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Ciências & Cognição 2007; Vol 12 <http://www.cienciasecognicao.

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ISSN 1806-5821 - Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Ciências & Cognição. Ano 4, Vol.12, Dezembro 2007.


ISSN 1806-5821. Revista Eletrônica de Divulgação Científica.
© ICC - Instituto de Ciências Cognitivas.
Ciências & Cognição é uma publicação apoiada pelo Instituto de Ciências Cognitivas (ICC).
Revista Ciências & Cognição:
A/C Prof. Dr. Alfred Sholl-Franco.
Universidade Federal do Rio de Janeiro - Av. Carlos Chagas Filho, S/N, Centro de Ciências da Saúde, Instituto de Biofísica Car-
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ra (UFSC, Florianópolis, SC), Thomaz Decio Abdalla Siqueira (UFAM, Manaus, AM), Valdemarina Bidone de Azevedo e Souza (PUC-RS, Porto
Alegre, RS), Wilson Mendonça (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ).
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Site: http://www.cienciasecognicao.org.
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Ciências & Cognição


ISSN 1806-5821
Vol. 12, Ano 4 Dezembro 2007

Editor:
Nome: Prof. Dr. Alfred Sholl-Franco
Endereço: Sala G2-032/019, Bloco G – Centro de Ciências da Saúde
Programa de Neurobiologia - Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Av. Carlos Chagas Filho, S/N
Cidade Universitária, Ilha do Fundão – CEP 21.941-902 - Rio de Janeiro/RJ
E-mail: revista@cienciasecognicao.org.
Website: http://www.cienciasecognica.org.

Conteúdo
Ciên. & Cogn. 12, 2007.

Índice
Página
Editorial. 01
Editores.

Efeito stroop e rastreamento ocularno processamento de palavras. 02


Stroop effect and eye-tracking in word processing.
Marcus Maia, Miriam Lemle e Aniela Improta França.

Do herói ficcional ao herói político. 18


Of the imaginary hero to the political hero.
Hilda Gomes Dutra Magalhães, Luíza Helena Oliveira da Silva e Dimas José Batista.

Infância, cinema e leitura: um tripé viável. 31


Childhood, cinema and reading: a possible tripod.
Lovani Volmer e Flávia Brocchetto Ramos.

Lineamientos para la configuración de un programa de intervención en orientación. 40


Limits for the configuration of a interferation ptogram in orientation.
Denyz Luz Molina Contreras.

Leitura de estudo: estratégias reconhecidas como utilizadas por alunos universitários. 51


Study reading: strategies recognized as the most used by university students.
Elsa Maria Mendes Pessoa Pullin.

Criatividade na rede: a potencialização de idéias criativas em ambientes hipertextuais de aprendiza- 62


gem.
Creativity in the network: the potentiality of creative ideas in hypertext learning environments.
Ângela Álvares Correia Dias e Karina da Silva Moura.

Construindo mapas conceituais. 72


Constructing concept maps.
Romero Tavares.

Mapas conceituais: estratégia pedagógica para construção de conceitos na disciplina química orgânica. 86
Conceptual maps: pedagogical strategy for construction of concepts in disciplines organic chemistry.
João Rufino de Freitas Filho.

Obstáculos epistemológicos no ensino de ciências: um estudo sobre suas influências nas concepções de 96
Ciências & Cognição 2007; Vol 12 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição

átomo.
Epistemological obstacles in science teaching: a study about their influences on the atom conceptions.
Henrique José Polato Gomes e Odisséa Boaventura de Oliveira.

Integrando o Ensino da Patologia às Novas Competências Educacionais. 110


Integrating the learn of Pathology to new education competences.
Mário R. de Melo-Júnior, Jorge Luiz S. Araújo-Filho, Vasco José R. M. Patu, Marcos Cezar F. de
Paula Machado, Nicodemos T. de Pontes-Filho.

Psicopedagogia: limites e possibilidades a partir de relatos de profissionais. 115


Psychopedagogy: limits and possibilities according from the professionals experiences.
Maria Regina Peres e Maria Helena Mourão Alves Oliveira.

Pensamento, crenças e complexidade humana. 134


Thinking, beliefs and human complexity.
Cristina Satiê de Oliveira Pátaro.

Ciência da Computação e Ciência Cognitiva: um paralelo de semelhanças. 150


The computer science and the cognitive science: a similarity parallel.
Caroline Andréia Eifler Saraiva e Irani I. de Lima Argimon.

Estilo de vida como indicador de saúde na velhice. 156


Life style as health indicator on ageing.
Vera Lygia Menezes Figueiredo.

Interação e Construção: o Sujeito e o Conhecimento no Construtivismo de Piaget. 165


Interaction and Construction: the Subject and the Knowledge in the Constructivism of Piaget.
Isabelle de Paiva Sanchis e Miguel Mahfoud.

O que é ser humano? 178


What is to be a human being?
Luiz Antonio Botelho Andrade, Edson Pereira da Silva e Eduardo Passos.

A teoria da representação cognitiva de Hobbes. 192


Hobbes´s theory of cognitive representation.
Cláudio R. C. Leivas.

Robôs como artefatos. 203


Robots as artifacts.
Dulce Maria Halfpap, Gilberto Corrêa de Souza, João Bosco da Mota Alves.

Cognição e texto: a coesão e a coerência textuais. 214


Cognition and text: the literal cohesion and coherence.
Carmen Elena das Chagas.

O uso de narrativas autobiográficas no desenvolvimento profissional de professores. 219


The use of autobiographical narratives in the professional development of teachers.
Denise de Freitas e Cecília Galvão.

Membro-fantasma: o que os olhos não vêem, o cérebro sente. 234


Phantom-limb: what the eyes don’t see, the brain feels.
Alessandra de Oliveira Demidoff, Fernanda Gallindo Pacheco e Alfred Sholl-Franco.

Repensando a função do manicômio na sociedade. 240


Reflexions about the role of lunatic asylum in the society.
Maurício Aranha.

Normas para publicação. 242


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ISSN 1806-5821 - Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Editorial

Falar na falta de fomento para a pesquisa em nosso país e sua divulgação é inevitavelmente
cair na redundância. Tratar de questões como a distribuição do pouco valor a esta destinado nem se
fala. O Brasil que tinha, ainda, uma certa tradição de investimento em pesquisa básica vê esta ser
gradativamente abandonada em prol de projetos incautos, nitidamente dissonantes às necessidades
das instituições já existentes e pouco ou nada lembradas. A solução certamente não caminha pelo
dito “despir um santo para vestir outro”. A gênese de novos grupos de pesquisa não deve ter como
premissa o estrangulamento de outros já estabelecidos, pelo contrário, deve-se estimular o fortale-
cimento daqueles estabelecidos, assim como a colaboração e o apoio entre os já existentes e os em
desenvolvimento, principalmento no que se refere ao Ensino e a Educação, áreas essências para o
desenvolvimento do nosso País.

É com um suspiro de teimoso empenho que ações como a publicação de Ciências & Cogni-
ção deixa em todos os envolvidos a grata sensação de la resistance acadêmica. Grande é o bem-
estar de se ver envolvido neste projeto e observar, ao fim deste quarto ano de publicação constante e
ininterrupta, o reconhecimento por uma larga comunidade de leitores e colaboradores (consultores
ad hoc, pareceristas e autores), contando até o lançamento deste último volume (12, dez./2007) com
o total de 664.049 visitas. Nestes quatro anos, foram publicados 158 trabalhos acadêmicos (86 arti-
gos científicos, 32 revisões, 15 ensaios, 1 análise de caso clínico, 15 artigo de divulgação científica
e 9 resenhas). Tais resultados reforçam a sensação de que estamos trilhando o caminho certo. Ainda
mais tendo conhecimento de que se trata de uma iniciativa sem fins lucrativos e sem apoio financei-
ro de qualquer nível governamental. Iniciativa suportada apenas pelo apoio do Instituto de Ciências
Cognitivas (ICC), a firmeza de vontade e pelo propósito de oferecer um canal que trate os pesquisa-
dores e leitores brasileiros com a seriedade, dignidade e respeito que entendemos indispensável.
Grata é a verificação de que tal iniciativa atravessou fronteiras, vindo contar com colaborações
constantes ao longo deste ano de pesquisadores ligados a instituições estrangeiras (Espanha, Portu-
gal, Alemanha, Venezuela, México), representando, hoje, 12% dos artigos publicados.

Fiéis à concepção de que o ambiente virtual seria o melhor meio para a visibilidade da pro-
dução acadêmica nacional, estimulando a integração de pólos fora dos eixos do sudeste, percebe-
mos, ao longo destes quatro anos, a constante e valiosa presença de representantes de todas as regi-
ões brasileiras (60% sudeste, 16% sul, 12% nordeste, 10% centro-oeste, 2% norte) e de diversi-
ficadas instituições.

Encerrar 2007 vendo frutos saudáveis sendo colhidos é ter certeza de que aquele teimoso
empenho está nos conduzindo ao propósito de uma missão que não pretende se dar por cumprida.

Boa leitura!

Editores.

1
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S u b me t i d o e m 1 3 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Artigo Científico

Efeito stroop e rastreamento ocular


no processamento de palavras1
Stroop effect and eye-tracking in word processing

Marcus Maia, Miriam Lemle e Aniela Improta França

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo

Como é a organização cerebral do léxico? As palavras são guardadas por inteiro ou existe derivação
que forma uma estrutura interna a elas? Usando dois paradigmas experimentais, investigamos se a de-
composição morfológica é uma propriedade fundamental do processamento lexical na leitura de pala-
vras isoladas no português do Brasil. O primeiro experimento propõe uma tarefa baseada no chamado
Efeito Stroop, no qual processos atencionais concorrentes demonstram a natureza automática das fases
iniciais do processamento da leitura. O segundo experimento, usando protocolo de rastreamento ocu-
lar durante a leitura, investiga as mesmas palavras, pretendendo identificar, preliminarmente, os pon-
tos de fixação e sacadas na primeira passagem do olhar, bem como nos movimentos regressivos. Os
resultados obtidos nos dois experimentos permitem reunir evidências de que, no processo de leitura,
as palavras são derivadas morfema a morfema, embora haja também heurísticas globais da visão que
atuam simultaneamente no processamento da leitura. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 02-17.

Palavras-chave: rastreamento ocular; morfologia interna à palavra; efeito stroop.

Abstract
How is the lexicon organized in the brain? Are words stored as units or is there a derivational proc-
ess dynamically combining its pieces at each use? The present study, composed by two experimental
paradigms, investigates if morphological decomposition is a property inherent to the lexical process-
ing during a reading task in Brazilian Portuguese. The first experiment deals with Stroop Effect, in
which attentional processes demonstrate e the automatic nature of the initial phases of processing
during reading. Using an eye-tracking protocol, the second experiment investigates the process of
reading the same words, aiming at identifying, preliminarily, the fixation points and the saccades
during first eye scan, as well as the regressive movements. The results obtained in the two experi-
ments gather evidences that, during reading, words are delivered morpheme by morpheme, despite
the fact that there are concurrent global heuristics that act simultaneously in reading. © Ciências &

 – M. Maia é Doutor em Lingüística (University of Southern California – USC), com Estágio de Pós-doutorado
(City University of New York – CUNY). Atualmente é Professor de Lingüística, Departamento de Lingüística (UFRJ),
sendo o atual Coordenador do Grupo de Trabalho de Psicolingüística da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL). Endereço para correspondência: Rua Evaldo Gonçalves, 151, Itaipu,
Niterói, RJ 24355-060. Telefone: (21) 2609-2919. E-mail para correspondência: maiamarcus@gmail.com. M. Lemle
possui Graduação em Letras (UFRJ), Mestrado em Lingüística (University of Pennsylvania), Doutorado em Lingüísti-
ca (UFRJ e Estágio de Pós-Doutorado (MIT). Atualmente é Professora Titular (UFRJ) e Coordenadora do Laboratório
Computações Lingüísticas: Psicolingüística e Neurofisiologia (CLIPSEN; http://www.letras.ufrj.br/ clipsen). A.I.
França é Doutora em Lingüística (UFRJ), com Estágios no Cognitive Neuroscience of Language Lab (University of
Maryland) no Instituto de Neurologia (UFRJ) e no Ambulatório de AVC (Universidade Federal Fluminense). Atual-
mente é Professora (Departamento de Lingüística, UFRJ) e Membro Efetivo do Programa Avançado de Neurociência
(PAN; UFRJ).

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Cognição 2007; Vol. 12: 02-17.

Key Words: eye-tracking; morphology internal to words; stroop effect.

1. Introdução O presente estudo investiga, prelimi-


narmente, se a decomposição morfológica é
Um tema de pesquisa muito produtivo uma propriedade fundamental do proces-sa-
em psicolingüística nas últimas três décadas é mento lexical na leitura de palavras isoladas
a investigação do papel do processamento em português, usando dois paradigmas expe-
morfológico2 no reconhecimento de palavras rimentais. O primeiro experimento propõe
e na organização do léxico na mente dos fa- uma tarefa baseada no chamado efeito Stroop,
lantes. Uma questão importante do proces- no qual processos atencionais concorrentes
samento lexical consiste em saber como as demonstram a natureza automática das fases
palavras complexas são armazenadas e aces- iniciais do proces-samento da leitura. Nessa
sadas: há decomposição morfológica prévia tarefa, adaptada do estudo de Prinzmetal e
ao acesso lexical? Desde os estudos seminais colaboradores (1986), solicita-se a identifica-
de Taft e Forster (1975;1976), que investiga- ção da cor de uma letra componente de um
ram experimentalmente a armazena-gem e a morfema em condição na qual há corte mor-
recuperação de palavras polimorfê-micas na fêmico, comparativamente à condição em
memória lexical, conduzindo ao modelo que o corte é não morfêmico, incluindo, ain-
BOSS, baseado em fatores ortográficos e da, como controle, condição de pseudo mor-
morfológicos (Taft, 1979), os estudos sobre o femas ou seja, palavras em que há apenas co-
parsing perceptual de palavras oferecem evi- incidência fonológica com a forma do mor-
dências contraditórias: de um lado, traba- fema (e.g. jornalista x entrevista). O obje-
lhos de orientação co-nexionista, como Sei- tivo do experimento é verificar em que me-
denberg e McClelland (1989) argumentam dida no processo da leitura a identificação
que os efeitos encontrados em estruturas sub- implícita do morfema no interior da palavra
lexicais sejam apenas epifenômenos da re- fonológica exercerá efeito de facilitação na
dundância ortográfica; de outro lado, estudos realização da tarefa de identificação cromática
como Marslen-Wilson et alii (1994) apresen- (por exemplo, a cor da letra i da forma ista).
tam resultados de experimentos de priming Este efeito será medido através de duas variá-
evidenciando que as palavras são, de fato, veis dependentes: o índice de acertos e os
representadas morfemi-camente ao nível da tempos de decisão, computados em milésimos
entrada lexical. Além de sua caracterização de segundos, utilizando-se a plataforma expe-
conflitante em psicolin-güística, a proposição rimental Psyscope em computador Apple Ma-
de segmentos sub-lexicais é controversa tam- cintosh.
bém no âmbito da teoria gramatical. Os Mo- Um fator adicional também incluído
delos Lexicalistas (e.g. Chomsky, 1995), no design desse experimento é a verificação
embora admitindo unidades menores do que a de eventuais diferenças de desempenho resul-
palavra, consi-deram a palavra pronta como tantes da renegociação de significado acarre-
sendo a unidade que dá entrada na derivação tada pela adição do sufixo à raiz, contras-
sintática, ao passo que modelos não lexica- tando-se formas como, por exemplo, jorna-
listas, como a Morfologia Distribuída (cf. lista com formas como frentista. Note-se que,
Halle e Marantz, 1993), assumem uma com- no primeiro exemplo, o sufixo -ista tem sua
putação sintática operando por fases com uni- computação feita tomando por base aquela da
dades desprovidas de som. Ao final de cada palavra jornal, enquanto que em frentista o
fase acontece a competição, seleção e inser- significado da palavra frente não é o ponto de
ção de peças de vocabulário nos nós terminais partida da computação semântica causada pe-
da sintaxe. Estas peças passam então por ope- la introdução do sufixo -ista, embora as duas
rações pós-inserção que dão a forma morfo- palavras compartilhem a raiz frent-.
fonológica final à derivação

3
Utilizando o equipamento Head-fixed recursos computacio-nais, mas precisam con-
Viewpoint Eye-tracker (CLIPSEN/CNPq), o tar com alta capacidade de armazenagem
segundo experimento investiga o rastrea- mnemônica. Os modelos composicionais ou
mento ocular das mesmas palavras, preten- de parsing pleno, por outro lado, demandam
dendo identificar, preliminarmente, os pontos maior custo computacional, mas economizam
de fixação e sacadas na primeira passagem do na armaze-nagem mnemônica. Uma terceira
olhar, bem como nos movimentos regres- alternativa admite a possibilidade de que os
sivos. Os resultados obtidos nos dois experi- dois tipos de processos –heurísticas top down
mentos permitem reunir evidências para ava- e algoritmos bottom-up – possam coexistir no
liar se, no processo de leitura, palavras com- proces-samento lexical. São os modelos mis-
plexas são parseadas morfologicamente, con- tos ou duais, que lançam mão dos dois tipos
catenando-se raízes a afixos, em contraste de recursos, prevendo uma espécie de compe-
com os modelos que postulam a ativação lexi- tição entre eles.
cal indiferenciada de vocábulos plenos. O modelo de Affix-Stripping de Taft e
O artigo é organizado da seguinte Foster (1975) é o precursor dos modelos es-
forma. Na seção 2, faz-se uma breve revisão truturais. Utilizando uma tarefa de decisão
da literatura sobre o processamento da morfo- lexical, Taft e Foster demonstraram que pala-
logia em palavras isoladas, com especial aten- vras com raízes reais precedidas por prefixos
ção para a caracterização dos modelos de re- (e.g. re+cursion) são mais difíceis de rejeitar
conhecimento de palavras escritas, procu- do que palavras com pseudo-raízes
rando estabelecer o quadro teórico relevante (re+pertoire). Uma vez que as raízes reais se-
para a discussão dos experimentos. A seção 3 riam armazenadas separadamente dos afixos,
reporta o experimento de decisão cromática e sua rejeição é mais lenta, pois após a operação
a seção 4, o experimento de rastreamento ocu- de isolamento do afixo estas raízes que po-
lar. A seção 5 apresenta as conclusões do arti- dem, de fato, ser localizadas no léxico, reque-
go. rem consideração extra na tarefa de decisão
lexical. Por outro lado, as palavras com pseu-
2. Modelos de processamento morfológico do-raízes apresentaram tempos de rejeição
menores justamente por não poderem ser lo-
Ao ler uma palavra, acessamos o seu calizadas no conjunto de raízes possíveis no
significado na íntegra, diretamente no léxico léxico. Posteriormente, Taft (1979) demonstra
mental, ou precisamos, preliminarmente, rea- que o efeito de decomposição morfológica do
lizar operações de decomposição morfo-ló- modelo Affix-Stripping também pode ser ob-
gica, concatenação e interpretação composi- tido em palavras com sufixos. Taft (1994) faz
cional? O acesso lexical direto é uma heurís- ajustes no modelo prevendo que a decompo-
tica do tipo top-down3, em que se procede di- sicionalidade morfo-lógica seja a rota default,
retamente do input sensorial para um nível de mas que o fator freqüência possa também e-
representação “mais alto”do item lexical, ou xercer um efeito que resulta em pouca ativa-
seja, a palavra inteira, tomada como um lis- ção dos morfemas nas palavras mais fre-
tema (cf. Di Sciullo e Williams, 1987), sem qüentes, aproximando, na prática, seu modelo
precisar recorrer à análise de possíveis sub- dos modelos duais.
componentes do item. A decomposição mor- No extremo oposto, a hipótese Full
fológica, por outro lado, é um algoritmo bot- Listing de Butterworth (1983) propõe que as
tom-up em que o acesso lexical é o produto palavras estejam disponíveis para reconhe-
final de operações “menores” de segmentação cimento no léxico já com sua morfologia,
de morfemas, identificando-se subunidades sendo acessadas apenas em sua forma plena,
lexicais que são, então, montadas em todos sem qualquer operação decomposicional.
maiores, os itens lexicais. Os modelos de a- Também os modelos conexionistas como, por
cesso lexical direto, também denominados de exemplo, o desenvolvido por Seidenberg e
modelos de listagem plena, economizam em McClelland (1989), propõem uma arquitetura

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paralela e distribuída de reconhecimento vi- taught, por exem-plo, sejam armazenados


sual de palavras em que se pretende que ajus- plenamente no léxico. Stockall e Marantz
tes nos pesos das conexões entre unidades or- (2006), por outro lado, apresentam evidências
tográficas e fonológicas sejam propagados de experimentos utilizando a técnica de Mag-
através de algoritmo de aprendizagem, sendo neto-encefalo-grafia, de que um único meca-
capazes de simular o reconhecimento de pala- nismo de conca-tenação morfológica dá conta
vras de forma associativa e rápida, sem utili- tanto dos pas-sados regulares quanto dos irre-
zar a informação morfológica. gulares em inglês.
No caminho do meio, estão os mode- Como se vê, a literatura apresenta
los mistos ou duais, que combinam aspectos grande divergência de posições teóricas e mé-
dos dois modelos anteriores. O modelo de todos. Os experimentos reportados nas seções
Augmented Addressed Morphology - AAM de a seguir têm o intuito de investigar prelimi-
Caramazza e colaboradores (1988) propõe narmente a questão a partir do exame de da-
que as palavras familiares sejam acessadas de dos do português, procurando avaliar de for-
forma plena, enquanto que as palavras desco- ma ampla os três tipos de modelos de pro-
nhecidas sejam alvo de processos decomposi- cessamento lexical resenhados acima a partir
cionais. O modelo de dupla rota paralela de de dados recolhidos da atividade de leitura.
Schreuder e Baayen (1995) propõe que tanto
uma rota de parsing morfológico quanto uma 3. Experimento 1 – Decisão cromática no
rota direta sejam acionadas, em paralelo, des- processamento de palavras isoladas
de o início do processo de reconhecimento
lexical. O modelo de Marslen-Wilson e cola- Este estudo baseia-se no chamado “e-
boradores (1994), estabelecido com base em feito stroop”, estabelecido através de uma sé-
experimentos de priming, propõe que a de- rie de experimentos clássicos em que se testou
composição morfo-lógica seja mais provável a nomeação cromática em palavras para co-
quando a relação entre a palavra composta res escritas com letras em cores que podiam
com afixos e a sua raiz é transparente. Outro concordar ou não com a denotação das pala-
modelo, o de Pinker (1991) prevê que as for- vras (cf. Stroop, 1935). Conforme ilustrado na
mas regulares, como, por exemplo, os passa- Figura 1, abaixo, as respostas eram mais rá-
dos simples formados em –ed, em inglês, se- pidas quando havia conver-gência do que
jam acessados via concatenação morfológica, quando havia divergência.
enquanto que os passados irregulares, como

Figura 1 - Efeito stroop.

A interpretação destes resultados ge- cromática e a cor das letras se deve a compe-
ralmente sugere que a dificuldade em no-mear tição, neste caso, entre significado literal e
palavras com discordância entre a nomeação outro metafórico

5
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No presente experimento, estabeleceu- Participaram do experimento, como


se uma outra sorte de discordância cognitiva: voluntários, 20 alunos do terceiro período de
morfológica e visual. A hipótese aqui é a de graduação em Letras da UFRJ, todos com vi-
que uma letra poderia ter sua cor identificada são normal ou corrigida.
mais acertada e rapidamente quando fizesse
parte de um morfema em que todas as letras Materiais
tivessem a mesma cor. A variável indepen-
dente “recorte cromático” indica, portanto, Os materiais experimentais foram três
que a manipulação de cores poderia singu- listas de 14 palavras cada, tendo-se procurado
larizar o morfema com todas as letras na controlar o tamanho e a freqüência de ocor-
mesma cor (corte morfêmico) ou não (corte rência médios das palavras cada lista. Os ta-
não morfêmico). Outra variável independente manhos foram equalizados, tendo cada lista,
do experimento foi chamada de tipo de mor- em média, 45 sílabas e 104 letras. As fre-
fema, incluindo três níveis, a saber, mor-fema qüências tiveram como índice para o seu esta-
concatenado a palavras (MP), pseudo- belecimento o número de ocorrências no sis-
morfema (PM) e morfema concatenado a raí- tema de buscas Google, à época em que o ex-
zes (MR).
As variáveis dependentes do experi-
mento foram os índices de acerto cromático e
os tempos de decisão. A variável indepen-
dente “tipo de morfema” permitiu que se e-
xaminasse o papel de três fatores no proces-
samento de palavras em português:

1) Morfemas concatenados a palavras (MP):


palavras formadas por concatenação de
um morfema a uma palavra, havendo
transparência semântica entre a palavra
complexa e a base da qual ela é derivada; perimento foi realizado. As diferenças médias
2) Pseudo-morfemas (PM): controles orto- entre os índices de ocorrência dos itens das
gráficos em que há apenas uma coinci- três listas não foram significa-tivamente dife-
dência ortográfica com a forma dos mor- rentes. A Figura 2 exemplifica as três listas:
femas.
3) Morfemas concatenados a raízes (MR): Figura 2 - Exemplos dos materiais experi-
palavras formadas por concatenação de mentais
um morfema a uma raiz, situação em que
o significado da palavra é arbitrário e a O design em quadrado latino permitiu
leitura é dada na enciclopédia. que todos os sujeitos fossem expostos a todas
as condições, mas não aos mesmos itens em
todas as condições, havendo, portanto, dis-
3.1. Materiais e métodos
tribuição do tipo de corte between subjects em
dois grupos. A Figura 3 ilustra as seis condi-
Participantes
ções experimentais em que se controlou tam-
bém, sistematicamente, o contraste de cores
verde e vermelho.

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Figura 3 - Condições experimentais.

Além dos 42 itens experimentais, in- tela em que uma palavra era apresentada e a
cluiram-se no teste oitenta itens distrativos em segunda tela em que a cor de uma letra era
que letras no início e no fim das palavras e- perguntada.
ram destacadas cromaticamente.

Procedimentos

Os participantes foram testados indivi-


dualmente em sala isolada, em que se encon-
trava o computador Macintosh I-Mac de
360MHz e uma caixa de botões. Ao pressio-
nar a tecla amarela na caixa de botões ao lado
do computador, uma palavra era chamada à
tela por 4 segundos, sendo, após esse lapso,
automaticamente substituída por tela em que
uma mesma letra aparecia em verde e em
vermelho seguida de ponto de interrogação.
Nos itens experimentais, esta letra era sempre Figura 4 - Caixa de botões.
a primeira letra do sufixo ou do pseudo-
morfema. Nos distratores, esta letra estava em
outras posições, no início ou no fim da pala-
vra. Os participantes deveriam, então, esco-
lher a cor da letra, apertando a tecla verde ou
a tecla vermelha na caixa de botões. O pro-
grama Psyscope registrava, então, a decisão
do sujeito, bem como os seus tempos de rea-
ção. Após sua decisão, os participantes deve-
riam apertar a tecla amarela para que outra
palavra fosse chamada à tela, prosseguindo
conforme descrito anterior-mente até que to-
das as palavras tivessem sido apresentadas, o
que era assinalado por uma última tela com a Figura 5 - Exemplo de tela em que o estímulo
palavra FIM. As Figuras 4, 5 e 6, ilustram era apresentado por 4 segundos.
respectivamente a caixa de botões, a primeira

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significativamente mais rápidos do que os de


MPN (t = 3,797; p = 0,0002), confirmando
que há um efeito de recorte cromático atuante
nas condições com morfemas. O recorte cro-
mático dos morfemas foi, de fato, um fator
facilitador nas decisões, fazendo aumentar o
índice de acertos e diminuindo o tempo médio
de decisão. Observe-se, em seguida, que o
mesmo não se instancia na comparação PMC
x PMN que apresentam índices de acerto
(X2= 0,2800; p = 0,5967) e de tempos de de-
cisão de acerto (t = 1,120; p = 0,264) indife-
Figura 6 - Exemplo de tela com pergunta renciados. Finalmente, a comparação das úl-
sobre a cor de letra . timas duas colunas entre si indica que o efeito
do recorte cromático também se instancia sig-
3.2. Resultados nificativamente ao se comparar MRC com
MRN. O índice de acertos na condição MRC
Os resultados estão apresentados na é significativamente maior do que na condi-
Tabela 1 e nos Gráficos 1 e 2 abaixo. Obser- ção MRN (X2=14,74; p = 0,0001) e os tempos
ve-se que o índice de acertos na condição de decisão de acerto de MRC são significati-
MPC é significativamente maior do que na vamente mais rápidos do que os de RN (t =
condição MPN (X2=12,85; p = 0,0003) e que 4,645; p = 0,0001).
os tempos de decisão de acerto de MPC são

MCP MPN PMC PMN MRC MRN


Acertos 114 87 98 102 110 60
RT 1334 1722 1537 1737 1319 1807

Tabela 1 – Índices de acerto e tempos de decisão por condição.

Grafíco 1 – Índices de acertos.

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Gráfico 2 – Tempos de decisão.

3.3. Discussão Crucialmente, no entanto, as condi-


ções com pseudo-morfemas em que não se
Os resultados obtidos indicam que os observam efeitos significativos de recorte
sujeitos reconhecem mais acertada e rapida- cromático, parecem sugerir que os leitores
mente a cor da letra alvo nas condições com têm conhecimento intuitivo da morfologia,
recorte morfêmico, esteja o morfema em con- não segmentando morfemas quando há apenas
catenação com uma palavra(MP) ou com uma material ortográfico não segmentável, como é
raiz (MR). Por outro lado, não se observou o caso das palavras da lista PM. Por exemplo,
efeito de recorte cromático significativo, quer ao ler a palavra espinha, derivada do latim
nos índices, quer nos tempos de decisão acer- spina, ae, o processador morfológico não se-
tada, nas condições com pseudo-morfema ria ativadopara segmentar, reconhecer e for-
(PM). necer a interpretação ilegítima “espi peque-
Esses resultados sugerem que os leito- no”, uma vez que, nesse caso, não há morfe-
res utilizariam um procedimento de parsing ma diminutivo a ser segmentado e processa-
morfológico pleno, isolando os morfemas que do, apenas material ortográfico semelhante
compõem uma palavra, quer esses morfemas que a competência lingüística do falante sabe-
estejam em relação de transparência, quer es- ria diferenciar de um morfema verdadeiro.
tejam em relação de opacidade com a base.
Nas condições com morfemas concatenados a 4. Experimento 2 – rastreamento ocular
palavras (MP), os leitores identificariam a pa-
lavra e o sufixo. Por exemplo, ao ler a palavra Este experimento rastreou os movi-
malinha, fariam a segmentação mala+inha mentos oculares na leitura do mesmo conjun-
para chegar ao significado “mala pequena”. to de palavras do experimento anterior, sem,
Também nas condições com morfemas conca- no entanto, incluir a manipulação cromática.
tenados diretamente à raiz (MR), esta seg- A hipótese era a de que as palavras com mor-
mentação se instanciaria. O que os resultados femas, sejam as transparentes, sejam as opa-
parecem estar indicando é que existe uma cas, apresentariam maiores tempos médios de
operação crucial de concatenação de morfema fixação e maiores índices de movimentos sa-
com raiz que ocasiona uma negociação de cádicos progressivos ou regressivos do que as
significado, a qual pode ser acrescida de mais palavras com pseudo-morfemas. Esses índices
uma concatenação, cujo aporte semântico re- mais elevados de fixação e movimentação
gular é processado em tempo mínimo. ocular nas condições com morfema refletiri-
am a atividade de concatenação morfêmica

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levada a efeito no processamento visual des- Participaram do experimento 16 alu-


sas palavras, em oposição ao acesso mais di- nos de graduação do curso de Fono-
reto, a ser observado nas condições com audiologia da UFRJ, com visão normal, sem
pseudo-morfemas, em que não se esperariam necessidade de uso de óculos ou lentes de
níveis significativos de computação interna .à contacto.
palavra. A literatura sobre rastreamento ocu-
lar da leitura reconhece não só que medidas Materiais
de movimento ocular possam ser usadas para
inferir processos cognitivos que variam de Os materiais experimentais usados no
momento a momento na leitura, mas também estudo foram os mesmos usados no experi-
que a variabilidade das medidas refletem o mento 1, sem manipulação cromática: três
processamento on-line (cf. Rayner, 1983). listas de 14 palavras cada, controladas quanto
Mais especificamente, Kuperman e colabora- à freqüência e tamanho, a saber, palavras com
dores (2006) demonstraram que a complexi- morfemas, pseudo-morfemas e morfemas re-
dade morfológica na leitura de palavras isola- negociados.
das em holandês implica maiores tempos de
fixação. Procedimentos
Os três fatores da variável inde-
pendente tipo de morfema (MP, PM e MR) Os participantes foram testados indi-
são examinados no presente estudo, que tem vidualmente em sala isolada, em que se en-
como variáveis dependentes os tempos de fi- contravam o equipamento de rastreamento
xação e os índices de movimentos sacádicos ocular Arrington View Point Quick Clamp
na leitura das palavras. Eye-tracker (CLIPSEN-CNPq), com reso-
lução temporal de 30Hz (640x 480), ilustrado
4.1. Materiais e métodos na Figura 7:

Participantes

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Figura 7 – Equipamento de rastreamento ocular.

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Os participantes foram instalados no tela, ali permanecendo até que o sujeito aper-
equipamento a distância de cerca de 50 cms tasse a tecla F-12 novamente. Entre uma pa-
do monitor e instruídos a fazer leitura silen- lavra e outra aparecia uma tela cinza vazia. A
ciosa auto-monitorada das palavras que íam tarefa pedida aos sujeitos era a de que lessem
chamando à tela através do pressiona-mento as palavras para compreensão, sendo que ao
da tecla F-12 no teclado do compu-tador Pen- final seriam testados quanto ao seu significa-
tium IV 2,6GHz a que o rastreador ocular está do. A Figura 8 ilustra participante durante a
conectado. As palavras grafadas em fonte ti- realização do teste.
mes new roman 36 apareciam no centro da

Figura 8 – Participante do experimento de rastreamento ocular.

