglass, o acrescento explica-se como uma tentativa de introduzir um verbo interrogativo. 35
Finglass (2011: 234) opta por suprimir o verso, assim como Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 15) e Dawe (1996:
16). Para Dawe (1973: 138), as formas verbais ιέγεη e ὀδύξεηαη não se coadunam semanticamente. Para

18
Mas, amigos – é por isto que para aqui vim –,
entrai para o assistirdes, se podeis fazer algo,
pois pessoas assim são vencidas pelas palavras de amigos. 330

CORO
Tecmessa, filha de Teleutas, são terríveis os males
que nos dizes terem transtornado este homem.

ÁJAX
Ai! Ai de mim! Ai de mim!

TECMESSA
Parece que em breve ficará pior. Ou não ouvis
estes gritos que Ájax solta? 335

ÁJAX
Ai! Ai de mim! Ai de mim!

CORO
Parece que o homem ou está doente ou se angustia
com a loucura anterior que ainda o acompanha.

ÁJAX
Ai! Filho, meu filho!

TECMESSA
Ai de mim! Que desgraça! Eurísaces, grita por ti. 340 Que será que ele
deseja? Onde estás? Que desgraça a minha!

Finglass (2011: 234) e West (1978: 109) existe uma inconsistência em relação ao verso 325, no qual ἥζπρνο
indica que Ájax se encontra em silêncio (cf. n. 60), razão apresentada por Finglass (2011: 234) e por West
(1978: 109) para a supressão do verso. Dado que verso 326 anuncia a possibilidade de suicídio de Ájax, se o
verso 327 permanecer no texto, o prenúncio do suicídio de Ájax baseia-se nos lamentos da personagem; se, por
outro lado, for suprimido, o prenúncio assenta no seu silêncio. Tendo em conta os suicídios de Jocasta (O.T.
1072), Eurídice (Ant. 1244-1245) e Dejanira (Traq. 813), West conclui que a última hipótese é a que melhor se
coaduna com a prática sofocliana. Para uma análise do silêncio destas personagens, cf. Várzeas (2001: 47-49;
62-66; 82-87). De facto, como afirma Fraenkel (1977: 12), é a instabilidade que Ájax revela, ao ficar em
silêncio, depois dos lamentos que proferiu, que infunde receio a Tecmessa.

19
ÁJAX
Chamo Teucro. Onde está Teucro? Será que ele continuará
para sempre no saque? Eu sinto-me perdido.

CORO
Parece que o homem está lúcido. Abri as portas!
Talvez, ao ver- me, ele sinta alguma vergonha. 345 (Tecmessa abre a porta. Vê-se

Ájax)

TECMESSA
Vê, estou a abrir a porta. É-te possível olhar
para os seus actos e ver como ele se encontra.

ÁJAX
Ai!
Nautas amigos, os únicos de entre os meus amigos,
os únicos que ainda permanecem na recta lei. 349/50 Vêde que onda imensa me
envolve 350 girando em torno de mim há algum tempo, 351/2 instigada por uma
procela sanguinária.

CORO
Ai de mim, o teu testemunho parece-me bastante correcto.
O acto torna evidente que ele está privado de lucidez. 355

ÁJAX
Ai!
Seres que me assistem na arte naval, 356/7 que navegastes volteando o remo
sobre o mar, 357/8 vejo que vós, apenas vós,
me socorrereis na minha calamidade. 359/60 Mas juntai-vos e matai-me.
20
CORO
Profere palavras de bom augúrio. Não aumentes a calamidade da tua ruína
por dares a um mal um mau remédio.

ÁJAX
Vês o homem audaz, corajoso,
intrépido entre os inimigos, no combate, 365 a ter um braço terrível36 para
animais que não inspiram temor37?
Ai de mim! Que risível sou! Como fui ultrajado!

TECMESSA
Ájax, senhor, suplico-te, não digas isso.

ÁJAX
E quanto a ires-te embora? E se levasses os pés para outras pastagens? Ai!
Ai! Ai! Ai! 370

TECMESSA
Pelos deuses, cede e sê sensato!

ÁJAX
Ó que infortunado sou! Das mãos
deixei escapar os malditos
e, lançando-me sobre os bois de cornos
recurvos e cabras a balir38, 375

36
Segundo Stanford (1963: 269), a alteração da pessoa verbal contribui para criar um estilo fluido e corrente. 37
Há uma certa ambiguidade na expressão ἀθόβνηο ζεξζί que tanto pode significar “animais que não inspiram
temor” como “animais que não temem”; cf. Jebb (1907: 65) e Garvie (1998: 51). Seguimos a primeira
interpretação, que está presente nos Scholia Vetera, porque o que está em causa é o contraste entre a força de
Ájax e a fragilidade das suas vítimas, as quais, por não representarem qualquer ameaça, contribuem para a
caracterização do ataque de Ájax como o inverso de um combate glorioso; cf. Kamerbeek (1963: 86-87), e
Stanford (1963: 108-109). Como afirma Finglass (2011: 246), Ájax está preocupado com a sua humilhação e
não com a inocência dos animais.
38
Stanford (1963: 110) e Garvie (1998: 161), seguindo uma das leituras propostas pelos Scholia Recentiora,
atribuem o sentido de “nobre” ao epíteto θιπηόο, cujo objectivo seria o de enfatizar o carácter ridículo da
chacina. Finglass (2011: 249), partindo do facto de a nobreza não ser uma característica própria de cabras e
estabelecendo um paralelo entre os dois dativos, ἑιίθεζζη βνπζί (v. 347) e θιπηνῖο αἰπνιίνηο (v. 375), entende o
21
derramei o seu negro sangue.

CORO
Porque te há-de pesar a dor de feitos passados?
As coisas são como são.

ÁJAX
Ai! Tu, que tudo vês, eterno instrumento
de todo o mal, filho de Laertes, 380 o impostor mais imundo do exército,
causas certamente muito riso por prazer.

CORO
É com o consentimento do deus que todos riem e se atormentam.

ÁJAX
Pudesse eu vê-lo, mesmo assim, nesta ruína39.
Ai! Ai de mim! Ai de mim! 385

CORO
Não digas palavras altivas. Não vês
a funesta situação em que te encontras?

ÁJAX
Ó Zeus, pai dos pais dos meus antepassados40,

adjectivo θιπηόο como uma referência a uma característica animal. Na verdade, enquanto adjectivo verbal,
derivado de θιύσ, “ouvir”, θιπηόο pode significar: 1. “glorioso” no sentido de “aquele de quem se ouve falar”;
cf. Chantraine (1999: 541) e Beekes (2010: 719); 2. “audível”, pois o sufixo -ηνο exprime a possibilidade, (e.g.,
ὀξαηόο “visível”). Contudo, uma vez que, como lembra Easterling (1999: 96), a linguagem sofocliana oscila
entre o sentido literal e o metafórico, jogando com a duplicidade semântica, a melhor forma de ler a expressão
θιπηνῖο αἰπνιίνηο consiste em lhe atribuir ambos os sentidos. Assim, se, por um lado, a acepção de “audíveis”
se coaduna com o contexto, por outro lado, a ideia de “nobre” confere uma carga irónica ao discurso: θιπηόο
seria, sem dúvida, um adjectivo adequado aos guerreiros que Ájax pensava, na sua loucura, estar a matar. 39 Há,
neste passo, uma aposiopese, ou seja, uma suspensão retórica do que estava a ser dito, pois Ájax quer não
apenas ver Ulisses, mas também assistir ao seu sofrimento. O curso do seu pensamento é interrompido pelos
seus lamentos, que se seguem à referência à ruína em que se encontra: ao falar do seu estado, Ájax não
consegue, aparentemente, deixar de se lamentar, pausa que o Coro aproveita para tentar, novamente, acalmá-lo e
admoestá-lo; cf. Kamerbeek (1963: 90), Garvie (1998: 162) e Finglass (2011: 252-253). 40 Éaco, pai de Télamon
(v. 644-645) e avô de Ájax, era filho de Zeus (Hom. Il. 21.189).
22
como poderei destruir o mais astuto,
o odioso impostor
e os dois reis que governam em conjunto, 390 e morrer também eu próprio,
por fim?

TECMESSA
Quando fizeres essa prece, roga que também eu morra,
pois porque hei-de eu viver, se tu estás morto?

ÁJAX
Ai!
Trevas, que sois a minha luz,
Érebo, o mais luminoso, para mim, 395 levai-me, levai-me como vosso
habitante,
levai-me; já não sou digno de olhar
nem para a estirpe dos deuses, nem para a dos homens
que vivem um dia apenas, em busca de algum proveito. 399/400 Mas a
valorosa deusa,
filha de Zeus,
tortura-me †para minha perdição41†.
Para onde se poderá fugir?
Para onde hei-de ir, em busca de refúgio?
Se isto <…> 405a se extingue, amigos, 405b juntamente com estes †perto de
mim†,
e se me envolvi numa estulta caça42,
todo o exército brandindo a espada
me chacinará, com as suas próprias mãos.

TECMESSA
Ó que desditosa sou! Um homem tão capaz a proferir 410

41
A partir da análise métrica, vários editores concluem que ὀιέζξηνλ é uma palavra corrupta; cf. Campbell
(1881: 44), Garvie (1998: 163) e Finglass (2011: 256-257).
42
O passo é obscuro, havendo nele uma lacuna que se pode identificar pela análise métrica; cf. Garvie (1998:
163), Lloyd-Jones e Wilson (1990a: 19) e Finglass (2011: 257-260).
23
palavras que outrora nunca teria suportado.

ÁJAX
Ai!
Caminhos marulhantes,
cavernas junto ao mar, bosques da margem,
há já muito, muito tempo
que me retendes em Tróia. 415/6 Mas não mais, não mais o fareis,
enquanto eu respirar. Que o saiba aquele que tiver senso.
Ó correntes vizinhas
do Escamandro,
gentis aos Argivos, 420 não mais vereis este homem – direi
palavras altivas –
um guerreiro tal como
Tróia nunca viu chegar
da terra helénica43. Mas agora 425 aqui estou prostrado, sem honra.

CORO
Não te posso impedir, nem sei como te hei-de deixar falar,
tendo tu caído em tais males.
ÁJAX
Ai! Ai! Quem poderia prever que o meu 430 nome seria, assim, epónimo dos
meus males44?
Agora posso lamentar-me duas vezes
[e três, tais são os males em que me encontro45].

43
Na verdade, Ájax era o segundo melhor guerreito do exército; superava-o Aquiles (S. Aj. 1338-1341; Hom. Il.
2.768-769; Od. 11.469-470; 11.550-551; 24.17-18; Pi. N. 7.26-27).
44
De acordo com Garvie (1998: 165), era comum, na cultura grega, a crença de que o nome poderia revelar o
carácter ou o destino da pessoa. Ájax, tirando partido da semelhança fonética existente entre o seu próprio
nome, Αἴαο, e a interjeição αἰαῖ, conclui que o nome prenunciava a calamidade que sobre si haveria de se abater.
45
Finglass (2011: 265) opta pela supressão deste verso, assim como Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 19), por
várias razões: 1. A expressão θαὶ δὶο explica o facto de Ájax ter dito αἰαῖ no verso 430, ou seja, ter dito “ai”

24
O meu pai, regressando desta terra do Ida, foi distinguido
pela sua excelência guerreira com o mais belo prémio46, 435 e chegou a casa
coberto de glória.
E eu, o seu filho, tendo vindo
para o mesmo sítio de Tróia, com uma força não inferior,
eu que não realizei obras menores com a minha mão,
sinto-me assim perdido, desonrado pelos Argivos47. 440 Contudo, penso que,
pelo menos, uma coisa eu sei:
se Aquiles estivesse vivo e, na contenda pelas suas armas,
estivesse para decidir a quem daria a vitória pela excelência,
nenhum outro ganharia, a não ser eu.
Mas agora os Atridas agiram em benefício de alguém 445 de espírito
ardiloso, rejeitando as vitórias deste homem que vedes.
Se estes olhos e este meu espírito não tivessem sido desviados
nem se tivessem precipitado para longe do meu pensamento,
jamais teriam votado uma sentença assim, contra outrém.
Agora a filha de Zeus, a deusa indomável de olhar de Górgona48, 450 quando
eu já tinha dirigido a minha mão contra eles,
derrubou-me, lançando sobre mim uma doença furiosa,
de modo a que eu cobrisse as minhas mãos com o sangue deste gado.
Aqueles riem-se, por terem escapado,
contra a minha disposição. Se algum deus 455 lesar quem quer que seja, até
mesmo o infame fugirá do mais forte.
E agora, que devo eu fazer? Sou claramente odiado
pelos deuses, o exército dos Helenos detesta-me,
odeiam-me Tróia inteira e estas planícies.

duas vezes e não apenas uma. 2. Há uma relação sintáctica e semântica entre os versos 432 e 434 dificultada
pela interposição do verso 433; cf. também Lloyd-Jones e Wilson (1990a: 19).
46
Télamon participou, com Héracles, na expedição contra Tróia em que Laomedonte, o rei de Tróia, foi morto.
Como prémio, Héracles ofereceu Hesíone, filha de Laomedonte, a Télamon (S. Aj. 1300-1303), com a qual este
gerou Teucro (Apollod. 3.12.7; D.S. 4.32). Segundo Finglass (2011: 266-267), Sófocles é o primeiro autor a
fazer de Hesíone o prémio de Télamon.
47
Há uma certa ambiguidade na interpretação do dativo Ἀξγείνηζηλ. Garvie (1998: 55) opta por um dativo de
ponto de vista, Stanford (1963: 116) prefere o dativo de agente, mas, segundo Finglass (2011: 268), ambas as
hipóteses são válidas neste passo. Perante a ambiguidade, que consideramos que pode ser propositada, optámos
pela leitura de dativo de agente, porque imputa a culpa da desonra a outrém, atitude que é apanágio da
personagem ao longo da peça.
48
Cf. S. fr. 844.2 TrGF, E. Hel. 1315-16 para uma associação do olhar de Atena à Górgona. Na Ilíada, a égide
da deusa está ornamentada com a cabeça da Górgona (Hom. Il. 5.741-2).
25
Será que hei-de ir para casa, deixando o meu assento nos navios ancorados 460
e os Atridas sozinhos, e hei-de atravessar o mar Egeu?
Que rosto hei-de mostrar a meu pai, Télamon,
quando lhe aparecer? Como suportará ver-me
quando eu aparecer nu, sem o prémio da excelência,
pela qual ele próprio recebera a grande coroa de glória? 465 Isso é
insuportável. Então será que hei-de ir
para as muralhas de Tróia, para travar duelos49
e depois, fazendo algo digno, morrer, por fim?
Mas assim regozijarei os Atridas, julgo eu.
Isto não pode ser. Devo procurar um recurso tal 470 que me permita mostrar,
ao meu idoso pai,
que não tem uma natureza cobarde aquele que dele nasceu.
É uma ignomínia que um homem deseje uma vida longa
quando os seus males não se alteram.
Que deleite há em que um dia se suceda a outro dia, 475 †aproximando e
adiando o momento da morte50†?
Eu não daria nada por nenhum mortal
que se consolasse em esperanças vãs.
O homem nobre deve viver de modo belo
ou morrer de modo belo51. Acabaste de ouvir tudo o que eu tinha para dizer. 480

49
A expressão μπκπεζὼλ κόλνο κόλνηο, que significa “abatendo-me sozinho sobre os que estão sozinhos”,
poderá ser entendida de dois modos diferentes: 1. Ájax travará uma série de duelos, leitura seguida por Stanford
(1963: 118-119) e Garvie (1998: 163); 2. Ájax enfrentará, sozinho, todos os Troianos, leitura de Jebb (1907: 79)
e Finglass (2011: 273- 274). De acordo com esta última interpretação, tendo em conta o número superior dos
Troianos, seria de esperar, como defende Finglass (2011: 274), a expressão πνιινῖο κόλνο, “sozinho contra
muitos”, em vez de κόλνο κόλνηο, “sozinho contra os que estão sozinhos”. O estudioso considera que a
expressão usada reflecte a concepção que Ájax tem de si próprio como guerreiro, mas achar-se capaz de
enfrentar, sozinho, todos os Troianos coadunar-se-ia melhor com a expressão πνιινῖο κόλνο. Assim, preferimos
seguir a leitura de Stanford e Garvie.
50
Segundo Garvie (1998: 168), Ájax parece querer dizer que continuar vivo em nada contribuirá para melhorar
a sua situação. Contudo, o passo é obscuro, razão pela qual a maioria dos editores o considera corrupto, não
adoptando nenhuma das conjecturas, que não oferecem uma correcção apropriada; cf. Dawe (1996: 24), Garvie
(1998: 58) e Finglass (2011: 96). West (1978: 109-110), pelo contrário, considera corrupto apenas θἀλαζεῖζα,
pois entende que o sentido de “adiar” para ἀλαηίζεκη é forçado, ocorrendo apenas na voz média e em grego
tardio, e propõe a conjectura θἀληηζεῖζα. Contudo, a argumentação de Finglass (2011: 276-277) não se limita ao
problema que θἀλαζεῖζα origina, uma vez que abrange também o sentido do verso, pois a morte como última
paragem da vida é normalmente imaginada como um ponto fixo, e a ideia de que Ájax dela se aproxima e se
afasta não é comum. Diz Garvie (1998: 168): “It is easy to imagine that the successive days of one’s life are
bringing one ever nearer to death, or, alternatively, that each day represents a postponement of death. But the
combination of the two ideas is difficult.”. Note-se ainda que o verso anterior exprime uma regularidade
temporal que o verso seguinte contradiz, além de que não há uma palavra para a ideia de morte como um ponto
fixo.