4.2. Resultados cativa estatisticamente (X2= 1,838; p =


0,1752). De qualquer forma, as palavras na
Os resultados estão apresentados na condição MP, em que morfemas estão conca-
Tabela 2 e nos Gráficos 3 e 4 a seguir. Note- tenados a palavras, requerem mais tempo de
se que os tempos médios de fixação diferem fixação (t = 2,936; p = 0,0034), atestando a
significativamente entre morfemas concate- maior atividade requerida pela decomposicão
nados diretamente a palavras (MP) e pseudo- morfológica na leitura do primeiro grupo. En-
morfemas (PM) na direção esperada (583 ms tretanto, diferentemente do obtido no Experi-
x 512ms), embora a diferença entre os índices mento 1, também se atesta-ram diferenças
de movimentos sacádicos, ainda que na dire- significativas dos tempos de fixação (t =
ção esperada, seja apenas visual, não signifi- 3.078; p = 0,0021) com a mesma magnitude e

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direção entre as palavras com morfemas con-


catenados a palavras (transparentes) e as pa-
lavras com morfemas concatenados a raízes
(opacos), cujo MP PM MR
significado é arbitrário. Já entre o gru- Fixações 583 512 509
po de palavras com pseudo-morfemas (PM) e Sacadas 609 576 575
o grupo de palavras com primeira concatena-
ção na raiz (MR) não há diferenças significa- Tabela 2 – Fixações e movimentos sacádicos.

tivas nos tempos de fixação (t = 0,1215; p =


0,9033).
Gráfico 3 – Tempos médios de fixação.

Gráfico 4 – Índices médios de movimentos sacádicos.

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4.3. Discussão destacassem com a mesma cor os morfemas,


tanto no grupo onde havia composição se-
Os resultados do experimento de ras- mântica regular (MP), quanto no grupo em
treamento ocular sugerem uma correlação en- que havia leitura semântica arbi-trária (MR).
tre a computação morfológica no interior da Esse destaque do morfema pode ter funciona-
palavra e os tempos de fixação médios – pa- do como um artefato que ativou o procedi-
lavras com sufixos concatenados a palavras mento computacional de concatenação mor-
apresentam tempos de fixação médios mais fológica em ambos os grupos, independente-
elevados do que palavras com pseudo-mor- mente do significado ter sido fixado por com-
femas, confirmando parcialmente a hipótese putação composicional ou por fixação mne-
de que a concatenação morfêmica requer mônica semanticamente arbi-trária. No grupo
maiores latências, já que os índices de movi- de pseudo-morfemas, embora as formas orto-
mentação sacádica, embora apresentando mé- graficamente semelhantes a morfemas tenham
dias na direção esperada, diferiram de forma também sido destacadas, os falantes não as
estatisticamente não significativa. Observe-se teriam percebido como verdadeiros morfe-
que a diferença nos cruzamentos entre a con- mas, não optando, por isso, pelo procedimen-
dição com morfemas concatenados a palavras to computacional e sim pelo acesso pleno (lis-
(MP) e a condição com pseudo-morfemas tema). Já no experimento de rastreamento
(PM) é simétrica às que foram obtidas no ex- ocular, em que não se deu destaque nem aos
perimento 1, onde também se observaram di- morfemas concatenados a palavras (MP), nem
ferenças significativas entre essas duas condi- aos concatenados a raízes (MR) e nem aos
ções. A falta de simetria entre os dois experi- pseudo-morfemas (PM), pôde-se capturar o
mentos, entretanto, se instancia ao se compa- acesso com base na computação morfológica
rarem as condições de palavras com morfe- apenas no grupo de palavras com morfemas
mas concatenados a palavras (MP) com as concatenados a palavras, de leitura composi-
condições de palavras com morfemas conca- cional (MP). Nos dois outros grupos, os leito-
tenados diretamente a raízes (MR), no teste res teriam optado pelo procedimento de lista-
de rastreamento ocular. Enquanto que neste gem plena, menos custoso em termos de tem-
último teste, há diferenças significativas nos pos de fixação. No grupo de pseudo-
tempos de fixação entre as duas condi-ções, morfemas, o procedimento de acesso direto
sugerindo que os dois grupos de palavras são seria o único possível, uma vez que a compu-
processados diferentemente, no experimento tação levaria a resultado enganoso.
1, não se obtiveram diferenças significativas No grupo de morfemas concatenados a
entre esses dois grupos, inferin-do-se, ali, que raízes (MR), embora o procedimento compu-
a computação morfológica ocorria de modo tacional fosse possível, não foi o preferido,
idêntico, fossem os morfe-mas concatenados provavelmente também por considerações de
a palavras, fossem eles concatenados a raízes. natureza econômica já que o acesso top-down
Uma forma de tentar explicar esta con- é menos custoso computacionalmente e, por
tradição entre os dois experimentos seria atri- isso, menos demorado em termos de tempos
buir à natureza das tarefas a diferença encon- de fixação. De qualquer modo, os experi-
trada entre os dois experimentos no que se mentos parecem haver indicado a disponibili-
refere ao grupo de palavras com conca- dade dos dois tipos de procedimentos de aces-
tenação de morfemas a raízes (MR) que, no so lexical no processamento de palavras iso-
primeiro experimento, se posicionaram ao ladas em português, o acesso direto e o medi-
lado do grupo de palavras com morfemas ado pela computação morfológica, aduzindo
concatenados a palavras (MP) e, no segundo evidências em favor dos modelos duais ou de
experimento, se alinharam melhor com o gru- dupla rota. Constatam-se, então, dois proce-
po de palavras com pseudo-morfemas. A tare- dimentos de acesso - o procedimento mnemô-
fa de identificação cromática requeria que se nico e o computacional, o primeiro concer-

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nente à ativação da convenção arbitrária, que (moc+inho). A maior parte dos sujeitos forne-
acontece na primeira concatenação de morfe- ceu como primeira interpretação o sentido
ma categorizador a uma raiz acategorial e o negociado, a saber, o de herói, oposto a ban-
segundo concernente ao cálculo da composi- dido. Esta interpretação é consistente com o
ção semântica, um cálculo que vai sendo efe- padrão de leitura do tipo top-down com me-
tuado logo após a primeira concatenação de nores índices de fixação e de movimentos sa-
afixo a raiz. cádicos, ilustrado na Figura 9. Entretanto vá-
Note-se, finalmente, que após a rea- rios participantes também apresentaram como
lização do experimento de rastreamento ocu- primeira interpretação o significado de moço
lar realizaram-se entrevistas com os partici- jovem que teria resultado do procedimento
pantes, indagando-se sobre a ocorrência e os bottom-up de concatenação da raiz com o
significados de algumas palavras experi- sufixo diminutivo, o que poderia ter como
mentais apresentadas no teste. Registre-se que correlato padrões de leitura com mais ativida-
ao menos uma das palavras experimentais do de ocular, como o ilustrado na Figura 10. A
grupo dos morfemas opacos, a palavra moci- existência de tais variações sugerem que o
nho, apresentou interpretações variáveis entre controle mais preciso dessas acepções pode
o sentido computado morfologicamente (mo- ser crucial para se estabelecer com maior pre-
ço+inho) e o sentido determinado medi-ante cisão os processos de acesso lexical levados a
negociação semântica da estrutura Raiz+x efeito na leitura de palavras isoladas.

Figura 9 – Padrão de leitura top-down.

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Figura 10 – Padrão de leitura bottom-up.

5. Conclusões ções com pseudo-morfemas e com mor-


femas que determinam leitura arbitrária.
Resumem-se abaixo as principais con- • Houve também ocorrência de padrões
clusões a que se chegou neste artigo: oculares indicativos de acesso lexical dire-
to, aduzindo evidências em favor de mo-
• A tarefa Stroop indicou que os leitores delos de dupla rota que prevêem tanto a
têm conhecimento intuitivo de morfemas computação quanto o acesso direto.
computados composicionalmente e morfe- • A contradição entre os resultados obtidos
mas responsáveis por leituras arbitrárias, nos dois experimentos poderia ser expli-
que atuam como facilitadores dos índices cada em termos da natureza diferenciada
de acerto e dos tempos de resposta, em das tarefas. Enquanto que na tarefa basea-
contraste com as condições com palavras da no efeito Stroop os morfemas eram
contendo apenas material ortografi- destacados, a tarefa de rastreamento ocu-
camente semelhante a morfemas. lar não incluiu esta explicitação dos mor-
• Há processamento morfológico no interior femas. No grupo de palavras com morfe-
da palavra, conforme predito pelas teorias mas opacos, que pode admitir duas inter-
de parsing pleno. pretações, a explicitação dos mor-femas
• O rastreamento da leitura das mesmas pa- introduz um artefato que favore-ceria o
lavras indicou maior atividade ocular (fi- processamento bottom-up, enquan-to a sua
xações) na condição com morfemas com não explicitação favoreceria o processa-
leitura composicional do que nas condi- mento top-down.

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• Finalmente, tomados em conjunto, os a- Pinker, S. (1991). Rules of language. Science,


chados dos dois experimentos sugerem 153, 530–535.
que o acesso lexical é um processo extre- Prinzmetal, W.; Treiman, R. e Rho, S.H.
mamente complexo, justificando que se (1986). How to see a reading unit. Journal of
realizem outras pesquisas, controlando-se Memory and Language, 25, 461-475.
com maior precisão fatores tais como o Rayner, K. (1998). Eye Movements in Read-
ponto de concatenação dos sufixos, as fre- ing and Information Processing: 20 Years of
qüências de ocorrência dos itens lexicais, Research. Psychological Bull., 124 (3), 372-
o grau de familiaridade que dife-rentes 422.
grupos de sujeitos podem ter com as pala- Schreuder, R. e Baayen, H. (1995) Modeli
vras, bem como suas polissemias. morphological processing. Em: Feldman, L.B.
(Ed.). Morphological aspects of language
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Rev., 101(1), 3-33. 271- 294.

Notas

(1) Este trabalho foi apresentado originalmente na mesa redonda “Restaurar dá restaurante? Analisando a persistência
da morfologia no acesso lexical”, coordenada por Miriam Lemle (Clipsen/UFRJ), durante o V Congresso Internacional
da Associação Brasileira de Lingüística – ABRALIN, realizado na UFMG, em Belo Horizonte, entre os dias 28 de
fevereiro e 3 de março de 2007.
(2) O processamento morfológico é um processo sublexical que equivale à concatenação sucessiva de raiz e morfemas
categorizadores em prol da formação de uma palavra. Por exemplo, a palavra rastreamento é morfologicamente
complexa. É formada a partir da raiz RASTR que se combina com o morfema nominalizador Ø (sem forma fonológica)
e se torna o nome rastro. Depois, rastro se concatena com o morfema verbalizador e forma rastrear. Por fim, o verbo
rastrear se concatena a um morfema nominalizador com forma fonológica mento em prol da palavra
[[[rastr]nea]vmento]n.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

(3) Heurísticas top down no acesso lexical parecem sempre poder ocorrer, sendo, até certo ponto, imprevisíveis, pois
variam em função de fatores tão diversos quanto a freqüência, a familiaridade, a similaridade semântica, prosódica,
fonética, ortográfica, etc. Por exemplo, recentemente, pudemos observar alguém recuperar o nome de um grupo de
mímicos denominado Mummenshantz, como Haagendaz. Pode-se especular que o acesso se deveu a fatores tão
diversos quanto o número de sílabas, a pauta acentual, bem como, talvez, à percepção de que se tratava de termo em
língua estrangeira.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
S u b me t i d o e m 1 6 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Artigo Científico

Do herói ficcional ao herói político


From the imaginary hero to the political hero

Hilda Gomes Dutra Magalhães, Luíza Helena Oliveira da Silva e Dimas José Batista

Universidade Federal do Tocantins (UFT), Palmas, Tocantins, Brasil

Resumo

Partindo do pressuposto de que a literatura materializa os valores ideológicos de um determinado gru-


po, pretendemos neste artigo refletir sobre as relações existentes entre o perfil dos personagens das
narrativas de massa consumidas pelos eleitores e a imagem de político vendida/administrada pela mí-
dia em campanhas eleitorais. Utilizando como suporte teórico a Análise do Discurso, pudemos obser-
var que tanto nas sociedades capitalistas quanto nas não capitalistas, temos uma mídia que constrói,
fabrica e inventa heróis políticos. A mitificação da dimensão política corresponde simetricamente aos
desejos e anseios de proteção, amparo e conforto dos eleitores, perdidos num mundo com valores es-
senciais fragmentados. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 18-30.

Palavras-chave: herói; mitificação política; análise do discurso.

Abstract

Having as principle that the literary art represents the ideological values of one determined group,
we want in this article to reflect about the relations between the mass narratives personages profile
consumed by the voters and the profile of the political sold / managed by the media during politics
campaigns. We observed, using the Discourse Analysis theory, as much in the capitalists societies
how much not capitalists, the existence of a media that constructs political heroes. This mystification
of the political dimension corresponds symmetrically to the desires and to the protection necessities of
voters, lost in a world deprived of basic values. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 18-30.

Key Words: hero; politic mitification; discourse analysis.

Introdução ciedade presente e passada, especialmente


quando lidamos com construções/fabricações/
Discutir a construção ideológica, sim- invenções produzidas no universo literário e
bólica e discursiva da figura do “herói” no político. Nesta reflexão, alguns dados poderi-
campo das ciências humanas e sociais remete am ser considerados para precisar melhor a
a uma intrincada teia de reflexões sobre a so- função social do herói e da heroificação

 - H.G.D. Magalhães é Doutora em Teoria da Literatura (Universidade Federal do Rio de Janeiro), com Pós-
doutorado (Universidade de Paris III e na École des Hautes Études en Sciences Sociale). Atualmente atua como Pro-
fessora do Curso de Letras e do Mestrado Iterdisciplinar em Ciências do Ambiente (UFT). Endereço para correspon-
dência: Campus de Araguaína - Unidade São João (UFT). Rua 1º de Janeiro, S/N, São João, TO 77.080-000. Telefone:
14 (63) 21122219. E-mail para correspondência: hildadutra@uft.edu.br. L.H.O. da Silva é Doutora em Estudos da
Linguagem (Universidade Federal Fluminense). Atua como Professora do Curso de Letras (UFT/Araguaína-TO). D.J.
Batista é Doutor em História (Universidade de São Paulo). Atua como Professor do Curso de História
(UFT/Araguaína-TO).

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(compreendido como processo de produção guardariam os mesmos traços dos heróis con-
discursiva da figuratividade heróica). temporâneos? Certamente que não, mas uma
As qualidades do herói, suas caracte- abstração parece resistir, capaz de subsumir a
rísticas no imaginário coletivo e a natureza diversidade de representações e esquemas cul-
ideológica atreladas a sua figurativização con- turais que definem as especificidades das fi-
tribuem, certamente, para a compreensão do guras que as sociedades elegem como herói-
problema da consciência. A consciência, nes- cas.
se caso, vai ser concebida na perspectiva dia- Neste trabalho, partimos do pressupos-
lógica de Bakhtin como uma produção histó- to de que a arte literária, mais do que um sim-
rica, opondo-se, portanto, à possibilidade de ples documento estético de um povo, materia-
uma subjetividade absoluta capaz de separar- liza os valores ideológicos que sustentam a
se do mundo para melhor desvendá-lo, como cultura de um determinado grupo. Acreditan-
prevista numa abordagem idealista. Para Ba- do nisto, podemos entender a produção literá-
khtin, a consciência não vai ser buscada no ria como um termômetro para se compreender
interior do sujeito, mas na relação entre os a consciência política de um grupo social, o
sujeitos constituídos historicamente, confor- que pode ser observado não apenas no tipo de
me analisa em Marxismo e filosofia da lin- literatura que essa sociedade produz, mas
guagem: principalmente na natureza dos textos que ela
Se tomarmos a enunciação no estágio consome. Isso posto, interessa-nos neste arti-
inicial de seu desenvolvimento, na “alma”, go refletir sobre as relações existentes entre o
não se mudará a essência das coisas, já que a perfil dos personagens das narrativas de mas-
estrutura da atividade mental é tão social co- sa consumida pelos eleitores e a imagem de
mo da sua objetivação exterior. O grau de político que é vendida/administrada pela mí-
consciência. De clareza, de acabamento for- dia em época de campanha eleitoral, na medi-
mal da atividade mental é diretamente pro- da em que muitas vezes o representante a ser
porcional ao seu grau de orientação social. eleito deve corresponder a uma espécie de
Quanto mais forte, mais bem organizada e herói, capaz de abraçar os interesses de uma
diferenciada for a coletividade no interior da maioria, exacerbando-se seus poderes como
qual o indivíduo se orienta, mais distinto e ator na transformação social e econômica.
complexo será o seu mundo exterior (Bakhtin, Mais especificamente, lançamos nosso olhar
1995: 114-115). para alguns recursos mobilizados durante
A produção literária, particularmente, campanha para a eleição do governador do
a ocidental sobre a figura do herói realmente estado do Tocantins, em 2006.
assenta-se no maniqueísmo, na unilateralidade Como suporte teórico utilizaremos a
e no sucesso do herói. Estes elementos são Análise do Discurso (AD), que concebe a a-
centrais para compreensão da criação discur- propriação do discurso como um processo
siva do herói pela reiteração de determinados essencialmente coletivo, social e histórico.
traços semânticos como a imortalidade, a in- Para os representantes dessa corrente, a teoria
vencibilidade, a superação do conflito moral e do discurso deve explicar não apenas a reali-
ético, incidindo sobre a ativação de um senti- dade lingüística do texto, visto como algo em
mento de identidade coletiva: o herói fala aos si, mas sua relação com a ideologia e, desse
anseios de uma maioria, dá contornos precisos modo, ao Poder.
ao que num dado momento representa os seus
anseios e angústias. As determinações do discurso
Tais elementos ônticos não vinculam
automaticamente a figura do herói a um grupo Althusser (1984), um dos teóricos cu-
social específico, embora os processos de he- jas formulações corroboram para a constitui-
roificação, ao atualizá-los, resignifiquem-nos. ção da Análise do Discurso, nos explica que a
Assim, as figuras heróicas das tragédias, epo- classe dominante consegue perpetuar sua he-
péias e fábulas greco-romanas porventura gemonia graças a dois aparelhos fundamen-

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tais: o repressor, representado pela política, lidade, isto é, depende de seu espaço institu-
pela Administração, pelo Governo, pela Justi- cional, e por isso uma mesma palavra ou frase
ça, etc., e o ideológico, constituído pela famí- terá significados diferentes conforme a for-
lia, pela escola, pela religião, etc. O primeiro mação discursiva na qual se insere.
tem como fundamento a repressão, enquanto O conceito de formação discursiva é
que o segundo é caracterizado pela dissemi- bastante complexo e polêmico. Utilizamos
nação ideológica que perpetua o Poder. Al- inicialmente a definição de Orlandi, segundo
thusser afirma que a ideologia se materializa a qual uma formação discursiva deve ser
na maneira como se organizam os aparelhos compreendida como a atualização no discurso
repressivos e ideológicos, compreendendo por das formações ideológicas: “A formação dis-
ideologia a forma imaginária como os homens cursiva se define como aquilo que numa for-
vivem sua relação com as condições reais de mação ideológica dada – ou seja, a partir de
existência, caracterizada como mitificação. uma posição dada em uma conjuntura sócio-
Neste sentido, a ideologia apresenta histórica dada – determina o que pode e deve
uma existência material e tem como finalida- ser dito” (Orlandi, 1999: 43). Para Mussalim,
de a manutenção do Poder, o que só é possí- os limites de uma formação discursiva (FD)
vel através da perpetuação da ideologia que o são instáveis, uma vez que esta se inscreve
sustenta. Essa perpetuação é garantida, por num espaço de embate ideológico: “uma FD
sua vez, por um contínuo processo de trans- se inscreve entre diversas formações discursi-
formação de indivíduos em sujeitos ideológi- vas, e a fronteira entre elas se desloca em fun-
cos, quando estes são assimilados pelo siste- ção dos embates da luta ideológica, sendo es-
ma, passando a disseminar a ideologia domi- tes embates recuperáveis no interior mesmo
nante. de cada uma das FDs em relação” (Mussalim,
Foucault (1999), ao instituir os fun- 2001: 125). O conceito de formação discursi-
damentos da teoria do discurso, concebe o va remete, pois, à incompletude como condi-
discurso como um conjunto de enunciados ção da linguagem, uma vez que os sentidos
ligados por uma mesma formação discursiva. não estão constituídos definitivamente:
Para ele, o enunciado se caracteriza pela sua “Constituem-se e funcionam sob o modo do
relação com o referencial, compreendido co- entremeio, da relação, da falta, do movimen-
mo o que enuncia o enunciado e pela relação to”, nos “limites moventes e tensos entre a
do enunciado com o sujeito, considerando que paráfrase e a polissemia” (Orlandi, 1999: 52),
é o sujeito que anima, através de sua forma de repetindo ou rompendo com os sentidos de
ver o mundo, as formas vazias da língua, dis- uma dada formação discursiva.
pondo para isso de signos, marcas, traços, le- O conceito de formação discursiva,
tras, etc. Outra característica do discurso está compreendida como atualização de uma for-
na existência de um domínio próprio, ou seja, mação ideológica, é fundamental para a Aná-
de um espaço, responsável por integrar o e- lise do Discurso, do mesmo modo que os
nunciado num conjunto de enunciados, consi- conceitos de enunciado e enunciação. O e-
derando que os enunciados existem sempre nunciado é compreendido como a unidade
em conjunto e nunca isoladamente. Ou seja, lingüística básica, em substituição a sentença,
não se pode falar em enunciado livre, neutro forma, frase. A enunciação, por sua vez, é a
ou independente, mas sempre em um enunci- singularização do discurso, aqui compre-
ado contextualizado, fazendo parte de um jo- endido como jogo estratégico e polêmico, a-
go enunciativo, pois, para Foucault (1999: 9), ção e reação, pergunta e resposta, dominação
a linguagem é exatamente isso: jogo, defesa, e esquiva. Em outras palavras, o discurso,
arma, etc. para Foucault, é o espaço em que saber e po-
Finalmente, outra característica do der se articulam e é justamente por isso que
discurso é a sua condição material, que afirma ele precisa ser controlado, selecionado, orga-
o enunciado enquanto objeto. Assim, a repeti- nizado e redistribuído (Foucault, 1999: 9).
ção de um enunciado depende de sua materia-

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A contribuição de Foucault é impor- rio desde os primórdios da história humana,


tante porque liga definitivamente língua e rea- quando, numa condição precária em que a
lidade sócio-histórica. A partir dele e de Al- própria existência se revestia em mistérios, os
thusser, Pêcheux desenvolve a Análise do primeiros homens procuraram explicar o
Discurso, englobando o materialismo históri- mundo a partir das divindades. Neste intuito,
co, a lingüística e a teoria do discurso. Para criaram a figura dos deuses, uma mistura do
ele, cada indivíduo recebe uma formação dis- bem e do mal, aliada aos super-poderes e à
cursiva, que define o que pode ou não dizer o imortalidade. Habitando o Monte Olimpo e se
sujeito. Nestes termos, quando alguém se ma- alimentando de néctar e de ambrosia, estes
nifesta, diz não exatamente o que quer, mas o deuses detinham o controle sobre o fogo, a
que pode e deve dizer, pois, assim como uma terra, o ar e tudo o que neles habita. Suas fa-
formação ideológica determina o que o indi- çanhas, tidas como verdadeiras, eram passa-
víduo pensa, uma formação discursiva deter- das com idolatria e respeito de boca a boca,
mina o que esse indivíduo pode e deve falar. indiferentemente de sexo e idade. Na mitolo-
Citando Eni Orlandi (2001:164), “não há sen- gia cristã, esses deuses foram sintetizados em
tidos em si”. Do mesmo modo, “os sentidos dois pólos: na divina trindade e na imagem de
não dependem de nossas intenções, mas de Lúcifer, atualização de Hades, da divindade
possibilidades e necessidades reais concretas greco-romana.
com seus efeitos simbólicos”. Em outras pa- Ao lado da mitologia cristã floresceu,
lavras, existe uma formação discursiva que na Idade Média, uma mitologia laica, absolu-
predetermina o discurso de cada um de nós a tizando o Bem e o Mal. Esta se encontra re-
partir de um espaço determinado histórico e presentada principalmente através do contos
socialmente. de fadas, nas figuras da fada madrinha (Bem)
Analisando o discurso literário, Helia- e da bruxa (o Mal), ressignificados pelos efei-
ne de Castro (1983:17) afirma que o processo tos especiais das produções cinematográficas
de criação da arte escrita acha-se ligado a um de nossos dias e pelos livros ficcionais de na-
assunto, isto é, a uma "idéia ou conjunto de tureza mística, como os de Paulo Coelho. O
idéias" que dizem respeito aos valores ideoló- que se percebe é que a busca da verdade sobre
gicos. Registra ainda que, nesse sentido, a i- o homem e o mundo continua e com isso, a
deologia "é o fundamento da criação literária, varinha mágica, resquício dos poderes dos
pois a partir dela passam a existir os dados deuses gregos, passando também por uma e-
constituintes da obra" (Castro, 1983: 17). volução, transmudou-se para continuar a re-
Uma das características básicas da obra literá- produzir, com mais eficácia, a eterna luta en-
ria é ser, portanto, ideológica, isto é, a obra se tre o bem e o mal, o sim e o não, a vida e a
constitui num meio de propagação de idéias, o morte.
que a torna um instrumento de repetição dos A partir de meados do Século XX,
valores dominantes ou da instauração da pos- surgem novos produtos culturais que perpetu-
sibilidade de ruptura, do novo, de uma outra am a relação Bem/Mal, a partir do manique-
ordem de coisas e sentidos. ísmo dos símbolos bruxa/fada da Idade Mé-
Essa ideologia pode estar impregnada dia: é a cultura massificada colocada à dispo-
nos vários níveis discursivos, dentro da obra sição nas bancas de jornais, na televisão e na
literária. Devido à proposta de nosso estudo, internet, na forma de gibis, jogos infantis,
deter-nos-emos na análise do personagem, filmes, etc.
mais especificamente, na figura do herói. Iniciado geralmente na infância, o
consumo desses produtos não se restringe à
O berço do herói faixa etária infanto-juvenil, estendendo-se a
uma grande parcela de adultos, tornando-se
Antes de analisarmos os heróis como verdadeiros campeões de venda em distintos
produtos culturais de massa, é necessário países. Entretanto, seja pela estrutura automa-
lembrar que o herói está presente no imaginá- tizada das histórias, seja pelos referenciais

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que representam os personagens, esses produ- simbólico, nos processos de representação por
tos mostram um lado mórbido, posto que são via do aparato das instituições (superestru-
potentes instrumentos de manipulação ideoló- tura), conforme preconiza a perspectiva al-
gica, servindo, de diversas formas, à manu- thusseriana:
tenção dos interesses dos sistemas políticos e A ideologia – parte da superestrutura
econômicos. do edifício – , portanto, só pode ser concebida
A estória do Tio Patinhas, por exem- como um modo de reprodução, uma vez que é
plo, é uma típica propaganda capitalista. O por ele determinada. Ao mesmo tempo, por
milionário, além de representar o empresário, uma “ação de retorno” da superestrutura sobre
ou seja, o dono do capital, é a própria alegoria a infra-estruturam a ideologia acaba por per-
do capital em si. Sua empresa visa apenas a petuar a base econômica que a sustenta (Mus-
mais-valia e todos os valores morais desapa- salim, 2001: 104).
recem, sendo substituídos pela perspectiva de
lucro. As pessoas, para o Tio Patinhas (inclu- Eu tenho a força
indo ele próprio) deixam de ter qualquer im-
portância nas estórias. Exemplo disso é a Independente da linguagem de que se
forma como trata o sobrinho Donald, repre- utilizam, esses produtos de massa apresentam
sentante da classe proletária, despudorada- uma estrutura rígida e pobre, fazendo parte do
mente explorado pelo tio. Em nenhum mo- que Flávio René Köthe (1986: 35) chama de
mento existe o questionamento da problemá- narrativa trivial, caracterizada basicamente
tica e a tendência é, pelo automatismo, manter "pelo automatismo, pela repetição e pelos cli-
a relação dominante/dominado, que torna o chês, em nível de enredo, personagens, temá-
tio a cada dia mais rico e o sobrinho cada vez rio, valores e final”, aspectos que tornam a
mais pobre. leitura de tais textos acessível a qualquer tipo
Os filmes de aventura, além de extre- de leitor.
mamente violentos, tentam, através dos ícones Dentre as peculiaridades do gênero,
que compõem o personagem principal, vender entre as que mais chamam a atenção estão,
a imagem do poder hegemônico dos Estados sem dúvidas, a imortalidade e a invencibilida-
Unidos tanto para os próprios americanos de do herói, configurando uma figura demiúr-
quanto (e principalmente) para os países e- gica, cujos poderes se comparam à força da
mergentes. magia. Nesse caso, vamos observar como fato
O leitor passa, desde a mais tenra in- sintomático uma incrível coincidência de i-
fância, por um lento e progressivo processo dentidade entre o herói imaginário e o herói
doutrinário, durante o qual introjeta valores das urnas, o que indica a existência de um de-
que não são necessariamente os de sua cultu- terminado condicionamento entre o real e o
ra, considerando-os, mais do que normais, fictício, entre leitura e leitor. Como exemplos
desejáveis. Gradativamente, o leitor começa a de heróis imaginários, podemos citar uma in-
valorizar mais o "ter" em detrimento do "ser", finidade de personagens que variam da fada à
e, ato contínuo, a converter-se em coisa, con- Cinderela, dos cowboys americanos ao deteti-
vertendo-se por seu "livre arbítrio" em força ve policial do seriado de TV, todos detentores
de trabalho explorada pelo sistema. Como so- de uma força/saber que lhes possibilita reali-
nho de consumo, começa a almejar a posição zar feitos irrealizáveis pelo homem comum,
privilegiada de Patinhas, a força do herói de sintetizando, portanto, o mito do super-
seu filme preferido e, quando tem a oportuni- homem e exercendo sobre o público leitor,
dade de conquistar posições sociais privilegi- mais do que o fascínio, as condições para sua
adas, muitas vezes o faz sem respeitar os inte- submissão ideológica.
resses de sua classe social. Aparentemente, na ficção, o herói é
Temos assim a perpetuação de uma um homem comum, comprometido com os
ordem econômica (infra-estrutura) por via da dogmas do bem e da moral convencionados
ideologia que se manifesta na linguagem, no pela sociedade. O super-herói da literatura de

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massa não precisa de palanques para provar candidato interessa, o quanto for possível,
que é superior e que é capaz de solucionar os vender uma imagem individual e quanto mais
problemas dos mortais, mesmo porque é úni- biônica ela parecer ao público maiores são
co, não possui concorrentes e, caso apareçam suas chances de vitória: tratar-se-ia de um su-
alguns, são sempre caracterizados como ame- jeito acima das ideologias, acima dos parti-
aças ao bem-estar da população e por isso de- dos, para a garantia do interesse de todos.
vem ser derrotados, exterminados. Sabendo disso, cada político, à sua
Outro aspecto a se observar é que, em maneira, tenta, através de indexadores, reves-
geral, o super-herói não age em grupo, pois tir-se de alguma das faculdades extraordiná-
ele representa o poder absoluto e por isso se rias do super-herói. De fato, se analisarmos a
torna detentor de todas as forças do bem, con- natureza do discurso do herói ficcional e do
siderado como tal as diretrizes do poder (ele "herói" político, veremos que tanto um quanto
estará sempre agindo em nome do Estado, da o outro refletem uma ideologia supra-real.
Igreja, do Poder dominante). Assim é que o Antes de pretender ser analítico, o discurso de
cidadão Clark Kent pode, num piscar de o- ambos é eloqüente. Na figura do herói fictí-
lhos, transformar-se no imortal super-homem, cio, tal eloqüência é mostrada pelo ato efeti-
banir sozinho todos os bandidos que ameaçam vado, reiterando, portanto, o seu discurso e a
a tranqüilidade dos cidadãos e voltar ileso à sua condição de super. Para o herói de palan-
sua condição de pacato jornalista. Lembremos que, a eloqüência é obtida através de associa-
ainda esse respeito os heróis encarnados por ções que o aproximam da figura de Deus ou
Stalone, Schwarznegger e similares. Ultima- de determinados políticos ou personagens ti-
mente, temos assistido nas histórias em qua- dos pela comunidade como mártires ou heróis
drinhos e nos desenhos animados a uma ten- da pátria.
dência dos heróis em trabalhar em grupos, Analisando o personagem He-Man,
porém, nos filmes produzidos por Hollywood veremos que, ao empunhar a espada mágica,
ainda predomina a onipotência individual, torna-se o detentor de uma força inigualável
elemento caro para a ótica neoliberal: é possí- e, observemos, o seu discurso é breve, resu-
vel vencer a tudo e a todos solitariamente, a mindo-se à frase "Eu tenho a força", o que já
despeito das forças contrárias. Por analogia, é é a garantia da solução de todos os problemas
também possível o sucesso econômico, desde dos mortais. O mesmo discurso é por várias
que haja determinação, força de vontade, de- vezes repetido pelo candidato em campanha.
terminação, ousadia, qualidades indispensá- Quando afirma que precisa do voto do eleitor
veis aos homens que “vencem” no mundo dos para resolver os problemas do povo, reclama
negócios, derrotando os concorrentes, angari- para si a força e a espada mágica de He-Man:
ando a simpatia do mercado. eu tenho a força da representatividade, sou,
Os candidatos de palanque, cujo dis- portanto, detentor da legitimidade e das con-
curso é anti-analítico por natureza, refletem dições para pode fazer.
uma circunstância semelhante à apresentada Neste sentido, tanto a espada para He-
pelo herói ficcional. Para o candidato da tri- Man quanto os votos para o político se consti-
buna, a oposição é sempre a ameaça à popula- tuem numa espécie de varinha mágica que os
ção e, portanto, o bandido deve ser, à maneira dota de superpoderes. Observemos, todavia, a
do criminoso da narrativa trivial, derrotado. contragosto, que o discurso do herói imaginá-
Assim como o herói da ficção, ao político, na rio não sofre reversão, isto é, o super, de fato,
narrativa da política nacional, interessa pro- efetiva o predisposto e seu poder é utilizado
mover-se como figura individual, utilizando a em favor do bem-estar da coletividade.
legenda na medida em que serve a sua auto- Diferentemente, no caso do discurso
projeção, uma vez que, nesse quadro, a ideo- político, vemos tantas vezes uma espécie de
logia nem sempre está vinculada ao partido, deterioração da manutenção no compromisso
sendo este reivindicado apenas quando há ga- assumido, o que com maior ou menor rapidez,
nhos individuais para o candidato. De fato, ao confere desgaste a sua credibilidade junto ao

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eleitorado. Assim, os discursos de campanha simples troca de bandeira. A inexistência de


se perdem ao longo do processo, modifican- uma memória histórica tem sido apontada por
do-se, tornando-se diferentes das falas subse- muitos como sendo o principal motivador
qüentes: o que se declara na condição de can- deste fenômeno. Nesse caso, seria importante
didato não mais se assemelha ao que se diz considerar os mecanismos que constroem essa
quando empossado. Enquanto He-Man utiliza memória social e histórica, silenciando e apa-
a sua força em prol do povo, o político decaí- gando fatos e processos. Se toda relação do
do a utiliza em benefício próprio, e por isso sujeito com o mundo é mediada pela lingua-
mesmo contra a coisa pública. Enquanto, no gem, constituída pelo discurso, que mecanis-
campo simbólico, temos a confirmação da mos discursivos fazem significar a realidade
necessidade dos super-heróis, na vida das re- tendo em vista essas narrativas sociais?
lações de poder o heróico não parece alcançar
as condições para seu progresso. Assim, mui- O discurso do anti-herói
tas vezes assistimos a uma progressiva deteri-
oração da imagem do pretenso herói nas ur- “A esperança é um urubu pintado de verde.”
nas, rumo à decadência de sua figura e desen- (Mário Quintana)
canto do eleitor com o processo.
Daí para a crucificação há uma peque- Não existem heróis sem fãs. Não exis-
na distância: é quando surgem as imagens dos tem textos sem leitores. Não existem, no to-
judas queimados nos Sábados de Aleluia ou cante aos heróis produzidos pelos discursos,
os enterros simbólicos, marcando a falência heroificação sem leitores que consumam essas
do modelo que havia possibilitado a eleição figurações heróicas. No entanto, temos que
do político. considerar que os fãs/leitores consomem estes
Já citamos em oportunidade anterior produtos culturais que levam a denominação
que o herói ficcional, geralmente antes do de- de heróis, às vezes, de modo muito crítico
senlace da narrativa, sofre uma recaída em quando satirizam ou simplesmente ridiculari-
que é fartamente enganado e nocauteado, po- zam esses heróis e, assim, a recepção dos lei-
rém, ao final, a estória mostra ao leitor que tores/fãs nem sempre são as melhores possí-
fatalmente o herói vence, mesmo porque ele é veis.
absolutamente invencível. O herói, na tradição greco-romana –
Ora, na história política também isso matriz das concepções ocidentais das figura-
ocorre: assim que um determinado discurso ções heróicas – é exemplar, modelar, um pa-
entra em declínio, os representantes do Poder radigma. Assim, quando nos deparamos com
começam a renegar a própria legenda e a se as construções/fabricações/invenções con-
engajarem em outras facções sob a desculpa temporâneas, pensamos que, nem seria ade-
de que o partido desviou-se das suas metas quado denominá-las de figurações heróicas.
iniciais, de que a equipe não está afinada com As angústias do “homem” – que homem? –
o Governo, dentre outras. Enfim, prepara-se contemporâneo fazem com muitas vezes ele
para abandonar o navio naufragado e, obser- busque escapar ao massacrante e insuportável
vamos, é quando o seu discurso torna-se mais contingente e rotineiro da vida. Seria melhor
individualista do que nunca: o suposto herói recolocarmos as figurações heróicas contem-
tenta, ao apontar bodes expiatórios, reverter a porâneas a partir deste sintoma. Ainda mais
situação, reforçando um discurso extrema- quando pensamos nos diversos níveis de
mente individualista. compreensão possíveis para as figurações he-
É novamente a imagem do super-herói róicas. Isto é, quando pensamos que classes e
que entra em cena diante do eleitor, um herói grupos sociais se apropriam e resignifiam es-
que sobrevive para além dos interesses do sas figurações.
grupo e é detentor de um poder inextinguível. Vejam a enorme teia de aranhas: he-
Não são raros os casos de anti-heróis que re- róis, discursos sobre heróis, recepção do pú-
cuperam a imagem diante do público pela blico das figurações heróicas. Ou seja, uma

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teia de discursos em que o “herói” se torna dir depende, assim, da adesão a certos discur-
difuso. Sem ao menos dizermos uma linha sos, que materializam determinados valores
inteira sobre: “os heróis anônimos”, os heróis ideológicos. Desse modo, não há um sujeito
da véspera, os de circunstância e aqueles que onipotente, que regula o que quer dizer, mas
se tornam heróis da circunstância, ou seja, os um sujeito histórico, interpelado pelo incons-
heróis que os mídia constroem. A heroifica- ciente e pela ideologia, que diz o que é possí-
ção, então, seria aquele processo complexo e vel. A construção de uma figura heróica, por-
difuso pelo qual o herói pode ser todos e nin- tanto, não prevê um sujeito que manipula oni-
guém. potente a massa de cidadãos indefesos, mas
Certamente, quando o processo de he- negociação, como porta voz do que naquele
roificação ocorre, envolve uma relação de momento se edifica para estes como poder e
Domínio e Poder, ou seja, quando um grupo, esperança. Assim, ao pretender manipular o
classe ou nível institucional se apropria e re- outro, o sujeito é também por este manipula-
significa uma figuração heróica, esta passa a do, a ele também se submete.
adquirir novos conteúdos, às vezes, diame- Dando continuidade a esse raciocínio,
tralmente opostos dos originários. Quando um propomos a seguir a análise de um jingle de
intelectual faz uso metafórico, metalingüístico campanha política em 2006 (anexo) para o
ou parafrasal de uma figura heróica, ele o faz governo de estado. Nesse ano, os brasileiros
com uma intencionalidade política, econômi- elegeram por voto direto deputados estaduais
ca ou social, a depender do leitor a quem se e federais, governadores e Presidente da Re-
destina tal discurso. Desta forma, o falante e o pública, o que implicou a mobilização de di-
lugar do falante determinam o conteúdo das versas estratégias de marketing, que parecem
figurações heróicas. Por outro lado, o receptor ser cada vez mais indispensáveis para a garan-
destas construções/fabricações/invenções das tia da vitória de um candidato. O jingle, repe-
figurações heróicas não poder ser concebido tido à exaustão em barulhentos carros de som
como um mero receptáculo. Existe um espaço pelas ruas das cidades tocantinenses, acaba
de interferência do interlocutor. Há que se por ser memorizado, para o que contribui ain-
considerar ainda que não há um sujeito cons- da a própria simpatia pelo ritmo musical.
ciente de um lado, capaz de manipular um Como predomina no gosto popular da região
sujeito inconsciente e alienado na outra ex- o forró, os candidatos souberam disso tomar
tremidade. A ideologia atravessa os sujeitos partido, apresentando em suas campanhas a-
(de ambos os lados) que não detêm de contro- nimadas composições. Cruzando inúmeras
le consciente sobre o que se enuncia, sobre as vezes as mesmas ruas, os carros instauravam
implicações ideológicas do que seu dizer pro- uma espécie de debate em campo aberto,
põe. Retomando Bakhtin (1995), temos que a quando, como ocorre com os repentes nordes-
interação é a realidade fundamental da lin- tinos, uma composição dialogava, respondia,
guagem: as trocas interlocutivas constroem-se provocava a outra. Caberia, pois, ao eleitor,
mediante a negociação de valores, de senti- verificar a consistência das idéias expostas, a
dos, na remissão a outros dizeres, na atualiza- melhor argumentação, a resposta mais con-
ção de um imaginário historicamente compar- vincente, atribuir estatuto de credibilidade a
tilhado. esta ou àquela fala, analisando a “verdade”
Na perspectiva retórica, estamos dian- dos versos.
te de um sujeito que manipula conscientemen- Para nossas reflexões, escolhemos um
te recursos tendo em vista a adesão do inter- dos jingles do candidato Siqueira Campos. Na
locutor. Na perspectiva da AD, não há essa história do Estado do Tocantins, Siqueira é
autonomia na construção da persuasão. A efi- um dos personagens que recebe maior desta-
cácia depende, pois, da inscrição do dizer que. Muitos a ele atribuem a própria respon-
numa dada formação discursiva, que prescre- sabilidade pela “criação” do Estado, em 1988,
ve o que pode ou não ser dito, bem como o tendo em vista sua atuação como senador e,
modo como as palavras aí significam. Persua- posteriormente, como governador. Nesse pe-

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ríodo, envia cartilhas às escolas, nas quais se no imaginário social. Na composição, a opo-
narra a luta pela emancipação do Estado. No sição bezerro versus boi velho alude à relação
texto da cartilha e nas imagens que a ilustram, juventude/inexperiência versus velhi-
Siqueira surge como uma espécie de herói que ce/experiência. Assim, o boi velho teria me-
representa os interesses do povo esquecido lhores condições de governar o Tocantins
pelo poder público no então norte de Goiás. porque sabe como fazê-lo, tem grande lastro
O jingle escolhido é constituído por político, enquanto o opositor é bezerro, ani-
três estrofes e um refrão que inicia a compo- mal ainda novo, que ainda mama, submisso e
sição: dependente.
Ainda considerando a cena nessa nar-
“Mamãe, eu já vou rativa política, a composição atualiza novos
mamãe, eu vou já sentidos para o verbo mamar. É comum a ex-
vou votar 45 pro Siqueira retornar.” pressão “mamar nas tetas do Estado”, isto é,
apropriar-se indevidamente dos recursos pú-
Temos aqui um enunciador projetado blicos para benefício próprio. Ao bezerro se
no texto em 1ª. pessoa (eu), que, como eleitor, associa agora a imagem de corrupção, o que é
comunica sua decisão de votar em Siqueira. reiterado em outros momentos do jingle:
Ao longo do texto, esse enunciador deixa cla-
ra a existência de uma disputa entre dois can- “Não voto em marajá
didatos, o que apóia em seu dizer, Siqueira, e (...) Dar lapada no bezerro
o seu opositor, Marcelo Miranda1, a ser des- que ganha 28 mil
qualificado para o cargo. Caberia, assim, aos (...) Eles têm medo da espora e do chicote
demais eleitores, a identificação com os dis- que o Siqueira está guardando
cursos que esse “eu” passa em seguida a arro- pra bater em marajá.”
lar, aoncorando sua decisão. Não há, pois,
projetada de forma direta uma enunciação as- Aqui surge outra expressão que alude
sumida pelo ator candidato, que se encontra à corrupção, a do marajá. Na política brasilei-
aqui na posição de não-pessoa, assunto de que ra, a figura do marajá surge nos anos 80 como
se fala, ausente da cena enunciativa. Ainda adjetivação para os políticos que recebem al-
projetado no texto está o “tu”, com quem o tos salários, beneficiando-se do poder para
locutor-enunciador dialoga: Preste atenção, garantirem por força do aparato legal salários
amigo compositor. Este locutor representaria, não condizentes com o exercício do cargo.
assim, o eleitorado de Siqueira, falando em Em 1989, Fernando Collor elege-se presiden-
nome desses eleitores e, do mesmo modo, por te como “caçador de marajás”, preconizando
extensão, em nome do próprio candidato. para si o papel de moralizador da política na-
Na segunda estrofe do refrão, surgem cional. Na fala do enunciador projetado no
dois novos versos: jingle, Siqueira vai bater em marajá, fazendo
uso de espora e chicote. Trata-se, pois, de um
“Dar lapada no bezerro sujeito que pretende moralizar a política pelo
que ele pára de mamar.” emprego da força, enunciando, pois, por um
processo polifônico (Bakhtin), o modo como
No diálogo entre as composições, os se dá a gestão pública no país e o rigor com
nomes dos candidatos com maior número de que deve ser combatida a corrupção: bater,
votos são substituídos pelas metáforas bezer- lapada, espora, chicote, metáforas que mais
ro (correspondendo ao oponente, Marcelo Mi- uma vez remetem ao universo da pecuária,
randa) e boi velho (Siqueira Campos). No ce- base econômica do estado, e ao caráter das
nário econômico, em que a produção pecuária relações de poder e força aí legitimadas.
responde como fundamental fonte de renda Há, porém, aqui, uma coincidência
para o Estado, o emprego de expressões como que aproxima os opositores. Nos versos Pois
essas configura adesão a elementos presentes quem mama é bezerro / Que foi boi velho

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quem criou, identificamos a existência de um do o raciocínio: a lapada é do voto. Mais uma


contrato inicial entre os dois personagens po- vez, a argumentação deixa espaço para dúvi-
líticos. O bezerro seria uma “criação” de Si- das em relação ao comportamento de Siqueira
queira Campos, uma vez que este o teria in- no poder, no uso que fará da espora e do chi-
troduzido na política como uma espécie de cote, que funcionam aqui como uma mostra
continuador de suas propostas, aliado político. de poder e intimidação. Pelas histórias que se
A partir desses elementos, podemos constatar associam ao comportamento intransigente e
que a dissidência não se dá necessariamente intempestivo de Siqueira, a argumentação pe-
no plano das concepções políticas e ideológi- ca por mais uma vez lembrar que existem mo-
cas, pelo menos num plano inicial. Se o inte- tivos para intranqüilidade, justificando o pe-
resse do enunciador locutor é a de denegrir o dido do locutor: Fique tranqüilo.
opositor, Marcelo Miranda, valorizando as- Como se verifica, a persuasão preten-
pectos positivos de Campos, aqui vemos que dida pelo enunciador esbarra em algumas
a estratégia argumentativa compromete o se- contradições, que vêm à tona em sua fala.
gundo. Siqueira é quem “cria” Miranda e o Pretendendo elevar Siqueira e denegrir o opo-
que podemos ler na narrativa é a ocorrência sitor, o enunciador acaba trazendo à luz ele-
um momento de ruptura entre os dois. A idéia mentos polêmicos, que poderiam compro-
de continuidade e similitude é ainda reforçada meter o próprio Siqueira. Retomando Orlandi
pelas próprias metáforas. O bezerro de hoje é (1999), lembremos que são as formações dis-
o boi de amanhã, ambos compactuam de uma cursivas que prescrevem o que pode ou não
mesma essência, distanciando-se apenas pelo ser dito. Atualizando discursos que alcança-
aspecto temporal. O verso, portanto, em vez ram legitimidade, o que pode ser polêmico e
de servir para reiterar a diferença dos oposito- contraditório deixa de sê-lo na medida em que
res, serve para aproximá-los, confundi-los, se verifica a filiação a um dado discurso do
mostrando que não falam e legislam de dife- qual retira sua lógica. Desse modo, o que o
rentes lugares. enunciador atualiza na figura de Siqueira é a
Na segunda estrofe, ressalta-se o cará- do político empreendedor, mas de mão forte,
ter empreendedor de Siqueira: com o qual parcela da população se identifica.
O caráter autoritário não assusta e, de algum
“Ai, que saudade modo, é determinante para o culto a sua figu-
que eu tenho das grandes obras ra. Num país em que a democracia ainda en-
o que fez de nosso Estado gatinha, a concentração de poder ainda é vista
o mais lindo do Brasil” como aceitável e natural, legitimada pelo dis-
curso dominante. Siqueira representa a ala
Deixando subentendido que, no go- pecuarista do Estado, os empresários do agro
verno de Miranda, nesse momento buscando o negócio. Votar nele é, assim, dar continuidade
segundo mandato consecutivo, as grandes a um projeto econômico, que faz o Estado a-
obras estariam ausentes. Seria Miranda o ma- pontar no cenário nacional como região pro-
rajá, uma vez que seu salário seria de 28 mil, missora, atraindo levas de migrantes que po-
devendo, pois, ser rejeitado pelos eleitores. dem ou não ler nas entrelinhas dos discursos a
Na última estrofe, a oposição ao ad- assimetria das relações de poder aí estabeleci-
versário se intensifica, incluindo agora um das, o que por esses discursos é silenciado.
outro sujeito, “eles”: Eles têm medo da espora O herói político surge, pois, como uma
e do chicote. Certamente a expressão “eles” figura um tanto decaída, mas que se sobressai
corresponde aos aliados de Miranda, derrota- como o que tem condições de fazer o que de-
dos nas urnas: Fique tranqüilo que a lapada é ve ser feito: gerar empregos, combater a cor-
do voto. Nesse momento, por efeito polifôni- rupção, fazer obras. Seus pecados são enun-
co, evidencia-se a intranqüilidade que poderia ciados, ecoando em altíssimo e bom som pe-
ser produzida no interlocutor. O enunciador las ruas do país, embora nem tudo possa ser
orienta, assim, para a tranqüilidade, explican- lido ou percebido como pecado.

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contingências e de circunstâncias que o eleitor


Considerações finais não está interessado diretamente em analisar.
A vida cotidiana assim mediada, mati-
A vida cotidiana é permanentemente zada e mitificada pelos meios de comunicação
reinventada desde os mais remotos tempos. envolve o eleitor com uma fina camada ilusó-
No mundo contemporâneo isso se tornou um ria, superficial e frágil segurança social, que
axioma e um anátema. Os meios de comuni- para ele nem sempre é suficiente. Neste qua-
cação de massa, os mass mídia reelaboram os dro, o herói ficcional e o pseudo-herói políti-
conceitos e noções que o homem tem de si e co se fundam e fundem. Aparecem como os
dos “outros”. Estas percepções que são cons- salvadores e protetores de eleitor consciente
truídas diariamente conduzem a reelaboração de sua condição sensivelmente insegura. Isso
do próprio homem. As “sociedades anôni- não significa dizer que o eleitor seja uma ma-
mas”, as sociedades plurais, pulverizadas e rionete ou fantoche nas mãos da mídia, do
fluidas do mundo contemporâneo abriram um governo, dos sistemas sociais e muito menos
enorme espaço para essa reelaboração do ho- dos políticos. O eleitor sabe quem é quem na
mem. Nesse espaço aberto agem sem freios os dinâmica social. Apenas joga o jogo. Constrói
meios de comunicação de massa provocando um conjunto de princípios e valores que com-
a sensação de participar e de intervir ilimita- põem uma cidadania, no caso brasileiro, uma
das. Esta digressão tem o propósito de colocar cidadania fragmentada e parcial, pois a mitifi-
em questão o seguinte: tanto em sociedades cação da dimensão política não é total.
orientadas pelo capital como em sociedades A célebre frase dá o tom: “a César o
não explicitamente orientadas por ele temos que é de César, a Deus o que é Deus” ainda
uma mídia que constrói, fabrica e inventa he- com o intuito de polemizar e problematizar a
rói políticos. Os sistemas sociais em que o figura do herói propomos aqui um reflexão
eleitor vive é apenas um elemento a mais para final com base nas reflexões de Michel Maf-
compreendermos o processo de mitificação da fesoli, com seu Elogio da razão sensível
dimensão política. Os sistemas sociais são (1998). Este autor afirma que é preciso retor-
elementos nada desprezíveis para essa com- nar à vida cotidiana do homem comum e ao
preensão. Mas pensamos que a mitificação da seu senso comum de realidade. É preciso ob-
dimensão política corresponde simetricamente servar e compreender como o senso comum
aos desejos e anseios de proteção, amparo e constrói a sua compreensão do mundo sensí-
conforto dos próprios eleitores. Isto é, diante vel, i.e., da realidade, propondo uma fenome-
de um mundo com valores essenciais frag- nologia da vida cotidiana.
mentados as pessoas buscam segurança, pro- O século que se inicia exige essa fe-
teção, amparo. Nos discursos políticos, essa nomenologia da cotidianidade para entender-
tônica está presente. mos as figurações heróicas e seu estrondoso
Os discursos políticos mobilizam ain- sucesso e popularidade. Podemos dizer que as
da outros valores e princípios que os tornam figurações heróicas são mistificadoras, reifi-
creditáveis ou pelo menos passíveis de crédi- cadoras e alienantes, no entanto, elas perma-
to. Um exemplo, dentre tantos, o apelo a necem e se multiplicam vigorosamente. À
Deus, ou mais amplamente, aos sentimentos guisa de conclusão e ao mesmo tempo nada
religiosos e espirituais dos eleitores, como concluindo, cabe perguntar: elas não são o
vimos se acionados por Bush como justifica- alimento de que precisamos para suportar o
tiva para a invasão do Iraque. Novamente, banal, o ritual rotineiro e a insignificância de
estamos diante de uma teia de discursos me- nossas vidas intimas e privadas? Poderíamos
diados e matizados pelos meios de comunica- viver sem as figurações heróicas? Por que as
ção. O discurso político passa a ser mais um figurativizações heróicas ainda fazem sentido
produto do mercado de idéias. É vendido, do- na vida do homem contemporâneo?
ado, emprestado, permutado em função das
Referências bibliográficas

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Mussalim, F. (2001). Análise do discurso.


Althusser, L. (1984). Ideologia e aparelhos Em: Mussalim, F. e Bentes, A.C. (Orgs.). In-
ideológicos do Estado. Lisboa: Presen- trodução à lingüística: domínios e fronteiras
ça/Martins Fontes. (pp. 101-142). Vol.2. São Paulo: Editora Cor-
Bakhtin, M. (1995). Marxismo e filosofia da tez.
linguagem. 7ª Ed. São Paulo: HUCITEC. Orlandi, E.P. (1999). Análise do discurso:
Castro, H. (1983). Ideologia da obra literá- princípios e procedimentos. Campinas: Edito-
ria. Rio de Janeiro: Editora Presença. ra Pontes.
Foucault, M. (1999). A ordem do discurso. Orlandi, E.P. (2001). Discurso e texto: forma-
(Trad. L.F.A. Sampaio). 5ª Ed. São Paulo: ção e circulação dos sentidos. Campinas:
Editora Loyola. Editora Pontes.
Maffesoli, M. (1998). Elogio da razão sensí-
vel. (Trad. A.C.M. Stuckenbruck). Petrópolis:
Editora Vozes.

Notas

(1) É importante lembrar que para o cargo de governador concorriam outros candidatos, aos quais ao jingle não faz
menção. Esse apagamento dos demais concorrentes também é significativo para compreender as relações de poder no
Estado.

Anexo

Jingle de campanha eleitoral no Tocantins, eleições 2006

Mamãe, eu já vou
Mamãe, eu vou já
Vou votar 45
Pro Siqueira retornar.
Refrão Mamãe, eu já vou
Mamãe, eu vou já
Dar lapada no bezerro
Que ele pára de mamar.

Eu sou capaz.
Eu não quero confusão,
Não voto em marajá
Nem pra ganhar um milhão.
1
Preste atenção, amigo compositor,
Pois quem mama é bezerro
Que foi boi velho quem criou.

Ai, que saudade,


Que eu tenho das grandes obras
O que fez do nosso Estado o mais lindo do Brasil.
2 Chama Siqueira pra botar as coisas em ordem
Dar lapada no bezerro
Que ganha 28 mil.

Eles têm medo da espora e do chicote


Que o Siqueira ta guardando

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Pra bater em marajá.


3 Fique tranqüilo que a lapada é do voto
Nas costas desse bezerro
Que vai parar de mamar.

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Submetido em 13/10/2007 | Revisado em 29/11/2007 | Aceito em 29/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

Infância, cinema e leitura: um tripé viável


Childhood, cinema and reading: a possible tripod

Lovani Volmer, a, b e Flávia Brocchetto Ramos, a, c


a
Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil;
b
Centro Universitário Feevale, Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, Brasil; cUniversidade de
Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

Resumo

A indústria cultural assimilou o público infantil, de modo que, na atualidade, há, cada vez mais, oferta
de produtos culturais voltados para a infância e, por conseguinte, uma preocupação em torno desses
produtos. O presente artigo, nesse sentido, objetiva analisar, a partir de pesquisa realizada com 4 cri-
anças, procedimentos empregados durante sessão de filme infantil – Shrek 1. Buscou-se refletir sobre
os sentidos produzidos a partir do seu enredo e como percebem a desestereotipização de conceitos
preestabelecidos pela sociedade vigente. Para tal, apresenta-se um breve estudo acerca da produção
cultural infantil, a contextualização do filme, as observações e comentários das crianças, acompanha-
dos da análise propriamente dita. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 31-39.

Palavras-chave: infância; produção cultural; produção de sentidos.

Abstract

The cultural industry got the children in a way that, nowadays, it is growing the offering of cultural
goods to that public and the worries about these products, as well. This article aims to analyze, from a
research dare with 4 children´s, the processes that happened during a children´s film session – Shrek
1. We wanted to think about the senses produced from the plot, and also how the children perceive the
undo of stereotyped concepts in the society today. Thus, we present a brief study about children´s cul-
tural productions, the film contextualization, the comments and observations from the kids, followed
by analyzes. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 31-39.

Key Words: childhood; cultural production; construction of meaning.

1. Introdução história, passou por muitos processos. Inici-


almente, os homens comunicavam-se entre si
A comunicação humana, ao longo da apenas oralmente, depois veio a escrita, a cul-
 - L. Volmer é Mestranda em Letras (UNISC), Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), Especialista em Informática na Educação. Atua como Professora (Escola de Educação Básica Fee-
vale – Escola de Aplicação do Centro Universitário Feevale), onde também atua como Professora no Curso de Letras
e no Centro de Idiomas. Endereço para correspondência: Rua Gessé Ávila de Souza, 490, Bairro Independênia, São
Leopoldo, RS 93020-290. Telefone: 0XX(51) 3588-7352. E-mail para correspondência: lovaniv@feevale.br. F.B.
Ramos é Doutora em Teoria da Literatura (PUC-RS). Atua como Professora do Departamento de Letras (UNISC) e
na UCS. Atua ainda como Professora na Pós-graduação (Mestrado em Letras – UNISC). E-mail para correspondência:
ramos.fb@gmail.com.

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tura impressa e hoje estamos em plena cultura eventos, porém, nenhum laço amoroso
eletrônica. O tratamento dispensado às crian- os aproximava. A nova valorização da
ças, igualmente, passou por muitos processos infância gerou maior união familiar,
e hoje, cada vez mais, há uma preocupação mas igualmente os meios de controle do
em torno de produtos culturais voltados para a desenvolvimento intelectual da criança
infância. e a manipulação de suas emoções.”
Nesse ínterim, o presente estudo pre- (Zilberman, 1998:15)
tende analisar, a partir de observação realiza-
da com 4 crianças, a leitura que fazem de um Como podemos ver, essa nova con-
filme a elas dirigido – nesse caso, Shrek 1, cepção de infância não considera mais a cri-
que sentidos produzem a partir do seu enredo ança como um adulto em miniatura, quando o
e como percebem a desestereotipização de que era útil para um adulto também o seria
conceitos preestabelecidos pela sociedade vi- para a criança. A realidade do infante é dife-
gente. Com o intuito de elucidar tais questões, rente da do adulto, “assim como a sua mente
apresentar-se-á um breve estudo acerca da não é a mente de um adulto em escala menor”
formação cultural da criança, a contextualiza- (Vigotski, 2003: 12); é todo um processo, um
ção do filme, as observações e comentários modo de vida que leva a criança a passar gra-
das crianças, acompanhados da análise pro- dativamente de uma posição subjetiva e ego-
priamente dita. Os dados discutidos no artigo cêntrica para outra, mais objetiva e científica.
nascem da análise de uma situação familiar Esse processo é definido por Piaget (1980),
em que 4 crianças e um familiar assistiram a como períodos de desenvolvimento, que, na
um filme e, para fins de análise, seguem prin- sua concepção, seriam quatro: período sensó-
cípios do estudo de caso, uma modalidade de rio-motor (0-2 anos), período pré-operacional
pesquisa qualitativa que vem ganhando cres- (2-7 anos), período operacional-concreto (7-
cente aceitação na área da educação. 11 anos) e período de operações formais (11-
15 anos).
2. A formação cultural da criança Na atual sociedade capitalista em que
vivemos, não é equivocado afirmar que a
A concepção de infância, tal como a concepção de infância está diretamente rela-
conhecemos, data do final do século XVII, no cionada à classe social a que a criança perten-
início da formação da burguesia, e caracteriza ce e, nesse sentido, a sua formação cultural
a criança, em diferentes contextos históricos, depende também desse fator. Assim, poderí-
como um vir-a-ser (Ketzer, 2003), ou seja, o amos dizer que as crianças burguesas são ins-
mundo do adulto se diferencia significativa- trumentalizadas para dirigir a sociedade e as
mente do mundo da criança. Essa realidade, crianças da classe trabalhadora formadas para
porém, nem sempre foi assim; até a Idade o trabalho; a cultura é coisificada, tornando-se
Média não havia nem mesmo um vocábulo produto que serve tanto para a distinção de
específico para designá-la, era vista como um classes, como para a alienação e dominação
adulto menor e o esforço social consistia em das maiorias. A cultura aparece como sendo
integrá-la o mais rápido possível na vida adul- simplesmente o resultado de um processo, a
ta (Merten, 2003). A esse respeito, podemos, herança social, o dado acabado, o objeto está-
ainda, destacar Zilberman: tico. Os produtos culturais seriam a expressão
de um modo de vida determinado que, en-
“Antes da constituição deste modelo quanto tal, se explicam e se justificam. Redu-
familiar burguês, inexistia uma conside- zido a produto das relações sociais, não se
ração especial para com a infância. Esta incluiriam no conceito de cultura nem as pró-
faixa etária não era percebida como um prias relações sociais nem os seus determi-
tempo diferente, nem o mundo da crian- nantes (Perroti, 1990). A coisificação da cul-
ça como um espaço separado. Pequenos tura determina a inserção desta no mundo da
e grandes compartilhavam dos mesmos produção capitalista, na qual se quantificam,

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secularizam, normatizam e mercantilizam os de produtos timbrados com o nome dos mais


bens produzidos nas relações de trabalho hu- novos ídolos infantis da moda. Um exemplo
manamente significativas. Desse modo, a cul- dessa produção cultural para crianças é o fil-
tura exerce uma função domesticadora e re- me Shrek, com o qual a DreamWorks firma-se
pressiva nas sociedades divididas em classes, como produtora de filmes infantis da melhor
exercendo o papel de veiculação dos conteú- qualidade e cujo diferencial está no uso de
dos ideológicos das classes dominantes para recursos de computação que torna os perso-
todas as classes sociais. nagens, visualmente, quase reais. Eles têm
Nesse contexto, a criança assume o movimentos e recriações de músculos, pele,
papel de consumidora de bens culturais im- ossos e cabelos.
postos socialmente, pois somente assim pode-
rá tornar-se um “ser humano evoluído”, adap- 3. O filme Shrek
tado às regras da sociedade e capaz de assu-
mir suas funções sociais. Conforme Umberto 3.1. O enredo
Eco (1976), criam-se “estruturas de consola-
ção”; oferece-se à criança a possibilidade de Em Shrek 1, é contada a história de
ela viver através de produtos culturais aquilo um ogro solitário, Shrek, que vive em um
que a expansão capitalista lhe nega no real: o pântano distante e vê, sem mais nem menos,
roubo do espaço e o bloqueio do lúdico – ten- sua vida ser invadida por uma série de perso-
ta-se compensar o real com o simbólico. Em nagens de contos de fada, como três ratos ce-
outras palavras, a indústria cultural, que ajuda gos, o lobo de Chapeuzinho Vermelho disfar-
a construir significados simbólicos, encontra- çado de vovó, três porquinhos, Pinóquio, sete
se intimamente vincu-lada aos ditames impos- anões e a Branca de Neve, fadas... Todos fo-
tos pelas leis de mercado. ram expulsos de seus lares pelo maligno Lor-
Com o advento do neoliberalismo e da de Farquaad. Determinado a recuperar a tran-
globalização do capital, o mercado passou a qüilidade de antes, Shrek resolve encontrar
incorporar todos os segmentos da sociedade Farquaad e com ele faz um acordo: todos os
sob a lógica do consumo, desde recém- personagens poderiam retornar aos seus lares
nascidos até idosos, independente de etnia, se ele e seu amigo Burro resgatassem uma
raça, credo, classe ou gênero. O mercado ob- bela princesa, prisioneira de um dragão, com
serva no público infantil um consumidor po- quem Lorde pretendia se casar. O filme em
tencial de mercadorias culturais e não cultu- questão foge, em alguns pontos, de estereóti-
rais, criando, dessa forma, condições para se pos da sociedade; conceitos, comportamentos
consolidar uma rede de comércio que atenda a já estabelecidos socialmente são aqui contra-
demanda de consumo desse novo público. Es- postos. Sob esse aspecto, poderíamos até con-
se mercado infantil constitui-se desde produ- siderar Shrek como um conto de fadas moder-
tos tradicionais (brinquedos, livros) até a a- no; oferece ao espectador a possibilidade de
daptação de produtos adultos e de consumo rever conceitos. A princesa Fiona esperava
familiar. A indústria cultural assimilou o mer- que o príncipe que a encontrasse lhe recitasse
cado infantil, que tem se expandido desde a um poema épico, mas Shrek apenas a põe
década de 1980, para a comercialização de embaixo do braço e sai correndo para fugir do
bens simbólicos através da segmentação dos dragão, sem romantismo. A Princesa Fiona,
meios de comunicação, por exemplo. Nesse por sua vez, apesar de ainda ter certa fantasia
sentido, os produtos culturais comercializados em relação ao cavaleiro que a salvaria, tam-
para este público formam uma cadeia inesgo- bém é uma mulher decidida, dá golpes para
tável de produção e massificação de mercado- fugir dos inimigos, salta e até arrota, diferen-
rias. Exemplo disso são os desenhos anima- temente das princesas apresentadas nos contos
dos explorados pela mídia, produzidos a partir de fadas, que eram totalmente frágeis e ro-
de agenciamento de empresas que irão elabo- mânticas. O final, como os clássicos contos de
rar, produzir e comercializar uma infinidade fadas, é feliz e alerta que as diferenças entre