26
CORO
Ninguém dirá jamais que proferiste um falso discurso,
Ájax, mas um que proveio do teu próprio espírito.
Agora pára e consente que os teus amigos prevaleçam
sobre o teu pensamento, pondo de parte essas ideias.

TECMESSA
Ájax, senhor, não há maior mal para os homens52 485 do que a sorte que a
necessidade impõe.
Também eu nasci de um pai livre,
forte pela sua riqueza como mais nenhum dos Frígios o foi,
e agora sou uma escrava. Assim pareceu bem aos deuses, julgo,
e sobretudo à força do teu braço53. Então, desde que 490 entrei no teu
tálamo, que me preocupo com o que te pertence.
E imploro-te, por Zeus, protector do lar,
e pelo teu leito, no qual te uniste a mim,
que não consideres que eu mereço sujeitar-me a um rumor doloroso54
vindo dos teus inimigos, entregando-me nas mãos de alguém, 495 pois no dia
em que morreres e me abandonares por teres morrido,
pensa que, nesse mesmo dia,
capturada à força pelos Argivos
com o teu filho, será a escravatura o meu alimento.
E algum dos meus senhores irá proferir ditos amargos, 500 atingindo-me
com as suas palavras: “Vede a concubina

51
Cf. Introdução, p. 30.
52
O discurso de Tecmessa apresenta várias semelhanças com a cena entre Heitor e Andrómaca (Hom. Il.
6.407-465). Para uma análise comparativa do texto homérico e da tragédia sofocliana, cf., e.g., Winnington
Ingram (1980: 29-30), Reinhardt (1983: 155-157), Easterling (1984: 1-8), Lawrence (2005: 23-24) e Casey Dué
(2012: 239-240).
53
Tecmessa não pretende dizer que Ájax teve mais influência no cumprimento do seu destino do que os deuses,
mas apenas que tem a certeza quanto à responsabilidade de Ájax, não quanto à dos deuses. Segundo Parker
(1999: 16), não é comum que as personagens sofoclianas se refiram ao envolvimento dos deuses com grande
certeza, a não ser em situações muito emotivas (S. Aj. 953-954), razão pela qual a linguagem de Tecmessa é
vaga, indefinição reforçada com o uso do advérbio πνπ; cf. Budelmann (2000: 133-143).
54
O rumor a que Tecmessa alude está, provavelmente, relacionado com a notícia da morte de Ájax e a sua
consequente submissão à escravatura. Contudo, como afirma Worthen (1974: 116-117), Tecmessa não usa,
como Andrómaca (Hom. Il. 6.408; 432), o termo ρήξα, “viúva”, para descrever a sua situação futura. Note-se,
todavia, que o adjectivo ρεηξία, empregue pela personagem para referir a sua submissão, não deixa de evocar
foneticamente ρήξα.

27
de Ájax, que era o mais forte do exército,
a quanta servidão se sujeita, em vez de despertar inveja”.
Alguém falará assim, e a mim, o destino perseguir-me-á55.
Mas para ti e para a tua estirpe serão ignominiosas estas palavras. 505
Envergonha-te de abandonar o teu pai
numa velhice deplorável, envergonha-te de abandonar a tua mãe56,
a quem coube um quinhão de muitos anos, ela que tantas vezes
tem pedido aos deuses que regresses vivo a casa.
Compadece-te, soberano, do teu filho, se, privadο 510 do alimento da
infância, passar a vida sozinho, sem ti,
ao cuidado de tutores que não o amam. Lembra-te do grande mal
que nos causarás, a ele e a mim, quando morreres.
Para mim, já não tenho para onde voltar os olhos,
senão para ti. Tu próprio devastaste a minha pátria com tua a lança 515 e um
outro57 fado arrebatou a minha mãe e o que me gerou,
eles que agora estão mortos e habitam o reino de Hades.
Que pátria hei-de eu ter em vez de ti?
Que riqueza? Toda a minha salvação está em ti.

Lembra-te58 também de mim. Se um homem tiver 520

55
Neste passo, δαίκσλ tem a acepção de “destino”; cf. Chantraine (1999: 246), Budelmann (2000: 146) e n. 46.
56
O verbo αἰδένκαη é um denominativo de αἰδώο, substantivo que exprime, por um lado, o respeito por algo
superior; por outro lado, é o sentimento que impede o homem de se mostrar cobarde, daí “vergonha” (e.g., Hom.
Il. 5.787); cf. Chantraine (1999: 31). Cairns (1993: 13) realça a relação de αἰδώο com a honra (e.g., Hom. Il.
13.122) e considera que a semântica do termo se explica por vergonha equivaler a perda de honra, enquanto a
relação de respeito assenta no reconhecimento da honra do outro. Deste modo, o termo que Tecmessa utiliza
para admoestar Ájax, αἴδεζαη, revela que a relação parental, baseada no respeito, funciona como um dever que é
vergonhoso negligenciar; cf. Cairns (1993: 232-233). De facto, afirma Blundell (1989: 41) que o amor entre
pais e filhos, sendo uma das mais fortes relações de amor natural, implicava um respeito para com os pais que
consistia numa das mais importantes obrigações da sociedade grega.
57
Segundo Young (1966: 249), ἄιινο tem um sentido eufemístico, pois evita que Tecmessa acuse Ájax, a quem
está a implorar a sua salvação, da sorte da sua família. Na verdade, a falta de referências anteriores sobre
Tecmessa e a sua família impede-nos de saber se o guerreiro terá sido o responsável pela morte dos pais de
Tecmessa. Assim o sentido de ἄιιε κνῖξα tanto pode ser eufemístico, como pode aludir a uma outra causa, que
efectivamente explique a morte daqueles; cf. Young (1966: 249). Finglass (2011: 288) discorda de Young, pois
considera incomum o sentido eufemístico de ἄιινο na tragédia grega. Para o estudioso, o sintagma evidencia que
Ájax não foi o responsável por aquelas mortes.
58
O substantivo κλῆζηηο tem um sufixo próprio dos nomes de acção, -ηηο, e o radical κλ-, que encontramos no
verbo κλάνκαη, cujo significado é “ter na cabeça”, “sonhar com”, “desejar uma mulher em casamento”; cf.
Chantraine (1999: 702-703), Beekes (2010: 960) e Sousa (2010: 290-291). Tendo em conta a referência, nos
versos seguintes, ao deleite (v. 521), que, segundo Stanford (1963: 125-126) e Hogan (1991: 198) tem uma
conotação erótica, e à ράξηο (v. 522), que também poderá ter o mesmo valor, como sublinham Finglass (2011:

28
experimentado alguma vez deleite, deve guardá-lo na memória,
pois é sempre a afeição que gera a afeição59.
Aquele que deixar escoar a lembrança do bem
experimentado jamais será um homem nobre60.

CORO
Ájax, queria que te compadecesses no teu espírito, 525 como eu; pois assim
aprovarias as palavras desta mulher.

ÁJAX
Da minha parte obterá, sem dúvida, louvor,
se ousar cumprir o que eu estabelecer.

TECMESSA
Querido Ájax, obedecer-te-ei em tudo.

ÁJAX
Traz-me agora o meu filho, para eu o ver. 530

TECMESSA
Atemorizada, deixei-o partir.

ÁJAX
No meio de tamanhos males, é o que me estás a dizer?

289) e Easterling (1984: 4), parece-nos ver que o emprego do termo κλῆζηηο pressupõe um pedido de que Ájax
se lembre dela como sua mulher.
59
Não é fácil traduzir ράξηο numa só palavra. O termo significa “graça”, “beleza”, “favor”, “bem-querer”,
“glória”, “gratidão” e até “favores” no sentido erótico; cf. Stanford (1963: 126), Chantraine (1999: 1247) e
Beekes (2010: 1606). Blundell (1989: 33) explica precisamente que ράξηο é um conceito relacionado com as
relações pessoais e também com as obrigações sociais de θηιία, sendo que o seu sentido original remete para o
deleite e para a alegria, ao mesmo tempo que está relacionado com o aspecto da reciprocidade de favores; cf.
Blundell (1989: 41). Para uma análise do discurso de Tecmessa e da utilização de conceitos que remetem para a
ideologia heróica, cf., e.g., Easterling (1984: 3-4), Blundell (1989: 74-77), Zanker (1992: 22-23) e Cairns
(1993: 230-234).
60
Tecmessa apresenta uma definição de εὐγέλεηα diferente da de Ájax (v. 479-480), pois a sua baseia-se na
reciprocidade de favores e a de Ájax limita-se a uma questão de honra individual, que não considera as relações
de θηιία a que está obrigado; cf. Winnington-Ingram (1980: 29), Easterling (1984: 7), Blundell (1989: 75),
Zanker (1992: 22-23), Cairns (1993: 233-234) e Várzeas (2009: 81-82).

29
TECMESSA
Sim. Não fosse o infeliz deparar contigo e ser morto.

ÁJAX
Isso seria adequado61 ao meu destino62.

TECMESSA
Mas eu velei para que isso não acontecesse. 535

ÁJAX
Louvo o teu acto e a prudência que tiveste.

TECMESSA
Então, na sequência disto, como poderei ajudar-te?

ÁJAX
Concede-me que eu fale com ele e que o veja face a face.

TECMESSA
Sim, claro. Ele está perto, à guarda dos servos.

ÁJAX
Então porque tarda a sua presença? 540

TECMESSA
Filho, o teu pai chama-te. Trá-lo para aqui,
tu, servo, que o encaminhas pela mão.
ÁJAX

61
Seguimos Finglass (2011: 292) ao considerarmos que πξέπνλ está construído com genitivo, tomando como
modelo a construção de ἄμηνλ. Assim, não é necessário alterar o texto, como sugere West (1978: 110-111), que
assume que πξέπνλ é uma palavra corrupta e propõe ler, no seu lugar, ηξόπνπ.
62
Cf. n. 87.

30
Falas para quem está a chegar, ou será que ele não percebeu as tuas palavras?

TECMESSA
O servo que o traz já está próximo.

(entra o servo com Eurísaces)


ÁJAX
Ergue-o, ergue-o até aqui. Ele não terá medo 545 ao olhar para †esta63†
chacina de há pouco,
se, na verdade, tem direito a ser considerado meu descendente.
Mas é preciso domá-lo já, como a um poldro,
nas duras leis do pai e igualar a sua natureza à dele.
Ó filho, que sejas mais afortunado do que o teu pai, 550 mas igual, no resto.
Cobarde nunca hás-de ser.
Agora posso invejar-te
que não te apercebas de nenhum destes males.
O mais agradável na vida é não pensar em nada,
[pois não pensar é um mal sem tormentos64]
até que aprendas o que é a alegria e a angústia. 555 Quando chegares a este
momento, é preciso que mostres
aos inimigos do teu pai quem és e quem te criou.
Entretanto, sustenta-te com ténues brisas,
fazendo desabrochar a tua jovem vida, alegria da tua mãe que aqui está. Sei
que nenhum dos Aqueus te insultará 560 com detestáveis ultrajes, estando tu
sem mim.
Bem forte é Teucro, o guardião que deixarei à tua porta.
Ele não hesita em cuidar de ti, mesmo que agora
63
Tendo em conta as leituras problemáticas dos manuscritos, Finglass (2011: 295-296) opta por apresentar a
palavra corrupta ηνπηνλδε. Das hipóteses existentes, destacamos πνπ ηόλδε, que Campbell (1881: 54), Jebb
(1907: 88), Pearson (1924), Colonna (1975) e Dain (2002: 40) preferem, mas que origina um problema de
sentido, tendo em conta a sua posição no verso: πνπ fica associado a λενζθαγῆ… πξνζιεύζζσλ θόλνλ, mas o
sentido da frase implicaria uma ligação com ηαξβήζεη; cf. Kamerbeek (1963: 117-118) e Fraenkel (1977: 19-
20). A leitura ηνῦηόλ γε, por que optam Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 23), apesar de ser mais simples, também
é rejeitada por Finglass, pois o sentido da inclítica γε é, em sua opinião, obscuro.
64
A supressão deste verso justifica-se por o seu sentido estar muito próximo do do verso precedente; cf.
Colonna (1975), Dawe (1996: 27), Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 24). Tanto Garvie (1998: 176) como Finglass
(2011: 299) inferem a possibilidade de o verso ter sido uma linha marginal posteriormente integrada no texto
sofocliano.

31
tenha ido para longe, à caça de inimigos.
Mas, homens portadores do escudo, povo marítimo, 565 a vós, em conjunto,
confio este serviço,
anunciai àquele a minha ordem
de conduzir esta criança para minha casa
e de o mostrar a Télamon e à minha mãe – falo de Eribeia -,
para que venha a ser para sempre o seu apoio na velhice, 570 [até eles
alcançarem as profundezas do deus infernal65].
E quanto às minhas armas, que ninguém as atribua em concurso
aos Aqueus, nem os responsáveis pela contenda, nem…66
… aquele que causou o meu flagelo.
Mas tu, meu filho, agarrando nisto, donde provém o teu nome,
Eurísaces67, segura o escudo inquebrável feito de sete peles de boi, 575
manejando-o com a correia bem cosida.
As outras armas serão enterradas juntamente comigo.
Mas recebe já esta criança, o mais rapidamente possível,
e tranca a casa. Não te lamentes nem chores
diante da tenda. A mulher é muito dada a comover-se. 580 Fecha-a
rapidamente. Perante uma calamidade que requer uma faca,
não é próprio de um médico sábio entoar cânticos mágicos.

CORO
Sinto receio ao ouvir essa tua obstinação.
Não me agrada a tua língua aguçada.
TECMESSA

65
Finglass (2011: 303), Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 24) e Garvie (1998: 64) optam pela supressão do verso,
por diversas razões, uma das quais o facto de considerarem o termo κέρξηο incomum na tragédia grega. Pearson
(1924) e Dawe (1996: 28) apresentam, em substituição de κέρξηο νὗ, a conjectura de Hermann ἔζη’ ἂλ. Todavia,
a supressão do verso é provavelmente a melhor opção, já que, como sublinha Garvie (1998: 177), não há
nenhum acréscimo de sentido.
66
O texto apresenta vários problemas, entre eles, o facto de o termo ιπκεώλ ser muito raro na tragédia ática e
estar pouco atestado (e.g., E. Hipp. 1068; fr. 260 Nauck; fr. papyracea 34 Austin); cf. Chantraine (1999: 650) e
Finglass (2011: 304). Além disso, a associação de Ulisses aos ἀγσλάξραη como sujeito de ζήζνπζ’ levaram
Finglass (2011: 304) a considerar a existência de uma lacuna, pois o que Ájax teme é que Ulisses venha a
receber as suas armas, não que ele as ofereça aos restantes Gregos; cf. West (1978: 111).
67
Εὐξύζαθεο é um termo composto por εὐξύο, “amplo”, e ζάθνο, “escudo de couro” que cobria completamente o
guerreiro; cf. Chantraine (1999: 985). O composto tem, portanto, o sentido de “amplo escudo”. Segundo
Finglass (2011: 304-305), a relação entre o nome próprio Eurísaces e a sua etimologia é preparada por Ájax
quando associa o lamento ao seu nome (S. Aj. 430-1); cf. n. 75. Ao contrário do pai, Eurísaces tem um nome
heróico, que evoca os feitos em combate.

32
Ájax, senhor, que desejas fazer no teu espírito? 585

ÁJAX
Não me interrogues, não examines. É bom ser sensato.

TECMESSA
Ai de mim, como me sinto sem ânimo! Suplico-te, tanto pelo teu filho
como pelos deuses, não te tornes o nosso traidor.

ÁJAX
Angustias-me em demasia. Não percebes que eu
já não sou obrigado a satisfazer os deuses? 590

TECMESSA
Profere antes palavras de bom augúrio.

ÁJAX
Fala para quem te quiser ouvir.

TECMESSA
Não te deixas persuadir?

ÁJAX
Já estás a falar demais.