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as pessoas devem ser respeitadas: Shrek e Fi- Shrek é um exemplo de tecnologia de


ona, após passarem por muitos desafios, fi- ponta, mas nem por isso um velho conhecido,
cam juntos, como ogros, e são felizes para o livro, introdutor da produção cultural para a
sempre. Casam-se numa bela cerimônia com a criança e uma das primeiras manifestações
presença animada das personagens de contos baratas e acessíveis de entretenimento (Lajolo
de fadas que haviam invadido o pântano e, a e Zilberman, 1996), foi esquecido. Em Shrek
seguir, em uma carruagem, vão para a lua-de- 1, já nas cenas iniciais, na imaterialidade da
mel. tela, surge o livro, de capa dura e vermelha,
O esquema tradicional do conto mara- cujas páginas escritas e ilustradas abrem-se e
vilhoso, proposto por Propp (1984), em que vão sendo viradas, acompanhadas de uma voz
há herói, auxiliar, antagonista e princesa, é que diz:
subvertido aqui. O príncipe, nessa história,
assume o papel de antagonista. O ogro Shrek, “Era uma vez uma linda princesa, mas
que seria o antagonista é o herói da narrativa. havia um terrível feitiço sobre ela, que
A princesa Fiona não segue o padrão de prin- só poderia ser quebrado pelo primeiro
cesa que temos no nosso imaginário – é gor- beijo do amor. Ela foi trancafiada num
da, morena, baixa, cabelos curtos – e trans- castelo, guardada por um terrível dragão
forma-se em ogra. O burro, animal carac- que cuspia fogo. Muitos bravos cavalei-
terizado pela falta de iniciativa, é o auxiliar do ros tentaram libertá-la dessa horrível
herói Shrek. Há uma subversão da estrutura prisão, mas ninguém conseguiu. Ela es-
clássica dos contos de magia apontada por perou, sob a guarda do dragão, no quar-
Propp, já os personagens dessa narrativa mo- to mais alto da torre mais alta o seu
derna correspondem a outra esfera de ação. verdadeiro amor e pelo primeiro beijo
de seu verdadeiro amor.”
3.2. Shrek 1 sob a ótica da criança
Neste momento, uma enorme mão (de
Como as crianças lêem o filme? Que senti- Shrek) arranca a última página narrada e faz o
dos produzem a partir do enredo? Como per- seguinte comentário: “Como se isso fosse a-
cebem a desestereotipização de conceitos pre- contecer”. Quando as crianças foram indaga-
estabelecidos pela sociedade vigente? Com o das a respeito de isso ser possível de aconte-
intuito de elucidar tais questões, 4 crianças - cer ou não, D disse que não poderia ser real,
aqui identificadas por letras do alfabeto: A (3 pois “ogros não existem”, mas B contrapôs,
anos), B (5 anos), C (6 anos) e D (9 anos) - ponderando: “Ah, mas naquela época podia
assistiram ao filme. Durante a sessão houve existir, na época que existia Dinossauro”. A
interlocução como os sujeitos, a partir de um ressalta que existe, pois estava na TV; C disse
roteiro previamente estabelecido, focando os que não sabia. Quanto à pergunta de onde
itens supracitados, mas com flexibilidade para mais poderia vir a história, a princípio, se ca-
valer-se das contribuições espontâneas das laram, então foram indagadas se essa história
crianças. Cabe destacar que a pesquisadora poderia sair de um jornal, por exemplo. Ime-
possui grau de parentesco com as crianças, de diatamente D disse que não; “jornal tem notí-
forma que o filme foi assistido num ambiente cia de verdade, livro tem história”. B concor-
totalmente descontraído e os sujeitos tiveram dou e acrescentou: “livro conta história real e
total liberdade para se manifestar. Toda a ses- não, porque tem coisa que existe e que não
são foi gravada em audiotape e, posteriormen- existe, como ogro, sereia, isso é tudo lenda”.
te, transcrita. Destaca-se que A e C não fre- Então, a pesquisadora perguntou o que era
qüentam a escola, B está na escola desde os 4 lenda. D disse que é o que não existe e que
anos e D passou para a 4ª série. O filme foi nunca vai existir. B, que havia estudado a res-
escolhido por ser considerado emancipatório e peito desse assunto na Educação Infantil, e-
por responder as questões propostas pelo es- xemplificou: “É tipo a sereia, ela cantava e
tudo. levava os homens para o fundo do mar e de-

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vorava eles e daí cantava de novo, e o curupi-


ra e...”. D concordou com o exemplo. A ar- D: Oh, o espelho mágico da Branca de Neve.
gumentou que poderia sair do computador e, B: É, tem uma rainha má que pergunta: “es-
ao ser interrogada acerca do porquê, apenas pelho, espelho meu, existe alguém mais linda
respondeu: “porque sim, como o livro do Po- do que eu?” (ao mesmo tempo em que falava,
oh” (vale explicar que A brinca no computa- interpretava e era imitada por A).
dor com livros digitais, entre eles o do Pooh).
C, mais uma vez, ficou calada. Aqui, pode- Alguns estudos apresentados por Ca-
mos perceber a noção que essas crianças já parelli (1990), acerca da fantasia e da realida-
têm acerca dos gêneros textuais, que, para de no contexto infantil, mostram que com a
Marcuschi (2003), são propiciados pelas no- idade de 3 anos inicia-se o fascínio pelo mo-
vas tecnologias, o seu uso e suas inferências vimento e as crianças já podem seguir um en-
nas atividades comunicativas diárias, especi- redo simples, começam a distinguir as ações
almente nas ligadas à comunicação. do seu mundo cotidiano para lentamente inte-
À medida que o filme ia se passando, grá-los no mundo imaginário. Nessa idade, a
os comentários das crianças eram espontâneos criança seleciona aquilo que quer ver e tem
e muito apegados a detalhes, tais como: forte tendência a imitar aquilo que lhe desper-
ta a atenção, o que prossegue até os 4, 5 anos,
B: Oh, ele escova os dentes e a pasta de dente quando a criança está afirmando seu próprio
dele é veneno de bicho. eu. Em um processo de evolução contínuo, a
A: Eca, a pasta de dente não é de morango. criança percebe, aos poucos, que os filmes
que vê pertencem apenas ao domínio da fan-
Cabe destacar que a criança atribui tasia. Essa tarefa, no entanto, não é fácil, se
sentido às coisas a partir das suas vivências, levarmos em consideração que muitos adultos
ou seja, o sentido nasce a partir do lugar do enfrentam dificuldades em separar a realidade
leitor, sendo que o que é diferente do seu da ficção quando, por exemplo, assistem a
mundo conhecido não é bom; o conceito do alguma novela. Constatamos que B, com 5
que é certo ou errado, do que pode ou não tem anos, está na fase de transição, pois ora con-
como pressuposto o mundo vivido. segue perceber que é “apenas um filme”, ora
No momento em que as personagens diz que algo não é possível “porque não exis-
de contos de fada invadem o pântano de S- te”.
hrek, as crianças foram indagadas acerca de Continuando a conversa sobre a Bran-
serem conhecidas ou não. D disse que já lera ca de Neve...
um livro do Pinóquio e outro da Branca de
Neve. B foi além em sua resposta: “Ah, todos D: A rainha era má porque queria matar a
são coisas, coisas, ah, assim, de contos de Branca de Neve.
fadas; a Branca de Neve, os três Ratinhos, B: É, ela quer ser a mais bela de todas e quer
ah, de livros. Ah, e eu acho que o Shrek já leu que todos se apaixonem por ela.
todas essas histórias, por isso que ele sabe
quem são, ou a mãe dele, a profe contou”. Aqui, a presença das personagens de
Indagados se ogro ia à escola, B prontamente contos de fadas só foi percebida pelas crian-
disse que sim, pois ele sabia ler. Aí podemos ças, porque a leitura desses contos fora feita
perceber claramente a função social da escola e/ou contada/ouvida anteriormente ao filme,
na concepção dessa criança, ou seja, ensinar a caso contrário não se perceberiam essa inter-
ler. Além disso, cabe destacar nesse comentá- textualidade. Assim, a leitura, de uma ou ou-
rio, mais uma vez, a vivência da criança, que tra forma, faz parte do mundo dessas crianças.
atribui a contação de histórias à mãe ou à Destaca-se que C convive num ambiente to-
“profe”, tal qual acontece em seu cotidiano. talmente adverso; não recebe estímulos acerca
Quando apareceu a Branca de Neve, B e D de leituras ou um acompanhamento mais dire-
dialogaram a respeito: to no que diz respeito à sua educação; seus

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conhecimentos advêm da famosa babá eletrô- mundo feita por essas crianças, além do quan-
nica, ou seja, ela apenas recebe, de forma pas- to assuntos tratados pela mídia fazem parte do
siva, aquilo que a TV veicula, o que reflete seu cotidiano, especialmente tomando como
nas suas contribuições, que são poucas. Ape- referência o comentário de B, que também
sar de ser mais velha que B, cognitivamente, mostra certo egocentrismo, ou seja, “eu” sou
está aquém. Aí, podemos perceber o quanto o padrão, “se for como eu está bom”.
desenvolvimento humano dá-se de fora para Assistindo às façanhas de Shrek e Fio-
dentro; a aprendizagem promove o desenvol- na, quando estes estavam dirigindo-se ao cas-
vimento, somos o resultado da interação com telo de Lorde Farquaad, as crianças acompa-
o meio (Vigotski, 2003). Em outro texto, esse nhavam entusiasmadas a melodia da trilha
mesmo estudioso afirma que “a atividade cri- sonora e perguntavam-se, por vezes, como tal
adora da imaginação se encontra em relação coisa era possível. B, inclusive, disse que pe-
direta com a riqueza e a variedade da experi- diria para seu pai fazer um churrasco de ratos,
ência acumulada pelo homem, porque esta pois parecia gostoso.
experiência é o material com o qual constrói Quando aparece o castelo de Lorde
seus edifícios de fantasia” (Vigotski, Farquaad, D imediatamente disse: “Parece
1996:17). grande, mas não é, porque o Lorde é anão,
Quando indagadas sobre quem é do mas é príncipe”. Indagada se anão não pode-
mal no filme, responderam: ria ser príncipe, B disse: “Se a princesa for
(anã), claro que sim, senão não pode; não
D: O dragão, os guardas e o Lorde Farquaad combina”. Esse comentário demonstra o
são do mal. quanto uma criança de 5 anos já tem alguns
B: É sim, eles querem matar o ogro, o Lorde preconceitos vigentes na sociedade bem ex-
quer casar com a princesa. plícitos. Possivelmente, o motivo de comentar
D: Eu torço pro Shrek, porque ele é do bem. que “não combina” deve-se ao fato de, no ge-
B: É sim “D”, ele é do bem porque briga com ral, casais serem formados por homem e mu-
os do mal e quem é do mal é amigo dos do lher, de estatura mais os menos similar. Os
mal, então ele é do bem. outros sujeitos não responderam o questiona-
mento, mas concordaram (C e D) com a res-
A e C não se pronunciaram. Cabe des- posta de B. A divertia-se, imitando algumas
tacar que A falou pouco durante a exibição de falas e rindo.
todo o filme; passou a maior parte do tempo É interessante, também, destacar a
dançando, conforme a trilha sonora. percepção das crianças sobre aquilo que não
Interrogadas a respeito da beleza de foi dito, como dados provenientes do cenário,
Shrek e Fiona, B e D consideraram o ogro bo- que o olhar permite compreender. Aqui cabe
nito por ser do bem; A disse que era feio, por- salientar a importância da visualidade; não é
que não usava roupa direito e “andá pelado é preciso falar, basta mostrar; a imagem tem
feio”; já C disse que ele era feio, porque era significados próprios, independente do texto
ogro e ogro é feio. Nesse comentário da cri- que ela acompanha (Camargo, 2003). O autor
ança, podemos perceber certo determinismo, faz referência à imagem num livro, mas cabe-
ou seja, as coisas já são preestabelecidas; o ria muito bem também para a imagem no fil-
estereótipo do que é certo e errado, do que é me:
feio e bonito, conforme os padrões impostos
pela sociedade. Quanto à Fiona, B disse que, B: O Shrek olha assim, porque ele tá apaixo-
como “ogra”, ela era mais bonita, porque daí nado.
ela não era tão magrinha, “muito magrinha é D: É sim, ele faz essa cara porque gosta da
feio, daí tem aquela doença (referiu-se à ano- princesa. Ele acha que não pode casar com
rexia e bulimia), muito gorda também, como ela porque ele é ogro, mas pode sim. Porque
eu, aí tá bom”. As outras três apenas concor- não importa, se é branco ou preto, pode ficar
daram. Aqui podemos perceber a leitura de junto, também se é separado; ela ama ele.

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Cabe salientar que os pais dessa crian- Essa constatação de B faz lembrar Iser
ça são separados, o que, mais uma vez, permi- (1996), para quem o texto ficcional contém
te-nos perceber que a leitura é feita a partir muitos fragmentos identificáveis da realidade,
dos elementos do contexto do sujeito. que, através da seleção, são retirados tanto do
contexto sociocultural quanto da literatura
B: Ela pode, mas eu nunca li uma história prévia ao texto. Assim, retorna ao texto fic-
que uma princesa casou com um lenhador, cional uma realidade de todo reconhecível,
um trabalhador, um ogro. Se ela virar ogra, posta, entretanto, sob o signo do fingimento.
ela pode. Com isso, se revela uma conseqüência impor-
tante do desnudamento da ficção; pelo reco-
Nesse comentário, fica claro, mais nhecimento do fingir, todo o mundo organi-
uma vez, que ela percebeu a subversão, mas zado no texto literário transforma-se em um
como não é algo com que se depare todos os como se. O como se significa que o mundo
dias, vê com estranhamento. Vale chamar a representado não é propriamente mundo, mas
atenção, ainda, para o seu conceito de leitura, que, por efeito de um determinado fim, deve
ou seja, ler vai além das palavras; as imagens ser representado como se fosse. Nesse senti-
também são lidas. do, como se pode ser denominado de imaginá-
rio porque os atos de fingir se relacionam com
D: Ah, mas o que adianta se casar com uma o imaginário. O mundo relacionado no texto
pessoa bonita, se ela vai trair. não se refere a si mesmo e, por seu caráter
B: É, mas é outra espécie: ogro com ogro, remissivo, representa algo diverso de si pró-
gente com gente. Pato também não casa com prio; o mundo concebido é apenas um mundo
peixe só porque nada. Ah, e o Lorde é mais possível, de um lado se diferenciando daque-
ou menos bonito. Bonito porque é príncipe; les mundos de cujo material foi feito e, de ou-
feio porque é do mal. tro, oferece uma marcação para uma realidade
a ser imaginada. Lembrando Lajolo e Zilber-
Aí, deparamo-nos com certo determi- man (1996), que fazem referência aos tipos de
nismo, ou seja, as pessoas, por exemplo, são leitor, podemos perceber aí um espectador
feias ou bonitas de acordo com a sua função capaz de estabelecer a necessária distância
social e o comportamento que têm na socie- entre o visto e o vivido.
dade, mas, por outro lado, a beleza não é vista Ao final do filme, o livro aberto no i-
como algo fútil, uma vez que a pessoa tam- nício fecha-se e o narrador conclui: “E vive-
bém é valorizada pela sua subjetividade. ram felizes para sempre”, retomando o final
As crianças percebem não apenas o dos contos de fadas. Nesse momento, D co-
que é dito, mas o que é mostrado visualmente menta: “A história começa e termina com o
no filme, de modo que o estado emocional das livro. O livro se fechou, porque no início a-
personagens é foco de observação e de co- briu. Ao invés de ler, a gente viu o filme”.
mentário: Então, foi perguntado às crianças se
haviam gostado desse final e, pelas respostas,
A: Olha, a Fiona tá triste. é possível perceber que B e D conseguiram
D: É, é porque ela ama o Shrek. estabelecer relação entre o desfecho do filme
B: Ela não pode casar com o Lorde, ela não e o seu enredo, essas crianças inseriram o tex-
gosta dele. Meu pai casou com a minha mãe to na moldura do livro; enquanto A e C ape-
porque gosta dela. garam-se apenas às cenas finais, desconecta-
C: Olha, o dragão não tá brabo porque é o das da abertura e do fechamento do filme; ati-
amor do burro. veram-se apenas à história contada, não per-
B: Ah, mas não pode, é outra espécie. Ah, cebendo o modo como se dá a conhecer.
mas é só um filme, né?!?
D: É, daí pode. D: Sim, porque o bem venceu o mal.

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B: É, o mal tem que perder, e o Shrek amava pré-requisito para serem aceitos ou não nessa
a Fiona e a Fiona amava o Shrek, então ela sociedade. A própria instituição casamento
não podia casar com outro só porque era rei. nessa classe social é questionada, quando o
A: Ah, eu gostei porque o burro fala, é legal. burro diz que “casamento de gente famosa
C: Eu gostei, porque a música é legal. não dura” – o casamento de Fiona, a princípio
era arranjado com o Lorde Farquaad. Todos
O julgamento que possibilita o gostar esses elementos possibilitam à criança um
ou não de um objeto artístico nessa etapa da olhar peculiar acerca dos valores da sociedade
vida ainda está ligado a aspectos isolados co- na qual estão inseridas.
mo um detalhe, a atuação de um personagem, Cabe destacar, ainda, que a questão
a um fragmento da ação. central que move esse estudo é como a crian-
ça lê o filme. A partir desse foco, expôs-se um
4. Tecendo algumas considerações grupo de 4 sujeitos ao filme Shrek e, frente à
situação, podemos afirmar que: o fato de o
Shrek coloca os heróis numa posição pesquisador conhecer as crianças gerou um
de autonomia em relação a uma instância su- clima de descontração, permitindo aos expec-
perior e dominadora, por isso, poderíamos tadores falar sobre o visto e o vivido; parte
considerá-lo como um exemplo de filme e- dos sujeitos reconhece a presença do livro na
mancipatório. Além disso, subverte padrões abertura e fechamento do filme, associando-o
de integração social tradicionalmente consa- ao ato de ouvir histórias; a significação do
gra-dos, uma vez que não é preciso, por e- texto dá-se a partir das vivências dos infantes,
xemplo, ser belo para ser rei ou rainha ou ser já revelando posturas preconceituosas; e, por
feliz; Fiona ama Shrek como ele realmente é e último, na discussão do visto, as posições de
vice-versa. É importante destacar que essa cada sujeito vão sendo negociadas.
desesteriotipização, como averiguado nos Na atualidade, é possível depararmo-
comentários dos sujeitos dessa pesquisa, é nos com uma oferta cada vez maior de produ-
perceptível pelas crianças, o que lhes permite ção cultural direcionada ao público infantil,
tomar contato com padrões diferentes daque- acompanhada, cada vez mais, de inovações
les que a sociedade lhes impõe a cada dia, es- tecnológicas. Os filmes, nesse sentido, podem
pecialmente por intermédio da mídia, e ques- ser uma ferramenta útil para o (auto) conhe-
tioná-los, não simplesmente e passivamente cimento das crianças e sua inserção no mun-
aceitá-los. do. É importante, porém, cada vez mais, ori-
O filme permite discutir os valores entar as crianças para ver filmes que ampliem
emergentes na sociedade, principalmente no esse olhar, esse conhecer. Para ler, seja o li-
que diz respeito às relações de dependência e vro, seja o filme – ambos objetos artísticos - o
sujeição que se estabelecem entre os indiví- interlocutor deveria pôr em ação seu imaginá-
duos, bem como do quanto somos “produto” rio, participando na figuração do universo
do meio em que estamos inseridos. Nesse sen- proposto como um co-autor, identificando-se
tido, podemos ler a sociedade e os seus valo- com os seres fictícios.
res sendo questionados; o rei, por exemplo,
não era aclamado pelo povo, mas as placas 5. Referências bibliográficas
indicavam a reação que as pessoas deveriam
ter diante do que estava sendo dito ou aconte- Camargo, L. (2003). Para que serve um livro
cendo, deixando a falsa impressão de o pode- com ilustrações? Em: Jacoby, S. (Org.). A
roso estar agradando. A própria reação de Fi- criança e a produção cultural. Do brinquedo
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tamento-padrão, digno de um rei - também cado Aberto.
remete-nos à sociedade burguesa e seus valo- Caparelli, S. (1990). Televisão, programas
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terem esse determinado comportamento como

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Lucerna.

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Submetido em 15/04/2007 | Revisado em 07/08/2007 | Aceito em 18/08/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

Lineamientos para la configuración de un programa de intervención


en orientación educativa

Limits for the configuration of a interferation ptogram in orientation

Denyz Luz Molina Contreras

Universidad Nacional Experimental de los Llanos Occidentales Ezequiel Zamora, Caracas, Vene-
zuela

Resumo

Nesta investigação reposicionamos linhas de intervenções a respeito dos presupostos teóricos, meto-
dológicos e práticos usados para a configuração de um programa de intervenção educacional nos cen-
tros escolares, salas de aula e comunidade. Da mesma forma, são definidas as linhas teóricas que ori-
entam a intervenção através de uma determinada perspectiva do conhecimento, onde demonstramos
que existe uma teoria totalmente desenvolvida, baseada em uma ampla gama de evidências empíricas
e que é factível de ser aplicada a um programa de intervenção orientado. Assim, tomamos como base
construções que direcionam as caracteristicas do o que, o por que e o como da orientação no momen-
to que a eleva à prática, através de programas dirigidos aos centros escolares e a sala de aula que te-
nham a intenção de prevenir, desenvolver, intervir e ajudar a diversidade a partir da relevância social.
© Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 40-50.

Palavras-chaves: limites; intervenção programa; orientação; atenção para a diversi-


dade.

Resumen

En la investigación nos hemos reposicionado líneas de intervención entorno a los presupuestos teóri-
cos, metodológicos y prácticos para la configuración de un programa de intervención educativa a
nivel de los centros escolares, aula y contexto comunitario. Así mismo se definen las líneas teóricas
que orientan la intervención hacía una determinada perspectiva del conocimiento, donde demostra-
mos que existe una teoría completamente desarrollada, con abundante evidencia empírica y factible
de ser aplicada a un programa de intervención en orientación. En consecuencia nos apropiamos de
constructos que direccionen el qué, él por qué y el cómo de la orientación al momento de elevarla a
la praxis mediante programas dirigidos a los centros escolares y al aula que tengan la intención de
prevenir, desarrollar, intervenir y atender la diversidad desde la pertinencia social. © Ciências &
Cognição 2007; Vol. 12: 40-50.

Palabras claves: lineamientos; intervención programa; orientación; atención a la


diversidad.
 - D.L.M. Contreras es Doctora en Diseño Curricular (Universidad de Valladolid). Actúa como Profesora Asocia-
do de la Universidad Nacional Experimental de los Llanos Occidentales Ezequiel Zamora, con estudios en Diseño
Curricular, especialista en Orientación Educativa y con Postgrado en Orientación y Docencia Universitaria. Barinas-
Venezuela, Profesora Investigadora Nivel I PPI, Ministerio de Ciencia y Tecnología. Caracas Venezuela. E-mails para
correspondência: opeiunellez@gmail.com, greyluz@cantv.net y marialacruz20@yahoo.com.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Abstract

In this investigation we repositionate intervention ways about theoretical, methodological and practi-
cal assumptions used for the configuration of an educational intervention program at the school cen-
ters, classroom and community. Similarly, the theoretical pathways are defined that guide interven-
tion through one perspective of knowledge, which demonstrated that there is a fully developed theory,
based on a broad range of empirical evidence and that it is feasible to be applied to a program of ori-
ented intervention. Thus, we take as basic constructions that directed the characteristics of what, why
and how of guidance at the time that the amounts to the practice, through programs directed to
schools and the classroom that they intend to prevent, develop, operate the diversity and help from the
social relevance. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 40-50.

Key Words: limits; intervention programs; orientation; attention to the diversity.

1. Líneas teóricas que orientan la investi- nes e impulsa el desarrollo de habilidades per-
gación sonales y sociales, necesariamente nos incli-
namos por un modelo de intervención grupal
1.1. Conceptualización de programa y de por programas como la forma más pertinente
orientación educativa de ofrecer una orientación ecológica en los
centros escolares.
La configuración de un programa de En un acercamiento al concepto de pro-
orientación educativa dirigido a los alumnos, grama, encontramos que no existe una defini-
agentes educativos y comunidad en general, ción única, al contrario, contamos con una
nos lleva a manejar una diversidad de defini- pluralidad de conceptos con elementos comu-
ciones sobre programas de orientación, que se nes.
han construido a lo largo de las últimas déca- En sentido general, un programa es un
das, y van desde concebirlos como instru- plan o sistema bajo el cual una acción está
mentos para la asistencia de la persona, hasta, dirigida hacia la consecución de una meta
asumirlos como medios que recogen el con- (Aubrey, 1982: 53).
cepto de prevención, desarrollo, atención a la Desde un enfoque similar, Riart (1996:
diversidad e intervención social. 50), entiende que programa “es una planifi-
En efecto la investigación que abor- cación y ejecución en determinados períodos
damos exige reposicionarse de conceptos y de unos contenidos, encaminados a lograr
teorías que definen la orientación educativa, unos objetivos establecidos a partir de las ne-
programa de intervención, y eleventos que cesidades de las personas, grupos o institu-
constituyen el hilo conductor del estudio para ciones inmersas en un contexto espacio-
la configuración de lineamientos finales como temporal determinado”.
principal aporte de la investigación. En el ámbito de la enseñanza, Morrill
El concepto de programa que mane- (1990), expresa que el programa “es una ex-
jamos parte de la orientación como proceso en periencia de aprendizaje planificada, estructu-
donde la escuela, familia y sociedad, han de rada, y diseñada para satisfacer las necesida-
asumir un papel activo, en la definición del des de los estudiantes”.
conjunto de actividades integradas en los ejes Con una visión sistémica, Repetto, et
de: enseñar a pensar, enseñar a ser persona, al.(1994), entienden por programa el diseño
enseñar a convivir, enseñar a comportarse y teóricamente fundamentado que pretende lo-
enseñar a decidirse, facilitan el proceso de grar unos determinados objetivos dentro del
intervención en orientación. contexto de una institución educativa.
Si consideramos a la orientación para Desde un enfoque más centrado en la
la prevención, desarrollo y atención a la di- orientación, para Rodríguez y colaboradores
versidad, que implica planificación y sistema- (1999):
tización de acciones para la toma de decisio-

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“Un programa es un instrumento rector Desde la perspectiva de la integralidad


de principios que contiene en su estruc- la orientación educativa en la escuela básica
tura elementos significativos que orien- se considera un proceso continuo que co-
tan la concepción del hombre que que- mienza en el nivel inicial y se ofrece durante
remos formar. Desde el punto de vista toda la vida. Se concibe como parte integrante
de la orientación, los programas son ac- del proceso educativo y por tanto es respon-
ciones sistemáticas, cuidadosamente sabilidad de todos los agentes educativos; pa-
planificadas orientadas a unas metas, dres, docentes, directores, comunidad y los
como respuesta a las necesidades educa- propios alumnos.
tivas de los alumnos padres y /o repre- De allí, que en la investigación asu-
sentantes, docentes, insertos en la reali- mimos, la orientación educativa como un pro-
dad de un centro.” ceso que implica promover la integración, so-
cialización y adaptación del alumno, así como
En esta misma línea, para Bisquerra ayudarlo y guiarlo hacia el conocimiento de sí
(1998), un programa es una acción colectiva mismo. La actuación orientadora en centros
de un equipo orientador para el diseño teóri- escolares no puede concentrarse al margen de
camente fundamentado, aplicación y eva- la actividad educativa ordinaria. Al contrario,
luación de un proyecto, que pretende lograr ha de incorporarse a ella, atendiendo el carác-
unos determinados objetivos dentro del con- ter personalizado de la educación y caracteri-
texto de una institución educativa, de la fami- zándose por ser global, integral y realista en
lia o de la comunidad, donde previamente se función de las necesidades de sus destinata-
han identificado y priorizado las necesidades rios.
de intervención.
Siguiendo un enfoque integral, Velaz 1.2. Elementos orientadores para la confi-
de Medrano (1998: 256) ha tratado de integrar guración de una programa de orientación
en una definición los elementos comunes que
caracterizan los programas de orientación Las líneas teóricas que se manejan en
educativa, considerando que un programa de el apartado anterior nos llevo a la realización
orientación es un sistema que fundamenta, sis- de las siguientes precisiones con respecto a
tematiza y ordena la intervención psicope- los elementos orientadores y guías para efec-
dagógica comprensiva orientada a priorizar y tos de construcción de un programa de orien-
satisfacer las necesidades de desarrollo o de tación:
asesoramiento detectadas en los distintos des- A quién va dirigido el programa? es
tinatarios de dicha intervención. fundamental precisar quienes son los benefi-
Las definiciones anteriores suminis- ciarios del programa, ya que todos los alum-
tran elementos significativos a partir de los nos tienen derecho a la orientación. Si se trata
cuales nos hemos reposicionado para cons- de un programa de prevención primaria es
truir una definición de programa dirigido a la conveniente integrar el mayor número de
prevención, desarrollo y asistencia del alumno alumnos. También, debemos tener presente a
en edad escolar. Desde esta perspectiva, el los profesores y agentes educativos, como su-
programa se concibe como un instrumento jetos claves del proceso orientador.
teórico-operativo que orienta, guía y contex- ¿Él para qué? es otro de los elemen-
tualiza el acto de orientar, en función de la tos del programa que implica delimitar los
concepción del hombre que queremos formar, objetivos: estos nos avanzan lo que se preten-
de orientación, de enseñanza y el concepto de de conseguir en un ámbito determinado, que
currículo, además de las necesidades de los puede responder a una o varias áreas del desa-
sujetos a quienes va dirigido el programa y rrollo: personal-social, escolar o vocacional.
los recursos factibles para su operacionaliza- Los objetivos generales de carácter más am-
ción. plio, se pueden pormenorizar a nivel de obje-
tivos específicos.

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¿El qué? representa los contenidos, tivos en el paradigma cualitativo, el cual


que constituyen los núcleos temáticos del otorga significado a la valoración de los com-
programa vinculados a cada objetivo específi- portamientos, experiencias y saberes de los
co. Si lo que planteamos en los objetivos es la actores que intervienen en la investigación.
formación hábitos de trabajo cooperativo, la La investigación cualitativa según,
autoestima, la promoción del aprendizaje sig- Denzin y colaboradores (1994), es “un proce-
nificativo, los contenidos deben representar so que integra actividades genéricas, interco-
estos tópicos, los cuales aportan un conjunto nectadas entre sí, que toman diferentes nom-
de elementos que facilitan el logro de los ob- bres incluyendo teorías, métodos, análisis,
jetivos que se persiguen. ontología, epistemología y metodología”. Se
¿El cómo? determina las estrategias a destaca desde la perspectiva cualitativa la
utilizar para el logro de los objetivos. Para la primacía de que su interés radica en la des-
selección de las actividades debemos tener en cripción de los hechos observados para inter-
cuenta los beneficiarios, los objetivos y con- pretarlos y comprenderlos en el contexto glo-
tenidos. Las estrategias deben ser flexibles, bal en el que se producen con el fin de expli-
dinámicas y responder a las necesidades, ex- car los fenómenos.
pectativas e intereses de quienes intervienen Dado su carácter de flexibilidad y
en el programa. creatividad, establecimos una relación dialó-
¿El con qué? tiene que ver con los re- gica con los alumnos, docentes y agentes edu-
cursos humanos, institucionales y financieros cativos captando el aspecto axiológico, los
que se disponen para la implementación del valores, que inciden en la investigación y
programa. Este elemento hace posible su eje- forman parte de la realidad, así como del con-
cución y determina el grado de compromiso texto social y cultural. En consecuencia me-
de los agentes educativos. diante la investigación cualitativa, no busca-
¿El cuándo?, obliga necesariamente al mos la generalización sino, la caracterización
establecimiento de la secuencia de ejecución a profundidad de la realidad de la orientación
del programa e incluye su temporalización ó en los centros escolares y en las aulas, así
cronograma. como, buscamos la comprensión de los casos.
Y finalmente ¿El dónde?, invita nece- Dentro de este marco realizamos una
sariamente a delimitar geográficamente y es- descripción detallada de las observaciones
pacialmente el ámbito donde se llevará a cabo mediante el registro cuidadoso de los casos
la intervención, ya sea el centro escolar, la constituidos en investigación, subrayando la
etapa educativa, el grado o los grados o la importancia de la categorización que nos
sección. permitió ir colocando la realidad en esas cate-
gorías, con el fin de conseguir una coherencia
2. Objetivos de la investigación lógica en el suceder de los hechos o de los
comportamientos que están necesariamente
• Analizar lineamientos a considerar para contextualizados y adquieren su pleno signifi-
formular un programa de intervención cado.
• Determinar el concepto de orientación En consecuencia, para nuestro estudio
educativa que manejan los alumnos y lo importante radica en captar y registrar las
agentes educativos experiencias, vivencias, actitudes, práctica y
• Definir lineamientos para la configura- significado que le atribuye el docente, los
ción de un programa de intervención en alumnos y padres a los programas de orienta-
orientación educativa ción en la Escuela Básica.
Retomando los planteamientos que
3. Metodología sustentan la investigación que abordamos,
consideramos en primer lugar la etapa pre-
La metodología que se ha empleado paratoria: esta constituye el inicio de la in-
en esta investigación se ubica según los obje- vestigación, la cual implica reflexión teórico-

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práctica estando presente la formación del que cuando empezamos a realizar las obser-
investigador, sus conocimientos, experiencias, vaciones sistemáticas contaba con experiencia
vivencias sobre los fenómenos educativos, previa producto de doce años como docente
específicamente sobre los lineamientos para de educación inicial y básica, y quince años
configurar un programa de intervención en habitando en el municipio Barinas, y tres
orientación educativa. años asistiendo a las escuelas como profesora
Una segunda etapa que corresponde del curso “Orientación Educativa”. Este cons-
a la fase reflexiva: la misma implica que el tituye un factor fundamental para la com-
investigador partiendo del marco referencial prensión y análisis de los significados y con-
de valores, conocimientos, actitudes, expe- ceptos que manejan los sujetos de estudio en
riencias y formación cultural, intenta clarifi- relación con la orientación educativa.
car y determinar el tópico de interés y descri- Como principal técnica de recolección
bir las razones por las cuales elegimos el tema de información se utilizó la observación
de indagación. Una vez que identificamos el participativa: La cual permitió a los docen-
tópico de interés, buscamos toda la informa- tes, alumnos y agentes educativos, involucrar-
ción posible sobre el mismo, estableciendo el se en su construcción y a su vez facilitó la co-
estado de la cuestión desde una perspectiva construcción a partir de los encuentros en el
amplia, sin llegar a detalles extremos dentro contexto por medio de la reflexión de las rela-
de este orden de ideas la investigación se ciones que se presentan entre la práctica pe-
apoya en la metodología cualitativa amplia- dagógica y la elaboración de significados de
mente discutida con apoyo de herramientas la orientación educativa, participando del pro-
que brinda la investigación cuantitativa para ceso de construcción descubriendo el sentido,
fundamentar la caracterización de la orienta- la dinámica y los procesos de los aconteci-
ción en los centros escolares y el aula. Y son mientos que viven los protagonistas en el me-
objetos y sujetos de orientación. dio en que se desarrolla la orientación en los
centros escolares y el aula.
3.2. Sujetos significativos Desde esta perspectiva, aprendimos
aspectos de la cultura, las relaciones sociales,
Utilizando el criterio de selección in- la dinámica educativa, el quehacer en el aula,
tencional, la muestra estuvo integrada por las relaciones entre los centros escolares y la
veinte docentes (20) docentes, veinte (20) comunidad. Para describir la situación anali-
padres y/o representantes, cuarenta (40) zada se dedica a descubrir el sentido, la diná-
alumnos de las Escuela Básicas. mica de los procesos, de los actos, de los
Para la selección de la muestra en las acontecimientos y de las afirmaciones textua-
investigaciones cualitativas se sugiere según les de los protagonistas, estas relaciones des-
Pérez (1990), utilizar una muestra intencional criptivas aportaron información sobre las si-
de acuerdo a unos determinados criterios. No tuaciones en que se mueven y las percepcio-
se busca en esta investigación la generaliza- nes que tienen los protagonistas sobre la si-
ción de los resultados sino más bien lograr un tuación en que viven, también tiene en cuenta
mayor conocimiento del grupo concreto en el las expectativas, experiencias, ideas, emocio-
que tenemos que llevar acabo una actividad nes y sentimientos.
determinada. En este caso conviene describir Para la recolección de la información
con claridad las características de la muestra se ha empleado con acentuado énfasis la ob-
con la que vamos a trabajar. servación la cual constituyó un método dirigi-
do a obtener datos pertinentes y significativos
3.3. Técnicas: observación y entrevista sobre el sentido de la orientación educativa en
los centros escolares y el aula. La observación
La observación la realizamos en tres a juicio de Méndez (1988), permite que el in-
escenarios básicos: la escuela, el aula de cla- vestigador tenga en cuenta las experiencias
se, y la comunidad. Es importante destacar previas, juicios, percepciones y las condicio-

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nes sociales, culturales, educativas y econó- y agentes educativos, en un contexto sociocul-


micas en que se desenvuelve el objeto de ob- tural real y natural.
servación.
3.4. Instrumentos para la relación de la in-
a) Para llevar acabo el proceso de observa- formación
ción en nuestra investigación considera-
mos los siguientes criterios sugeridos por El cuestionario: su sentido en la investiga-
Rodríguez et al -ubicación del contexto ción
de observación en un ambiente natural,
social, histórico y/o cultural en las que se De acuerdo con Kerlinger (1987), el
sitúa el proceso de observación, precisión cuestionario es la técnica de investigación
del qué y el cuándo de la misma. más utilizada con la finalidad de obtener, de
b) De igual manera establecimos las catego- manera sistemática y ordenada, información
rías de análisis definidas como sistemas sobre las variables que intervienen en el estu-
cerrados en las que la observación se rea- dio.
liza desde categorías (término que agrupa Para efectos del diseño del cuestionario
a una clase de fenómenos según una regla aplicado consideramos los siguientes aspectos
de correspondencia única), prefijadas por formales:
el observador. La identificación del pro-
blema se hace desde una teoría o modelo a) Se ubica el título en forma abreviada al
explicativo del fenómeno, actividad o tema sobre el que se busca información;
conducta que va a ser observado. b) Se sitúa el cuestionario dentro del contex-
c) Las categorías deben ser homogéneas. to institucional;
c) Se aclara el marco general del estudio que
En la categorización se considera la se aborda;
lista de control como una variante del sistema d) Se exponen los motivos por los que se so-
de signos, que nos permite determinar si cier- licita información, se presentan las ins-
tas características están presentes o no en un trucciones para responder y se agradece la
sujeto, situación, fenómeno o material. La lis- receptividad y el apoyo al responder el
ta de control responde a un modelo teórico en cuestionario.
la que los objetivos del estudio son la guía y
orientación de lo que vamos a observar. Informes, documentos y producciones
La observación participante me permi-
tió estar en contacto, vivenciar y participar Otras fuentes de información valiosas
directamente en el aula de clase e interactuar la constituyeron los informes y papeles de
con los niños y docentes. En este escenario trabajo elaborados por los estudiantes de las
fuimos tomando notas, llevando registros tan- prácticas pedagógicas III y IV Rol de Orien-
to de la interacción docente-alumno, como de tador Educativo como las producciones gene-
la metodología de la enseñanza y actividades radas de las discusiones en el aula, mesas de
de rutina. Estos apuntes los revisamos perió- trabajo, representaciones, informes y repre-
dicamente para integrarlos a otras observacio- sentaciones de la realidad sobre la problemá-
nes y reorientar la investigación. tica de la orientación educativa en las escuelas
En síntesis es importante destacar que básicas. También contamos con algunas pro-
las experiencias más valiosas y típicas fueron ducciones significativas aportadas por profe-
recogidas literalmente, para citarlas después sores de la universidad como resultado de la
entre comillas como testimonio de las reali- aplicación del programa de orientación pro-
dades observadas. La utilizamos en el estudio puesto que ha sido utilizado como guía para la
como una técnica que nos facilito el conoci- operacionalización de los contenidos del sub-
miento de la práctica de la orientación, las proyecto orientación educativa.
necesidades del docente, como de los alumnos

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Diario de campo lizamos registros, formatos de observación,


fotografías, material instruccional, aulas, ins-
Se refiere a todas las informaciones, datos, talaciones de los centros educativos, comuni-
referencias, expresiones, opiniones, hechos, dad y contexto comunal.
croquis, de interés, tanto para la fase de dia- En efecto, que el registro de comporta-
gnóstico como para la experimentación y eva- mientos y conductas como actitudes, signifi-
luación del programa de orientación educati- cado, expresiones, sentimientos y prácticas
va. El diario lo utilizamos como un instru- corresponden a actividades ordinarias y co-
mento reflexivo de análisis. Aquí plasmamos munes de la dinámica humana. Esta riqueza y
no sólo lo que recordamos casi siempre apo- diversidad de observaciones tomadas de la
yado por las notas de campo, sino sobre todas variedad de registros que utilizamos, nos
las reflexiones que se han visto y oído. permitió realizar un proceso de triangulación
El diario de campo es un instrumento diri- de los datos e informaciones, pues no pode-
gido a recopilar datos sobre las observaciones mos dejar pasar por alto que la técnica de la
realizadas en el aula durante la práctica peda- triangulación implica reunir una variedad de
gógica y la orientación educativa, a fin de re- datos y métodos inherentes al problema u ob-
flexionar acerca de la dinámica y de los con- jeto de estudio.
ceptos y acciones de orientación que prevale- La aplicación de la estrategia de trian-
cen dentro y fuera del aula. Este instrumento gulación permite la depuración de la informa-
además facilitó el registro de experiencias sis- ción obtenida a través de los instrumentos y
tematizando, la fecha, hora, lugar, recursos, técnicas aplicadas las cuales han sido compa-
actividades, objetivos, protagonistas, acuer- radas a fin de descubrir los puntos de conver-
dos, descripción, interpretación y observación gencia en relación con las hipótesis y objeti-
participante. El mismo, recoge un conjunto de vos planteados.
aspectos significativos para el análisis y re- Para la clasificación de los datos, hemos
flexión del sentido y concepto que se le atri- utilizado el sistema de categorización como
buye a la orientación en los centros escolares estrategia de reducción de la información. Los
y el aula, donde intervienen activamente los temas cuyos elementos de significado son
agentes educativos. comunes, han sido agrupados en unidades.
Relatos de vida: es el relato de la expe- Los conceptos manejados surgieron durante el
riencia vital de los protagonistas, o documen- curso de la investigación, tomando en consi-
to autobiográfico suscitado por un investiga- deración los datos empíricos que facilitaron la
dor que apela a los recuerdos del protagonista generación de las categorías de análisis que
siendo en el ámbito global y no analítico en las integramos a la base teórica metodológica
un intento de hacer una lectura de la sociedad. que desarrollamos con mayor abstracción y
Permite conocer y comprender los significa- generalización en el problema planteado.
dos que han construido cada protagonista co- En el estudio, se hace uso de la estrate-
mo parte de un proceso social y protagonista gia de “triangulación de fuentes de datos”,
de la investigación, recoge información sobre que en opinión de Denzin y colaboradores
la vivencia social y las prácticas en la memo- (1994), se trata, más bien, sea cual sea la téc-
ria colectiva de la cotidianidad, con el fin de nica utilizada, de ampliar el tipo de datos de
extraer de ellas una significación. que dispongamos para así fundamentar más
adecuadamente nuestras teorías. En este sen-
3.5. Recursos utilizados: cuadernos, graba- tido, la triangulación se define como un plan
dora, lápices de acción que puede llevar al investigador
más allá de los sesgos personales.
Participaron activamente en el proceso Para apoyar las entrevistas y cuestiona-
investigativo los docentes, alumnos, padres rios aplicados se utilizaron los registros bási-
y/o representantes así como el personal direc- cos como conjunto de notas y transcripciones
tivo de los centros educativos, igualmente uti- que constituyen el registro de referencia para

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mantener la originalidad y veracidad de la in- gulación los registros complementarios que


formación apoyado en registros temáticos que incluyen consultas técnicas especialistas, citas
corresponde a los apuntes, descripciones, re- y referencias bibliográficas.
flexiones y ensayos que como investigadora
fui llevando durante el transcurso de la inves- 3.6. Correlación entre objetivos, preguntas
tigación. De igual manera, utilizamos los re- de indagación y resultados
gistros logísticos que tienen que ver con el
empleo de cuadernos o diarios de campo, Seguidamente se presenta en el Cuadro
donde recolectamos notas, sobre dificultades 1, la relación entre objetivos, preguntas de
encontradas, necesidades de los alumnos, indagación y los resultados como elementos
hechos, interpretaciones y reflexiones perso- implícativos del estudio que nos ha llevado a
nales de carácter general del investigador, así configurar las conclusiones y recomendacio-
como fue necesario en este proceso de trian- nes.

Objetivos de la Preguntas de in- Sujetos Resultados derivados de la apli-


investigación dagación cación de técnicas e instrumentos
de recolección de información
ƒ Analizar los linea- ¿Qué elementos a Directores ƒ Estudios de necesidades de los
mientos a conside- considerar para di- Docentes alumnos(intereses, motivaciones,
rar para formular un señar un programa Orientadores ne-cesidades, habilidades, com-
programa de inter- de orientación Psicólogos petencias)
vención ƒ Necesidades de la familia
ƒ Necesidades de la comunidad
ƒ Necesidades de la escuela
ƒ Determinar el con- Qué concepto de Alumnos ƒ La orientación como proceso
cepto de orientación orientación mane- Padres asistencial
educativa que ma- jan los alumnos y Docentes ƒ La orientación como proceso re-
nejan los alumnos y agentes educativos medial
agentes educativos ƒ La orientación como proceso de
ayuda
ƒ La orientación como proceso in-
te-grado al acto de enseñar ya
prender
ƒ Analizar el concep- Qué concepto de Alumnos ƒ Instrumento de enseñanza
to de pro-grama que pro-grama manejan Padres ƒ Medio de formación
manejan los alum- los alumnos y agen- Docentes ƒ Instrumento de asistencia
nos y agentes edu- tes educativos ƒ Conjunto de actividades
cativos
ƒ Definir lineamien- Qué lineamientos Alumnos ƒ Necesidades individuales
tos para el diseño de pueden ser conside- Padres ƒ Necesidades de familiares
un programa de in- rados para el diseño Docentes ƒ Necesidades del contexto
tervención en orien- de un programa de ƒ Jerarquización de las necesidades
tación intervención en ƒ Fundamentación de las necesi-
orientación educa- dades
tiva ƒ Formulación de un plan de ac-
ción
ƒ Intervención
ƒ Evaluación
ƒ Retroalimentación
Cuadro 1 - Correlación entre objetivos, preguntas de indagación y resultados (2007).

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4. Discusión de los resultados De los instrumentos aplicados a los


docentes se generaron los siguientes resulta-
dos (Cuadro 2):

Categorías Frecuencia Porcentaje


Necesidades de alumnos y agentes educativos 5 25
Necesidades de la comunidad y de la familia 5 25
Expectativas y motivaciones de los alumnos 10 50
Total 20 docentes 100
Cuadro 2 – Resultados obtenidos de las técnicas e instrumentos aplicados a los docentes.

El 25% de los docentes expresan en tes en cuanto a elementos para configurar un


sus opiniones y discursos, recogidos mediante programa de intervención en orientación, con
registros permanentes que un programa de lo planteado en la discusión teórica por auto-
intervención ha de responder fundamental- res tales como Bisquerra (2002), y más re-
mente a las necesidades de los alumnos y de cientemente por Boronat (2007) quién expre-
los agentes educativos, un 25% considera que sa: un programa debe derivarse del estudio de
a las necesidades de la comunidad y familia y necesidades de los beneficiarios y de una fun-
un 50 % expresa que el programa debe tener damentación de las acciones de intervención.
como principal sustentación las expectativas y De los alumnos hemos obtenido los
motivaciones de los alumnos. Realizando una siguientes datos significativos (Cuadro 3):
contrastación entre lo referido por los docen-

Categorías Frecuencia Porcentaje


Explorar las necesidades personales, sociales, escolares y vocacio- 20 50
nales
Considerar nuestras diferencias individuales 10 25
Expectativas y motivaciones de los alumnos 10 25
Total 40 alumnos 100
Cuadro 3 – Resultados obtenidos de los instrumentos aplicados a los alumnos

Un 50% de los alumnos consideran que como proceso dirigido a la resolución y aten-
se deben explorar las necesidades personales, ción a la persona con problemas y los que
sociales, escolares y vocacionales, un 25 % consideran la orientación como un proceso
asumir las diferencias individuales y un 25% integrado al acto de enseñar y aprender. Ten-
las expectativas y motivaciones de los alum- dencias que se ven ilustradas en los siguientes
nos. discursos tanto de padres como de alumnos y
docentes: “ la maestra de mi hijo, me expresa
5. Conclusión que el niño tiene bajo rendimiento en mate-
mática, por lo que me sugiere un especialista
Producto del análisis de los resultados en psicopedagogía o un orientador para que
con respecto a cada uno de los objetivos se lo ayude en su problema?” de allí se deriva
configuraron los siguientes resultados: que el problema del niño debe ser tratado fue-
En cuanto al objetivo 1, dirigido a de- ra del aula o en condiciones especiales, deno-
terminar el concepto de orientación educativa tando un enfoque centrado en el problema,
que manejan los alumnos y agentes educati- más no en la prevención y el desarrollo duran-
vos, se precisa que existen tendencias antagó- te el acto formativo.
nicas entre los que manejan la orientación

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Con respecto al objetivo 2: Referido al miento de la secuencia de ejecución del pro-


concepto de programa que manejan los alum- grama e incluye su temporalización ó crono-
nos y agentes educativos, se determinó que no grama, ¿el dónde?, invita necesariamente a
existe un concepto claro de programa a nivel delimitar geográficamente y espacialmente el
de padres y alumnos y en cuanto a los do- ámbito donde se llevará a cabo la interven-
centes su visión esta más dirigida considerar ción, qué impacto tiene la intervención en los
un programa como medio de enseñanza, más beneficiarios nos llevaría a establecer criterios
no, como medio para promover experiencias de valoración y retroalimen-tación permanen-
de intervención en orientación educativa en te de las acciones del programa, y finalmente
los centros escolares y el aula. alcanzar un proceso de reajuste permanente
Finalmente en el objetivo 3 se consideran de acciones y estrategias que nos garantizaría
una serie de elementos que a juicio de docen- la pertinencia social de la intervención.
tes, alumnos y agentes educativos deben ser
considerados para el diseño de un programa 7. Referencias bibliográficas
de orientación: necesidades individuales, ne-
cesidades familiares, necesidades del contex- Aubrey, R. (1982). A Hause divided: Guid-
to, jerarquización de las necesidades, funda- ance and Counseling. En Vélaz de Medrano
mentación teórica de las necesidades, formu- C. (1998). Orientación e Intervención Psico-
lación de un plan de intervención, evalua- pedagógica. Conceptos, Modelos, programas
ción, retroalimentación permanente. y Evaluación. Málaga: Aljibe. pp.128.
Bisquerra, R. (1998). Modelos de Orienta-
6. Recomendaciones ción e Intervención Psicopedagógica. Barce-
lona: Praxis.
De las conclusiones señaladas anterior- Bisquerra, R. (2002). Modelos de Orienta-
mente y del fundamento epistemológico en ción e Intervención Psicopedagógica. Barce-
que se sustenta la investigación se derivan las lona: Praxis.
siguientes recomendaciones: Boronat, J. (2007). Programas de orientación
Definir un concepto de orientación educativa. UNED. España
que responda a los principios de prevención, Denzin, N. y Lincoln, Y.S. (1994). Hand-
desarrollo, atención a la diversidad e inter- book of Qualitative Research. Cuba: G.
vención social. Kerlinger, F. (1987). Enfoque Conceptual de
Conceptualizar en el marco de la definición la Investigación del Comportamiento. Méxi-
de orientación educativa el programa como co: Nueva Interamericana.
instrumento para el desarrollo de estrategias Martínez, A. (1996). El Estudio de Casos pa-
de prevención, desarrollo, atención a la diver- ra Profesionales de la Acción Social. Madrid:
sidad e intervención social. Mareco.
Establecer a quien va dirigido el pro- Méndez, C. (1998). Metodología. Guía para
grama(los beneficiarios, necesidades de los Elaborar Diseños de Investigación. Editorial
beneficiarios, características demográficas, México: Mc Graw Hill.
sociales, escolares, personales), así como,¿Él Morrill, H. (1990). “Program Development”.
para qué? implica delimitar los objetivos, ¿El En: Vélaz de Medrano (1998). Orientación e
qué? representa los contenidos, ¿El cómo? Intervención Psicopedagógica. Conceptos,
determina las estrategias a utilizar para el lo- Modelos, Programas y Evaluación. Málaga:
gro de los objetivos. ¿El con qué? tiene que Aljibe.
ver con los recursos humanos, institucionales Pérez, S. (1994). Investigación Cualitativa.
y financieros que se disponen para la imple- Retos e Interrogantes II. Técnicas y Análisis
mentación del programa. Este elemento hace de Datos. Madrid: Muralla.
posible su ejecución y determina el grado de Repetto, E. (1994). Orientación Educativa e
compromiso de los agentes educativos. ¿El Intervención Psicopedagógica. Madrid:
cuándo?, obliga necesariamente al estableci- UNED.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Reyes, P. (1980). Fines del Programa de Rodriguez, G. (1999). Metodología de la In-


Orientación Educativa. Mérida: ULA. vestigación Cualitativa. Granada: Aljibe.
Riart, J. (1996). Funciones General y Básica Velaz de Medrano. (1998). Orientación e In-
de la Orientación. En: M. Álvarez & R. Bis- tervención Psicopedagógica. Conceptos, Mo-
querra. (Coords): Manual de orientación y delos, Programas y Evaluación. Málaga: Al-
Tutoría. Barcelona: Praxis. jibe.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 51-61 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 29/10/2007 | Revisado em 01/12/2007 | Aceito em 02/12/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

Leitura de estudo: estratégias reconhecidas como utilizadas por alunos


universitários

Study reading: strategies recognized as the most used by university students

Elsa Maria Mendes Pessoa Pullin

Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, Paraná, Brasil

Resumo

O presente trabalho insere-se no campo das práticas de leitura de estudantes universitários e visou i-
dentificar as estratégias mais freqüentes de leitura de textos de estudo entre alunos, futuros professo-
res. Compuseram a amostra alunos de graduação de duas licenciaturas e de um mestrado em educa-
ção. A Escala de Estratégias de Leitura, traduzida e adaptada por Kopke Filho foi o instrumento utili-
zado para a coleta de informações. De modo geral, os resultados apontam para o uso de estratégias
similares entre os participantes. A importância não só das informações acerca dos modos de ler textos
de estudo, especialmente para professores quando prescrevem leituras é discutida, como também a re-
lativa a metacognição sobre essas práticas para os leitores. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 51-
61.

Palavras-Chave: práticas de leitura; ensino superior; formação de professores.

Abstract

The objective of this study was investigating the reading strategies for study texts most frequently used
among future teachers: two licentiates’ undergraduates and one graduate taking a master degree in
education. The Reading Strategies Scale, adapted by Kopke Filho (2001), was the instrument used.
Results indicate the use of similar strategies among participants. The importance of knowing the pos-
sible ways of reading study texts, especially for teachers when prescribing readings is discussed, in-
cluding the one relative to metacognition about those practices for the readers. © Ciências & Cog-
nição 2007; Vol. 12: 51-61.

Key Words: reading practices; higher education; teacher’s qualification.

1. Introdução
Paulo Freire (1982) destaca, em seu
“Estudar seriamente um texto é estudar texto Considerações em torno do ato de estu-
o estudo de quem, estudando, o escreveu.” dar, escrito em 1968, que quem estuda deve
Paulo Freire se sentir desafiado pelo texto em sua totalida-

 - E.M.M.P. Pullin é Graduada em Pedagogia (Faculdade Estadual de Filosofia Ciências e Letras de Londrina),
Mestre e Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (Universidade de São Paulo). Atualmente é
Professora Associada (UEL) e consultora da Fundação de Ciência e Tecnologia do estado de Santa Catarina e da Fun-
dação Araucária do estado do Paraná. E-mail para correspondência: pullin@uel.br.

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de e se apropriar de sua significação. Uma sua ocorrência e pelas práticas sociais legiti-
posição crítica, porque fundamental e indis- madas em um dado momento histórico por
pensável ao ato de estudar requer, segundo uma cultura, e definida por tais práticas que
este educador, que o indivíduo assuma cinco legitimam e geram as condições e modalida-
posturas essenciais: des de sua ocorrência em uma dada situação.
Por compreendermos que ler é um
a) exercer seu papel de sujeito; verbo transitivo, consideramos que o grau de
b) ter uma postura curiosa, em face do mun- responsividade do leitor diante de um texto
do, dos textos e das relações que mantém seja estruturado por sua história de leitor e
com os outros, isto é, o estudante não de- pelo próprio texto, visto serem os modos e
ve perder nenhuma oportunidade e fonte possibilidades de relação do sujeito com
para indagar e buscar; qualquer artefato cultural provenientes das
c) sentir a necessidade de que o estudo de um práticas culturais formais e informais e serem
tema específico exige que se coloque a par constituídos pelos efeitos diretos e indiretos
da bibliografia relativa ao objeto de sua das relações propiciadas por outrem com os
inquietude; bens culturais de seu tempo/espaço. Por serem
d) dialogar com o autor do texto, levando em as condições de apreensão de mundo, isto é, a
conta o condicionamento histórico- responsividade do sujeito aos eventos e pro-
sociológico e ideológico do autor, que dutos culturais, sua posição, funções dele es-
nem sempre é o seu, de leitor; peradas e cobradas socialmente, além de es-
e) assumir a humildade necessária daqueles truturadas, estruturantes para cada nova expe-
que de fato estudam. riência, podemos considerar a leitura como
uma prática cultural indissociável das demais
O processo de construção de senti- práticas sociais (Chartier, 1996, 2000; Cavallo
do(s) de um determinado texto depende, entre e Chartier, 1998).
outros fatores, do leitor, especificamente das Em face das metodologias educacio-
condições de diálogo que ele possa vir a esta- nais mais utilizadas no Ensino Superior, a lei-
belecer com o texto, determinadas estas, em tura é um dos elementos essenciais para o e-
parte por sua experiência, pelo conhecimento xercício do ofício desse aluno (Perrenoud,
prévio do mundo e por sua competência lin- 1995; Teixeira, 2000), pelo fato de exigirem
güística (Eco, 1985). Tais condições é que que o aluno tenha uma metodologia individu-
permitem ao leitor retirar “o texto da clandes- al e eficiente de leitura de estudo. Do aluno se
tinidade” (Cordeiro, 2004: 97), uma vez que o espera que assuma a posição de co-autor na
texto só se vivifica por uma postura dialógica construção dos conhecimentos legitimados
de um leitor em relação ao mesmo. nessas instituições, como leitores-acadêmicos
Nos inserimos entre aqueles que ex- (Dauster, 2003). Por conseguinte, não gera
plicam a constituição de quaisquer processos estranheza, em face dos déficits continuamen-
psicológicos como provenientes do tipo de te demonstrados pelos resultados de exames
interações mediadas/propiciadas por outrem nacionais, como os de ENEM e das queixas
(Vygotsky, 1997), e entendemos, por conse- freqüentes dos professores das instituições de
guinte, que as condições individuais para a ensino superior (Barzotto, 2005), o fato de
produção e monitorização do próprio processo que as relações entre leitura, compreensão e
de leitura são tecidas pelos efeitos de tais inte- metacognição em universitários venham des-
rações. Em suma, compreendemos a leitura pertando o interesse de diversos pesquisado-
como um processo que compartilha com os res brasileiros (Kopke Filho 2001, 2002; Ro-
demais processos capazes de viabilizar para o manowski e Rosenau, 2006), bem como o
indivíduo a ocorrência de comportamentos fato de que um maior número de produções
complexos ou não, isto é, compreendê-la co- em programas de pós-graduação stricto sensu
mo construída socialmente, porque contin- (Letras/Lingüística; Psicologia; Educação;
genciada pelas condições e modalidades de Biblioteconomia; História; Artes; Comunica-

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ções) tenha investigado a temática de “como visto ser nos espaços das relações intersubje-
se lê" (Ferreira, 2004: 16). tivas que se estabelecem as condições estrutu-
Ao nos debruçarmos sobre a literatura rantes para quaisquer aprendizagens, seja de
acerca das práticas de leitura em instituições novos repertórios seja para as mudanças dos
de Ensino Superior (IES) registramos a pre- já adquiridos. Por conseguinte, concordamos
sença de uma relativa subvalorização e subu- com Vygotsky (1997) quanto a que a educa-
tilização da leitura, por parte dos estudantes- ção, de um ponto de vista psicológico, é, de
leitores universitários (Fraisse, 1993; Witter e fato, uma re-educação, visto intervir e influ-
Vicentelli, 2001; Carlino, 2002; McNamara e enciar o desenvolvimento dos indivíduos, de
Harbersd, 2006; Pullin, 2007; Pullin e Pullin, forma sistemática e objetivar intencionalmen-
2005). As evidências em nível nacional, te, por um esforço consciente, a apropriação
mesmo entre estes estudantes, apontam para dos modos de ser e dos bens culturais. Neste
déficits e dificuldades desses alunos em a- sentido, eventos de educação contribuem para
prender tendo como fonte textos escritos (Bo- o processo da seleção social dos aspectos e
ruchovitch et al., 2005). dimensões da personalidade dos indivíduos,
Apesar de alguns, como Duarte em uma dada sociedade.
(2003), colocarem em questão os princípios e A metacognição relativa às estratégias
as conseqüências geradas pelas pedagogias e processos envolvidos na leitura de textos
do ‘aprender a aprender’, muitas vezes defen- acadêmicos vem sendo apontada como rele-
didas pelo aceite não crítico do que vem sen- vante e diferenciadora para a constituição de
do denominado por sociedade do conheci- saberes, por parte de seus leitores. Trabalhos
mento, como uma das razões que justificam como os de Spooren e colaboradores (1998),
tais pedagogias, o fato é que os estudantes não Cotttrell e McNamara (2002), O’Reilly e
devem contentar-se apenas com os textos o- McNamara (2002), Graesser e colaboradores
rais do professor em sala de aula, mas buscar (2003), McNamara (2004a, 2004b), assim
outras fontes para construir seus saberes, por como os de McNamara e Harbersd (2006) e
exemplo, em textos escritos. Para que isso Romanowski e Rosenau (2006) assinalam
aconteça, é preciso que os alunos sintam a para os efeitos positivos da consciência e con-
necessidade de que o estudo de um tema es- trole tanto dos processos, quanto das estraté-
pecífico exige que se coloquem a par da bi- gias de leitura e de aprendizagem. De modo
bliografia relativa ao objeto de sua inquietude, geral, a produção em programas de Mestrado
como assinalado por Freire (1982). Em outras e Doutorado, na área de Educação e de Psico-
palavras, se sintam motivados e, além disso, logia, a documentada nos encontros anuais da
capazes de ler e conhecer como lêem, isto é, Associação Nacional de Pós-Graduação e
disponham da metacognição acerca das estra- Pesquisa em Educação (ANPEd), bem como
tégias que utilizam enquanto lêem (Kuiper, os da várias edições dos encontros da Associ-
2002; Zimmerman, 2002; Cukras, 2006). ação Brasileira de Leitura (COLE) e do En-
Em uma perspectiva ontológica que contro Nacional de Didática e Prática de En-
concebe o homem como ser inacabado (Frei- sino (ENDIPE) referem a importância e a ur-
re, 2005) e como aquele que constitui seus gência de conhecimentos que propiciem a
saberes e suas práticas no e pelo convívio formação de leitores autônomos, capazes de
com outros (Vygotsky, 1997; Galantino, lidar de modo crítico com situações do cotidi-
2003; Dijk, 2006), a visão teórica que assu- ano, familiares ou não. E porque concorda-
mimos sustenta-se na adesão à perspectiva de mos com Freire (2005: 30) quanto a que “[...]
que o processo de aquisição do conhecimento ler é procurar, buscar, criar a compreensão do
tem sua feitura gerada em produções configu- lido”, bem como quanto à importância de que
radas subjetivamente pelos tipos de relação “quando o homem compreende sua realidade,
que cada um estabelece a partir de outrem e pode levantar hipóteses sobre o desafio dessa
com os bens culturais. Para que este processo realidade e procurar soluções”, podendo, as-
ocorra faz-se necessária a mediação de outros, sim, “transformá-la e com seu trabalho pode