TECMESSA
É porque tenho medo, soberano.

ÁJAX
Porque é que não fechais a porta o mais rapidamente possível?

TECMESSA
Pelos deuses, acalma-te.

33
ÁJAX
Parece-me que estás a pensar com estultícia,
se planeias educar agora o meu carácter. 595 (saem Tecmessa, Ájax e Eurísaces)

Primeiro Estásimo

CORO
Gloriosa Salamina, vives
feliz, julgo, batida pelas ondas,
para todos sempre ilustre68;
mas eu, desgraçado, há quanto tempo, 599/600 à espera, nos prados do Ida, †na
folhagem†,
há meses incontáveis, tenho eu sempre feito o meu leito69,
consumido pelo tempo, 605 com a funesta expectactiva
de um dia cumprir a viagem para o repulsivo e invisível reino de Hades70.

E Ájax, difícil de curar71,

68
O adjectivo πεξίθαληνο pode significar “glorioso”, sentido sugerido pela associação com θιεηλά, como
interpretam Lloyd-Jones (1997: 87) e Finglass (2011: 315), ou “bem visível”, o que remete para a posição da
ilha, hipótese que Kamerbeek (1963: 128) e Garvie (1998: 181) preferem. Chantraine (1999: 1171) coloca
apenas esta segunda hipótese ao descodificar a acepção do adjectivo em Sófocles. Seguimos Finglass (2011:
315) ao considerarmos que πεξίθαληνο deve ser entendido como um adjectivo honorífico que valoriza a terra
natal de Ájax, por não ser relevante a referência à visibilidade da ilha, mas sim à sua situação afortunada, que
contrasta com a do Coro.
69
O texto apresenta vários problemas que, para Garvie (1998: 181), não são solucionáveis. De acordo com
Finglass (2011: 316-317), a estranheza da construção terá originado a introdução do dativo ιεηκώληᾳ πνίᾳ. A
lição ιεηκώληα em concordância com Ἰδαῖα é defendida por Finglass, que mantém, no entanto, a forma corrupta
πνίᾳ. Dawe (1996: 30), considera corrupta toda a expressão Ἰδαῖα κίκλσλ ιεηκσλίᾳ πνίᾳ κήισλ. Garvie (1998: 66)
e Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 25) aceitam, tal como Finglass (2011: 316-317), a conjectura de Hermann,
κελῶλ em vez de κήισλ, mas tomam como corruptos os termos Ἰδαῖα κίκλσλ ιεηκσλίαη πνίαη.
70
Vários comentadores referem a ambiguidade dos epítetos de Hades, cujo sentido varia entre uma leitura activa
ou passiva. Assim, ἀπόηξνπνο significa “que faz fugir”, donde deriva o sentido de “repulsivo”, ou “que está
afastado”; cf. Chantraine (1999: 1132), Mazon (2002: 45) e Garvie (1998: 182). Já ἀΐδεινο pode significar
“invisível” (e.g., Hes. Op. 756), como preferem Jebb (1907: 97-98) e Finglass (2011: 317-318), ou “que torna
invisível”, “que faz desaparecer”, “destrutivo” (e.g., Hom. Il. 5.880), hipótese escolhida por Lloyd-Jones (1997:
89), Garvie (1998: 67) e Rocha Pereira (2003: 59). Seguimos a interpretação de Jebb e de Finglass, porque
mantém a relação etimológica com o nome do deus, Ἅτδεο; cf. Stanford (1963: 137) e Beekes (2010: 34).
71
Uma vez que o Coro continua a ter esperança na recuperação de Ájax, seguimos Winnington-Ingram (1980:
33) ao interpretarmos δπζζεξάπεπηνο como “difícil de curar” e não como “incurável”.

34
está sentado junto de mim. Ai de mim! Ai de mim! 609/10 E convive com a
loucura divina;
tu72 enviaste-o, há muito tempo atrás,
quando ele triunfava na arte do impetuoso Ares. Mas agora, enquanto
apascenta sozinho o seu espírito, é para os amigos um grande
sofrimento. As antigas obras das suas mãos,
de poderosa excelência,
caíram, caíram, desprezadas, junto de quem as despreza, os miseráveis Atridas.

Quando a mãe dele, carregada de anos73


e embranquecida pela velhice,
ouvir que ele está doente, com uma doença que lhe devora o espírito 625/6 não
proferirá, infortunada,
o canto de Lino74,
nem o lamento do pássaro digno de compaixão, o rouxinol75, 629/30 mas
entoará cânticos penetrantes
e as pancadas das suas mãos hão-de ressoar, ao caírem
no seu peito, e arrancará os cabelos grisalhos.

Seria preferível que se ocultasse no Hades aquele que sofre de uma vã doença,76

72
O Coro continua a dirigir-se a Salamina.
73
Na tradução da expressão παιαηᾷ … ἔληξνθνο ἁκέξᾳ tomámos em consideração a leitura dos Scholia Vetera,
que a explica como equivalente a πνιπεηήο.
74
Seguimos uma sugestão dos Scholia Vetera, retomada por Powell (1932: 155), que defende que se deve
subentender o advérbio de negação νὐθ antes de αἴιηλνλ. Segundo Jebb (1907: 100), Campbell (1881: 61) e
Kamerbeek (1963: 131) propõem um contraste entre o canto pela morte de Lino e o canto do rouxinol, com a
consequente associação do canto dedicado a Lino aos lamentos violentos descritos nos versos 629-633.
Contudo, como afirma Stanford (1963: 139), este canto não equivale necessariamente a um lamento violento,
pois também se adequa a momentos festivos (Hom. Il. 18.569-572). Hamilton (1982: 312), Hogan (1991: 202),
Garvie (1998: 67, 183), Mazon (2002: 45) e Rocha Pereira (2003: 59) tornam νὐδ΄ (v. 628) equivalente a νὐθ e
interpretam αἴιηλνλ como um grito fúnebre, referido, por exemplo, em A. A. 121. Para o sentido deste vocábulo,
cf. Chantraine (1999: 34) e Beekes (2010: 38).
75
Procne, por ter assassinado o seu filho Ítis, foi transformada em rouxinol, de modo a escapar à fúria do
marido (e.g., Paus. 1.41.8-9; 10.4.8-9; Apollod. 3.14.8). O canto do rouxinol tornou-se o paradigma da
expressão da dor, na literatura europeia, desde a Odisseia (Hom. Od. 19.518-24); cf. Stanford (1963: 140) e Dué
(2012: 242-243). No entanto, a ideia transmitida pelo Coro é que nem o canto de Lino, nem o do rouxinol serão
expressão suficiente da dor de Eribeia, quando esta tomar conhecimento da doença que aflige Ájax.
76
Segundo Winnington-Ingram (1980: 35), o Coro está a dizer não que o suicídio é a única solução para Ájax,
mas que os lamentos da sua mãe serão idênticos aos que ele receberia se estivesse morto, pois, na verdade, a sua
doença é pior do que a própria morte. As interpretações de Burton (1980: 25) e de Gardiner (1987: 65-66)
diferem da de Winnington-Ingram, pois aqueles estudiosos assumem que o Coro pensa que Ájax estaria melhor
morto, e que a ode introduz um sentimento de resignação relativamente à morte do guerreiro. No entanto, esta
interpretação é incoerente com a atitude do Coro, que, por várias vezes, tenta dissuadir Ájax do suicídio (vv.

35
ele que, de acordo com a linhagem paterna,
era o melhor dos Aqueus que suportam muitas fadigas
já não está firme
no temperamento com que cresceu, mas comporta-se à margem dele. 640 Ó
desgraçado pai! Quão intolerável é a ruína do teu filho
sobre a qual te falta ainda seres informado,
ruína que nunca Eácida algum – a não ser este77-
em sua vida78 alimentou. 645

Segundo Episódio
(entram Ájax e Tecmessa)
ÁJAX
O longo e incomensurável tempo
faz surgir tudo o que estava oculto e esconde o que é visível.
Nada é inesperado, e tanto o terrível juramento
como os espíritos endurecidos se deixam prender;
pois também eu, que outrora era terrivelmente rígido, 650 como o ferro que é
submergido79, fui amolecido no meu discurso80
perante esta mulher que aqui está. Compadeço-me dela

362-3, 481-4, 583-4) e exprime um sentimento de total desolação quando toma conhecimento da sua morte (vv.
900-4; 1185-1222).
77
Télamon, o pai de Ájax, era filho de Éaco (Hom. Il. 21.189).
78
A tradução de αἰώλ por “vida” não revela a complexidade do termo. Segundo Fialho (1992: 29-30, n. 31), a
oposição que se estabelece com ρξόλνο, no início do discurso de Ájax (v. 646), indica que o termo deve ser
compreendido como o tempo humano referente à vida particular, por oposição ao tempo como processo natural
que tudo abarca.
79
Há dois processos de trabalhar o ferro conforme o resultado pretendido: para endurecer, é mergulhado em
água fria (Hom. Od. 9.391-4; Plu. Mor. 136a, 433a); para ficar flexível, submerge-se o metal em óleo (Plu. Mor.
950c). Não é claro a qual dos processos Ájax se refere, pois não é evidente se a comparação se estabelece com o
estado de dureza do sujeito, “eu que outrora era terrivelmente rígido” ou com a perda desse estado, “fui
amolecido”. Kamerbeek (1963: 136) entende que a ambiguidade é intencional. Seguimos Stanford (1963: 144)
e Finglass (2011: 330-331), ao considerarmos preferível articular a comparação com ἐθαξηέξνπλ, “era rígido”,
pois, como Stanford indica, é pouco provável que Sófocles se referisse a um processo de trabalhar o ferro
menos comum sem o especificar.
80
O termo ζηόκα poderá significar “boca”, “goela”, “embocadura”, “entrada”, mas também “o que está à
frente”, “ponta”, lâmina”; cf. Chantraine (1999: 1058) e Beekes (2010: 1408). Neste passo, faria sentido tanto
“boca” como “lâmina”. Assim, de acordo com Finglass (2011: 331), o verso retoma a metáfora do trabalho do
metal, numa alusão que remete para a espada com que Ájax matou os animais e com se que matará a si próprio;
cf. Garvie (1998: 187) e Segal (1999: 132). Sobre a ambiguidade desta expressão em particular e do discurso de
Ájax em geral, cf. Introdução p. 32-35.

36
por a deixar, a ela, viúva, e ao meu filho, órfão, entre os meus inimigos.
Mas vou banhar-me, dirigindo-me às planuras
junto das margens, para, ao purificar a minha mácula, 655 afastar a pesada
cólera da deusa.
Irei para onde possa alcançar um lugar deserto
e esconderei esta minha espada, a mais odiosa das armas,
depois de escavar na terra um buraco onde ninguém a verá.
Que a Noite e o Hades a mantenham a salvo lá em baixo. 660 Desde que eu
recebi na mãos esta oferenda
de Heitor81, o meu maior inimigo,
nunca mais obtive nada de benéfico dos Argivos.
É verdadeiro o provérbio dos mortais:
“oferenda de inimigos não é oferenda nem traz proveito82”. 665 Por isso, no
futuro, saberemos ceder aos deuses
e aprenderemos a venerar os Atridas83.
São chefes, logo, temos de lhes ceder. Como poderia ser de outro modo?
Também o que é terrível e mais forte
cede ao que lhe é superior84. Os Invernos cobertos de neve 670 retiram-se na
presença do Verão abundante em frutos.
A abóbada obscura85 da noite afasta-se,
para que o dia trazido por cavalos brancos86 se ilumine no seu esplendor.
O sopro dos terríveis ventos adormece
o pranto do oceano. O omnipotente sono, depois de aprisionar, 675
liberta e não mantém eternamente aquilo que agarrou.
81
Na Ilíada, após o duelo entre Ájax e Heitor, que terminou sem vencedor, os guerreiros trocaram oferendas:
Ájax ofereceu a Heitor o seu cinturão e, em troca, recebeu de Heitor a sua espada (Hom. Il. 7.175-305). 82 Cf. E.
Med. 618; Ar. V. 1159-60.
83
Cf. Introdução, p. 33-34.
84
Pode inserir-se o dativo ηηκαῖο no contexto semântico de “honra”, sentido comum do substantivo ηηκή; cf.
Chantraine (1999: 1119) e Beekes (2010: 1485). No entanto, tendo em conta o contexto na peça, seguimos a
proposta de Kamerbeek (1963: 141), que afirma que a expressão deve ser entendida como equivalente a ἀξραί.
85
O termo θύθινο refere-se ao céu da noite, como aduz Kamerbeek (1963: 141), mas pode também sugerir,
como afirma Finglass (2011: 336), o ciclo dos dias e das noites, opção que Garvie (1998: 71) apresenta. O
adjectivo αἰαλήο, de etimologia pouco clara, tem duas acepções distintas e difíceis de relacionar, como sublinha
Chantraine (1999: 29): 1. “terrível”, “cruel”, opção seguida por Kamerbeek (1963: 141) e Mazon (2002: 49); 2.
“eterno”, talvez por relação com αἰεί, sentido que Chantraine considera secundário, mas que constitui a opção
de Garvie (1998:190); cf. também Beekes (2010: 31). Com o objectivo de manter o contraste com a
luminosidade do dia e seguindo uma das leituras dos Scholia Vetera, em que o termo é considerado equivalente
a ζθνηεηλόο, optámos por traduzir o adjectivo por “obscuro”, explorando assim o sentido figurado da primeira
acepção apresentada por Chantraine.
86
A propósito da imagem do Sol e da carruagem que o transporta, cf., e.g., Mimn. fr. 12 IEG; Thgn. 997-8.

37
E nós, como não aprenderemos a ser sensatos?
Eu, sim! Sei há pouco tempo
que aquele que é nosso inimigo deve ser odiado de tal modo
que se torne nosso amigo de novo; e quanto ao que é nosso amigo, 680
quererei servi-lo e socorrê-lo
de modo a que não permaneça assim para sempre87. Para a maioria
dos mortais, o porto de abrigo do companheirismo não é fiável.
Mas a respeito disto, tudo ficará bem. Tu,
mulher, vai para dentro e roga aos deuses 685 que cumpram até ao fim o que
o meu coração deseja.

(Tecmessa sai)

E vós, companheiros, honrai o meu desejo


tal como ela: pedi a Teucro, se ele regressar,
que cuide de nós e ao mesmo tempo que seja benévolo para convosco. Eu
vou para lá, para onde devo ir. 690 Vós, fazei o que vos digo e
compreendereis talvez
que, apesar de agora ser infortunado, acabei de me salvar.

(Ájax sai)
Segundo Estásimo

CORO
Estremeço de êxtase e esvoaço, de tão alegre.
Oh! Oh! Pã, Pã,
Ó Pã, Pã, que vagueias à beira mar! 695 Mostra-te do cimo
nevado da rochosa Cilene88,

87
A ideia que Ájax exprime está relacionada com uma máxima de Bias de Priene, que aconselha a amar com a
expectativa de que um dia esse amor se transforme em ódio, e a odiar com a expectativa de que o ódio se
transforme em amor (e.g., Arist. Rh. 1389b 23-5; D. L. 1.87).

38
ó soberano, que conduzes os deuses nas danças89,
lança-te comigo nas danças de Mísia e de Cnossos90, por ti ensinadas. 699/700

Agora apetecem-me as danças.


E que do Mar Icário
regresse o soberano Apolo91
de Delos, bem reconhecível,
e que ele fique comigo, gentil, para sempre! 705

Ares tirou dos nossos olhos o terrífico desespero.


Oh! Oh! E agora, de novo,
agora, ó Zeus, pode aproximar-se
das naus velozes, céleres a sulcar os mares,
a luz branca de um dia feliz, 710 uma vez que Ájax, esquecido de novo dos
seus sofrimentos,
cumpriu os rituais de sacrifícios aos deuses venerando-os com o maior
respeito pela lei divina.
Tudo o longo tempo faz desaparecer.
E eu declararei que nada é impossível, 715 uma vez que inesperadamente
Ájax alterou o seu pensamento,
abandonando a fúria e a grande querela contra os Atridas.
Terceiro Episódio
Primeira Parte
(entra o Mensageiro)
MENSAGEIRO
Homens amigos, quero, primeiro, anunciar o seguinte:

88
Montanha situada na Arcádia.
89
É comum a associação de Pã à dança (Pi. fr. 89; A. Pers. 448-9).
90
O Coro refere-se a duas regiões em que a dança era culturalmente relevante. Na Ilíada, diz-se que Dédalo
teria erigido um piso de dança para Ariadne em Cnosso (Hom. Il. 18.590-592). No culto à deusa Cíbele, na
Mísia, a dança desempenhava um papel fundamental; cf. Garvie (1998: 193) e Burkert (1993: 349-351). Para a
associação da deusa Cíbele a Pã, cf., e.g., Ar. Av. 745-746.
91
Apolo é associado à dança em, e.g., Pi. fr. 135; cf. Burkert (1993: 213).