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criar um mundo próprio: seu eu e suas cir- exemplo, de leitura, confere sentido aos con-
cunstâncias”, e porque uma posição crítica, teúdos e aos procedimentos, uma vez que seu
fundamental e indispensável ao ato de estu- comportamento afeta de algum modo, ou me-
dar, requer de quem estuda que assuma postu- lhor dito, (con)forma as condições do saber e
ras como as assinaladas por esse educador, é do conhecimento de seus alunos.
que vimos buscando trabalhar com leitura Acerca da produção de sentidos, espe-
junto a alunos do Ensino Superior, nomeada- cificamente daquela gerada a partir dos mo-
mente com futuros professores. dos da proposição de textos escritos, isto é,
Apesar do papel mediador do profes- decorrente das condições postas simultanea-
sor ser fundamental para novas aprendiza- mente pela conjunção da proposição, propri-
gens, sua função deve ser preferencialmente a amente dita, do texto com os modos de ler do
de “transferir progressivamente para os alunos sujeito-leitor, fundamentamo-nos em Orlandi
o controle de sua aprendizagem, sabendo que (2001: 11) quando esta diz que a interação do
o objetivo último de todo mestre é se tornar sujeito-leitor com o texto ”representa a conju-
desnecessário” (Pozo, 2002: 273). Por conse- gação de duas historicidades: a história de su-
guinte, suas ações devem/deveriam ter como as leituras e a história de leituras do texto”.
meta a promoção da autonomia e da co- Em cursos regulares, ofertados em
responsabilidade dos alunos para que ocorram IES, nas modalidades de cursos de graduação
não só aprendizagens de conteúdos específi- e de pós-graduação, não há como o professor
cos, mas também das demais relacionadas ao ignorar e deixar de ser instigado pela necessi-
desenvolvimento pessoal e à capacitação pro- dade de (re)ensinar seus alunos a ler e de tra-
fissional dos mesmos. Para tanto, a mediação balhar o efeito-leitor com os alunos, em face
do professor além de precisar ser planejada e seja da multiplicidade e diversidade discipli-
por ele monitorizada, precisa gerar condições nar dos textos exigidos (Carlino, 2002; Mos-
propícias que fomentem a metacognição de tafa, 2004; Pullin, 2007), seja dos modos de
seus alunos acerca dos próprios estilos de a- leitura e de sentidos, quer legitimados, quer
prendizagem pessoal, por exemplo, como os dos atribuídos pelos alunos ao lerem qualquer
possibilitados em situação de leitura de estu- texto.
do. No encontro dos alunos com um texto
A perspectiva que defendemos impli- prescrito pelo professor em sua disciplina,
ca, em suma, em percebermos a constituição diferentes são os sujeitos-leitores, por suas
sócio-histórica dos indivíduos, a qual leva não histórias de vida e de leitura distintas, em fa-
apenas a considerar a posição social objetiva ce, entre outros, dos efeitos das práticas ante-
deles, no caso professores e alunos, mas tam- riores de proposição e dos graus de responsi-
bém, e especialmente a de que estes assumem vidade exigidos após a leitura, em suma, dos
uma posição social subjetiva por considerar- modos constituídos e legitimados para a inte-
mos que a sociedade é “o lugar de produção ração dos alunos com textos (Almeida, 2006:
de sentido, e não se pode compreender essa 3). Desse modo, podemos entender os efeitos
produção de sentido a não ser em referência a sobre a história do leitor produzidos pelas prá-
um sujeito” (Charlot, 2003: 25), quanto a que ticas, sejam dos modos de proposição de lei-
as ações do sujeito com a sua sociedade são turas, do tipo de trabalho produzido por ele
mutuamente dependentes. Baseamo-nos nessa junto ao texto, ou ainda dos modos como se-
perspectiva para configurar a dinâmica intera- jam utilizadas as informações em sala de aula,
tiva que acontece em qualquer sala de aula. E por exemplo. As práticas anteriores de propo-
fazemo-lo, por compreender que tais relações sição e dos graus de responsividade exigidos
são co-responsáveis para a constituição da após a leitura, em suma, dos modos constituí-
subjetividade dos atores envolvidos nesse es- dos e legitimados para a interação dos alunos
paço, e, especialmente, porque o professor em com textos. Entretanto, os diálogos possíveis
face da autoridade que lhe é conferida social- com e a partir de textos não só remetem a es-
mente, para suas práticas e prescrições, por sas histórias, como podem provocar rupturas

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e/ou conferir novas nuances a elas. Sob este sentidos, antes submetem-se ao poder do texto
enfoque, a constituição da identidade de lei- e de seu autor. Isso comumente ocorre, ainda,
tor, especialmente a prescrita e legitimada pa- em eventos escolares, mesmo em IESs, com
ra alunos de cursos de Ensino Superior, é con- muitos alunos, quando se limitam ao que lhes
figurada como a de um leitor autônomo e crí- foi passado oralmente pelos professores, em
tico, a qual permeia os efeitos da conjunção sala de aula (Kons, 2006), porém este não é o
daquelas historicidades singulares pela fre- escopo de nossa preocupação com o presente
qüente e necessária ruptura com os padrões do relato.
saber-ler, quer do mundo cultural no qual ele Preocupa-nos, sim, o assinalado por
foi recebido, quer dos exigidos em níveis de Anne-Marie Chartier (1999) quanto à neces-
escolarização anteriores. sidade de estarmos atentos às “formas pelas
Os níveis de leitura possíveis de um quais a leitura (o que é lido e as maneiras de
texto, conforme Orlandi (2001), são o do en- ler) se integra na preparação da profissão de
tendimento, o da interpretação e o da compre- professores”, visto que por elas “transmite-se
ensão, sendo que apenas neste último nível de de forma concreta uma relação com o escrito
leitura é gerada a condição de produção de como ferramenta de trabalho profissional,
uma leitura reflexiva e crítica. Concordamos como espaço de cultura pessoal, como refe-
com a autora quanto a que compreender um rente compartilhado.” (Chartier, 1999: 96).
texto implica em (des)construí-lo, isto é, em Em face do corpo teórico e das preo-
identificar seus significados e a desvelar os cupações que nos inquietam como docente do
mecanismos utilizados pelo autor para produ- Ensino Superior, o presente trabalho busca
zi-lo. O leitor, quando assim problematiza averiguar quais estratégias futuros professo-
para si o texto, assume o papel de co-autor, res, alunos de graduação e de pós-graduação,
por ultrapassar o nível de simples identifica- (re)conhecem utilizar quando estudam a partir
dor de informações, de garimpeiro, e tal pos- de textos.
tura ativa habilita-o a construir seu conheci-
mento a partir de textos (Charlot, 2003). 2. Método
As diferenças entre leitores se devem,
portanto, aos papéis que cada um assume ou, A constituição da amostra dos partici-
melhor dizendo, que cada um foi levado a as- pantes ocorreu por conveniência, junto aos
sumir, enquanto lê. Enquanto intérprete, “a- cursos que tivemos acesso. A participação foi
penas reproduz o que já está produzido. De voluntária, após esclarecimentos e assinatura
certa forma podemos dizer que não lê, é lido, do Termo de Consentimento Esclarecido. O
uma vez que, apenas reflete sua posição de grupo de participantes, alunos de graduação
leitor na leitura que produz (Orlandi, 2001: freqüentava dois cursos de licenciatura de á-
116), em outras palavras, o que produz leitura reas distintas (Humanas e Exatas), em uma
a partir exclusivamente de sua posição só in- IES particular. Destes foram selecionados a-
terpreta. À medida que o leitor se preocupa lunos da série inicial e final dos cursos de Le-
em identificar e avaliar para si o fato precisar tras e de Ciências, doravante designados por
de ler um texto, o contexto da situação, ime- GL1 (n=23); GC1 (n=19); GL2(n=27); CC2
diato e histórico, e, em vista disso, o relaciona (n= 19). Os participantes da pós-graduação
“criticamente com sua posição, que a proble- realizavam, quando da coleta, sua formação
matiza, explicitando as condições de produ- de pós-graduação em um Mestrado de Educa-
ção de sua leitura, compreende” (Orlandi, ção e são identificados para o presente relato
2001: 116), é que se pode afirmar que ele co- como GM (n=16).
nhece e pode controlar suas ações frente ao Para o levantamento das informações
texto. foi utilizada uma escala referente à freqüência
Portanto, os que apenas interpretam, de reconhecimento quanto ao uso de estraté-
de fato não lêem, por não participarem cons- gias no processo/produção de leitura, a qual
cientemente do processo de constituição de foi traduzida, adaptada e utilizada por Kopke

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Filho (2001), a partir dos resultados de um para responder a tarefas propostas por ou-
estudo exploratório junto a universitários, rea- trem? Como ler é um processo que se anteci-
lizado por Goetz e Palmer, em 1991. Esta es- pa e ultrapassa a escolarização, sobretudo
cala compõe-se de 20 itens, distribuídos por quando relativo aos suportes e gêneros textu-
três fases do processo/produção da leitura: ais, que condições de (contra)controle não
foram ensinadas e aprendidas para que cada
a) de previsão, isto é, antes de iniciada a leitu- um deixasse de conhecer como opera em face
ra, composta por quatro itens; de textos, no caso de estudo e para que ao ler
b) de acompanhamento, ao longo da leitura, se assumisse como sujeito no desenrolar des-
isto é, durante a produção de leitura do texto sas experiências?
propriamente dito, com dez itens; Considerando que a compreensão da
c) após a leitura, de avaliação do próprio pro- leitura exige a participação ativa dos leitores
cesso de leitura realizada, com seis itens. em relação ao texto podemos afirmar que este
processo se inicia por um contato implicado
Cada item possibilita a escolha de uma do leitor com o posto/dado a ler, especialmen-
de três alternativas (freqüentemente; às vezes; te no caso de textos de estudo, situação esta
raramente), relativas à freqüência com que indicada aos participantes para terem em foco
cada estratégia é reconhecida como utilizada quando das respostas ao instrumento usado.
pelo respondente quando lê textos de estudo. Entre as quatro estratégias arroladas no ins-
A aplicação desse instrumento com os trumento usado, para a situação do encontro
alunos de graduação foi coletiva e realizada do leitor com o texto para estudo, isto é, antes
por uma docente da IES, após uma explicação de iniciada a leitura propriamente do mesmo,
oral e o recebimento por escrito do termo de encontra-se uma que possibilita identificar a
aceite. Para os participantes da pós- freqüência com que os respondentes pensam a
graduação, após o aceite, o instrumento foi respeito da finalidade ou necessidade de pro-
remetido por e-mail. Para ambos os grupos de duzir uma determinada leitura. De modo ge-
participantes foi solicitado que ao responde- ral, os participantes indicaram que o fazem
rem tivessem como foco a leitura de textos freqüentemente (75% do GM; 73,9% do GL1;
acadêmicos. 63,1% do GC2; 48,1% do GL2), apenas 15%
dos participantes do GC1 assim responderam.
3. Resultados e algumas considerações Entretanto, não ocorre com a mesma freqüên-
cia a ação de levantamento de hipóteses acer-
A maioria dos participantes informou ca do material a ser lido após um exame ini-
à pesquisadora que nunca havia posto para si cial e geral do texto. Porém é freqüente para
como objeto de análise as estratégias que uti- 51,8% do GL2, 50% do GM, 42,1% do GC2,
liza enquanto lê, tendo sido instigados para tal 31,6% do GL1 e 21,7% do GL1.
ao responder ao instrumento. Este resultado, Ao longo da leitura boa parte dos par-
por ter sido espontaneamente apresentado e, ticipantes freqüentemente relaciona as infor-
por conseguinte sem razões para um informe mações do texto com suas crenças ou seus
controlado, seja pela pesquisadora seja pela conhecimentos do assunto (75% do GM;
forma como o instrumento foi aplicado, em si 66,7% do GL2; 30,4% do GL1; 47,4% do
e em parte desvela como foi a constituição GC2; 63,1% do GC1), e pensa acerca das im-
desses alunos como leitores. Isto, porque é de plicações dessas informações (62,5% do GM;
se esperar que quaisquer desses participantes 74% do GL2; 56,5% do GL1; 63,1% do GC2;
independente do grupo a que pertença 47,5% do GC1). A preocupação em acompa-
(N=104), pela obrigatoriedade da escolariza- nhar e avaliar o quanto estão compreendendo
ção anterior leram/deveriam ter lido inúmeros acerca do texto é comum entre: 87,5% do
e distintos textos. Mas, como diz Eni Orlan- GM; 92,5 do GL2; 78,3% do GL1; 63,1% do
di, leram ou foram lidos? Fizeram tais leituras GC2; 84,2% do GC1.
como experiência pessoal significativa ou só

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De modo geral, poucos alunos dos é mais usado pelos participantes do GM


cursos de graduação tomam notas, enquanto (93,7%), porém, no caso dos demais partici-
lêem, isto é, reescrevem para si, copiando ou pantes quando esse recurso é comparado ao
não informações do texto, (5,3% do GC2; de gerar imagens acerca dos conceitos ou dos
10,5% do GC1; 25,9% do GL2), resultado fatos descritos no texto ocorre com menos
este que os diferencia dos alunos do Mestra- freqüência, como pode ser verificado na figu-
do. O recurso de sublinhar idéias ou palavras ra 1.

Figura 1 - Indice percentual por grupo quanto ao uso das estratégias de suporte à leitura.

Quando não compreendem, uma pala- pendente do nível de escolarização (gradua-


vra, frase ou parágrafo, os recursos mais fre- ção/pós).
qüentes são os de: reler o mesmo trecho Entretanto, esse processo de produção
(100% do GM; 92,6% do GL2; 95,6% do de sentidos pode ser identificado, também,
GL1); voltar a ler as partes que o precedem após a leitura. Nesse caso, de modo geral, os
(87,5% do GM; 85,2% do GL2); continuar a movimentos de leitura das participantes já se
ler na busca de mais esclarecimentos (68,7% distinguem quanto à freqüência de utilização
do GM; 34,1% do GL1); consultar uma fonte das estratégias propostas.
externa (outro livro, ou alguém), é o que fa- Registra-se que mais participantes do
zem freqüentemente 62,5% do GM e 42,1% mestrado do que os da graduação relêem os
do GC1. Vale lembrar que a leitura como um pontos mais importantes (81,2% do GM;
processo de produção de sentidos “apenas se 59,3% do GL2; 43,4% do GL1; 26,3% do
revela no movimento de idas e vindas entre GC2; 31,6% do GC1). Entretanto, em pouco
texto e leitor” (Cordeiro, 2004, p. 97), as es- se diferenciam quanto ao refazerem a leitura
tratégias de parar, refletir, reler o que não se de todo o texto (37,5% do GM; 33,3% do
compreendeu são estratégias empregadas fre- GL2; 26% do GL1; 21% do GC2; 10,5% do
qüentemente por todos os participantes, inde- GC1), possivelmente por se preocuparem a-

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penas em recordar os pontos mais relevantes Pontuam, ainda, na direção da rele-


do texto (50% do GM; 37% do GL2; 31,6% vância da metacognição dos processos de a-
do GC2; 36,8% do GC1). prender a partir de textos, a qual viabiliza a
Menos, ainda, são os que escrevem autonomia e a inserção profissional e cidadã
um texto, mesmo que seja uma paráfrase ou dos alunos, independente do nível de sua es-
resumo do material lido (25% do GM; 11,1% colarização.
do GL2; 13% do GL1; 10,5% do GC2; 21%
do GC1). Interessante foi o resultado registra- 4. Observações finais
do relativo à preocupação em verificar quais
das hipóteses acerca do conteúdo do texto que Apesar da “dimensão capital da for-
haviam levantado antes de iniciada a leitura, mação inicial” (Chartier, 1999: 93), atribuída
se confirmam ou não (56,2% do GM; 33,3% pelos formadores de futuros professores, pou-
do GL2; 13% do GL1; 15,8% do GC2; 10,5% co se tem investido nesta etapa e mesmo em
do GC1). anteriores, para a formação de leitores compe-
O quadro dos resultados apresentados tentes.
converge com os verificados em outras pes- Um dos papéis a ser desempenhado
quisas (Pullin e Tanuri, 2007), quer quanto por qualquer um que se nomine/seja nomina-
aos recursos e modos de ler utilizados por es- do de professor é, em nossa opinião, o de “a-
tudantes do Ensino Superior quando estudam, tor social de autonomia” (Giesta, 2001: 38-
quer quanto às preocupações que os afligem 40). Este papel gestor, por natureza, não só é
quando estudam a partir da leitura de textos. imprescindível como implica em compromis-
De certo modo, os resultados obtidos sos a serem assumidos por esse profissional,
no presente trabalho vão na direção dos per- no fato de ser ele um dos principais mediado-
cebidos e por Vicentelli (2004), referentes à res sociais para que as novas gerações possam
sua investigação acerca do desempenho leitor se apropriar dos distintos saberes, declarati-
de estudantes de Ensino Superior na Venezue- vos, processuais e outros, legitimados social-
la. Referida análise indica que uma porcenta- mente como essenciais. Tais compromissos
gem significativa de estudantes subutiliza a constituem-se em condições necessárias, tanto
leitura. O fato de apenas alguns dos partici- para sua competência pessoal como profissio-
pantes pensarem acerca das implicações das nal. Entre essas, destacam-se seus saberes re-
informações contidas no texto é preocupante, lacionados à leitura e à metacognição, visto
especialmente em se tratando do nível de que:
formação acadêmica em que se encontram.
Chartier (1999) adverte, ainda, para o fato de “O professor pode fazer a diferença na
que muitos alunos, futuros professores, “têm a formação de leitores, especialmente
sensação de que o proveito que tiram de suas despindo-se de seu poderio professoral
leituras é pequeno, incerto, aleatório” (Charti- e vestindo-se de uma nova autoridade –
er, 1999: 89). Seria, então, essa a razão por a que sabe mediar a construção de co-
que tal comportamento ocorre com menos nhecimentos pelos aprendizes.” (Kons,
freqüência entre os participantes? 2006: 7)
Além disso, os resultados obtidos ins-
tigam a que concordemos com Carlino (2002) Incluindo-se nestes os relacionados ao
quanto a que é necessário ensinar a ler no En- conhecimento e controle metacognitivo, como
sino Superior, seja pela natureza dos artefatos defendido por Couceiro-Figueira (2004).
culturais comumente recomendados para lei- Concluímos, lembrando Vygotsky
tura (Mostafa, 2004; Witter, 1992; Pullin, (1997) que define a educação, de um ponto de
2007), seja pelas competências exigidas para vista psicológico, como uma re-educação, em
o ofício desse aluno, as quais em níveis de razão de ela intervir e influenciar o desenvol-
escolarização anterior não foram ensinadas. vimento dos indivíduos, de forma sistemática
e objetivar intencionalmente, por um esforço

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consciente, a apropriação dos modos de ser e ra, conforme defendido por Pullin e Pullin
dos bens culturais. É, nessa perspectiva que os (2005). Ora, tais condições são passíveis de
eventos de educação contribuem para o pro- serem efetivadas em ambientes em que as prá-
cesso da seleção social dos aspectos e dimen- ticas do fazer educativo pressuponham leitura
sões da personalidade dos indivíduos, em uma efetiva, tanto por parte dos que ensinam,
dada sociedade. Além do mais, em face da quanto dos que aprendem. Tais leituras não
responsabilidade assumida por professores, são, necessariamente, realizadas por prazer ou
desde a Educação Infantil até à ofertada por paixão, mas, com certeza, movidas para atin-
IESs, consideramos que a decisão deste pro- gir metas de realização pessoal, circunscritas
fissional continuar a ser professor relaciona-se ou não a aprendizagens de conteúdos especí-
à das condições que dispõe para a sua forma- ficos. Referimo-nos, aqui, de modo especial
ção continuada as quais, por sua vez, produ- às diversas estratégias e práticas de leitura que
zem reflexos na sua identidade (Giesta, 2001). possibilitam, pelos modos de sua produção e
Tais condições e as habilidades necessárias pelos diversos suportes utilizados, o aprofun-
para que esse profissional possa “aprender a damento dos saberes, especialmente dos rela-
aprender” e a refletir sobre seus saberes não tivos à formação profissional, sejam estes dis-
se restringem aos espaços de formação esco- ciplinares, curriculares ou experienciais (Tar-
lar acadêmica. Por isso, algumas dessas com- dif, 2002).
petências devem ser ensinadas especificamen-
te nesses espaços, de modo que as condições e 5. Referências bibliográficas
as competências para a autonomia pessoal e
profissional possam ser desenvolvidas e im- Barzotto, V.H. (2005). Leitura e produção de
plantadas, para serem utilizadas ao longo da textos para alunos ingressantes no terceiro
vida. grau. Em: Regina Célia de Carvalho Paschoal
Instrumentos como o ora utilizado na Lima. (Org.). Leitura - múltiplos olhares. 1
presente pesquisa podem auxiliar os professo- ed. (pp. 97-101). Campinas: Mercado de Le-
res a conhecer as estratégias de leitura que tras.
seus alunos utilizam para estudar a partir de Boruchovitch, E.; Costa, E.R. e Neves. E.R.C.
textos. Ao conhecê-las, os professores podem (2005). Estratégias de aprendizagem: contri-
auxiliar e, se necessário, propor novas formas buições para a formação de professores nos
e modos dos alunos se relacionarem com es- cursos superiores. Em: Joly, M.C.R.A.; San-
ses textos. tos, A.A.A.; Sisto, F.F. (Orgs.). Questões do
Larrosa (2002) firma uma posição de cotidiano universitário. (pp. 239-61). São
escuta para os que lêem. Desse autor empres- Paulo: Casa do Psicólogo.
tamos sua proposição como imprescindível, Carlino, P. (2002, outubro). Alfabetización
tanto por parte dos professores quanto dos académica: un cambio necesario, algunas
alunos, isto é, para aqueles que aprendem e, alternativas posibles. Trabalho apresentado
porque aprendem podem ensinar e gerar no- no Tercer encuentro la universidad como ob-
vos conhecimentos, não só para si, como em jeto de investigación. Buenos Aires. Argenti-
favor daqueles junto aos que atuam ou ve- na.
nham a atuar. Cavallo, G. e Chartier, R. (1998). História da
Em nossa opinião, há que se leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática.
(re)estabelecer a dimensão formadora do es- Charlot, B. (2003). O sujeito e a relação com
paço universitário para a construção de habi- o saber. Em: Barbosa, R. L. L. (Orga.) For-
tus e práticas eficientes de leitura e escrita. mação de educadores: desafios e perspecti-
Para tanto, as atividades de ensino, pesquisa e vas. (pp. 23-33). São Paulo: UNESP.
extensão nas quais os alunos participam, de- Chartier, A.M. (1999). Os futuros professores
vem induzi-los a que sintam necessidade de e a leitura. Em: Batista, A.A.G.; Galvão,
produzir leituras autônomas, e a modificar os A.M.O. (Orgs.). Leitura: práticas, impressos,
valores que freqüentemente atribuem à leitu-

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S u b me t i d o e m 1 6 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Artigo Científico

Criatividade na rede: a potencialização de idéias criativas em ambien-


tes hipertextuais de aprendizagem
Creativity in the network: the potentiality of creative ideas in hypertext learning environments

Ângela Álvares Correia Dias e Karina da Silva Moura

Faculdade de Educação, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, Distrito Federal, Brasil

Resumo

Este artigo tem como objetivo apresentar e problematizar possibilidades do hipertexto como estratégia
para a promoção de ambientes educativos propícios ao desenvolvimento da criatividade. Todos nós
possuímos um potencial criativo, importante para a solução de problemas cotidianos, e esse potencial
se desenvolve em resposta aos novos desafios e situações que a sociedade vivencia. Assim, a educa-
ção na contemporaneidade tem sido instada a cumprir o papel de oportunizadora e propiciadora do de-
senvolvimento e formação de cidadãos criativos, preparados para a atuação numa sociedade marcada
pelo dinamismo. Nessa perspectiva, adotamos o hipertexto como um ambiente potencializador do diá-
logo e do compartilhamento de experiências, que subsidiem a introdução/ adaptação e a criação de
mudanças significativas para o desenvolvimento de processos de aprendizagem sistemicamente mais
criativos. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 62-71.

Palavras-chave: criatividade; hipertexto; educação.

Abstract

This article has as objective presents and to problematize possibilities of the hypertext as strategy for
the promotion of favorable educational environment to the development of the creativity. All of us
possessed a creative potential, important for the solution of daily problems, and that potential grows
in response to the new challenges and situations that the society lives. Like this, the education in the
contemporary society has been urged to accomplish the role of promoting the development and crea-
tive citizens' formation, prepared for the performance in a society marked by the dynamism. In that
perspective, we adopted the hypertext as an potential environment of the dialogue and of the sharing
of experiences, that subsidize the introduction/adaptation and the creation of significant changes for
the development of processes of learning more creative. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 62-
71.

Key Words: creativity; hipertext; education.

 - Â.Á.C. Dias é Mestre (Universidade de Nova York), Doutora (Universidade de Londres) e Líder do Grupo de
Pesquisa Lattes (CNPq) “Educação Hipertextual”. Atua como Professora Adjunta (Faculdade de Educação, UnB).
Endereço para correspondência: HCGN 709, Bloco I, Apto. 202, Asa Norte, Brasília, DF 70.750-709. Telefone: (61)
3275-1029. E-mail para correspondência: angelacdias@bol.com.br. K.S. Moura é Graduada em Pedagogia (Faculda-
de de Educação, UnB), Mestranda em Educação (UnB), na área de Comunicação e Educação e Integrante do Grupo de
Pesquisa Lattes (CNPq) “Educação Hipertextual”. Endereço para contato: QN 12B, Conjunto 07, Casa 05, Riacho
Fundo II, Brasília, DF 71.881-620. Telefone: (61) 3333-0634 ou (61) 8118-6827. E-mail para correspondência:
karinasmoura@gmail.com.

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1. Introdução 2. Tecendo os fios da criatividade

“Criatividade consiste em ver o que todo O potencial criativo do ser humano se


mundo vê e perceber o que ninguém perce- desenvolve em resposta aos novos desafios e
beu” situações que a sociedade vivencia. O pensa-
Maury Fernandes (1998: 164) mento criativo é essencial para o desenvolvi-
mento de uma compreensão ampla e ativa nas
A criatividade tem sido objeto de di- interações com múltiplos problemas e situa-
versos estudos acadêmicos e publicações va- ções presentes num mundo cada vez mais
riadas. Essa multiplicidade de discursos a res- complexo.
peito da criatividade se justifica pelo caráter Criatividade é um conceito muito am-
complexo desse constructo que se expressa plo e envolve um misto de situações, devido à
em diferentes contextos e implica, para sua complexidade desse conceito inúmeras defi-
definição, uma percepção subjetiva que lhe nições são possíveis, sejam elas relativas ao
confere certo grau de relatividade. processo criativo, à pessoa criativa, ao produ-
A criatividade se expressa em diferen- to, ao ambiente, à expressão. Neste trabalho,
tes áreas da atuação humana – trabalho, edu- consideramos criatividade como:
cação, relações pessoais, organização empre-
sarial, produção comercial, ciência e tecnolo- “o processo que resulta na emergência
gia, esportes, artes, artesanato e outras. Este de um novo produto (bem ou serviço),
trabalho, contudo, tem sua fundamentação e aceito como útil, satisfatório e/ou de va-
subsídios provocadores advindos de estudos a lor por um número significativo de pes-
respeito da criatividade em um contexto hi- soas em algum ponto no tempo.” (Alen-
pertextual de aprendizagem. car, 1998: 15)

“Quando nos referimos à criatividade A exigência para que se tenha uma i-


dos alunos, estamos nos referindo a sua déia criativa é que esta origine um produto
criatividade numa área específica: sua novo, pelo menos para o sujeito que o gerou.
criatividade no processo de aprendiza- No entanto, uma idéia criativa nem sempre é
gem.” (Mitjáns Martínez, 2002: 192) reconhecida de imediato, às vezes são neces-
sário anos até que um produto seja reconheci-
As ponderações aqui relatadas funda- do e declarado de valor pela sociedade. O re-
mentam-se nos estudos relacionados à prepa- conhecimento desse produto depende de uma
ração e desenvolvimento do minicurso “Edu- das últimas fases do processo criativo, a co-
cação e hipertexto – criatividade na rede”, municação.
apresentado na VI Semana de Extensão da
UnB – Criatividade e Produção do Conheci- “Durante o processo criativo a pessoa
mento, no período de 19 a 20/10/2006, consti- tira algo de si e comunica esse algo ao
tuindo-se em um desdobramento dessa ativi- outro. Comunicar é o melhor momento
dade. Neste artigo, – assim como foi realizado do processo criativo.” (Sátiro, 2002:
no minicurso – são apresentadas reflexões 229)
acerca das mudanças nas formas de experien-
ciar o mundo, as outras pessoas e a si mesmo, Criatividade, apesar de sua amplitude
que são potencializadas pelas vivências em conceitual, não descreve uma pessoa, descre-
ambientes hipertextuais. Nesse sentido, são ve idéias, produtos que são novos, o que des-
apresentadas e problematizadas possibilidades creve uma pessoa são os seus comportamen-
do hipertexto como estratégia para a promo- tos criativos, como motivação, abertura à ex-
ção de ambientes educativos propícios ao de- periência, independência, flexibilidade, auto-
senvolvimento da criatividade. confiança, dentre outros.

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Outro conceito muito próximo ao con- ras vozes3 que dialogam de modo a construir
ceito de criatividade é o do termo inovação. os mais diversos conhecimentos.
Muitas vezes, por falta de clareza, esses dois O hipertexto flexibiliza as barreiras
conceitos são utilizados como sinônimos. A- entre os diferentes campos do conhecimento,
pesar de esses dois conceitos estarem intima- possibilitando infinitas conexões entre as in-
mente interligados, a inovação pressupõe que formações de modo reticular. Assim, o hiper-
algo criativo já tenha sido gerado. texto se configura como um mundo de signi-
Inovar significa introduzir novidade, ficação a ser explorado, de maneira que o hi-
adotar e implementar uma nova idéia (proces- pertexto:
so, bem ou serviço) em uma dada situação
como resposta a um problema percebido, “é talvez uma metáfora válida para to-
transformando a nova idéia em algo concreto das as esferas da realidade em que sig-
(Alencar, 1998). Assim, inovar depende que nificações estejam em jogo.” (Lévy,
idéias criativas tenham sido elaboradas a pri- 1997: 25)
ori, de modo que estas idéias são reelaboradas
e adaptadas a um novo contexto. Esse proces- A rede é uma forma de organização
so intencional é realizado sempre visando um democrática, constituída por elementos autô-
benefício, transferindo-se uma idéia proveito- nomos, mas que cooperam entre si e se inter-
sa que foi implementada em determinado am- ligam de modo a complementar-se e enrique-
biente para outro contexto que necessita dos cer-se. São as articulações que fortalecem e
mesmos melhoramentos. expandem a rede de conhecimentos, demons-
Nesse sentido, criar exige muito mais trando que uma das principais características
do sujeito que o ato de inovar, criatividade é das redes é a sua capacidade de existir sem
um processo que resulta de um comportamen- hierarquia. Da mesma forma, a rede não pos-
to produtivo, construtivo, contribuição para; sui um centro único, mas todas as suas cone-
atitude que demanda conhecimento, imagina- xões se constituem em pontos da rede, locais
ção e avaliação; implica desafiar, ver novas onde ocorrem as inter-relações entre os diver-
maneiras, arriscar-se, sendo necessário, dessa sos elementos da rede, o que constitui a mul-
forma, condições de inventividade que abram tiplicidade do conhecimento.
espaços para apreensões, dúvidas e perguntas; A rede hipertextual favorece um pen-
não é um atributo de indivíduos, mas dos sis- samento não-linear, onde o leitor-caminhante
temas sociais que fazem julgamento sobre os é um sujeito ativo, que está a todo o momento
indivíduos (aquele que imprime em seu con- estabelecendo relações próprias entre diversos
texto suas variações individuais). caminhos4. Nessa perspectiva, é preciso preo-
cupar-se com o percurso, nas múltiplas e inin-
3. No labirinto da concepção hipertextual terruptas conexões e articulações nas quais o
sujeito vai descobrindo, revelando, recriando
O conhecimento é tecido por fios ad- significados. As possibilidades de trajeto que
vindos de inúmeros lugares, de diferentes os sujeitos podem estabelecer nas redes de
campos do saber e de diversas naturezas, que conhecimentos se dão de forma não-linear,
se entrelaçam em um constante movimento, em um processo de construção de sentido por
tecendo-se e destecendo-se, de modo a formar meio da conexão de diversos e diferentes tex-
uma rede hipertextual. O hipertexto1 é uma tos5 verbais e não-verbais, que possibilitam a
construção aberta, propícia às relações dialó- articulação de vários conteúdos e a negocia-
gicas2 entre os caminhantes da rede, e forma- ção/interpretação dos sentidos6.
da por diversos gêneros discursivos – sejam Assim, o hipertexto é uma rede comu-
jornais, filmes, poesias, músicas, literatura, nicacional/social alimentada por informações
pinturas, livros, mídias, esculturas, propagan- que possibilita aos seus exploradores constru-
das, dentre vários outros – que trazem inúme- írem diferentes compreensões, devido à sua
natureza rizomática e estrutura labiríntica.