39
Teucro acabou de chegar dos precipícios da Mísia92. 720 Aproximando-se da
tenda do comandante, no meio do acampamento,
foi ofendido por todos os Argivos em conjunto.
Ao compreenderem de longe93 que ele avançava,
rodearam-no em círculo e em seguida agrediram-no
com injúrias, de um lado e de outro, e não havia quem não o fizesse. 725
Chamavam-no irmão94 daquele louco que prepara ciladas
contra o exército, dizendo que não conseguiria
evitar a morte, pois seria todo lacerado por pedras.
Chegaram a tal ponto que as espadas
já estavam nas mãos, tiradas da bainha. 730 Todavia, a discórdia, que
avançou o mais longe possível,
cessou perante a palavra reconciliadora dos anciãos.
Mas onde está o nosso Ájax, para eu lhe contar isto?
É necessário revelar ao nosso amo95 tudo o que foi dito.

CORO
Não está lá dentro. Partiu há pouco, depois de sujeitar 735 ao jugo de uma
nova atitude novas decisões.

MENSAGEIRO
Ai! Ai!
Ou aquele que me enviou por este caminho
me enviou tarde, ou fui eu que tardei em aparecer.

CORO

92
A Mísia era uma região a Sudeste de Tróade. Na Ilíada, os Mísios são aliados dos Troianos (Hom. Il. 2.858). 93
O advérbio πξόζσζελ pode ligar-se a ζηείρνληα ou a καζόληεο. Seguimos Kamerbeek (1963: 154) e Finglass
(2011: 353), ao preferirmos associá-lo a καζόληεο, pois assim os Gregos estariam à espera de Teucro e o ataque
teria sido planeado. Se, pelo contrário, optássemos por ligar πξόζσζελ a ζηείρνληα, a expressão reportar-se-ia à
demora da jornada de Teucro, o que seria uma referência irrelevante; cf. Finglass (2011: 353). 94 Seguimos uma
interpretação dos Scholia Recentiora, segundo a qual o adjectivo μύλαηκνο, composto de ζπλ e αἷκα deve ser
lido, neste passo, como sinónimo de ἀδειθόο.
95
Consideramos ηνῖο θπξίνηο um plural majestático. A expressão, em nosso entender, refere-se apenas a Ájax;
cf. Kamerbeek (1963: 155) e Stanford (1963: 156). No entanto, há uma certa ambiguidade no termo θύξηνο, que
também poderá significar “aqueles que têm responsabilidade na situação”; cf. Lloyd-Jones (1997: 97) e Finglass
(2011: 355). Uma vez que o Mensageiro está à procura de Ájax para lhe contar o que Teucro ordenou,
parece-nos mais pertinente a primeira hipótese, mas, como acabará por revelar ao Coro e, depois, a Tecmessa, o
que sabe, a tradução por “aqueles que se interessam” também seria plausível.

40
E do que era necessário fazer o que falta? 740

MENSAGEIRO
Teucro disse que o homem não deveria vir
para fora da habitação antes de ele chegar em pessoa.

CORO
Mas Ájax foi-se embora, depois de voltar o pensamento
para vantagem maior, a fim de apaziguar a ira divina.

MENSAGEIRO
Essas palavras estão plenas de estultícia, 745 se Calcas faz profecias com
bom senso.

CORO
Que profecia? Que sabes acerca desta situação?

MENSAGEIRO
Conheço-a e até estava presente.
Abandonando o conselho e o círculo real,
Calcas, sozinho, longe dos Atridas, ao colocar 750 com sensata amizade a
mão direita na de Teucro,
disse e recomendou-lhe que, com toda a espécie de artes,
enquanto durasse a luz desse dia, encerrasse
Ájax dentro na tenda, sem o deixar sair,
se porventura quisesse vê-lo vivo. 755 A cólera da divina Atena persegui-lo-á
apenas
durante este dia, como ele afirmou, enquanto falava.
Os corpos de inútil desmesura96
caem na pesada adversidade enviada pelos deuses,
afirmou o adivinho, se quem nasce com natureza humana 760

96
Em diversos passos da tragédia se fala da estatura superior de Ájax (S. Aj. 154-157, 169-171, 1077-1078,
1250-1254), o que remete para a descrição do guerreiro na Ilíada (Hom. Il. 3.229).

41
não pensa, depois, de acordo com a sua natureza97.
Mas ele, no momento em que se lançou para fora de casa,
foi logo insensato, apesar dos bons conselhos do pai98.
Este disse-lhe: “Filho, pela lança procura triunfar,
mas triunfa sempre com a ajuda de um deus”. 765 Ele respondeu com
jactância e desprovido de senso:
“Pai, com a ajuda dos deuses, até aquele que nada é
conseguirá ser vitorioso; mas eu acredito que,
mesmo sem eles, conquistarei a glória.”
Pronunciava estas palavras com insensata jactância. Em seguida, 770 numa
segunda ocasião, em relação à divina Atena, quando ela o incitava e lhe dizia
que voltasse a mão ensanguentada contra os inimigos,
retorquiu com palavras terríveis e inefáveis:
“Senhora, fica perto dos outros Argivos,
pois, do meu lado, o combate jamais †há-de irromper†99.” 775 Com estas
palavras, ganhou o rancor
implacável da deusa, por não pensar de acordo com a sua natureza humana.
Mas, se ele ainda está vivo neste dia, com a ajuda do deus,
rapidamente nos tornaremos os seus salvadores.
Tais coisas disse o adivinho. E logo, do seu assento100, 780 Teucro me
enviou, para vos trazer estas ordens101,
de forma a que as cumprísseis. Mas se não conseguirmos102,
aquele homem já não existe, se Calcas é sábio.

97
De acordo com Garvie (1998: 199), a sentença proferida pelo Mensageiro corresponde a um lugar-comum no
pensamento grego (e.g., S. Ant. 768; Tr. 473; A. Pers. 820; Th. 425).
98
Seguimos os Scholia Recentiora na interpretação de θαιῶο ιέγνληνο como equivalente a ζπκβνπιεύνληνο. 99 A
forma verbal ἐθξήμεη é considerada corrupta pois, como Garvie (1998: 200) refere, é improvável que Ájax
queira dizer que não haverá qualquer batalha junto de si. Dentro do contexto, o sentido esperado seria “transpor
a linha de batalha”; cf. Finglass (2011: 364). As conjecturas ἐλξήμεη, apresentada por Lloyd-Jones e Wilson
(1990a: 25; 1990b: 32), e ῥήμεη, seguida por Dawe (1996: 38), tal como εἰζξήμεη, de West (1978: 113),
adoptada por Garvie (1998: 78), dariam um melhor sentido: o combate jamais atravessaria a linha defendida por
Ájax. Seguimos Finglass (2011: 107) ao optarmos por manter a leitura dos manuscritos. 100 Seguimos a
interpretação de Garvie e de Finglass ao traduzirmos ἐμ ἕδξαο por “do seu assento” e não “levantando-se do seu
assento”, como Jebb prefere (1907: 121-123). Contudo, há alguma ambiguidade, o assento pode ser tanto
aquele onde estava Teucro como aquele onde estava o Mensageiro. Para Finglass (2011: 366) a expressão
reporta-se a Teucro, que nem sequer tivera tempo de se levantar para enviar o Mensageiro. Fica assim realçada a
urgência da situação.
101
Seguimos os Scholia Vetera ao lermos ἐπηζηνιαί como sinónimo de ἐληνιαί.
102
Seguimos Finglass (2011: 366), ao considerarmos que se subentende ηὰο ἐπηζηνιὰο θπιάζζεηλ. Para
ἀπεζηεξήκεζα com o sentido de “não conseguir”, cf. Kamerbeek (1963: 162) e Stanford (1963: 161).

42
CORO
Ó lastimável103 Tecmessa, nascida de uma estirpe infortunada,
vem e vê as palavras que este homem proclama. 785 Quando um corte rasga
a pele, ninguém se poderá alegrar.

(entra Tecmessa)

TECMESSA
Porque me levantais, a mim, desgraçada, do meu assento,
onde há pouco descansava de males incessantes?

CORO
Ouve este homem, uma vez que ele chegou para nos
transmitir a situação de Ájax, que me provocou dor. 790

TECMESSA
Ai de mim! Que dizes, homem? Será que estamos perdidos?
MENSAGEIRO
Não sei nada da tua situação, mas quanto a Ájax,
se está realmente fora da tenda, não estou confiante.

TECMESSA
Está mesmo fora da tenda, de modo que aquilo que disseste me magoa.

MENSAGEIRO
Teucro ordena que ele seja encerrado 795 no abrigo da tenda e que não o
deixemos sair sozinho.

TECMESSA
Onde está Teucro e por que razão diz isso?

103
Apesar de Stanford (1963: 161) considerar que o adjectivo δαΐα deve ser entendido como “cativa”,
interpretação presente nos Scholia Recentiora, preferimos ver nele uma referência à ruína de Tecmessa. Há, no
entanto, a possibilidade de os dois sentidos estarem presentes. Assim, afirma Campbell (1881: 73) que o sentido
de “hostil” poderá ter originado o de “tratada como inimiga”, donde “lastimável”.

43
MENSAGEIRO
Acaba de chegar. E pensa
que esta saída trará a perdição de Ájax.

TECMESSA
Ai de mim! Que desgraça! Por quem tomou ele conhecimento disso? 800

MENSAGEIRO
Pelo adivinho filho de Testor, que afirma que este dia
†de hoje† lhe trará a morte ou a vida104.

TECMESSA
Ai de mim! Amigos, protegei-nos105 da sorte que a necessidade impõe.
De vós, uns, incitai Teucro a vir depressa;
outros, ide para as regiões do Ocidente; outros, 805 para as do Oriente, à
procura do funesto paradeiro do homem.
Acabo de perceber que fui enganada por ele
e que fui excluída da sua antiga afeição.
Ai de mim! Que farei, meu filho? Não se pode ficar parado.
Mas irei, também eu, para lá, até onde a força me levar. 810 Corramos,
apressemo-nos, não é momento para nos sentarmos,
[se queremos salvar o homem que tem pressa de morrer]106.

CORO
Estou pronto a correr e não o mostrarei apenas por palavras.

104
O estado corrupto do texto dificulta a sua tradução. Os manuscritos apresentam ὅη’ αὐηῷ ou ἥη’αὐηῷ. Na
primeira leitura, a forma verbal θέξεη não tem sujeito; na segunda leitura, há, de acordo com Finglass (2011:
372), problemas métricos, que levam a pensar que esta é uma correcção da primeira. Pearson (1924), Lloyd
Jones e Wilson (1990b: 33) e Garvie (1998: 80) apresentam a conjectura ὃ ηνύησ. Contudo, como refere
Finglass (2011: 372), segundo esta lição, o relativo não apresenta qualquer antecedente, além de que a decisão
do destino de Ájax reside no dia, não na mensagem.
105
O verbo πξνΐζηεκη, que no verso surge em imperativo aoristo, significa “colocar-se à frente de” e o sentido
tanto poderá ser “oponde-vos” como “protegei-nos”. Seguimos Stanford (1963: 164) e Garvie (1998: 81) ao
optar pela última hipótese.
106
O texto apresenta problemas tanto a nível linguístico como semântico, pois retarda inutilmente a acção, o
que leva a maioria dos editores a optar pela supressão deste verso; cf. Fraenkel (1977: 28), Lloyd-Jones e
Wilson (1990b: 33), Dawe (1996: 40) e Finglass (2011: 374).

44
Seguir-se-á ao mesmo tempo prontidão de actos e de movimentos.

(saem todos)

Segunda Parte
(entra Ájax)

ÁJAX
O assassino está colocado no ponto onde será mais 815 acutilante, se há
tempo para se fazer cálculos,
oferenda de Heitor, dos estrangeiros107,
o mais detestável para mim, o mais odioso de ver.
Está cravada na inimiga terra da Tróade,
afiada recentemente pela pedra de amolar, devoradora de ferro. 820 Cravei-a
eu, fixando-a bem em volta,
da forma mais favorável a matar este homem com prontidão.
Assim estou bem equipado. E, por conseguinte,
tu, Zeus, em primeiro lugar, como é natural, ajuda-me.
Não é grande a recompensa que te pedirei. 825 Envia-me um mensageiro que
transmita a funesta notícia

107
De acordo com Jebb (1907: 128), a referência a Heitor como μέλνο justifica-se pela troca de presentes na
Ilíada, que ocorre após o combate entre os dois guerreiros (Hom. Il. 7.303-305), interpretação que também
Stanford (1963: 167) e Garvie (1998: 205) apresentam. A relação de μελία cria uma reciprocidade entre duas
pessoas, a que acolhe e a que é acolhida, e o vínculo é selado com uma troca de presentes; cf. Blundell (1989:
49). Contudo, como afirma Kane (1996: 19-20), não há, na Ilíada, quaisquer sinais de uma relação deste tipo
entre os dois guerreiros, pelo que a espada de Heitor não pode ser considerada um μέληνλ. Ao comparar com o
episódio de Glauco e Diomedes (Hom. Il. 6.144-236) o combate entre Ájax e Heitor, que termina com uma
troca de presentes, Kane (1996: 19-20) conclui que não há quaisquer indícios de μελία entre Heitor e Ájax, pois
não se refere qualquer relação de hospitalidade entre as duas famílias, nem sequer estão presentes, no episódio,
termos que remetam para o campo semântico da θηιία. Repare-se que as oferendas não são classificadas como
μεηλήτα, mas como δῶξα, tal como na tragédia sofocliana. Na verdade, Ájax e Heitor nunca substituíram a
inimizade que os opunha em campo de batalha pela amizade. Mesmo após a troca de oferendas, os guerreiros
adiam o combate, que terminou empatado, ficando claro que pretendem lutar mais tarde (Hom Il. 7.291-292);
ao contrário de Glauco e Diomedes, eles não se evitarão no campo de batalha. Assim, porque não há, na Ilíada,
qualquer referência ao facto de Heitor e Ájax se terem tornado θίινη, nem de estarem unidos pelas leis da
hospitalidade, considerámos que o termo μέλνο significa, neste passo, apenas “estrangeiro”. Como afirma Kane
(1996: 23), tendo em conta que Ájax arranjou inimigos em ambas as facções da guerra troiana, é natural que
haja necessidade de especificar a que grupo pertence o inimigo a que se refere. Poderá ainda o uso do termo
implicar que Ájax tem inimigos entre os Gregos e que, ao contrário do que afirmou no segundo episódio, não
recuou na sua inimizade. De acordo com Campbell (1881: 76), μέλνο estabelece também uma diferença em
relação aos Atridas, por quem o ódio de Ájax é superior: o estrangeiro mais odiado é Heitor, mas, de todos os
homens, os que ele mais odeia são os Atridas.

45
a Teucro, para que ele seja o primeiro a erguer-me,
a mim que estarei caído sobre esta espada a escorrer sangue recente,
e que eu não seja visto antes por nenhum dos meus inimigos,
nem seja arremessado como uma presa atirada aos cães e às aves. 830 Tais
preces, ó Zeus, eu te dirijo, e invoco também
Hermes, o ctónico condutor, para me adomecer bem108,
sem convulsões e com um rápido salto,
quando eu tiver quebrado o meu flanco sobre esta espada. 835 Invoco
também a assistência das eternamente virgens,
que eternamente vêem todos os sofrimentos dos mortais,
que as veneráveis Erínias, de largas passadas, compreendam como
eu pereço, desgraçado, às mãos dos Atridas.
[E que capturem os infames da forma mais infame
e os destruam completamente, do mesmo modo que me vêem 840 cair, com
um golpe por mim próprio infligido. Assim pereçam
com os golpes infligidos pelos parentes mais amados109].
Vinde, ó rápidas e vingadoras Erínias,
saboreai todo o exército, não o poupeis.
E tu, Sol, que pelo escarpado céu conduzes 845 o teu carro, quando vires a
minha terra
pátria, segurando a rédea coberta de ouro,
anuncia a minha ruína e a minha morte
ao pai idoso e à infeliz que me criou110.
A desgraçada, quando ouvir esta notícia, 850 espalhará um grande clamor
por toda a cidade.
Mas de nada valem estas vãs lamentações;

108
Hermes, como deus ctónico, era o deus que conduzia as almas dos mortos para o reino de Hades (Hom. Od.
24.1-10); cf. Burkert (1993: 310-312, 383) e Sourvinou-Inwood (1995: 304-307, 311-314). 109 Vários estudiosos
optaram pela supressão destes versos, devido aos problemas que o texto apresenta; cf. Campbell (1881: 77-78),
Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 34-35), Garvie (1998: 82) e Finglass (2011: 384-385). Entre as razões apontadas
salientamos a ocorrência do superlativo θίιηζηνο, que não é comum em ático, e o facto de a maldição proferida
por Ájax não se cumprir: Ulisses, segundo uma versão do mito, é morto pelo seu filho Telégono, mas nem
Menelau nem Agamémnon serão mortos por parentes de sangue. Além disso, é inadequado que Ájax, antes de
amaldiçoar todo o exército, amaldiçoe também os Atridas, com uma imprecação que acabou por ser ineficaz; cf.
Lloyd-Jones e Wilson (1990a: 28), Garvie (1998: 206) e Finglass (2006: 261- 263). Outros, seguindo Pearson
(1924), suprimem apenas αὐηνζθαγεῖο / πξὸο ηῶλ θηιίζησλ ἐθγόλσλ ὀινίαην, mas, de acordo com Finglass
(2006: 262), já na Antiguidade ηὼο αὐηνζθαγεῖο era considerado corrupto. Dawe (1996: 42) segue Pearson, mas
inclui ηώο entre os vocábulos eliminados.
110
Para alusões ao Sol como mensageiro, cf. Hom. Od. 8.270-271; A. Ag. 575-576; E. Heracl. 748-754.

46
o acto tem de ser começado com alguma rapidez.
[Ó morte, morte, vem agora observar-me.
Também a ti me dirigirei, quando estiver aí contigo. 855 A ti, ó fulgor do
luminoso dia de hoje,
e a ti, Sol, condutor do carro, eu te invoco
uma derradeira vez, jamais o farei de novo111].
Ó luz, ó planície sagrada da minha terra
Salamina, ó fundamento do lar paterno, 860 ó gloriosa Atenas, ó estirpe
criada comigo,
ó fontes e rios que aqui estais e planícies
de Tróia, a vós me dirijo, adeus, vós que me alimentastes;
esta é a última palavra que Ájax proferirá para vós;
o resto, di-lo-ei no reino de Hades aos que se encontram lá em baixo. 865 (Ájax sai.

O Coro entra, metade de cada lado)

Epipárodo

1º SEMICORO
Labor traz labor ao labor112.
Onde, onde,
onde não estive eu ainda?
Nenhum lugar sabe †dar-mo a conhecer113†.

111
Finglass (2011: 387) defende a supressão destes cinco versos, sobretudo por causarem um atraso que se
torna incompreensível na sequência da urgência manifestada por Ájax nos versos 852-853. Assim, no verso 854,
é inadequado o chamamento da morte quando Ájax está prestes a suicidar-se e o verso 855 não pode estar
correcto, pois antecipa o verso 865, além de que não concorda com a ideia precedente: Ájax chama a morte para
acabar com a sua vida, não para conversar. Quanto aos versos 856-858, afirma Finglass (2011: 387): “Since
Ajax has only just declared that he wishes to end his life without delay, it is incredible that he should utter a
three-line invocation of the Sun so shortly after he has addressed it for five”. Para uma discussão mais
pormenorizada do problema, cf. West (1978: 113-115), Lloyd-Jones e Wilson (1990: 28) Garvie (1998: 207-
208) e Finglass (2011: 387-388).
112
Seguimos Kamerbeek (1963: 177) e Finglass (2011: 391) ao traduzirmos πόλῳ como um dativo de
atribuição e não como um dativo de meio ou instrumento, hipótese que Lloyd-Jones (1997: 111) apresenta, mas
que, como afirma Finglass, não transmite a ideia de acumulação presente no texto grego. 113 O sentido do texto
poderá ser “nenhum sítio sabe onde Ájax está” ou “nenhum sítio saberá levar-me até ele”; cf. Jebb (1907: 135)
e West (1978: 115). Não há, no entanto, consenso entre a crítica quanto à autenticidade do verso: Garvie (1998:
84) considera corrupto apenas ἐπίζηαηαη, Dawe (1996: 43), pelo contrário, considera corrupto todo o verso; já
Dain (2002: 62) admite o verso inteiro. Lloyd-Jones e Wilson (1990a: 29; 1990b: 36) e Pearson (1917: 61;
1924) defendem a conjectura ἐπηζπᾶηαη, que substitui ἐπίζηαηαη.

47
Olha! Olha! 870 Não será um ruído o que ouço?

2º SEMICORO
Sim, somos nós, o grupo de companheiros que navega convosco na nau.

1º SEMICORO
E então?
2º SEMICORO
Explorou-se por todo o lado a poente das naus.
1º SEMICORO
E encontrastes alguma coisa? 875

2º SEMICORO
Abundância de labor, e nada mais para ver.

1º SEMICORO
Mas em parte nenhuma pelo caminho donde
nasce o sol o homem se mostra de forma evidente.

Quem, quem, dentre os laboriosos


pescadores114, com a vigília da pescaria, 880/1 qual dentre as deusas do
Olimpo, ou qual dos rios
que correm para o Bósforo115
me dirá se viu 885/6 algures a andar errante o homem
de cruel coração? É um infortúnio
que eu, que suporto longos labores116,

Finglass (2011: 391-392) considera corrupto o sintagma κε ζπκκαζεῖλ, mas rejeita as conjecturas que o
corrigem, por considerar que nenhuma é paleograficamente convincente.
114
Cf. Scholia Vetera: ἁιηέσλ ηῶλ εἰζηζκέλσλ πνλεῖλ.
115
Apesar de o Bósforo ser, actualmente, o estreito que liga o Mar Negro ao Mar de Mármara, o Coro refere se,
neste passo, ao Helesponto; cf. Finglass (2011: 397). Segundo os Scholia Vetera, há dois rios com a
denominação de Bósforo: um desagua no Mar da Propôntida (actualmente o Mar de Mármara); o outro, ao qual
este passo se refere, localiza-se na Trácia e desagua no Helesponto.

48
117
não depare com uma corrida instigada por ventos favoráveis,
e não veja onde está o homem instável. 890 (ouve-se a voz de Tecmessa)

TECMESSA
Ai! Ai de mim! Ai de mim!

CORO
De quem será o grito que veio de um vale próximo118?

TECMESSA
Ai! Que desgraça!

CORO
Vejo a infortunada noiva conquistada pela lança,
Tecmessa, submersa neste padecimento. 895 (Tecmessa entra)

TECMESSA
Estou acabada, estou perdida, completamente aniquilada, amigos.

CORO
O que se passa?

116
Interpretámos καθξῶλ πόλσλ como um genitivo objectivo, sendo a expressão ἀιάηαλ πόλσλ equivalente a
ἀιᾶζζαη πόλνπο, como defendem Kamerbeek (1963: 181) e Finglass (2011: 399). Considera, aliás, Finglass que
atribuir aos genitivos um sentido qualitativo originaria uma construção pouco usual na língua grega. 117 Apesar
de ser possível considerar νὐξίῳ δξόκῳ um dativo de meio, subentendendo-se ηῷ Αἴαληη como complemento da
forma verbal πειάζαη, solução proposta por Stanford (1963: 176-177), preferimos interpretar o sintagma
presente no verso como dependente do verbo, sem qualquer termo subentendido, leitura defendida por
Kamerbek (1963: 181); cf. também Garvie (1998: 211), Mazon (2002: 65) e Finglass (2011: 398). 118 O termo
πάξαπινο pode remeter tanto para a situação geográfica como para o som. No primeiro caso, é composto de
παξά e αὐιή, sendo o seu significado “próximo”; cf. Chantraine (1999: 139). Com este sentido também
encontramos o termo em S. OC 785. No segundo caso, o adjectivo deriva do instrumento musical αὐιόο.
Kamerbeek (1963: 181) prefere esta leitura. Seguimos Garvie (1998: 211) e Finglass (2011: 400), ao optarmos
pela primeira interpretação: tendo o grito vindo de um local próximo, o Coro pensa que talvez estivesse perto
do sítio certo.

49
TECMESSA
O nosso querido Ájax jaz aqui,
morto há pouco tempo, inclinado sobre uma espada escondida.

CORO
Ai do nosso regresso! 900 Ai de nós! Desgraçado soberano, mataste-nos,
A nós, os nautas teus companheiros!
Ó mulher infeliz.

TECMESSA
Fica a saber que, assim sendo, nos podemos lamentar.
CORO
E com que mão agiu o infortunado? 905

TECMESSA
Com a sua própria, é evidente. Esta espada,
cravada na terra, acusa-o de ter caído sobre ela.

CORO
Ai! Que ruína a minha! Solitário, estás coberto de sangue,
privado de amigos. 910 Mas eu, surdo a tudo, ignorante de tudo,
fui negligente. Onde, onde
jaz o inflexível
Ájax, de nome agoirento?

TECMESSA
Não deve ser visto. Eu cobri-lo-ei 915 completamente envolvendo-o neste
manto119, porque

119
Segundo Garvie (1998: 212), Tecmessa utiliza, provavelmente, o seu próprio véu ou manto para cobrir o
corpo de Ájax; cf. também Garvie (1998: 3). Na Ilíada, os cadáveres de Pátroclo (Hom. Il. 18. 353) e de Heitor
(Hom. Il. 24. 588), depois de lavados e ungidos, são cobertos por um θᾶξνο. O termo, que é, na sua

50
ninguém que seja seu amigo suportará olhar para ele,
[estando o negro sangue a escorrer-lhe para as narinas,
a partir do sangrento golpe com que se feriu a si próprio120].
Ai de mim! Que farei? Qual dos teus amigos te erguerá? 920 Onde está
Teucro? No caso de vir, como regressará a tempo
para preparar connosco os rituais fúnebres do irmão que aqui está caído.
Ó infortunado Ájax, quem tu eras e em que estado te encontras!
Como és digno de obter lamentos até junto dos teus inimigos.

CORO
Estavas destinado, desgraçado de espírito empedernido, 925/6 estavas
destinado a cumprir, com o tempo, um funesto
fado de infinitos labores. Tais eram
as palavras odiosas com que, durante noite 930 e dia, te lamentavas,
tu de ânimo cruel, contra os Atridas,
com um funesto sofrimento.
Era o grandioso começo da calamidade,
aquele tempo em que foi estabelecido 935 o concurso de excelência […]121
pelas armas.

TECMESSA
Ai! Ai de mim! Ai de mim!

origem, épico e poético, designa um “tecido amplo” ou uma “túnica feita de um tecido amplo”; cf. Chantraine
(1999: 1179). Para Finglass (2011: 405), se o objecto usado por Tecmessa for um véu, poderá estabelecer-se um
paralelo com o gesto de Andrómaca após a morte de Heitor (Hom. Il. 22.468-72); note-se, todavia, que, neste
passo, o termo usado não é θᾶξνο, mas θξήδεκλνλ (Hom. Il. 22.470). Para Kamerbeek (1963: 184) e Garvie
(1998: 212), θᾶξνο tem implícito o sentido de “mortalha”. Stanford (1963: 177; 179) observa ainda que a
presença do adjectivo πεξηπηπρήο nos permite estabelecer uma relação com o verso 899, no qual o corpo de
Ájax cobre a espada como se fosse um véu.
120
A descrição presente nestes versos não se coaduna com o facto de Tecmessa ter acabado de cobrir o corpo de
Ájax para que nenhum amigo o visse, pois deixa bem patente o que ficara escondido pelo manto. Além disso,
devido à expressão ἀπ’ νἰθείαο ζθαγῆο, que não pode significar “ferida auto-infligida”, pela proximidade com
πιεγῆο, Finglass (2009b: 335-337) conclui que os versos são, provavelmente, interpolados; cf. também West
(1978: 121).
121
Há uma lacuna na transmissão do texto. São várias as conjecturas propostas para emendar o passo, entre as
quais destacamos a de Campbell (1881: 85), que opta por ρξπζνηύπσλ, e νὐινκέλσλ, conjectura de Thiersch que
Dain (2002: 66) apresenta. Todavia, tanto Kamerbeek (1963: 188) como Finglass (2011: 409) afirmam que não
é possível decidir entre as hipóteses apresentadas.

51
CORO
Corre para o coração122, sei-o bem, o genuíno padecimento.

TECMESSA
Ai! Ai de mim! Ai de mim!

CORO
Não me surprende que tu até estejas a gemer duas vezes, mulher, 940 sendo
tal o ente querido de que acabas de ficar privada.

TECMESSA
Tu ficas com as apreciações, mas sou eu que o sinto.

CORO
Concordo contigo.

TECMESSA
Ai de mim, filho! Corremos para os jugos da escravatura
e os vigias postam-se já contra nós! 945

CORO
Ai de mim! Proclamaste
as indizíveis obras dos dois Atridas insensíveis,
com este canto de desespero123.
Mas que um deus os impeça!

TECMESSA
Isto não foi estabelecido sem a ajuda de um deus. 950

CORO

122
O substantivo ἧπαξ significa “fígado”, órgão por vezes referido como a sede das emoções (e.g., A. Ag. 432,
791-2; E. Hipp. 1070, Arist. PA 676b24-25); cf. Chantraine (1999: 414), Garvie (1998: 213) e Kamerbeek
(1963: 188).
123
Seguimos Lloyd-Jones (1997: 119) e Finglass (2011: 410-411), ao traduzirmos a expressão ηῷδ’ ἄρεη por
“canto de desespero”.

52
Demasiado pesado foi o fardo por que o fizeram passar124.

TECMESSA
A terrível deusa Palas, filha de Zeus,
originou esta calamidade por causa de Ulisses.

CORO
Enche-se de insolência, no seu negro coração, 954/5 o homem que muito
suporta125
e ri-se às gargalhadas
do desespero de tal loucura. Ai! Ai!
E com ele os dois reis
Atridas, que o ouvem. 960

TECMESSA
Que eles se riam e regozijem com os males
deste homem. Mesmo que não sentissem a sua falta quando estava vivo,
talvez o lamentem, uma vez morto, quando necessitarem da sua lança126.
Quem é maldoso nos seus pensamentos não percebe
que o que tem nas mãos é bom antes que alguém lho tire. 965 [Para mim, a
sua morte é amarga, tal como é doce para aqueles,
e para ele foi um deleite; pois aquilo que ele desejava obter
conseguiu para si próprio – a morte que ele queria.
Porque se hão-de rir dele?
Ele morreu perante127 os deuses, não perante eles, não128]. 970

124
O verso está incompleto, pois precisa de mais uma sílaba para que, como aduz Finglass (2011: 411-412),
seja metricamente equivalente ao verso 905. Garvie (1998: 88), Dawe (1996: 47) e Lloyd-Jones e Wilson
(1990b: 39) adoptam a conjectura de Blaydes, γε ηἄρζνο, hipótese que Finglass rejeita, por considerar que não é
preferível nem à de Elmsley (γὰξ), nem à de Brunck (ηόδ΄).
125
O epíteto πνιύηιαο é frequentemente associado a Ulisses, nos Poemas Homéricos (e.g., Hom. Il. 8.97;
10.248; Od. 5.171), mas, neste passo, há uma certa ironia na referência; cf. Garvie (1998: 214). 126 Seguimos
uma interpretação dos Scholia Vetera, em que βιέπνληα é considerado equivalente a δῶληα. Preferimos, no
entanto, distanciar-nos da explicação de δνξόο, dada pelos Scholia Vetera e seguida por Jebb (1907: 147),
Stanford (1963: 183), Lloyd-Jones (1997: 121) e Finglass (2011: 413-14), segundo a qual o termo é sinónimo
de πόιεκνο. Optámos pela leitura de Kamerbeek (1963: 190), Garvie (1998: 91) e Rocha Pereira (2003: 71).
127
O dativo ζενῖο tem várias interpretações sintácticas possíveis: 1. dativo de agente, como o interpretam
Lloyd-Jones (1997: 121) e Finglass (2009b: 342-343); 2. dativo de causa, hipótese apresentada por Whitman
(1971: 78); 3. dativo de interesse, segundo Garvie (1998: 215); 4. dativo de relação, na leitura de Jebb (1907:

53
Depois disto, que Ulisses insulte quem está de luto.129
Ájax já não existe para eles; mas, para mim,
partiu, deixando-me em aflições e lamentos.

Quarto Episódio
(entra Teucro)
TEUCRO
Ai! Ai de mim! Ai de mim!
CORO
Cala-te; penso que oiço a voz de Teucro 975 a gritar num tom que exprime
esta ruína.

TEUCRO
Ó caríssimo Ájax, ó rosto do meu irmão130,
ocorreu-te aquilo que prevalece como notícia?

CORO
O homem está destruído, Teucro, fica a saber isto.