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Como um labirinto7 a ser explorado, a rede propondo descobertas/leituras mais inusita-


hipertextual promete aos seus exploradores das.
surpresas e percursos desconhecidos.
O labirinto rizomático é um labirinto “Um olhar investigativo das redes reve-
aberto a todos os pontos de vistas e sentidos e la-nos que existe, por trás do aparente
totalmente conectável, em todas as direções, caos, uma ordem complexa. Assim, o
possui um “caráter de revelação. Interagir (no labirinto fala-nos desse caos ordenado,
amplo sentido [...]) com a obra faz com que a de uma estrutura complexa que requer
pessoa obtenha uma outra percepção do mun- um tremendo esforço para ser decifra-
do” (Leão, 2002: 161). Esse tipo de labirinto, da.” (Leão, 2002: 36)
porém, exige uma participação especial dos
seus exploradores, uma participação mais co- Os labirintos exigem simultaneamente
laborativa, pois o sujeito: criatividade para percorrê-lo, no sentido de
quem realiza uma obra, revelando o percurso
“tem de necessariamente querer pene- doloroso da criação, com suas idas e vindas e
trar no labirinto. No caso de um labirin- com seus múltiplos erros e acertos, e um alto
to textual, isso significaria o esforço in- grau da ação reflexiva, para penetrá-los e
telectual que é exigido para a compre- compreendê-los, de modo a “extrair um todo
ensão.” (Leão, 2002: 160) coerente de seus meandros” (Leão, 2002: 22).
Os labirintos são construções comple-
Aprender é construir um labirinto, in- xas que evocam inúmeras inter-relações entre
ventar percursos, procurar situações desafian- referências que seriam contraditórias de acor-
tes, decifrar enigmas. É construir um labirinto do com uma visão linear. Nesses ambientes se
com movimentos (uma dança), num ritmo de entrelaçam inúmeros sentidos e significados,
movimentos alternantes, onde os labirintos se em uma constante polissemia. São essas idéi-
desdobram em infinitos labirintos durante o as contraditórias que estão nas bases das bi-
percurso. As estruturas se reconstroem, des- furcações, são pares opostos, mas comple-
dobram-se e se proliferam à medida que no- mentares entre si, que incorporam antinomias
vos caminhos são desbravados, de modo que como “ordem & caos, prisão & liberdade, li-
este é um espaço que se cria mediante o ato nearidade & circularidade, clareza & comple-
de caminhar. xidade, instabilidade & estabilidade” (Leão,
2002: 20).
“Podemos conceber a complexidade la- Nessa perspectiva, estabelece-se uma
biríntica também como um território re- nova forma de julgar os antigos dualismos,
pleto de encruzilhadas no qual os cami- propiciando um novo olhar sobre suas com-
nhos bifurcam-se o tempo todo.” (Leão, plexas relações. Podemos observar que os
2002: 32) caminhos se bifurcam, mas um não nega a
existência do outro. Ao contrário, para existi-
Assim, o hipertexto se constitui em rem caminhos opostos, pelo menos duas al-
um labirinto multicursal, onde cada caminho, ternativas de percurso devem coexistir, esco-
cada ponto da rede de conhecimento se des- lhas que não compõem somente numa bifur-
dobra em diversos outros caminhos, abrindo cação entre certo e errado, mas constroem um
inúmeras possibilidades de trajeto. Esses de- “fascinante labirinto de idéias que se entrela-
safios que surgem ao longo da jornada que çam e se conjugam” (Leão, 2002: 42).
impulsionam a constante busca por orienta-
ção. 4. As barreiras e os descaminhos do pro-
São as constantes bifurcações que pos- cesso criativo
sibilitam diferentes escolhas aos sujei- A criatividade é o “recurso mais pre-
tos/leitores que se aventuram em caminhos cioso de que o ser humano dispõe para lidar
desconhecidos, rompendo com a linearidade e com os problemas e desafios” (Virgolim,

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1998: 07). Entretanto, esse dom natural do ser


humano, muitas vezes é reprimido desde a Uma das formas de se anular total-
infância, como por exemplo, pelo modelo e- mente o desenvolvimento de idéias criativas é
ducativo que possuímos atualmente. Esse privilegiando o produto final, trazido pelos
modelo não estimula o pensamento criativo, educandos, que seu processo de criação. Esse
levantando barreiras para deixar de fora das produto final, muitas vezes, ainda é avaliado,
aulas a imaginação e a fantasia, privilegiando comparado de forma taxativa e, se não estiver
a reprodução e a memorização como formas adequado aos moldes estabelecidos pelo pro-
de ensino. cesso de avaliação, são desprezados todos os
O processo criativo envolve indepen esforços criativos dos seus criadores.
dência e curiosidade. Aprender sempre mais Esse é resultado de um processo edu-
de forma diferente e flexível. O atual sistema cativo autoritário onde a prioridade é a trans-
de ensino, ao não valorizar o desenvolvimento missão do conhecimento, ao invés de sua
da criatividade, tem “subestimado o potencial construção. Onde a aprendizagem é vista co-
criativo de seus alunos. Uma possibilidade de mo um processo individual, na qual é prio-
explorarmos nosso potencial criativo reside na rizado o produto final e não o processo pelo
perspectiva de aprendermos a brincar com qual esta acontece, possuindo um fim em si
nossos pensamentos e idéias. A criatividade mesma, onde o educando não atua, sendo
apresenta-se como elemento indispensável na considerado como um simples objeto do pro-
prática educacional e na vida diária” (Virgo- cesso educativo.
lim, 1998: 28). A escola se constitui em um agente
A educação tem o papel de oportuni- responsável pela formação integral do edu-
zadora e propiciadora do desenvolvimento e cando, para que no futuro este possa fazer
formação de cidadãos criativos, preparados parte da sociedade ao se engajar em uma pro-
para a atuação numa sociedade marcada pelo fissão. Contudo, o aluno não é preparado para
dinamismo. Entretanto, como afirma Alencar o mundo, mas para passar na avaliação, a es-
(1986), a escola, com freqüência, tem fracas- cola apenas repassa os aportes necessários
sado nessa tarefa de favorecer a criatividade, para que os sujeitos obtenham o sucesso, de
pois: forma que esse depende exclusivamente do
esforço individual, recaindo sobre os sujeitos
“dá ênfase exagerada ao conformismo, toda a responsabilidade pelo seu sucesso ou
à passividade e à estereotipia, em detri- fracasso. O educando é excluído do processo
mento de certas condições que favore- de construção do conhecimento, seu papel se
cem a manifestação da criatividade, restringe apenas à memorização de conceitos
como a intuição, a abertura aos senti- abstratos que lhe foram ensinados, de modo
mentos e emoções, interesses estéticos e que todas as diferenças individuais e o con-
curiosidade.” (Alencar, 1986: 33) texto ao qual os educandos pertencem são ig-
norados.
E não só a escola, mas a sociedade A partir de todas essas barreiras que se
como um todo, cultivou ao longo do tempo impõem ao processo criativo, muitas questões
vários pressupostos que impedem que o po- nos são levantadas, tais como: Muitos profes-
tencial criativo presente em todos os sujei- sores não valorizam a criatividade no con-
tos/educandos se desenvolva, pressupostos texto escolar, será que esses professores não
rígidos segundo os quais: percebem a importância da criatividade na
vida das pessoas? Ou será que acreditam que
“tudo tem que ter utilidade, tudo tem basta transmitir as informações que receberam
que dar certo, tudo tem que ser perfeito, no passado? Ou será que repetem as mesmas
não se pode divergir das normas im- coisas ano após ano por comodismo? Já sa-
postas pela cultura etc.” (Alencar e Mit- bemos qual é o objetivo da criatividade na
jáns Martínez, 1998: 25) educação, agora, qual o objetivo da educação

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em uma sociedade que se apresenta cada vez esquecendo de todas as suas vivências. As-
mais criativa? O envolvimento pessoal dos sim:
estudantes em seu processo de aprendizagem
é essencial, caso o estudante não apresente “A criatividade depende também em
esse caráter ativo, como é desenvolvido o po- larga escala das características do ambi-
tencial criativo desse estudante durante o pro- ente interno, como práticas interpesso-
cesso ensino-aprendizagem? ais, sistemas de normas e valores, pre-
Como pudemos perceber, inúmeras sença de incentivos e desafios, que po-
são as barreiras impostas ao desenvolvimento dem estimular ou obstruir a criativi-
da criatividade, desde barreiras sociais, que dade.” (Alencar, 1998: 14)
“se identificam com aqueles elementos cultu-
rais, institucionais, grupais, ideológicos etc., Por meio da existência de um sujeito
que, estando presentes no contexto onde o único evidencia-se não apenas um modo de
indivíduo atua, limitam sua expressão cria- ser individual, mas a possibilidade de um
tiva” (Alencar e Mitjáns Martínez, 1998: 26), mundo transformado segundo os seus ideais.
até barreiras do próprio sujeito, as barreiras Uma das características de uma pessoa cria-
pessoais, “aqueles elementos que freiam o tiva é a sua complexidade, uma pessoa cria-
indivíduo internamente, ou seja, aquelas ca- tiva não é facilmente compreendida de um
racterísticas do próprio sujeito que limitam a ponto de vista linear, pois se manifesta de di-
sua criatividade.” (idem) Desse modo, as bar- ferentes maneiras, em função de contextos
reiras à criatividade são relativas, dependem distintos. Cada sujeito é diferente, o que gera
tanto dos sujeitos como das situações. significações diferentes, diversidade de su-
Cultivar o pensamento criativo, de- jeito, que ao se inserir numa concepção de
senvolvendo com os educandos as habilidades educação mais dialógica abre possibilidades
de perceberem lacunas, definirem problemas, para um processo criativo de produção de sig-
coletarem e combinarem informações, elabo- nificados. E para que isso seja possível, a E-
rarem critérios para julgar soluções, testar so- ducação Hipertextual contribui para a cons-
luções e elaborarem planos para imple- tituição de uma atitude dialógica, oferecendo
mentação das soluções escolhidas, é indispen- um ambiente de aprendizagem social e indi-
sável no processo educativo. A criatividade é vidual no sentido mais profundo da experiên-
um dos valores mais importantes nessa época cia de aprender.
em que vivemos porque o que mais se aprecia Ao se realizar uma Educação Hiper-
neste momento são idéias. E as idéias surgem, textual objetiva-se formar um sujeito capaz de
em geral, no desenvolvimento de um processo “ler” seu ambiente e interpretar as relações, os
educativo prazeroso que fertilize novas idéias conflitos e os problemas que surgem. Esta
e novas visões para nossas vidas. leitura é realizada pelo sujeito, segundo suas
condições históricas e culturais, quando este
5. Na teia da criatividade se inter-relaciona com um mundo de signifi-
cados e, através de um processo de descober-
Durante muito tempo, a criatividade ta, encontra soluções criativas para seu dia-a-
foi objeto de estudo apenas do campo da Psi- dia.
cologia. Estudava-se a criatividade como algo Para que essa aprendizagem ocorra, o
inato aos sujeitos, uma característica indivi- ato de educar deve tornar-se uma aventura
dual e que, assim, o diferenciava dos demais. pela qual o sujeito e os sentidos do mundo
Mas com o passar do tempo, verificou-se que vivido se construam mutuamente na dialética
a criatividade também era condicionada pelo da compreensão/interpretação. Nesse sentido,
contexto onde os sujeitos participavam, con- o sujeito-intérprete estaria diante de um mun-
cluindo-se que não era possível investigar o do-texto, mergulhado na polissemia e na a-
processo criativo estudando apenas a pessoa e ventura de produzir sentidos, construindo sua

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compreensão através da fusão de seus univer-


sos compreensivos que se encontram. “Os exercícios de criatividade propi-
Esse tipo de educação para a criativi- ciam uma abertura da sala de aula para
dade suscita diferentes estilos de pensar e a- a expressão do pensamento divergente,
prender dos educandos, o que exige a utili- influindo no aumento da auto-estima
zação de estratégias variadas de ensino- dos alunos e na satisfação do aluno com
aprendizagem. Não basta uma educação cal- o sistema escolar.” (Virgolim, 1998: 10)
cada em uma única forma de ensinar e de a-
prender, é necessária a constituição de um É essencial que as escolas possibilitem
espaço pluralizado, com variação de textos, aos alunos distintas alternativas para a expres-
gêneros, percursos, bifurcações e encruzilha- são e o desenvolvimento do potencial criador,
das, que possibilitem ao educando a experiên- pois criar é algo inerente ao ser humano, es-
cia do caminhar e a constituição de um co- tamos criando e inventando todo o tempo.
nhecimento múltiplo durante os trajetos da Todos nós possuímos um potencial criativo e
própria viagem. habilidades e talentos para inovar e inventar,
Os percursos percorridos durante o sendo que as emoções, sensações e os senti-
processo criativo são os percursos de um labi- mentos muitas vezes constituem-se em mola
rinto, pois “atos criativos são atos de cora- propulsora para o ato criativo.
gem. Primeiro, porque o criador de uma ino- A escola, frente suas dificuldades, de-
vação técnica ou social está entrando em á- ve procurar uma forma criativa para solu-
guas desconhecidas” (Frost apud Alencar, cionar seus problemas e suprir suas necessi-
1998: 16). Segundo, porque o explorador, dades, além disso, abrir possibilidade para
como leitor/produtor, encontra em sua aven- que seus educandos desenvolvam seu poten-
tura no labirinto elementos indispensáveis pa- cial criativo, assim, estes “aprendem a sensi-
ra o desenvolvimento do processo criativo – bilizar-se com seus próprios problemas e a
como motivação, abertura à experiência, in- defini-los para solucioná-los criativamente”
dependência, flexibilidade, autoconfiança, (Mitjáns Martínez, 2003: 147). A escola deve
multiplicidade, além de vários outros citados apresentar um contexto de apoio, ideal para
ao longo do texto. trabalhar as expressões de mundo interna dos
A multiplicidade da rede de conheci- seus educandos.
mentos8 favorece uma dinâmica de organiza- Um contexto escolar baseado no com-
ção que desencadeia processos imprevisíveis promisso de criar interações dinâmicas com a
de criação. Assim, um ambiente propício ao organização do trabalho pode motivar as pes-
desenvolvimento da criatividade deve possuir soas a apresentarem soluções criativas para
“disponibilidade de meios culturais, abertura seus problemas, de modo a não deixar que os
a estímulos ambientais, livre acesso aos meios trabalhos oferecidos pela escola sejam inter-
culturais por todos os cidadãos sem discrimi- rompidos. Assim, as pessoas presentes no
nação, exposição a estímulos culturais dife- contexto escolar, a cada dia que passa, au-
rentes e mesmo antagônicos” (Alencar e Mit- mentam seu potencial criativo ao se envolver
jáns Martínez, 1998: 24). Em outras palavras, com a escola e ao traçar metas para alcançar
uma educação atualizada, que utilize aportes seus objetivos.
teóricos do dia-a-dia dos educandos de forma
a preparar cidadãos críticos para os desafios “Os objetivos não têm de ser exata-
do mundo contemporâneo. mente os mesmos para todos os estu-
A escola pode estimular o pensamento dantes. Os alunos são antes de tudo pes-
criativo desenvolvendo e utilizando os talen- soas diferentes, com níveis diversifica-
tos e habilidades dos alunos, incentivando-os dos de desenvolvimento motivacional e
a soltar a imaginação, explorando suas idéias intelectual e diferentes áreas de interes-
e soluções criativas para diferentes situações e ses específicos. Dentro do possível, pre-
problemas. cisamos trabalhar com estas diferenças,

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contribuindo para que cada um se de- show, conseguindo conquistar todos os seus
senvolva o máximo.” (Mitjáns Martí- educandos. Se valorizarmos apenas a criativi-
nez, 2003: 166) dade “inata” desse educador, acreditamos que
uma docência de qualidade se baseia em ta-
Dessa forma, é importante trabalhar lentos capazes de seduzir os educandos, signi-
com as diferenças como forma de surgimento fica desprezarmos o valor de uma formação
de diferentes atos criativos, cada um, em sua profissional e de recursos voltados para o a-
especificidade, desenvolve suas habilidades primoramento da prática pedagógica, des-
criativas e contribui para a escola de maneiras valorizamos, assim, uma educação pautada na
diferentes. E para que esse contexto favorável formação crítica, na construção do conheci-
ao desenvolvimento da criatividade ocorra, é mento, no estabelecimento de relações dialó-
necessário estar sempre: gicas e nos diversos recursos onde estão pre-
sentes os diferentes olhares, os diferentes dis-
“Incentivando a curiosidade, propondo cursos.
desafios inovadores e interessantes, re- O que caracteriza um professor com-
forçando uma auto-estima positiva, prometido com o desenvolvimento da criati-
permitindo o erro, promovendo um am- vidade dos educandos não é o seu conheci-
biente de conforto emocional e de tole- mento dos métodos, mas a crença que sus-
rância para com o fracasso e as frustra- tenta sobre os estudantes e sobre si mesmo,
ções.” (Virgolim, 1998: 24) pois:

Nessa perspectiva, uma instituição e- “O professor criativo é capaz de trans-


ducacional que valoriza cada pessoa envol- mitir e extrair de seus estudantes vivên-
vida em seu contexto tem possibilidades de cias emocionais positivas em relação à
oferecer uma educação de qualidade e incen- sua matéria, ao processo de aprendiza-
tivar a criatividade, o que irá proporcionar a gem e às realizações produtivas.” (Mit-
formação de cidadãos conscientes de sua res- jáns Martínez, 2003: 185)
ponsabilidade social. Assim, a escola pode
direcionar “seu olhar para o futuro, exerci- Quando o professor desenvolve sua
tando a imaginação e a fantasia de seus alunos prática pedagógica de forma lúdica que esti-
na tentativa de solucionar problemas e/ou si- mule o processo criativo, o ensino-aprendiza-
tuações que novos tempos sempre trazem” gem se torna mais fácil, privilegiando a cons-
(Virgolim, 1998: 25). trução de conhecimentos.
Contudo, devemos considerar também
que o “desenvolvimento da criatividade na 6. Considerações finais
educação passa necessariamente pelo nível da
criatividade dos profissionais que nele se en- No contexto contemporâneo em que a
contram.” (Alencar e Mitjáns Martínez, 1998: sociedade se caracteriza pela globalidade e
31) Contribuir para o desenvolvimento da cri- pela complexidade das dinâmicas relacionais,
atividade dos educandos supõe atitudes dos se faz necessário que a escola possa desen-
educadores que implicam certo grau de criati- volver o potencial criativo dos educandos.
vidade, no entanto, muitos educadores “não se Propiciar ambientes de diálogo entre educado-
sentem preparados para lidar com o desenvol- res de diferentes instituições, maximizando
vimento da Criatividade em sala de aula; têm possibilidades de compartilhamento de suas
dificuldades em diagnosticar atitudes criati- experiências, configura-se numa ferramenta
vas, em avaliá-las e em promovê-las” (Giglio, para o desenvolvimento do pensamento cria-
1992: 94). tivo.
Por outro lado, também ouvimos mui- Assim, propõe-se que a escola es-
to que o “bom educador” é aquele que usa a force-se para cumprir seu papel de “fornecer
criatividade, o carisma e ministra uma aula experiências novas, instigantes, que desper-

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tem a curiosidade” dos educandos, e também fônica, de modo a favorecer o processo cria-
dos professores para que estes, em conjunto, tivo e a geração de produtos criativos.
possam buscar “soluções originais para os
problemas que estão emergindo em decorrên- “A ação criativa do professor em sala de
cia das exigências da modernização dos tem- aula demanda não só sua capacidade de
pos” (Matos, 2005: 03). elaborar atividades inovadoras que
O hipertexto, com sua lógica labirín- permitam a atingir os objetivos educati-
tica, é uma alternativa às práticas educativas vos de forma mais eficiente, mas tam-
autoritárias, oferece oportunidades de desen- bém demanda habilidades comunicati-
volvimento de atividades criativas a serem vas que lhe permitam criar um espaço
trabalhadas nas salas de aula dos mais dife- comunicativo que se constitua no es-
rentes lugares, transformando-as em ambien- paço onde as atividades podem fazer
tes potencializadores do diálogo e do com- sentido para o desenvolvimento da cria-
partilhamento de experiências, que subsidiem tividade.” (Mitjáns Martínez, 2002:
a criação de mudanças significativas para o 189)
desenvolvimento de processos de aprendiza-
gem sistemicamente mais criativos. 7. Referências bibliográficas

“A solução inovadora de problemas, a Alencar, E.S. (1986). Psicologia da Criativi-


capacidade de problematizar a informa- dade. Porto Alegre: Artes Médicas.
ção recebida, as perguntas interessantes, Alencar, E.S. (1998). Gerência da criativida-
a elaboração própria do conhecimento, de. São Paulo: Makron Books.
a curiosidade, o estabelecimento de re- Alencar, E.S. e Mitjáns Martínez, A. (1998).
lações, às vezes remotas mas pertinen- Barreiras à expressão da criatividade entre
tes, são formas de expressão da criativi- profissionais brasileiros, cubanos e portugue-
dade no processo de apropriação de co- ses. Psicol. Esc. Ed., 2 (1), 23-32.
nhecimentos que devem e podem ser es- Bakhtin, M. (1981). Problemas da poética de
timulados no contexto escolar. As atitu- Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Univer-
des e as ações criativas no processo de sitária.
produção de conhecimento constituem a Barros, D.L.P. e Fiorin, J.L. (Orgs.). (1994).
base para a capacidade de aprender a Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em
aprender, tão valorizada hoje como torno de Bakhtin Mikhail. São Paulo: Editora
competência profissional e con- da Universidade de São Paulo. (Ensaios de
sequentemente como um objetivo edu- Cultura, 7)
cativo importante.” (Mitjáns Martínez, Chaves Filho, H. (2003). Educação Hipertex-
2002: 192) tual: por uma abordagem dialógica, polifôni-
ca e intertextual. Dissertação de Mestrado,
Criar é estabelecer novas coerências, Programa de Pós-Graduação em Educação,
suscitar novos significados, fazer novos rela- Universidade de Brasília, Brasília, DF.
cionamentos, compreender em termos novos, Fernandes, M.C. (1998). Criatividade: um
é uma aventura em busca de saídas originais, guia prático – preparando-se para as profis-
desbravar novos caminhos, assim, o ato cria- sões do futuro. São Paulo: Editora Futura.
tivo esta diretamente ligado à capacidade de Alencar, E.S. (1998). Gerência da criativida-
compreensão dos sujeitos, à capacidade de de. São Paulo: Makron Books.
relacionar, de configurar, de significar. O e- Giglio, Z.G. (1992). De criatividade e de E-
ducador, para mobilizar seus educandos a se ducação. Campinas: Editora Unicamp.
tornarem pessoas mais criativas, pode utilizar Leão, L. (2002). A estética do labirinto. São
uma metodologia mais aberta, flexível, con- Paulo: Editora Anhembi Morumbi.
textualizada, desafiadora, heterogênea, poli- Lévy, P. (1997). O que é o virtual?. São Pau-
lo: Editora 34.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 62-71 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Matos, D.R. (2005). Criatividade e percepção Mitjáns Martínez, A. (2003). Criatividade,


o clima de sala de aula entre alunos e escolas personalidade e educação. Campinas: Editora
abertas, intermediárias e tradicionais. Disser- Papirus.
tação de Mestrado, Programa de Pós- Sátiro, M.A.L. (2002). Criar? Algo para pen-
Graduação em Psicologia, Universidade de sar... Um artigo para ser re-escrito ao ser lido.
Brasília, Brasília, DF. Rev. Linhas Crít. Fac.Ed. UnB, 8 (15), 221-
Mitjáns Martínez, A. (2002). A criatividade 230.
na escola: três direções de trabalho. Rev. Li- Virgolim, A.M.R. (Org). (1998). Toc, toc,...
nhas Crít. Fac. Ed. UnB, 8 (15), 189-206. plim, plim: lidando com as emoções, brincan-
do com o pensamento através da criatividade.
Campinas: Editora Psy.

Notas

(1) Nesse estudo, o hipertexto é adotado como sendo uma estratégia de construção do conhecimento, uma vez que, “a
hipertextualidade materializa um novo modo de produção intelectual humana, evocando as características multidimen-
sionais presentes nas estruturas de dinâmica em rede” (Chaves Filho, 2003: 40).
(2) “O dialogismo é, para Bakhtin, um termo usado para designar a negociação de significados socialmente construídos
pela interação de vozes múltiplas, caracteriza-se pelo agrupamento de pessoas, permeados por experiências comparti-
lhadas ou interesses, onde a construção de significados de dá por um processo contínuo de comunicação, interpretação e
negociação.” (Chaves Filho, 2003: 44)
(3) Bakhtin (1981: 32) caracteriza como polifonia a “multiplicidade de vozes e consciências independentes e distintas
que representam pontos de vista sobre o mundo”.
(4) A multilinearidade possibilita a criação de um espaço para o exercício da autonomia do leitor, que realiza seu traba-
lho de significação a partir das escolhas que faz nesse ambiente, intervindo, não apenas na seleção de caminhos, mas,
também, ou, principalmente, na construção de sentido.
(5) “A intertextualidade é o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado,
seja para transformá-lo.” (Barros, 1994: 30)
(6) A comunicação entre os sujeitos que caminham pela rede é fator estruturante.
(7) Na metáfora do labirinto como conhecimento, assim como na rede hipertextual, tudo é considerado texto, é uma
rede na qual há a conexão dos diferentes saberes.
(8) Essa multiplicidade é uma conseqüência da heterogeneidade das redes, possibilidade de interação com diferentes
linguagens e múltiplas vozes, é a própria essência do dialogismo. A heterogeneidade é expressa pela inclusão de ele-
mentos diferenciados, por vezes conflitantes, num mesmo espaço, exigindo do leitor um desenvolvimento apurado do
olhar, de modo a considerar as diferenças, e não as igualdades.

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S u b me t i d o e m 1 3 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Artigo Científico

Construindo mapas conceituais


Constructing concept maps

Romero Tavares

Departamento de Física, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, Brasil

Resumo

O mapa conceitual é uma estrutura esquemática para representar um conjunto de conceitos imersos
numa rede de proposições. Ele é considerado como um estruturador do conhecimento, na medida em
que permite mostrar como o conhecimento sobre determinado assunto está organizado na estrutura
cognitiva de seu autor, que assim pode visualizar e analisar a sua profundidade e a extensão. Ele pode
ser entendido como uma representação visual utilizada para partilhar significados, pois explicita como
o autor entende as relações entre os conceitos enunciados. O mapa conceitual se apóia fortemente na
teoria da aprendizagem significativa de David Ausubel, que menciona que o ser humano organiza o
seu conhecimento através de uma hierarquização dos conceitos. © Ciências & Cognição 2007; Vol.
12: 72-85.

Palavras-chave: aprendizagem significativa; construção de significados; estrutura


cognitiva; hierarquia de conceitos.

Abstract

A concept map is a schematic framework that represents a group of concepts immersed in a web of
propositions. It is considered as a structure maker of knowledge, as it permits to show how knowledge
about a topic is organized in the cognitive structure of his author, that can visualize and analyze its
deep and extension. It can be seen as a visual representation used to share meanings, because it
makes evident how the author understands the relations among the mentioned concepts. The concept
map is strongly supported theoretically by the meaningful theory of David Ausubel that says the hu-
man being organize their knowledge in a hierarchical way. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12:
72-85.

Key Words: meaningful learning; construction of meanings; cognitive structure; hi-


erarchy of concepts.

1. Introdução aprendizagem como um processo no qual o


aprendiz relaciona a informação que lhe é a-
O construtivismo tem diversas verten- presentada com seu conhecimento prévio so-
tes, mas todas concordam em considerar a bre esse tema. A história da construção do

 - R. Tavares é Bacharel em Física (UFPE), Mestre em Astronomia (Universidade de São Paulo, USP) e Doutor em
Física (USP). Atualmente é Professor Associado I do Departamento de Física (UFPB) e atua na Área de Educação no
PPGE/CE/UFPB, com projetos sobre “Aprendizagem significativa e o ensino de Ciências”; “Codificação dual, esforço
cognitivo e aprendizagem multimídia”; “Mapa conceitual como estruturador do conhecimento”. Página pessoal:
http://www.fisica.ufpb.br/~romero/.

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conhecimento pessoal é a história da vida de nhecida, quer a um ramo desconhecido


cada um de nós, pois construímos esse conhe- de um conjunto de conhecimentos fami-
cimento de uma maneira específica e indivi- liar. Também corresponde à forma pos-
dual. A construção do conceito sobre um ob- tulada, através da qual se representam,
jeto de uso corriqueiro, como cadeira, tem organizam e armazenam estes conheci-
características comuns a todos nós, tais como mentos nas estruturas cognitivas huma-
a sua forma e funcionalidade. Mas existe algo nas.
de específico na maneira que cada um de nós Por outras palavras, elaboram-se
vê uma cadeira, que reflete a forma idiossin- aqui dois pressupostos:
crática que construímos esse conceito. Cada
um de nós foi apresentado a uma cadeira e foi (1) é menos difícil para os seres huma-
construindo esse conceito de maneira absolu- nos apreenderem os aspectos diferenci-
tamente pessoal. Essa forma idiossincrática ados de um todo, anteriormente apreen-
foi sendo definida com as condições que en- dido e mais inclusivo, do que formular
contramos ao nascer e viver as primeiras ex- o todo inclusivo a partir das partes dife-
periências, o estilo de vida e as oportunidades renciadas anteriormente aprendidas;
de vivências que nos foram oferecidos. (2) a organização que o indivíduo faz do
Numa frase que ficou famosa, Ausub- conteúdo de uma determinada disciplina
el mencionou que se tivesse que reduzir toda no próprio intelecto consiste numa es-
a Psicologia Educacional a um único princí- trutura hierárquica, onde as idéias mais
pio, diria isto: inclusivas ocupam uma posição no vér-
tice da estrutura e subsumem, progres-
“O fator isolado mais importante que sivamente, as proposições, conceitos e
influencia a aprendizagem é aquilo que dados factuais menos inclusivos e mais
o aprendiz já conhece. Descubra o que diferenciados.” (Ausubel, 2003: 166)
ele sabe e baseie nisso os seus ensina-
mentos.” (Ausubel et al., 1980) A construção de mapas conceituais na
maneira proposta por Novak e Gowin (Novak,
Segundo David Ausubel o ser humano 1998; Novak e Gowin, 1999) considera uma
constrói significados de maneira mais eficien- estruturação hierárquica dos conceitos que
te quando considera inicialmente a aprendiza- serão apresentados tanto através de uma dife-
gem das questões mais gerais e inclusivas de renciação progressiva quanto de uma reconci-
um tema, ao invés de trabalhar inicialmente liação integrativa. A figura 1 mostra um mapa
com as questões mais específicas desse assun- conceitual que apresenta tanto a diferenciação
to: progressiva quanto a reconciliação integrati-
va. Esses mapas hierárquicos se estruturam de
“Quando se programa a matéria a ser acordo com a Teoria da Aprendizagem Signi-
lecionada de acordo com o princípio de ficativa de David Ausubel, e desse modo con-
diferenciação progressiva, apresentam- tribuem, de maneira mais eficiente, para a
se, em primeiro lugar, as idéias mais ge- construção do conhecimento do aprendiz.
rais e inclusivas da disciplina e, depois, Na diferenciação progressiva um de-
estas são progressivamente diferencia- terminado conceito é desdobrado em outros
das em termos de pormenor e de especi- conceitos que estão contidos (em parte ou in-
ficidade. Esta ordem de apresentação tegralmente) em si. Por exemplo, na figura1,
corresponde, presumivelmente, à se- o conceito Processos engloba os conceitos
qüência natural de aquisição de consci- Avaliação da aprendizagem e Construção
ência cognitiva e de sofisticação, quan- do conhecimento, e essa espécie de bifurca-
do os seres humanos estão expostos, de ção configura uma diferenciação progressiva;
forma espontânea, quer a uma área de estaremos indo de conceitos mais globais para
conhecimentos completamente desco- conceitos menos inclusivos.

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Figura 1 – Mapa conceitual sobre uma disciplina de Física.

Na reconciliação integrativa um de- especialista tornar mais clara as conexões que


terminado conceito é relacionado a outro apa- ele percebe entre os conceitos sobre determi-
rentemente díspar. Um mapa conceitual hie- nado tema.
rárquico se ramifica em diversos ramos de Quando um aprendiz utiliza o mapa
uma raiz central. Na reconciliação integrativa durante o seu processo de aprendizagem de
um conceito de um ramo da raiz é relacionado determinado tema, vai ficando claro para si as
a um outro conceito de outro ramo da raiz, suas dificuldades de entendimento desse te-
propiciando uma reconciliação, uma conexão ma. Um aprendiz não tem muita clareza sobre
entre conceitos que não era claramente per- quais são os conceitos relevantes de determi-
ceptível. No mapa conceitual da figura 1 estão nado tema, e ainda mais, quais as relações
apresentadas duas situações com reconcilia- sobre esses conceitos. Ao perceber com clare-
ção integrativa, e as conexões estão apresen- za e especificidade essas lacunas, ele poderá
tadas num tracejado em negrito. Essas liga- voltar a procurar subsídios (livro ou outro ma-
ções cruzadas podem indicar capacidade cria- terial instrucional) sobre suas dúvidas, e daí
tiva (Novak e Gowin, 1999: 52) na percepção voltar para a construção de seu mapa. Esse ir
de um elo conceitual entre dois segmentos de e vir entre a construção do mapa e a procura
um mapa. de respostas para suas dúvidas irá facilitar a
O mapa conceitual hierárquico se co- construção de significados sobre conteúdo
loca como um instrumento adequado para es- que está sendo estudado. O aluno que desen-
truturar o conhecimento que está sendo cons- volver essa habilidade de construir seu mapa
truído pelo aprendiz, assim como uma forma conceitual enquanto estuda determinado as-
de explicitar o conhecimento de um especia- sunto, está se tornando capaz de encontrar
lista. Ele é adequado como instrumento facili- autonomamente o seu caminho no processo
tador da meta-aprendizagem, possibilitando de aprendizagem. Caso ele não consiga en-
uma oportunidade do estudante aprender a contrar as respostas nas consultas ao material
aprender, mas também é conveniente para um instrucional, ele ainda assim terá conseguido

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ter clareza sobre as suas perguntas, e desse Quando se deseja otimizar um deter-
modo já terá encaminhado a sua aprendiza- minado processo, a utilização do mapa tipo
gem de maneira conveniente e segura. Pois fluxograma é a representação mais adequada.
quando se tem clareza das perguntas, ou das Esse tipo de mapa deixa claro quais são as
dúvidas, é mais fácil procurar ajuda de pesso- confluências e as possíveis opções a serem
as mais experientes. escolhidas. Ele ainda é extremamente utiliza-
Normalmente, a aprendizagem por re- do na elaboração de programas de computa-
cepção significativa ocorre à medida que o dor, quando se deseja construir um algoritmo
material de instrução potencialmente signifi- eficiente para determinada função.
cativo entra no campo cognitivo do aprendiz, No entanto, o único tipo de mapa que
interage com o mesmo e é ancorado, de forma explicitamente utiliza uma teoria cognitiva em
adequada, a um sistema conceitual relevante e sua elaboração é o mapa hierárquico do tipo
mais inclusivo. (Ausubel, 2003: 60). Esse ir e proposto por Novak e Gowin (1999).
vir entre o material instrucional e a construção
do mapa conceitual, colocado anteriormente, 2.1. Mapa conceitual do tipo teia de aranha
possibilita uma elaboração eficaz dos signifi- (figura 2)
cados sobre um tema. Caso não existam con-
ceitos âncora adequados na estrutura cogniti-
va, esse ir e vir será uma oportunidade da Ele é organizado colocando-se o con-
consecução dessa tarefa, na medida em que ceito central (ou gerador) no meio do mapa.
são elucidadas as lacunas conceituais sobre o Os demais conceitos vão se irradiando na me-
assunto. dida que nos afastamos do centro.
Embora os mapas conceituais possam
transmitir informações factuais tão bem quan- Vantagens: Fácil de estruturar, pois todas as
to os textos, esses organizadores gráficos são informações estão unificadas em torno de um
mais efetivos que os textos para ajudar os lei- ou vários temas centrais. O foco principal é a
tores a construir inferências complexas e inte- irradiação das relações conceituais, sem preo-
grar as informações que eles fornecem (Veki- cupação com as relações hierárquicas, ou
ri, 2002: 287). Eles também têm o potencial transversais.
de melhorar a acessibilidade e usabilidade
materiais durante uma pesquisa na medida Desvantagens: Dificuldade em mostrar as
que apresentam marcas visuais-espaciais que relações entre os conceitos, e desse modo
podem guiar uma seleção ou categorização. permitir a percepção de uma integração entre
Existe a comprovação empírica sobre a efici- as informações. Não fica clara a opinião do
ência de buscas, onde se comprova a que os autor sobre a importância relativa entre os vá-
interessados localizam mais informações rios conceitos e o conceito central.
quando elas são apresentadas em formas de
mapas ao invés de textos (O´Donnel, 1993: 2.2. Mapa conceitual tipo fluxograma (fi-
222). gura 3)
Ele organiza a informação de uma
2. Alguns tipos de mapas maneira linear. Ele é utilizado para mostrar
passo a passo determinado procedimento, e
Existe uma grande variedade de tipos normalmente inclui um ponto inicial e outro
mapas disponíveis, que foram imaginados e ponto final. Um fluxograma é normalmente
construídos pelas mais diversas razões. Al- usado para melhorar a performance de um
guns são preferidos pela facilidade de elabo- procedimento.
ração (tipo aranha), pela clareza que explicita
processos (tipo fluxograma), pela ênfase no Vantagens: Fácil de ler; as informações estão
produto que descreve, ou pela hierarquia con- organizadas de uma maneira lógica e seqüen-
ceitual que apresenta. cial.