148-149). Segundo Pearson (1922: 126-127) tanto a interpretação de dativo de agente como dativo de causa são
possíveis e estão presentes no contexto. Ao traduzirmos, procurámos respeitar esta ambiguidade. 128 Os versos
966-970 apresentam vários problemas, que levaram Finglass (2011: 114-115) a defender a sua supressão. Para o
estudioso (2009: 338-340), não há nenhuma conjectura defensável para substituir ἤ. Esta conjunção tem sido
considerada equivalente a κᾶιινλ ἤ, mas, de acordo com Finglass, não há nenhuma ocorrência em que ἤ não
esteja acompanhado de um verbo como βνύινκαη, que tornaria implícita a ideia de preferência. Além dos
problemas métricos e sintácticos, que Reeve (1972: 161), Lloyd-Jones e Wilson (1990: 31) e Finglass (2009b:
340-342) destacam, há ainda dificuldades quanto ao sentido, pois Tecmessa exprime dois pensamentos distintos
nos versos 961-5 e 966-8, não havendo qualquer tentativa de ligação entre eles. Segundo Dawe (1973: 159),
esperar-se-ia uma correspondência na extensão dos discursos de Tecmessa (S. Aj. 915-924; 961-973), o que, de
facto, ocorre com as supressões feitas por Finglass (2011: 113-115). Apesar de a correspondência do número de
versos não bastar como argumento para a existência de interpolação, tendo em conta os demais problemas deste
passo, será preferível defender a sua supressão; cf. Reeve (1973: 161) e Finglass (2009b: 348-349).
129
Seguimos Lloyd-Jones (1997: 121), ao considerarmos que o termo θελνί designa “os que estão de luto”.
Também seria possível atribuir ao termo o sentido adverbial de “em vão”, mas esta leitura não é, segundo
Finglass (2011: 416), tão relevante tendo em conta o sentido do texto; cf. também Finglass (2009b: 343-345). 130
A interpretação de Jebb (1907: 149) para ὄκκα como “face” parece-nos preferível à de Stanford (1963: 185),
que defende que, devido à associação de ὄκκα com μύλαηκνλ, o termo designa “vista” ou “aparência” e, assim,
propõe a tradução “source of brightness and joyfulness”. Finglass (2011: 418-419) adopta a leitura de Stanford,
argumentando que seria pouco provável que Teucro se referisse ao rosto de Ájax, por este estar coberto.
Contudo, parece-nos que podemos tomar ὄκκα como uma sinédoque para designar a imagem global de Ájax
morto.

54
TEUCRO
Ai de mim! Como é pesada a minha sorte! 980

CORO
Fica a saber que, sendo assim que as coisas são, -

TEUCRO
Ó que desgraça a minha! Que desgraça!
CORO
- podes lamentar131.

TEUCRO
Ó impulsivo sofrimento!132

CORO
Demasiado, Teucro.

TEUCRO
Ai! Que desgraça! E o filho
dele? Em que parte da terra de Tróade se encontra?

CORO
Está sozinho, junto das tendas. 985

TEUCRO
Porque é que não o trazes
para aqui o mais rapidamente possível, não vá acontecer que algum
dos inimigos o apanhe, como se fosse a cria de uma leoa solitária133?

131
Cf. n. 53.
132
De acordo com Stanford (1963: 186), a expressão πεξηζπεξρὲο πάζνο é ambígua, pois tanto se pode referir ao
sofrimento de Teucro, como propõe Kamerbeek (1963: 193-194), como ao sofrimento de Ájax, como pretende
Garvie (1998: 217). No primeiro caso a tradução seria “sofrimento súbito”; no segundo, “acção precipitada”.
Apesar de considerarmos que a expressão se refere ao sofrimento de Teucro, entendemos que o sofrimento
deste é originado pelo acto impulsivo do suicídio de Ájax; cf. Finglass (2011: 419).

55
Vai, apressa-te, auxilia-nos. Dos que jazem
mortos todos gostam de se rir.

(Tecmessa sai)
CORO
Enquanto ainda vivia, Teucro, este homem 990 recomendou que tu cuidasses
do seu filho, como estás a cuidar.
TEUCRO
Para mim, de todos os espectáculos
que eu vi com os meus olhos, este é o mais doloroso!
De todos os caminhos, o caminho
que mais afligiu o meu coração134 é o que eu até agora percorri; 995 ó
caríssimo Ájax, quando te procurava,
indo no teu encalço, e me apercebi da tua morte!
Um penetrante rumor acerca de ti, segundo o qual havias morrido,
percorreu todos os Aqueus, como se proviesse de uma divindade.
E eu, infeliz, ao ouvir isto, ao longe, 1000 lamentava-te, mas agora sinto-me
perdido, ao ver-te.
Ai de mim!
Vamos, destapa-o, para que eu veja todo o mal.
Ó rosto difícil de contemplar, de uma amarga ousadia135,
quantas aflições para mim semeaste, ao pereceres. 1005 Para onde poderei ir,
para junto de que mortais,
eu que não te assisti, de maneira nenhuma, nos teus labores?

133
Tecmessa está privada de Ájax, como defendem Kamerbeek (1963: 194), Lloyd-Jones e Wilson (1990a: 31),
Lloyd-Jones (1997: 123) e Finglass (2011: 420), não do seu filho, como prefere Jebb (1907: 151). Como afirma
Campbell (1881: 89), a analogia interessa pela comparação de Ájax com um leão, não de Tecmessa com uma
leoa. Finglass (2011: 420-421) lembra que é frequente a associação de guerreiros a leões (e.g., Hom. Il. 3.23;
5.161; 299; 10.485; 11.113) e o próprio Ájax é comparado a este animal na Ilíada (Hom. Il. 17.133). É possível
que o símile se inspire na cena em que Aquiles, ao chorar a morte de Pátroclo, é comparado a um leão que
perdeu as suas crias (Hom. Il. 18.316-323); cf. Garvie (1998: 218).
134
O termo ζπιάγρλνλ é usado sobretudo no plural para designar os “órgãos internos”, as “vísceras” e o
“coração”; cf. Chantraine (1999: 1039). Para a relação entre os ζπιάγρλα e as emoções, cf. A. Th. 237; Anon.
A.P. 12.160.1.
135
Seguimos Garvie (1998: 219), Lloyd-Jones (1997: 125), Rocha Pereira (2003: 73) e Finglass (2011: 424), ao
traduzirmos ὄκκα por “rosto” e não por “visão”, como sugerem Campbell (1881: 90) e Mazon (2002: 73), que
entendem que ὄκκα se refere não apenas à imagem da face de Ájax, mas a todo o espectáculo. Finglass (2011:
424) lembra que a expressão de Ájax é, por três vezes, descrita pela palavra ὄκκα (S. Aj. 192/3, 462, 1004).

56
Não há dúvida que Télamon, o teu pai e também o meu,
me136 receberá com uma face afável e igualmente benévola,
quando eu regressar sem ti. Como não? Ele que não consegue rir-se 1010 com
doçura nem quando tem boa sorte!
O que é que uma pessoa assim há-de esconder? Como não há-de ele insultar
o bastardo, filho de uma lança inimiga137,
que, por cobardia e vileza te traiu,
caríssimo Ájax, ou por dolo, para que eu pudesse 1015 administrar o teu poder
e a tua casa, graças à tua morte.
Eis o que o homem irascível, pesado na sua velhice,
dirá, ele que por nenhuma discórdia se enfurece.
Por fim, rejeitado, serei expulso da sua terra,
e por causa das suas palavras parecerei um escravo, em vez de homem livre. 1020
Tal é o que acontecerá em casa. Em Tróia, são
muitos os inimigos e poucas as ajudas,
e estas desvaneceram-se, agora que tu estás morto.
Ai de mim! Que farei? Como te hei-de arrancar deste amargo
e cintilante gume? Ó desgraçado, às mãos de que 1025 assassino expiraste.Vês
como, com o tempo,
Heitor estava destinado a fazer-te perecer, mesmo depois de morto?
[Observai, pelos deuses, a sorte dos dois mortais.
Heitor, a quem este homem ofereceu
um cinturão, foi com ele amarrado ao carro de cavalos 1030 e continuamente
dilacerado, até exalar a vida138.
E este, recebendo daquele esta oferenda,
foi por ela destruído, numa queda mortal.
Não foi, então, uma Erínia quem forjou esta espada,
e Hades, o selvagem artífice, aquele cinturão? 1035 Eu afirmaria que, tanto
isto, como tudo o mais,

136
Finglass (2011: 425) defende a vantagem da conjectura κε em relação à leitura dos manuscritos.
137
Hesíone, mãe de Teucro, era filha de Laomedonte, rei de Tróia; cf. n. 77.
138
O passo apresenta variantes em relação à versão da Ilíada: Aquiles prende Heitor com correias de couro
(Hom. Il. 22.397), e não com o cinturão que Ájax lhe ofereceu, e já estaria morto quando a mutilação ocorreu
(Hom. Il. 22.367). Considera Finglass (2011: 431) que as diferenças relativamente à fonte homérica não
constituem um argumento contra a autenticidade do texto, pois a alteração do mito é prática comum dos
tragediógrafos, além de que Sófocles poderia ter em mente outras fontes.

57
é sempre maquinado pelos deuses contra os homens.
Aquele para quem isto não é caro no seu pensamento,
que fique com a sua opinião e eu com a minha139].

CORO
Não te alongues muito, mas conta-nos como esconderás 1040 o homem num
túmulo, e o que dirás logo a seguir.
Vejo um inimigo, que chegará em breve
a rir-se com os nossos males, como um homem infame.

TEUCRO
Quem é o homem do exército que tu avistas?

CORO
Menelau, por quem preparámos esta viagem. 1045

TEUCRO
Estou a vê-lo e não é difícil reconhecê-lo, pois está próximo.
(entra Menelau)
MENELAU
Tu aí, estou a falar contigo! Não leves esse cadáver
nas tuas mãos, mas deixa-o como está.

TEUCRO
Por que razão gastas tantas palavras?

MENELAU
A mim, é o que me parece e assim parece àquele que comanda o exército. 1050

TEUCRO

139
Finglass (2011: 429-431) e Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 42) optam pela supressão destes versos. Entre as
razões aduzidas destacamos as seguintes: 1. Teucro, nos versos 1023-1027, referiu-se a Ájax na segunda pessoa
e agora refere-se-lhe na terceira pessoa; 2. o referente de θἀθεῖλνλ (v. 1035) encontra-se cinco versos atrás; 3. o
desafio de Teucro, nos versos 1038-1039 é inadequado. Para Lloyd-Jones e Wilson (1990a: 32-33) é provável
que o passo tenha sido acrescentado por um actor que representaria o papel de Teucro.

58
Poderás, então, dizer-me que razão ele apresentou?

MENELAU
A razão foi a seguinte: na expectativa de que o traríamos
de casa como aliado e amigo dos Aqueus,
descobrimos, ao conviver com ele, que era um inimigo pior do que os Frígios.
Ele, decidindo chacinar todo o exército, 1055 fez uma expedição, durante a
noite, para nos capturar com a lança.
Se nenhum dos deuses tivesse anulado esta tentativa,
nós teríamos morrido vítimas da sorte140 que lhe coube,
expostos à mais ignominiosa morte,
e ele estaria vivo. Mas agora um deus alterou 1060 [a insolência dele e fê-lo
lançar-se na direcção dos carneiros e rebanhos141]. Por causa disto, nenhum
homem será capaz
de sepultar o corpo dele num túmulo,
mas lançado à pálida areia,
tornar-se-á o alimento das aves marítimas. 1065 Perante isto, não soltes a tua
terrível cólera.
Se, enquanto estava vivo, não o pudemos dominar,
teremos todo o poder sobre ele agora que está morto, mesmo que não queiras,
sujeitando-o com as nossas mãos. Nunca houve ocasião
em que ele quisesse ouvir as minhas palavras, quando estava vivo. 1070 É
próprio de um homem infame que uma pessoa do povo
reivindique o direito de não ouvir os que estão acima dela.
Jamais as leis teriam bom sucesso
numa cidade onde o receio não está estabelecido,
nem o exército seria comandado de modo sensato, 1075 sem a barreira do
temor e do respeito.
Mas é necessário que um homem, mesmo que possua um grande corpo,

140
Esperar-se-ia um dativo de causa; o acusativo ηήλδ’ […] ηύρελ explica-se por atracção do pronome relativo;
cf. Finglass (2011: 438-439).
141
Devido aos problemas que o texto apresenta, Finglass (2011: 439) opta pela supressão deste verso, ao
contrário de Dawe (1996: 53), Garvie (1998: 96) e Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 43). Para aquele estudioso a
expressão πξόο ηη πίπησ significa “cair na direcção de”, e não “atacar”, que é a acepção de πίπησ/πίηλσ ἐλ,
várias vezes presente no texto (S. Aj. 185, 300, 374-375); cf. também Reeve (1973: 161-162).

59
pense que pode cair, ainda que derrubado por um pequeno mal.
Fica a saber que aquele em que coexistem
o receio e a vergonha está salvo. 1080 Mas, se se puder ser insolente e fazer o
que se quer,
pensa que, com o tempo, a cidade em que isso acontece, depois de ter vogado
com ventos favoráveis, há-de um dia cair num abismo.

Por mim estabeleça-se, também, um receio oportuno,


e não pensemos que, ao fazermos aquilo que nos compraz, 1085 não
pagaremos por isso uma pena que nos angustiará.
Estas coisas sucedem-se alternadamente. Outrora este era
fogoso e insolente, mas agora sou eu que penso com altivez.
E a ti, ordeno-te que não o sepultes, não vás
tu próprio cair no túmulo, ao sepultá-lo. 1090

CORO
Menelau, não imponhas sábios pensamentos,
se tu próprio és insolente para com os mortos.

TEUCRO
Jamais, homens, me hei-de admirar que alguém
que nada é pela sua origem erre,
quando os que parecem ter nascido nobres 1095 erram em tais palavras nos
seus discursos.
Vá, diz-me de novo, desde o início. Será que estás a afirmar que conduziste
este homem para aqui como aliado dos Aqueus?
Ele não se fez ao mar como chefe de si próprio?
Como é que tu és o seu comandante? Como é que é possível 1100 que exerças
soberania sobre os homens que ele trouxe de casa?
Vieste como soberano de Esparta, não como nosso chefe.
Não está estabelecida nenhuma lei escrita relativa ao comando
que te permita discipliná-lo mais a ele do que ele a ti.
[Navegaste para aqui como subchefe de outros, não como 1105

60
comandante de todos, de modo a dirigires Ájax142].
Mas governa sobre aqueles que governas e castiga-os
com as tuas palavras soberbas. Mesmo que tu
e o outro comandante recusem, eu sepultá-lo-ei
num túmulo, conforme o que é justo, sem recear as tuas palavras. 1110 Não
foi por causa da tua mulher que
ele fez a expedição, como esses, que muito se afadigam,
mas por causa dos juramentos a que estava obrigado,
não por ti143. Os que nada são, considerava-os sem valor.
Perante isto, traz para aqui mais arautos 1115 e o comandante. Não há-de ser a
tua algazarra
que me fará mudar, enquanto fores como és.

CORO
Não gosto de tal linguagem em momentos funestos.
Palavras duras magoam, mesmo que sejam justas.

MENELAU
Parece que o archeiro não pensa com humildade144. 1120

TEUCRO
Não foi uma arte vulgar a que eu consegui.

MENELAU
Vangloriar-te-ias muito, se agarrasses num escudo145.

142
Dawe (1996: 55), Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 45), Garvie (1998: 100) e Finglass (2011: 120) optam pela
supressão dos versos 1105-1106, por diversas razões, a saber: 1. o facto de Teucro se estar a repetir, pois já no
verso 1102 havia indicado que a autoridade de Menelau se limitava aos guerreiros vindos de Esparta; 2. ficar
beneficiada a conexão existente entre os versos 1102-1104 e 1107-1108 sem estes versos; 3. o facto de o termo
ὕπαξρνο, que traduzimos por “subchefe” estar, neste verso, em oposição a ζηξαηεγόο (“comandante”), apesar
de, nos versos 1100 e 1109, Teucro se referir a Menelau como “comandante”; cf. Reeve (1973: 162), Garvie
(1998: 226), Lloyd-Jones e Wilson (1990a: 34) e Finglass (2011: 448-449).
143
O juramento a que Teucro se refere foi feito pelos pretendentes de Helena, que prometeram protegê-la e
ajudar o marido por ela escolhido (e.g., Hes. fr. 204.78-85; Stesich. fr. 190 PMGF; S. Ph. 72-73, E. IA 391- 394,
Th. 1.9.1).
144
Apesar de o valor de Teucro como archeiro ser realçado várias vezes (e.g., Hom. Il. 8.266-334; 13.313-314;
23.859-869; S. Ph. 1057), é comum considerar-se a luta com o arco inferior ao combate com a lança ou com a
espada (Hom. Il. 11.385-395, 13.713-18).
61
TEUCRO
Contra ti, bem equipado, bastaria eu com poucas armas.

MENELAU
Quão terrível é o coração que a tua língua sustenta!

TEUCRO
Quem tem a justiça do seu lado pode pensar com altivez. 1125

MENELAU
Consideras justo que quem me matou seja afortunado?

TEUCRO
Quem te matou? Disseste uma coisa extraordinária, se morreste e estás vivo.

MENELAU
Foi um deus que me salvou, mas, para este homem, eu não existo.

TEUCRO
Nesse caso não desonres os deuses, se pelos deuses foste salvo.

MENELAU
Haveria eu de desdenhar das leis das divindades? 1130

TEUCRO
Sim, se estás aqui para não deixar sepultar os mortos.

MENELAU

145
O escudo está associado ao combate corpo a corpo, isto é, a guerreiros que lutam com a espada ou com a
lança. Mais uma vez Menelau tenta denegrir a imagem de Teucro, ao sugerir a inferioridade deste no campo de
batalha. Segundo Garvie (1998: 227), este verso tem o objectivo de permitir uma comparação entre Teucro e
Ájax, de modo a lembrar que Teucro não, é na verdade, um homem igual ao irmão.
62
Para não deixar sepultar os meus inimigos146, pois não estaria bem.

TEUCRO
Então Ájax alguma vez te enfrentou como inimigo?

MENELAU
Ele detestava quem o detestasse. E tu sabias disto.

TEUCRO
Descobriu-se que o enganaste com a falsificação de votos. 1135

MENELAU
Foram os juízes, e não eu, quem o derrubou.

TEUCRO
Bem podias ter tu, furtivamente, engendrado perfídias.

MENELAU
Essas palavras vão levar alguém à aflição.

TEUCRO
Não mais, parece, do que a angústia que havemos de te provocar.

MENELAU
Explicar-te-ei apenas isto: este homem não pode ser sepultado. 1140

TEUCRO
Mas tu ouvirás apenas isto em resposta: ele será sepultado.

MENELAU
Eu vi, um dia, um homem, audaz na sua linguagem,

146
Para Blundell (1989: 39, 92-93), ao empregar o termo πνιέκηνο para designar Ájax, Menelau revela que a
inimizade existente entre eles não era de foro pessoal, mas militar. Assim se compreende a interrogação de
Teucro, em resposta, no verso seguinte, pois Ájax, não obstante ter tentado atacar Menelau durante a noite,
nunca se confrontou com o Atrida em batalha.

63
a incitar os marinheiros a navegar durante uma tempestade,
mas não se lhe ouvia uma voz quando era apanhado
no auge da tormenta. Escondia-se sob um manto 1145 e deixava-se espezinhar
por qualquer dos marinheiros que o quisesse fazer. Assim também acontecerá
contigo e com as tuas violentas palavras:
uma grande tempestade, soprando de repente
de uma pequena nuvem, extinguirá o forte grito.

TEUCRO
Eu vi um homem cheio de estultícia, 1150 que era insolente com os males do
próximo.
E depois, alguém parecido comigo e igual
no temperamento, ao vê-lo, disse as seguintes palavras:
“Homem, não ajas mal para com os mortos;
pois se o fizeres, fica a saber que hás-de sofrer.” 1155 Assim ele advertia o
desventurado homem, face a face147.
Olho para ele e, conforme me parece,
não era outro senão tu. Será que falei por enigmas?

MENELAU
Vou-me embora, pois seria uma ignomínia, se alguém soubesse
que te castiga com palavras aquele que pode exercer violência. 1160

TEUCRO
Afasta-te já. Para mim, a maior ignomínia é ouvir
um homem inútil a dizer palavras insultuosas.
(sai Menelau)
CORO
Grande será a discórdia que o confronto trará.
Mas, tanto quanto conseguires, Teucro, sê rápido.
e apressa-te a prover148 uma cova profunda 1165 para este homem,
onde terá um túmulo húmido
147
Seguimos a proposta de Kamerbeek (1963: 223) ao traduzirmos παξώλ por “face a face”.
148
Encontramos este uso específico de ὁξάσ em, e.g., S. Ph. 843, Theoc. 15.2.

64
que será eternamente lembrado pelos mortais.
(entram Tecmessa e Eurísaces)

TEUCRO
E, precisamente no momento oportuno, eis que
chegam os mais próximos, o seu filho e a sua mulher,
para compor o túmulo do infeliz cadáver. 1170 Rapaz, vem para aqui e fica
perto,
para, como suplicante, tocares no teu pai, que te gerou.
Senta-te em acto de súplica, segurando nas mãos
o meu cabelo, o cabelo da tua mãe e, em terceiro lugar, o teu,
tesouros de quem suplica149. E se alguém do exército 1175 te arrancar, pela
força, de junto deste cadáver,
que o infame seja, de forma infame, banido da terra, insepulto,
arrancada a raiz de toda a sua estirpe,
do mesmo modo que eu corto esta madeixa.
Segura-a, rapaz, e guarda-a150. Que ninguém 1180 te mova daqui. Prostra-te
junto dele, abraçando-o.
E vós, não fiqueis perto dele como mulheres,
ficai como homens e ajudai-o, até eu regressar151,
depois de tratar do túmulo dele, mesmo que ninguém mo autorize.
(sai Teucro)

149
Eurísaces, ao colocar-se junto ao corpo de Ájax como um suplicante, está, de certo modo, a protegê-lo, pois
quem quer que perturbasse o cadáver estaria, ao mesmo tempo, a interferir com o direito do suplicante, o que
era considerado um sacrilégio. Os cabelos que tem nas mãos, que, ao mesmo tempo, são oferendas fúnebres
(Hom. Il. 23.135; S. El. 52), são o seu “tesouro”, porque o poder do suplicante consistia na sua oferta; cf.
Kamerbeek (1963: 225), Burkert (1993: 152, 374-5) e Garvie (1998: 232). Contudo, como realça Currie (2012:
335-6), estas referências não significam uma alusão ao culto de Ájax como um herói, pois era costume as
oferendas serem colocadas nos altares ou aos pés da pessoa a quem se suplicava, e Eurísaces guarda-as nas
mãos. Segundo o estudioso (2012: 336), “in orchestrating this scene of supplication Teucer perhaps means to
bolster, through visual symbolism, Ajax’s moral claims to burial (rather than exploiting any “supernatural
power” supposedly invested in Ajax’s corpse). For a Greek now to dishonor the corpse would mean dragging
Eurysaces away and doing visible violence to the ethical and religious claims for Ajax’s burial”.
150
Seguimos a interpretação de Kamerbeek (1963: 226), Stanford (1963: 205) e Finglass (2011: 468), ao
considerarmos que αὐηόλ se refere a πιόθνλ. Garvie (1998: 232) entende, todavia, que Teucro está a ordenar a
Eurísaces que se mantenha junto do corpo de Ájax. A leitura que seguimos, além de ser mais natural, pela
proximidade com o referente, tem a vantagem de repetir a construção dos versos 1173-4. Já o predicado ἔρνπ
tem como complemento o corpo de Ájax; cf. Kamerbeek (1963: 226) e Finglass (2011: 468).
151
Seguimos Lloyd-Jones (1997: 141) e Finglass (2011: 468) ao considerarmos que a negativa deve ser
associada ao verbo e não a γπλαῖθεο, como preferem Garvie (1998: 105), Mazon (2002: 87) Rocha Pereira
(2003: 80). Para a utilização de κή com o modo imperativo, cf. Smyth (1984 : 612).

65
Terceiro Estásimo

CORO
Qual será o último, quando cessará 1185 o número dos muitos anos de
errância,
que eternamente me traz a infindável ruína
do esforço de brandir a lança
†por Tróia de largas ruas,†152 1190 infeliz injúria para os Helenos?

Quem dera que antes tivesse


mergulhado no elevado éter ou no Hades que todos acolhe
o homem que mostrou aos Helenos153
a guerra das armas detestáveis que todos partilham154. 1195/6 Ó labores que
geram labores!

Foi ele quem destruiu os homens.


Foi ele que me privou
do deleitoso convívio com grinaldas155 1200 e taças repletas156,
do doce som das flautas157, ele, miserável,

152
Garvie (1998: 233) e Finglass (2011: 471) chamam a atenção para as dificuldades métricas e vocabulares do
verso 1190. Finglass (2011: 471-472) considera que nenhuma das conjecturas propostas é completamente
defensável, razão pela qual opta pela leitura dos manuscritos. Dawe (1996: 59) prefere a conjectura de
Hermann, ἀλ’. Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 48) e Garvie (1998: 106) optam por apresentar a conjectura de
Ahrens, ἂλ ηὰλ; cf. Lloyd-Jones e Wilson (1990a: 35-36).
153
A maldição relativamente ao πξῶηνο εὑξεηήο tornou-se um motivo recorrente na literatura grega e latina
(e.g., Ar. Lys. 946, E. Hipp. 407-9, Tib. 1.4.59-60).
154
Seguimos Kamerbeek (1963: 229), Stanford (1963: 207) e Garvie (1998: 233) ao interpretarmos θνηλὸλ Ἄξε
como “guerra comum a todos”, leitura que mantém o paralelo com as expressões homéricas μπλὸο ἖λπάιηνο
(Hom. Il. 18.309) e ὁκνηΐνπ πηνιέκνην (Hom. Il. 9.440). O sentido é o de que a guerra e os sofrimentos que ela
comporta são experiências partilhadas por toda a humanidade. Esta visão distancia-se da leitura de Jebb (1907:
179), que prefere a tradução “public warfare”, entendendo que Sófocles se refere à causa comum dos Gregos
contra os Troianos. Para Finglass (2011: 472) a expressão equivale a “confederate warfare”. 155 O Coro
estabelece um contraste entre as dificuldades da guerra e a alegria própria do simpósio, em que era costume os
convivas colocarem grinaldas de flores nas cabeças (e.g., Anacr. fr. 396, 410, 434 PMG, Philox. fr. 836a.3
PMG).
156
Segundo Kamerbeek (1963: 230), a ideia transmitida pelo adjectivo βαζύο é a de que os copos estavam
cheios, pois o θύιημ é uma taça rasa e larga, pelo que o sentido de “profundo” não se adequa tão bem ao passo;
cf. Rocha Pereira (2012: 626-627; 2013: 65).
157
As flautas eram instrumentos musicais comuns nos banquetes (e.g., Pl. Smp.176e, 212c).

66
e do deleite do repouso nocturno.
E dos amores, dos amores158 me afastou, ai de mim! 1205/6 Aqui estou, assim,
descurado,
sempre com os cabelos humedecidos
pelo ininterrupto orvalho,
lembranças da deplorável Tróia. 1209/10 Outrora era sempre o impetuoso
Ájax a minha defesa
contra o receio nocturno e os projécteis.
Mas agora ele foi consagrado a um detestável destino. 1214/5 Qual, qual será
ainda o meu deleite?
Pudesse eu estar no promontório coberto de bosques,
banhado pelo mar, que se situa no oceano,
sob o planalto de Súnio159 1220 para saudar160
a sagrada Atenas.
(entra Teucro)
TEUCRO
Apressei-me, quando vi o comandante
Agamémnon a precipitar-se para aqui, para junto de nós.
É evidente que soltará palavras inconvenientes161. 1225

(entra Agamémnon)
AGAMÉMNON
Anunciam-me que tu te atreveste a dizer

158
Burton (1980: 36) considera que o sentido de ἔξσηεο, neste passo, abrange todos os prazeres já mencionados
pelo Coro. Contudo, o facto de o termo se seguir à alusão aos deleites nocturnos (v. 1203/4) leva-nos a
entendê-lo como uma referência ao prazer sexual especificamente; cf. Stanford (1963: 208) e Garvie (1998:
234).
159
O Súnio é um promontório na Ática (Hom. Od. 3.278), que seria a primeira porção de terra aonde chegaria
um navio que regressasse de Tróia e se dirigisse a Atenas ou a Salamina; cf. Finglass (2011: 476). Burton
(1980: 37) refere ainda que o promontório seria um local apropriado para os viajantes atenienses acostarem, no
seu regresso a casa.
160
Apesar de a cidade de Atenas não poder ser vista a partir do promontório Súnio, é admissível que os
marinheiros, vindos de Este, saudassem a cidade ao atingir o primeiro cabo da Ática; cf. Kamerbeek (1963:
232-233).
161
O adjectivo ζθαηόο opõe-se a ζνθόο (e.g., S. fr. 771.3, 921; E. Med. 190; El. 972), nele se conjugando a ideia
de “infeliz”, “mal inspirado”, “pobre de espírito”, “inconveniente”; cf. Chantraine (1999: 1009) e Garvie (1998:
236).

67
coisas terríveis contra nós, impunemente.
Sim, tu, falo de ti, o filho de uma cativa!
Se tivesses sido criado por uma mãe nobre,
falarias de forma altaneira e caminharias nas pontas dos pés, suponho, 1230
quando, nada sendo, te ergueste por quem nada é162,
e juraste que nós não viemos como teus comandantes,
nem dos Aqueus, nem como chefes dos navios,
mas que Ájax navegava como seu próprio chefe, como tu dizes.
Não é uma grande infâmia ouvir isto da boca de escravos? 1235 Por que tipo
de homem vociferas163 com essa arrogância?
Onde é que ele foi ou onde esteve, que eu não tenha estado?
Não têm os Aqueus outros homens, além dele?
Parece-nos que proclamámos então aos Argivos
um amargo concurso pelas armas de Aquiles, 1240 se, por parte de Teucro,
formos denunciados, em todo o lugar, como infames, e não for suficiente para
vós, uma vez vencidos,
ceder naquilo que agradou a muitos juízes,
mas vós, que ficastes para trás, havereis sempre
de nos lançar infâmias ou de nos espicaçar com dolos. 1245 Por estas atitudes,
jamais
haverá firmeza em lei nenhuma,
se rejeitarmos os que vencem com justiça
e conduzirmos para diante os que ficam em último.
Mas é necessário impedir isto. É que não são os homens 1250 encorpados ou
de largas costas os mais firmes,
mas são os sensatos quem triunfa em todo o lugar.

162
Segundo uma leitura dos Scholia Recentiora, ηνῦ κεδὲλ pode ser interpretado como uma referência ao facto
de Ájax estar morto. Como afirma Finglass (2011: 481-482), o objectivo de Agamémnon é atacar Teucro,
fazendo sobressair a sua falta de valor. Além disso, o Atrida refere-se várias vezes a Ájax como “cadáver” e
“morto”: λεθξόο (S. Aj. 1326 e 1364), λέθπο (S. Aj. 1356), ζαλώλ (S. Aj. 1348). Contudo, nos versos 1236-1238
e 1250-1254, Agamémnon denigre o mérito de Ájax, o que favorece a interpretação de ηνῦ κεδὲλ como uma
desvalorização do guerreiro. Assim, consideramos que há, na expressão, uma ambiguidade propositada, que
evoca, ao mesmo tempo, o facto de Ájax estar morto, sendo, portanto, irrelevante, a defesa de Teucro.
Pressupõe-se também uma insinuação, desenvolvida nos versos seguintes, de que não merece tal defesa, por ser
um guerreiro equivalente aos restantes Gregos.
163
O verso apresenta o verbo θξάδσ que significa “coaxar” ou “crocitar”; cf. Chantraine (1999: 575-6) e Beekes
(2010: 767-8). É comum o termo ser associado, na comédia, a um discurso sonoro e desordenado (e.g., Ar. Ach.
182, 711, 804; Eq. 256, 287), pelo que a sua utilização neste passo, além de humilhar Teucro, denigre também
Agamémnon, baixando o nível da sua linguagem; cf. Finglass (2011: 483) e Introdução p. 39-40.

68
O boi pode ter grandes flancos, mas é por um pequeno
chicote que é levado a direito para o caminho.
E eu vejo este remédio que se aproxima de ti 1255 em breve, se tu não
ganhares bom-senso.
Não estando já vivo este homem, mas sendo apenas uma sombra,

tu és presunçoso e insolente, e falas como se tivesses liberdade.


Não te tornarás sensato? Não compreendes que natureza é a tua,
e não conduzirás para aqui um outro homem, que seja livre, 1260 que fale
comigo sobre os teus assuntos, em vez de ti?
Se fores tu a falar, eu não compreenderei nada,
pois não entendo a língua bárbara.

CORO
Quem dera que vós dois tivésseis bom senso.
Não tenho nada melhor do que isto para vos dizer. 1265

TEUCRO
Ai! Quão rapidamente entre os mortais
a afeição para com um morto se escoa e se revela traiçoeira,
se este homem nem sequer num pequeno discurso
se lembra de ti, Ájax, ele por quem tu, muitas vezes,
sofreste, ao oferecer a tua vida à lança. 1270 Mas tudo isto se foi, tendo sido
mandado fora.
Tu, que acabaste de dizer muitas palavras insensatas,
já não te lembras de quando
vós estáveis fechados dentro das muralhas,
reduzidos a nada, na reviravolta da batalha, 1275 e ele, chegando sozinho, vos
salvou, enquanto o fogo ardia
em redor do topo das naus e dos tombadilhos
dos navios164, no momento em que Heitor deu um salto no ar
para as quilhas das naus, por cima do fosso165?

164
Seguimos Finglass (2011: 492) ao traduzirmos a expressão λαπηηθνῖο ἑδσιίνηο por “tombadilhos dos
navios”.

69
Quem impediu isto? Não foi ele que fez estas coisas, 1280 ele que tu dizes
que nunca pôs o pé onde não tenhas ido?
Para vós, não fez ele estas coisas com justiça?
E quando, de novo, ele sozinho enfrentou Heitor sozinho166,
num combate que lhe coube pela sorte, e não por ter recebido ordens,
depois de ter atirado para o meio não algo fugidio, 1285 como um torrão de
terra húmida, mas algo que,
com o mais pequeno toque, saltasse do emplumado elmo167?
Foi ele quem fez tais coisas, e eu estava com ele,
eu, um escravo, filho de uma mãe bárbara.
Desgraçado, para onde olhas, ao proclamares tais coisas? 1290 Não sabes que
o pai do teu pai
era o antigo Pélops168, um bárbaro frígio?
E Atreu, que te gerou, não apresentou ele
ao irmão o mais ímpio jantar, os próprios filhos169?
E tu nasceste de uma mãe cretense, que 1295 o pai que a gerou, ao
surpreendê-la com um amante,
lançou como alimento aos mudos peixes170.
E tu, sendo um homem tal, injurias-me a mim, com tal origem?
Da parte do pai, sou filho de Télamon,

165
Os feitos a que Teucro se refere remetem para a Ilíada, com algumas diferenças que tornam evidente que
Sófocles pretendia tornar mais fácil a reabilitação final do guerreiro; cf. Jebb (1907: 190-191) e Finglass (2011:
490-491). Assim, Ájax, apesar de ser o principal baluarte dos Gregos, foi desarmado por Heitor e foi forçado a
retirar-se; nesse momento, os Troianos conseguiram atear fogo a uma nau (Hom. Il. 16.112-124). Pátroclo
entrou, então, na batalha com a armadura de Aquiles e foi ele, e não Ájax, quem conseguiu rechaçar os
Troianos (Hom. Il. 16.124-398). Note-se ainda que Heitor, na Ilíada, não salta por cima do fosso, mas
atravessa-o (Hom. Il. 12.462-471).
166
Teucro está a referir-se ao duelo entre Ájax e Heitor narrado na Ilíada. Depois de Heitor ter desafiado os
Gregos para um duelo, estes procederam a um sorteio que indicava quem enfrentaria o guerreiro troiano, tendo
sido Ájax o escolhido pela sorte (Hom. Il. 7.161-305).
167
No processo de selecção pela sorte a que Teucro alude, todos os candidatos colocariam no elmo um objecto
de madeira ou de pedra que os identificasse, designado θιῆξνο; cf. Finglass (2011: 493). O torrão de terra seria
um objecto que se desfaria ou que ficaria no fundo do elmo, de modo a não haver qualquer probabilidade de ser
seleccionado. Assim, ao explicar que o θιῆξνο de Ájax seria leve e pequeno, Teucro sugere que Ájax terá
contribuído, de algum modo, para ser seleccionado para o combate com Heitor, realçando, deste modo, a
coragem do irmão; cf. Garvie (1998: 240-241) e Finglass (2011: 493-494).
168
Pélops era pai de Tiestes e de Atreu. Este era pai de Agamémnon e de Menelau (Hom. Il. 2.105-107). Para
uma discussão da problemática da linhagem de Agamémnon, cf. Finglass (2011: 495-496). 169 Tiestes cometeu
adultério com a esposa do seu irmão Atreu. Para se vingar, Atreu serviu-lhe como refeição os próprios filhos
(e.g., A. Ag. 1217-1222, 1590-1602; E. Or. 814-5, 1008).
170
Segundo uma das versões do mito, Aérope, filha de Catreu, por se ter unido a um escravo, foi condenada
pelo pai a ser atirada aos peixes. Catreu entregou-a a Náuplio, mas este não cumpriu as ordens e Aérope
sobreviveu. Tendo casado com Atreu, deu à luz Agamémnon e Menelau (e.g., Apollod. 3.12, 3.15; E. Or. 16- 18,
Hel.390-392).

70
que, por ter sido o melhor do exército, 1300 obteve como companheira de leito
a minha mãe, que por nascimento era rainha, a filha de Laomedonte171.
Foi-lhe dada
pelo filho de Alcmena como uma especial oferenda.
Hei-de eu, nobre nascido de dois nobres seres,
envergonhar os que são do meu sangue 1305 e que, jazendo agora em penosa
situação,
tu recusas sepultar, sem te envergonhares de o dizer?
Mas fica agora a saber isto: se o atirares para algum lado,
atirar-nos-ás também a nós os três, que aqui estamos prostrados com ele. Pois
será mais belo para mim morrer a labutar por este homem, 1310 de forma
evidente, do que pela tua
mulher, ou hei-de dizer, pela do teu irmão172?
Perante isto, olha, não para o meu caso, mas também para o teu.
Assim, se alguma vez me causares sofrimento, preferirás
ser cobarde a ser audaz para comigo. 1315

(entra Ulisses)
CORO
Ulisses soberano, fica a saber que acabas de chegar no momento oportuno,
se estás aqui, não para fazer um nó, mas para o desfazer.

ULISSES
Que se passa, homens? Apercebi-me, de longe,
dos gritos dos Atridas por causa deste valoroso cadáver.

AGAMÉMNON
E não estivemos nós a ouvir as mais ignominiosas palavras 1320 proferidas
ainda há pouco por este homem, Ulisses soberano?

171
Cf. n. 77.
172
De acordo com Garvie (1998: 243), Teucro ter-se-á enganado propositadamente, ao fingir confundir a esposa
de Menelau com a de Agamémnon, de modo a insinuar uma união adúltera entre este e Helena; cf. também
Várzeas (2009: 107). Apesar de o exemplo mítico de Aérope e Tiestes favorecer esta interpretação, parece-nos
mais exacta a leitura de Finglass (2011: 501), para quem Teucro apenas refere que Helena pertence a
Agamémnon porque é da sua família, especificando, em seguida, que pertence a Menelau pelo casamento.

71
ULISSES
Quais? Por mim, concedo o perdão ao homem
que, ao ouvir insultos, responde com palavras infames.

AGAMÉMNON
Ouviu ignomínias, pois foi isso que ele me fez.

ULISSES
E o que é que ele fez, que te tenha lesado? 1325

AGAMÉMNON
Disse que não iria deixar este cadáver privado de túmulo,
mas que o sepultará, apesar da minha oposição.

ULISSES
É possível que um amigo diga a verdade
e continue a ajudar-te não menos do que antes?

AGAMÉMNON
Fala, pois de outro modo eu não seria sensato, uma vez que 1330 te considero
o meu maior amigo entre os Argivos.

ULISSES
Ouve, agora. Pelos deuses, não te atrevas a deixar
insepulto com tanta insensibilidade o homem que aqui está.
Que a violência de detestar tal homem nunca prevaleça
sobre ti de modo a espezinhares a justiça. 1335 Ele era para mim o mais
odioso do exército,
desde que me apoderei das armas de Aquiles.
Todavia, embora ele assim fosse para mim,
eu não o desonraria, a ponto de negar
que era o melhor homem que eu vi entre os Argivos, de quantos 1340 viemos
para Tróia, à excepção de Aquiles.
Assim, não seria justo que fosse desonrado por ti.

72
Não seria ele que estarias a destruir, mas sim as
leis dos deuses. Não é justo lesar um homem bom,
se estiver morto, nem mesmo se o detestares. 1345

AGAMÉMNON
Então tu, Ulisses, defende-lo assim, contra mim?

ULISSES
Sim, defendo, pois eu detestava-o, enquanto estava bem detestá-lo.

AGAMÉMNON
E não deves, também tu, espezinhá-lo, agora que está morto?

ULISSES
Não te alegres, filho de Atreu, com vantagens que não estão bem.

AGAMÉMNON
Não é fácil para um tirano ser piedoso. 1350

ULISSES
Mas é fácil conceder honras aos amigos que falam bem.

AGAMÉMNON
É necessário que um homem bom ouça aqueles que estão no poder.

ULISSES
Pára! És o chefe, até quando vencido pelos amigos.

AGAMÉMNON
Lembra-te a que espécie de pessoa concedes a tua afeição.

ULISSES
Este homem era meu inimigo, mas foi nobre, um dia. 1355

73
AGAMÉMNON
Que farás? Respeitas, assim, o cadáver de um inimigo?

ULISSES
É a excelência que prevalece sobre mim, mais do que a inimizade.

AGAMÉMNON
Tais homens são inconstantes entre os mortais173.

ULISSES
É certo que muitos que são agora amigos se tornarão, mais tarde, inimigos174.

AGAMÉMNON
E tu louvas, então, conseguirem-se tais amigos? 1360

ULISSES
Eu não gosto de louvar uma alma dura.

AGAMÉMNON
Tu mostrarás, no dia de hoje, que nós somos cobardes.

ULISSES
Não, mostrarei homens justos aos olhos de todos os Helenos.
AGAMÉMNON
Incitas-me, então, a deixar sepultar o cadáver?

173
Jebb (1907: 202) e Kamerbeek (1963: 253-254) consideram que Agamémnon se dirige a Ulisses e que as
suas palavras constituem uma ameaça à qual o filho de Laertes responde no verso seguinte. Contudo, como
afirma Finglass (2011: 511), seria pouco natural que as expressões ὁπνίῳ θσηὶ (S. Aj. 1354), ηνηνίδε κέληνη
θῶηεο (S. Aj. 1358) e ηνηνύζδ’ (S. Aj. 1360) não se reportassem sempre à mesma pessoa. Assim, seguimos o
estudioso ao entender que Agamémnon se refere a Ájax e não a Ulisses; cf. também Winnington-Ingram (1979:
4) e Blundell (1989: 98 n.190). Ulisses dá mais importância à excelência de Ájax do que ao episódio do ataque
nocturno, mas, para Agamémnon, a coexistência de excelência e de inimizade na mesma pessoa torna-a
“instável”, ἔκπιεθηνο, característica que o torna imerecedor quer de ράξηο quer de θηιία; cf. Finglass (2011:
511).
174
Seguimos os Scholia Vetera ao considerar πηθξνί sinónimo de ἐρζξνί.

74
ULISSES
Sim, incito, pois também eu hei-de chegar aí. 1365

AGAMÉMNON
Na verdade, tudo é igual. Todo o homem se afadiga em seu benefício.

ULISSES
Por quem é natural que eu me afadigue mais do que por mim próprio?

AGAMÉMNON
Então a obra será chamada tua, não minha.

ULISSES
Se agires deste modo, serás digno de todas as maneiras.

AGAMÉMNON
Mas fica a saber bem isto: eu 1370 conceder-te-ia um favor maior do
que este.
Ele, quer esteja lá, quer esteja cá, será para mim
igualmente odioso. Tu podes fazer o que quiseres.

(sai Agamémnon)
CORO
Aquele que diz que tu, Ulisses, sendo como és,
não és sábio nos teus pensamentos, é um homem estulto. 1375

ULISSES
E anuncio a Teucro que, a partir deste momento,
tanto quanto fui seu inimigo, sou agora seu amigo.
Quero ajudar a sepultar este morto,
trabalhar convosco e não negligenciar nada do que
é necessário que os mortais proporcionem aos melhores homens. 1380

75
TEUCRO
Excelente Ulisses, posso louvar-te em tudo pelo que disseste175.
Foste muito além das minhas expectativas.
Sendo tu para ele o homem mais odioso dos Argivos,
foste o único a colocar-se a seu lado para o ajudar e não te atreveste,
apesar de estares presente, a proferir grandes insultos contra o morto, estando tu
vivo,
como fez o comandante desvairado, quando aqui chegou,
ele e o seu irmão, que quiseram
[abandoná-lo com o ultraje de o privar do túmulo176].
Por isso que o pai, que governa o Olimpo,
a Erínia que não esquece e a Justiça que tudo cumpre 1390 destruam, de
forma infame, os infames, tal como eles queriam
abandonar, indignamente e com ultrajes, este homem.
Mas tu, semente de Laertes, teu velho pai,
hesito em te deixar tocar neste túmulo,
não vá eu irritar o morto ao fazer isso. 1395 Em tudo o resto, coopera
connosco e, se queres trazer
alguém do exército, não nos incomodaremos.
Eu prepararei tudo o resto. E tu,
fica a saber que, para nós, és um homem bom.
ULISSES
Mas era assim que eu queria. Se não te agrada 1400 que eu faça isto, vou-me
embora, louvando a tua decisão.

175
O dativo ιόγνηζη também pode ser entendido como um dativo instrumental, em vez de dativo de causa,
opção que Kamerbeek (1963: 256) segue, ao opor ιόγνη a ἔξγα: como Teucro não pode deixar Ulisses participar
na preparação dos rituais fúnebres, louva-o com palavras e não com acções. Contudo, como afirmam Jebb
(1907: 205) e Stanford (1963: 231), que preferem a interpretação de dativo de causa, essa seria uma resposta
pouco grandiloquente, da parte de Teucro. Lloyd-Jones (1997: 159) e Garvie (1998: 248) entendem que ιόγνηζη
é uma referência de Teucro ao seu próprio discurso. Garvie rejeita a interpretação de Kamerbeek e a
possibilidade de se tratar de um dativo de causa, pois Teucro também louva as acções de Ulisses no verso 1384.
Todavia, como defende Finglass (2011: 516), a referência às palavras de Teucro é desnecessária, enquanto, pelo
contrário, foi Ulisses que, pelas suas palavras, conseguiu assegurar o cumprimento das honras fúnebres devidas
a Ájax.
176
O facto de ὡο … ἠζειεζάηελ ser uma expressão sintaticamente correcta, de sentido linear, e de este verso
apresentar muitas semelhanças vocabulares com o verso 1392 levam alguns editores a optar pela sua supressão;
cf. Dawe (1996: 68). Para Finglass (2011: 518), este passo é, provavelmente, uma interpolação por parte de
alguém que terá pretendido completar o sentido de ἠζειεζάηελ com um infinitivo e que não terá percebido que se
podia subentender ἐθπβξίζαη.

76
(sai Ulisses)

TEUCRO
Basta! Há muito que o tempo
se esgotou. Mas que alguns de vós sejam rápidos
a abrir, com as mãos, uma cova profunda; outros, que coloquem
uma alta trípode, rodeada por fogo, 1405 apropriada aos banhos sagrados;
Que um grupo de homens traga,
da tenda, a armadura que ele usava sob o escudo.
E tu, rapaz, com quanta força puderes,
ao tocar no teu pai com amor, 1410 ergue comigo os flancos do seu corpo.
Ainda quentes,
as suas veias expelem uma negra
força177. Mas que se aproximem todos aqueles que
dizem ser amigos deste homem, que se apressem e venham,
afadigando-se por este homem, que em tudo era bom. 1415
………………………………………………………….
[para nenhum dos mortais melhor
do que Ájax, quando ele estava vivo, afirmo-o178]
CORO
Muitas coisas, depois de as verem,
podem os mortais saber, mas antes de ver, ninguém adivinha
o que fará no futuro.

177
O termo κέλνο é um princípio activo que anima os corpos. Pode significar “ardor bélico”, “energia vital”,
“força anímica”; cf. Chantraine (1999: 685) e Beekes (2010: 930-931). Clarke (2004: 80) considera que este
princípio pode estar contido nos líquidos corporais como o sangue. Para Stanford (1963: 234), o mais relevante
neste passo não é a alusão ao sangue, mas a referência ao desperdício do vigor de Ájax, que continua a ser uma
ameaça, mesmo depois de morto; cf. também Rocha Pereira (2012: 130-131) e Finglass (2011: 522-523).
178
As várias incongruências métricas, assinaladas por Finglass (2011: 523), a construção pouco clara dos
dativos do verso 1416 e a inadequabilidade da afirmação de Teucro, que levanta a possibilidade de alguém
superar Ájax, levam Campbell (1881: 120), Jebb (1907: 210) e Lloyd-Jones e Wilson (1990b: 57) a propor uma
supressão parcial dos versos 1416 e 1417, e Dawe (1996: 70) a defender a sua supressão total. Não havendo
modo de emendar o texto, também Finglass (2011: 523-524) opta pela supressão do verso, consciente, todavia,
de que não é possível comprovar se os problemas resultam de uma interpolação ou do facto de o texto se
encontrar muito corrompido; cf. também Lloyd-Jones e Wilson (1990a: 40-41).

77

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