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processo, sem a preocupação de explicar de-


Desvantagens: Ausência de pensamento crí- terminado tema; na sua gênese não pretende
tico, normalmente é incompleto na exposição facilitar a compreensão do processo, mas oti-
do tema. Ele é construído para explicitar um mizar a sua execução.

Figura 2 – Mapa conceitual do tipo TEIA de ARANHA.

2.3. Mapa conceitual tipo sistema: entrada Vantagens: Mostra várias relações entre os
e saída (figura 4) conceitos.

Organiza a informação num formato Desvantagens: Alguma vezes é difícil de se


que é semelhante ao fluxograma, mas com o ler devido ao grande número de relações entre
acréscimo da imposição das possibilidades os conceitos. Na sua gênese pretende explicar
“entrada” e “saída”. a transformação de insumos em produto aca-
bado. É adequado para explicar processos que
impliquem em entrada e saída.

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Figura 3 – Mapa conceitual do tipo FLUXOGRAMA.

Figura 4 – Mapa conceitual do tipo ENTRADA e SAÍDA (mapa acessado em 19/7/2007, no ende-
reço eletrônico: http://classes.aces.uiuc.edu/ACES100/Mind/graphics/food-map.gif).

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2.4. Mapa conceitual hierárquico (figura 5) balhos serão expressões pessoais que cada um
tem sobre o tema.
A informação é apresentada numa or- Novak mostra o mapa conceitual feito
dem descendente de importância. A informa- por um aluno do ensino fundamental, conside-
ção mais importante (inclusiva) é colocada na rando uma lista de conceitos que lhe foi apre-
parte superior. Um mapa hierárquico é usado sentada (ver Figura 7). Esse aluno era o me-
para nos dizer algo sobre um procedimento. lhor leitor em voz alta da sua turma, mas mos-
trou pouca compreensão a respeito do que lia.
Vantagens: Os conceitos mais inclusivos es- O seu mapa sugere uma abordagem de cor à
tão explícitos; os conceitos auxiliares e menos leitura, que não conduziu à aquisição de signi-
inclusivos estão inter-relacionados. Estrutura ficados (Novak e Gowin, 1999: 124). Nós
o conhecimento de maneira mais adequada a consideramos esse mapa como um MAU ma-
compreensão humana, considerando em posi- pa, e em contraposição, estamos apresentando
ção de destaque os conceitos mais inclusivos. um BOM mapa.
Um BOM (figura 6) mapa começa
Desvantagens: Mais difícil de externar e com uma boa seleção de conceitos relaciona-
construir, visto que expõe a estrutura cogniti- dos ao tema principal. Cada conceito pode
va do autor sobre o assunto. A clareza do au- estar relacionado a mais de um outro concei-
tor sobre o tema fica evidente quando da sua to. A existência de grande número de cone-
construção. A sua construção sempre repre- xões entre os conceitos revela a familiaridade
senta um desafio, visto que explicita (princi- do autor com o tema considerado. Mesmo que
palmente para si) a profundidade do conheci- ele não tenha feito a escolha dos conceitos a
mento do autor sobre o tema do mapa. serem mapeados, ele conseguirá perceber as
relações entre eles se tiver algum domínio so-
3. Construindo um mapa bre o tema.
Podemos exercitar as habilidades dos
Considerando mapas onde os concei- alunos na construção de mapas fornecendo
tos estão de acordo com o que é aceito pela seis ou oito conceitos chave que sejam fun-
comunidade científica sobre determinado te- damentais para compreender um tema que se
ma, não existe um mapa certo ou mapa erra- quer cobrir, e pedir aos estudantes que elabo-
do. Existem mapas com uma demonstração de rem um mapa conceitual que relacione tais
grande conhecimento sobre as possíveis rela- conceitos, e que acrescentem conceitos adi-
ções entre os conceitos mostrados. Dois gran- cionais relevantes e os ligues de modo a for-
des especialistas sobre um assunto dificilmen- marem proposições que tenha sentido (Novak
te construirão mapas iguais. Talvez eles con- e Gowin, 1999: 56).
cordem em linhas gerais sobre quais são os Um MAU mapa (figura 7) conceitual
conceitos mais importantes, mas dificilmente faz uma conexão linear entre os conceitos. Ele
eles escolherão as mesmas relações entre es- evidencia que seu autor não visualiza outras
ses conceitos. Dois especialistas não contesta- conexões, outras possibilidades de entendi-
rão os respectivos mapas, visto que esses tra- mento da questão (Novak e Gowin, 1999:
124).

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Figura 5 – Mapa conceitual do tipo HIERÁRQUICO.

Figura 6 – Um bom mapa conceitual.

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Figura 7 – Um mau mapa conceitual.

4. Mapa como estruturador do conheci- percepção clara do estágio cognitivo em


mento que se encontram. A possível dificuldade
inicial em traçar um mapa com os conceitos
Existem diversas aplicações em Edu- fornecidos pelo mestre será um indício cla-
cação dos Mapas Conceituais (Novak e Go- ro do estágio de conhecimento em que eles
win, 1999: 56), onde poderemos exemplificar se encontram. Ao se dirigirem para os ma-
algumas: teriais instrucionais (ou ao mestre) eles po-
derão ir construindo significados e desse
• Exploração do que os alunos já sabem – Na modo enriquecer o mapa inicial. Se a opção
figura 8, o então estudante de Mestrado, da estratégia for construir um mapa colabo-
demonstra suas idéias sobre determinado rativo, os estudantes terão a oportunidade
tema. de entrar em contato com as semelhanças e
• O traçado de um roteiro para a aprendiza- diferenças entre seus valores (e conceitos) e
gem – Quando um professor fornece uma aqueles de seus colegas; percebendo desse
lista de conceitos sobre determinado tema, modo que o conhecimento é idiossincráti-
e sugere que seus alunos façam um mapa co. Nesse ir e vir, construindo um mapa e
conceitual ele estará traçando um roteiro buscando novos conhecimentos, o estudan-
para a aprendizagem, estará indicando um te está elaborando as suas habilidades em
caminho que funciona como um andaime construir seu próprio conhecimento, está
cognitivo; facilita ao estudante chegar aon- aumentando a sua destreza na meta-
de não conseguiria ir sozinho. Com a sua aprendizagem.
ajuda ou de materiais instrucionais, os alu- • Leitura de artigos em jornais e revistas, ou
nos irão se debruçar sobre a tarefa, com a a extração de significados de livros de texto

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– Na figura 9, temos um mapa conceitual uma rede de conceitos extremamente densa.


sobre um artigo científico sobre esforço Uma solução adotada é o desdobramento de
cognitivo. um mapa mais inclusivo em diversos mapas
• Preparação de trabalhos escritos ou de ex- mais específicos. Na figura 10 um mapa con-
posições orais - Na Figura 5 nós temos um ceitual delineia as possibilidades de desenvol-
exemplo de mapa hierárquico conveniente vimento do ser humano ao longo de sua vida.
para mostrar a estruturação conceitual de Na figura 11, um mapa conceitual apresenta
uma Dissertação de Mestrado, e que foi uti- uma rede de conceitos Sobre o desenvolvi-
lizado quando da apresentação dessa Dis- mento cognitivo durante a infância, segundo
sertação. Esse tipo de estratégia facilita o duas correntes teóricas.
acompanhamento do desenvolvimento das A função mais importante da escola é
teorias, modelos, conceitos e idéias que fa- dotar o ser humano de uma capacidade de es-
zem parte de determinado trabalho. truturar internamente a informação e trans-
• Avaliação formativa – na medida em que formá-la em conhecimento. A escola deve
ele explicita o estágio da aprendizagem em propiciar o acesso à meta-aprendizagem, o
que se encontra um estudante, o mapa se saber aprender a aprender. Nesse sentido, o
apresenta como uma radiografia da estrutu- mapa conceitual é uma estratégia facilitadora
ra cognitiva do aprendiz. Desse modo pos- da tarefa de aprender a aprender. A meta-
sibilita ao professor encaminhar o estudante aprendizagem torna possível ao estudante a
para processos cognitivos adequados a sua compreensão da estrutura de determinado as-
situação. sunto. Aprender a estrutura de uma disciplina
é compreendê-la de um modo que permita que
Quando os alunos aprendem determi- muitas outras coisas com ela significativa-
nado tema utilizando mapas conceituais, eles mente se relacionem. Por outras palavras, co-
desenvolvem seu próprio entendimento atra- nhecer uma estrutura é saber como as coisas
vés da internalização da informação. Por ou- se ligam entre si. O ensino e a aprendizagem
tro lado, quando os estudantes constroem seu da estrutura, ao contrário do simples domínio
próprio mapa conceitual, eles necessitam de- dos fatos e técnicas, são o centro do clássico
senvolver inicialmente uma compreensão so- problema de transferência. O que importa não
bre os conceitos que estão estudando, antes de é a transferência de uma habilidade mas de
poder representar seu conhecimento através uma noção, que pode ser usada como base
de um mapa pessoal (Vekiri, 2002: 266). Uti- para reconhecer problemas subseqüentes, co-
lizar um mapa construído por uma especialis- mo casos especiais da idéia inicialmente do-
ta e construir seu próprio mapa são duas ver- minada. Esse tipo de transferência encontra-se
tentes da utilidade dos mapas no processo en- no centro do processo educacional – o contí-
sino/aprendizagem. nuo alargamento e aprofundamento do conhe-
Eventualmente nos deparamos com a cimento, em termos de idéias básicas e gerais
situação de construir um mapa sobre um tema (Bruner, 1966).
amplo, e com a possibilidade de construir

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Figura 8 – Mapa conceitual de um aluno sobre modelos.

Figura 9 – Mapa conceitual sobre artigo científico.

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Figura 10 – Desdobramento de um mapa - Desenvolvimento do ser humano (mapa acessado


em 19/7/2007, no endereço eletrônico: http://cmapspublic3.ihmc.us/servlet/SBRead Resour-
ceServlet? rid=1040074302312 _73323607_11802&partName=htmltext).

Figura 11 – Desdobramento de um mapa – desenvolvimento cognitivo na infância (mapa


acessado em 19/7/2007, no endereço eletrônico: http://cmapspublic3.ihmc.us/servlet/SBRead
ResourceServlet ?rid=1040074302718_1361810910 11833&partName=htmltext).

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5. Mapa conceitual, codificação dual e a- verbal (ou visual) pode ativar as representa-
prendizagem multimídia ções verbal e visual (Vekiri, 2002: 267).
O mapa conceitual apresenta a informação
Considera-se que uma representação através de uma rede hierárquica, e desse mo-
gráfica é mais efetiva que um texto para a do oferece essa informação utilizando ima-
comunicação de conteúdos complexos porque gens, apreendidas pelo sistema visual. Por
o processamento mental das imagens pode ser outro lado, cada conceito é definido através
menos exigente cognitivamente que o proces- de palavras, e essa informação é apreendida
samento verbal de um texto (Vekiri, 2002: usando o canal verbal. Desse modo, o mapa
262). conceitual utiliza a um só tempo os dois sub-
O mapa conceitual é uma estrutura es- sistemas cognitivos. O caminho entre dois
quemática para representar um conjunto de conceitos está claro e evidente visual e ver-
conceitos imersos numa rede de proposições. balmente, deixando explícita e inequivo-
Ele pode ser entendido como uma represen- camente a opinião do autor sobre essa cone-
tação visual utilizada para partilhar significa- xão e sobre essa relação hierárquica. As pecu-
dos. liaridades de entendimento (dubiedade, exal-
A teoria da codificação dual de Allan tação, etc.) são graficamente evidentes, facili-
Paivio (1991) indica que existem dois subsis- tando o debate, a compreensão clara das posi-
temas cognitivos; um especializado em obje- ções pessoais, e a possibilidade de uma rees-
tos e/ou eventos não verbais (i.e. imagético), e truturação cooperativa do mapa conceitual.
o outro especializado em lidar com a lingua-
gem (i.e. verbal). Imagens e palavras são có- 6. Discussão
digos diferentes, mas inter-relacionados. Eles
podem ser ativados independentemente, mas De maneira geral um mapa conceitual
quando interconectados, as informações são torna mais fácil a percepção e compreensão
codificadas de modo dual. A informação de eventos por diversos motivos, por exem-
quando é oferecida de maneira interconectada plo, existe uma grande proximidade entre a
verbal e visualmente, facilita a construção de memória visual e as imagens que são apresen-
conexões, relações e entendimento na estrutu- tadas, e devido as suas propriedades visuais-
ra cognitiva; e desse modo facilita o resgate espaciais, seu processamento requer um nú-
desta informação que usa a codificação dual. mero menos de transformações cognitivas que
Uma apresentação multimídia consiste o processamento de um texto, e desse modo
numa apresentação visual e verbal, e se fun- não excede as limitações da memória de curto
damenta inicialmente na codificação dual. Em prazo (Vekiri, 2002: 281). Em outro exemplo,
contraste podemos comparar uma apresen- um mapa geográfico (assim como outros tipos
tação multimídia com aquela que consiste u- de mapas) apresenta uma seleção de facetas
nicamente de uma mensagem verbal (Mayer, gráficas, enquanto uma fotografia aérea apre-
2001: 187). senta todas as características visuais possíveis
A informação visual tem a vantagem de serem captadas por uma câmera, e desse
de ser organizada de uma maneira síncrona, modo revela apenas algumas nuances da rea-
que permite a muitas partes de uma imagem lidade, e com essa diminuição do esforço
mental estar disponível para um processamen- cognitivo poder facilitar o entendimento des-
to simultâneo. Quando informações visuais e sas especificidades. Em um mapa nós enfati-
verbais são apresentadas contiguamente no zamos as características relevantes aos nossos
tempo e espaço, é possibilitado ao aprendiz propósitos; por exemplo, num estudo hidroló-
formar associações entre esses materiais visu- gico de determinado local pode ser conveni-
ais e verbais durante a codificação mental. ente apresentar apenas os rios dessa região.
Essa potencialidade pode aumentar o número Noutro estudo mais detalhado pode ser con-
de caminhos que o aprendiz pode utilizar para veniente representar além dos rios, as caracte-
resgatar essa informação, porque um estímulo rísticas topográficas e as matas.

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No processo de representar e organizar Ausubel, D.P.; Novak, J.D. e Hanesian, H.


o conhecimento do autor sobre um tema, o (1980). Psicologia Educacional. Rio de Janei-
mapa conceitual transforma em concreto o ro: Editora Interamericana.
que antes era abstrato. A principal distinção Bruner, J. (1966). Toward a theory of instruc-
entre itens abstratos e factuais é em termos de tion. New York: W.W. Norton and Company.
nível de particularidade ou de proximidade Krischner, P.A. (2002). Cognitive load
com experiências empíricas concretas. Ge- theory. Learning and Instruction, 12, 1 .
ralmente, também se caracteriza o material Mayer, R. (2001). Multimedia Learning.
abstrato por uma maior conexão ou menor Cambridge: University Press.
discrição do que o material factual. (Ausubel, Novak, J.D. (1998). Conocimiento e Aprendi-
2003: 116). E assim, temas que antes estavam zaje: Los mapas conceptuales como herra-
afastados da realidade do autor, ganham rela- mientas facilitadoras para escuelas y empre-
ções com seus significados prévios. sas. Madrid: Editorial Alianza.
Um mapa conceitual apresenta uma Novak, J.D. e Gowin, D. B. (1999) Aprender
visão idiossincrática do autor sobre a realida- a aprender. Lisboa: Plátano Edições Técni-
de a que se refere. Quando um especialista cas.
constrói um mapa ele expressa a sua visão Novak, J.D.; Mintzes, J.J. e Wandersee, J.H.
madura e profunda sobre um tema. Por outro (Ed.) (2000). Ensinando ciência para a com-
lado, quando um aprendiz constrói o seu ma- preensão: Uma visão construtivista. Lisboa:
pa conceitual ele desenvolve e exercita a sua Plátano Edições Técnicas.
capacidade de perceber as generalidades e O´Donnel, A. (1993). Searching for informa-
peculiaridades do tema escolhido. E nesse tion in knowledge maps and texts. Contempo-
sentido pode construir uma hierarquia concei- rary Ed. Psychol., 18, 222.
tual, iniciando de características mais inclusi- Paivio, A. (1991). Dual coding theory: retro-
vas para as mais específicas, tornando clara a spect and current status. Can. J. Psychol., 45,
diferenciação progressiva, um dos conceitos 255.
chaves da teoria de Ausubel. Ele também é Rodrigues, G.L. (2005). Animação interativa
instado a construir relações de significados e construção dos conceitos da Física: tri-
entre conceitos aparentemente díspares, tor- lhando novas veredas pedagógicas - Disserta-
nando clara a reconciliação progressiva, outro ção de Mestrado – PPGE/UFPB.
conceito chaves da teoria de Ausubel. Nesse Silva, J.T. (2006). A representação Social do
sentido, o mapa conceitual se coloca como Pombo no meio urbano - Dissertação de Mes-
um facilitador da meta-aprendizagem, ao faci- trado – PRODEMA - UFPB – João Pessoa.
litar que o aprendiz adquira a habilidade ne- Tavares, R. (2007). Ambiente colaborativo
cessária para construir seus próprios conhe- on-line e a aprendizagem significativa de Fí-
cimentos. sica 13º CIED - Congresso Internacional
ABED de Educação a Distância – Curitiba.
7. Referências bibliográficas Vekiri, I. (2002). What Is the Value of
Graphical Displays in Learning? Ed. Psychol.
Ausubel, D.P. (2003). Aquisição e Retenção Rev., 14, 261.
de Conhecimentos: Uma Perspectiva Cogniti-
va. Lisboa: Plátano Edições Técnicas.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
S u b me t i d o e m 0 3 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Artigo Científico

Mapas conceituais: estratégia pedagógica para construção de concei-


tos na disciplina química orgânica
Conceptual maps: pedagogical strategy for construction of concepts in disciplines organic chemis-
try

João Rufino de Freitas Filho

Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Unidade Acadêmica de Garanhuns (UAG),


Garanhuns, Pernambuco, Brasil

Resumo

Mapas conceituais são propostos como uma estratégia potencialmente facilitadora de uma aprendiza-
gem significativa. Este artigo retrata a pesquisa realizada em três turmas do Ensino Superior, na qual
se verificou a interferência positiva do uso de mapas conceituais como estratégia motivadora no ensi-
no de conceitos Química Orgânica. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 86-95.

Palavras-chave: mapas conceituais; conceitos; aprendizagem significativa.

Abstract

Conceptual maps are proposed as a strategy potentially useful to facilitate meaningful learning. This
paper reports a research carried through three groups of undergraduate students, in which could be
observed a positive interference with the use of conceptual maps as a motivational strategy in the or-
ganic chemical teaching. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 86-95.

Key Words: concept maps; concept; meaningful learning.

1. Introdução apresentado e o conhecimento prévio além é


claro, de sua predisposição para realizar essa
Todo embasamento teórico relaciona- construção. Sua teoria da aprendizagem signi-
do ao uso de mapas conceituais está baseada ficativa tem como base o princípio de que o
na Teoria de Aprendizagem ou Teoria de As- armazenamento de informações ocorre a par-
similação, de David Ausubel (1968). A teoria tir da organização dos conceitos e suas rela-
explica como o conhecimento é adquirido e ções, hierarquicamente dos mais gerais para
em que forma este fica armazenado na estru- os mais específicos. Baseado nessa teoria,
tura cognitiva do estudante. Segundo Ausubel Novak (2002) desenvolveu a metodologia de
(1982), o indivíduo constrói significado a par- Mapas Conceituais, procurando representar
tir de um acerto conceitual entre o conceito como o conhecimento é armazenado na estru-
 - J.R. Freitas Filho é Químico, Graduado em Licenciatura em Química, Mestre em Química Orgânica (UFPE),
Doutor em Química Orgânica (UFPE), Pós-doutor em Química (Université Claude Bernard). Atua como Professor
(UFRPE, UAG). Endereço para correspondência: Rua Lions Club, 199, Aluísio Pinto, Garanhuns, PE 50292-060. Te-
lefones: (87) 3762-0438 ou (87) 9999-5855. E-mail para correspondência: joaoveronice@yahoo.com.br.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

tura cognitiva de um estudante. A estrutura mapas tridimensionais, os mapas bidimensio-


cognitiva pode ser descrita como um conjunto nais são os mais utilizados (Moreira e Buch-
de conceitos, organizados de forma hierárqui- weitz, 1987).
ca, que representam o conhecimento e as ex- Na prática, porém, por serem mais e-
periências adquiridas por um estudante. Con- laborados que os unidimensionais e mais sim-
ceito é um termo que representa uma série de ples que os tridimensionais, os mapas bidi-
objetos, eventos ou situações que possuem mensionais são os mais usados.
atributos comuns. Com o uso de mapas con- Neste trabalho, procurou-se incorporar
ceituais, o conhecimento pode ser exterioriza- os mapas conceituais como estratégia de ação
do através da utilização de conceitos e pala- pedagógica para abordagem do tema gerador:
vras de ligação, formando proposições que Alimentos nosso combustível e a partir deste
mostram as relações existentes entre conceitos os estudantes construírem os conceitos da
percebidos por um indivíduo (Araújo et al., química dos carboidratos, lipídios, aminoáci-
2002; Cañas et al., 2000), e representadas pe- dos e proteínas. Dessa forma, o mapa concei-
lo tripé conceito – relação – conceito. Os tual se apresentou como uma possibilidade
mapas conceituais vêm sendo utilizados nas para a verificação e o acompanhamento da
mais distintas áreas do conhecimento, tendo aprendizagem do aluno.
diferentes finalidades, como na aprendiza-
gem, na avaliação, na organização e na repre- 2. Metodologia
sentação de conhecimento. Para promover a
aprendizagem significativa (Novak, 1997; A metodologia deste trabalho consiste
Moreira, 1999) recomendam ao professor, em avaliar a aprendizagem de conceitos traba-
como recurso didático, o uso de mapas con- lhados nas aulas, com base nos elementos que
ceituais com a finalidade de identificar signi- definem a aprendizagem como significativa.
ficados (subsunçores) pré-existentes na estru- O trabalho foi realizado com três turmas de
tura cognitiva do estudante que são necessá- graduação dos cursos de Agronomia, Medici-
rios à aprendizagem. na Veterinária e Zootecnia da Universidade
Muitas são as definições de mapa con- Federal Rural de Pernambuco, Unidade Aca-
ceitual apresentadas, principalmente se anali- dêmica de Garanhuns (PE), no período de
sarmos os trabalhos de autores como Ontoria março de 2005 a junho de 2007. Para realiza-
e colaboradores (2004). ção do trabalho foram observadas várias eta-
A utilização dos mapas conceituais, pas de execução.
tem se apresentado como uma ferramenta de A primeira etapa consistiu no plane-
ação pedagógica bastante útil para o ensino de jamento das atividades que assim podem ser
diversos temas, possibilitando que um conjun- distribuídas:
to de conceitos seja apresentado aos alunos, a
partir do estabelecimento de relações entre a) Escolha do tema gerador a ser discutida na
ele. disciplina;
Em sua forma gráfica, os mapas con- b) Plano de atividades;
ceituais podem ser construídos nos formatos c) Seleção dos materiais a serem utilizados.
unidimensional, bidimensional e tridimensio-
nal. Os mapas unidimensionais são apenas A segunda etapa consistiu no desen-
alguns conceitos dispostos de forma vertical; volvimento da atividade em sala de aula. Esta
os bidimensionais, além de apresentarem a etapa foi dividida em vários momentos, a sa-
disposição vertical, apresentam disposição ber:
horizontal, como na figura 1. Já os mapas tri-
dimensionais apresentam os conceitos e suas a) Levantamento das concepções prévias dos
relações em três dimensões. Por serem mais estudantes sobre a temática;
completos que os mapas unidimensionais e b) Listagem de várias palavras soltas para os
mais simples de serem interpretados que os alunos construírem um mapa;

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c) Leitura do texto: Alimentos nossos com- O que chama a atenção nos mapas da
bustível e construção de um novo mapa. figura 1 e 2 é o fato de substâncias está na
parte inferior do mapa e não ter nenhuma re-
O primeiro momento despertou o inte- lação com carboidratos (figura 1) e a amilo-
resse dos alunos em relação aos conhecimen- pectina não ser considerado um carboidrato
tos básicos da Química. Algumas atividades (figura 2). Também percebe alguns erros con-
experimentais foram realizadas no laboratório ceituais, por exemplo lactose ser classificado
da Universidade. Portanto, foi possível supe- como um monossacarídeos.
rar o modelo de ensino transmissivo, onde só O mapa de conceitos apresentado pe-
cabe ao aluno ouvir o discurso abstrato do los estudantes do curso de Agronomias no
professor e resolver uma série infindável de levantamento das concepções prévias foi me-
problemas padronizados que nada dizem so- nos elaborado, ou seja, partiu do mesmo con-
bre as situações da vida cotidiana. Segundo ceito geral. Inclui menos conceitos, associan-
Carvalho (1995): do-os por vezes – alimentos/digestão
/nutrientes, amido e oligossacarídeos – e não
“A didática habitual de resolução de utilizando setas. Os mapas de conceitos apre-
problema costuma impulsionar a um sentados pelos estudantes do curso de Veteri-
operativismo abstrato, carente de signi- nária e Zootecnia foi melhor elaborado, ape-
ficação, que pouco contribui para uma sar de partir do mesmo conceito geral. Inclui
aprendizagem significativa.” menos conceitos, associando-os por vezes –
alimentos/digestão/nutrientes, monossacarí-
Em seguida foram explorados aspectos deo e lactose – e utiliza setas.
da temática a partir de aulas expositivas com Em seguida foi distribuído texto
atividades experimentais demonstrativas, se- sobre à temática alimentos nosso combustível
guidas de atividades experimentais realizadas e solicitado após leitura que os estudantes e-
por pequenos grupos de alunos no laboratório. laborassem novos mapas conceituais.
Após a construção dos mapas de con- Com relação a mapa conceitual da fi-
ceitos realizada pelos alunos, foram formula- gura 3, note que algumas noções foram dei-
dos questões e problemas de forma não con- xadas de fora e nem todas as possíveis liga-
vencional – para evitar a reprodução mecani- ções foram feitas, a fim de não complicar o
cista dos conceitos - que exijam dos alunos a diagrama. Ao analisar o mapa representado na
externalização, por meio de entrevistas nas figura 4, abaixo, identificamos que o aluno
próprias aulas, dos conceitos empregados nos em questão conhece termos utilizados na área
mapas, e das relações entre os mesmos. de estudos – carboidratos, porém tem dificul-
dades quanto à identificação do significado
3. Resultados e discussão dos conceitos e das relações que existem entre
eles.
Iniciou-se o trabalho fazendo um le-
vantamento das concepções prévias dos estu- Após a comparação dos mapas, os es-
dantes, nesta etapa foram distribuídas pala- tudantes realizaram outros mapas. Manteve
vras (alimentos, nutrientes, carboidratos, pro- alimentos como o conceito mais geral. Classi-
teínas, lipídios, monossacarídeos, glicose, sa- ficou corretamente alguns termos como con-
carose, dissacarídeos, ácidos graxos, hidroli- ceitos. Estabeleceu hierarquias válidas. Re-
se, amido, aminoácidos, ligação dentre outras) correram a setas, criou ligações transversais.
para os estudantes e solicitado que os mesmos Empregou como palavras de ligação, frases e
elaborassem mapas conceituais. Os mapas definições. Pode-se perceber, em todos os
conceituais da figura 1 e 2 foram construídos mapas, que há uma similaridade na hierarqui-
por estudantes dos cursos de Medicina Vete- zação conceitual. Inicialmente os estudantes
rinária e Zootecnia. relutam ao exercício, pois não têm o costume
de fazer uso de técnicas. Entretanto

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respondem muito bem à proposta, em outras disciplinas tanto para estudo quanto
surpreendendo-se com a prática que passam a para apresentação de suas produções.
adotar em outras disciplinas tanto para estudo

Figura 1 - Mapa conceitual do aluno do curso de Medicina Veterinária.

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Figura 2 - Mapa conceitual do aluno do curso de Zootecnia.

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Figura 3 - Mapa conceitual do aluno do curso de Medicina Veterinária.

Os mapas mostrados nas figuras 5 e 6 químicas, congregando um conjunto de con-


foram confeccionados após aulas expositivas ceitos tais como monossacarídeo, oligossaca-
e experimental dos conteúdos referentes a te- rídeos e polissacarídeos. Neste mapa os con-
mática. Os conceitos foram abordados pelo ceitos estão ordenados logicamente, come-
professor no decorrer do curso. A ordem em çando pelo alimento, no "topo", e em seguida
que os conceitos aparecem não reflete, propo- nutriente, polímero biológico, carboidratos,
sitadamente, a de apresentação. No mapa transformação e hidrólise como casos mais
conceitual o estudante procurou explicitar al- particulares daquele. No entanto, os conceitos
gumas relações entre conceitos através de pa- de monossacarídeos e dissacarídeos são colo-
lavras-chave exemplificando com fórmulas cados como os menos abrangentes.

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Figura 4 - Mapa conceitual do aluno do curso de Zootecnia.

Já o segundo mapa da figura 6 nos Em resumo mapas conceituais não são


mostra um agrupamento mais ou menos se- auto-suficientes; é sempre necessário que se-
melhante ao anterior, porém com estruturas jam explicados por quem os faz, seja o pro-
integradas. Nele, carboidrato é considerado o fessor ou o estudante. Uma maneira de dimi-
conceito mais importante, enquanto dissacarí- nuir um pouco a necessidade de explicações é
deos é o de menor importância. Neste, as con- escrever sobre as linhas que unem os concei-
cepções de oligossacarídeo e polissacarídeos tos uma ou duas palavras chave que explici-
são consideradas mais abrangentes que o con- tem a relação simbolizada por elas.
ceito de dissacarídeos.

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Figura 5 - Mapa conceitual do aluno do curso de Medicina Veterinária.

4. Conclusões ais foram construídos e exemplificados como


estratégia pedagógica que podem ser usados
Com a temática, alimentos nosso tanto na análise e organização do conteúdo,
combustível, pretendeu-se mostrar o forte po- como no ensino e na avaliação da aprendiza-
tencial dos mapas conceituais, como uma fer- gem dos estudantes dos cursos de Agronomia,
ramenta pedagógica capaz de evidenciar a- Medicina Veterinária e Zootecnia. Foi uma
prendizagem significativa; apontando para o estratégia pedagógica construídas após aulas
fato de que os diversos conceitos não são al- em sala de aula e em laboratório cuja maior
vos estáticos na aprendizagem, mas um con- vantagem estar relacionada com o fato de en-
junto, uma teia que se une através de relações fatizar o ensino e a aprendizagem de concei-
entre conceitos que evoluem na estrutura cog- tos da química dos carboidratos, lipídios e
nitiva do estudante, apoiados em conceitos já proteínas. Pela sua versatilidade utilizou-se o
existentes e que, tratados de forma articulada mapa conceitual como um dos recursos de
nos seus níveis de abstração, formatam o con- avaliação em sala de aula.
creto de nosso cotidiano. Os mapas conceitu-

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Figura 6 - Mapa conceitual do aluno do curso de Zootecnia.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 16/10/2007 | Revisado em 28/11/2007 | Aceito em 29/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

Obstáculos epistemológicos no ensino de ciências: um estudo sobre su-


as influências nas concepções de átomo
Epistemological obstacles in science teaching: a study about their influences on the atom concep-
tions

Henrique José Polato Gomes, a e Odisséa Boaventura De Oliveira, b


a
Curso de Graduação em Ciências Biológicas, Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba,
Paraná, Brasil; bDepartamento de Teoria e Prática de Ensino, Setor de Educação, UFPR, Curitiba,
Paraná, Brasil

Resumo

Muitas estratégias usadas por docentes para tornar o ensino mais atrativo, ou com intenção de facilitá-
lo, na realidade podem se tornar sérios entraves na aprendizagem do ensino científico. Com a equivo-
cada convicção que explicam, metáforas e analogias utilizadas, podem não suscitar interesse pela
compreensão do fenômeno. Bachelard chamou esses subterfúgios de obstáculos epistemológicos e o
objetivo deste trabalho foi identificá-los em alunos de oitava série do ensino fundamental e de primei-
ro ano do ensino médio, referentes ao ensino de atomística, procurando compará-los, visto que apren-
deram este conteúdo com diferentes materiais didáticos. Para tanto, foram aplicados 291 questioná-
rios nos quais foram analisados respostas e desenhos, que evidenciam tais obstáculos. © Ciências &
Cognição 2007; Vol. 12: 96-109.

Palavras-chave: atomística; obstáculos epistemológicos; Bachelard; aprendizagem;

Abstract

Some strategies used by teachers to make a subject more attractive or easier, actually can be a seri-
ous impediment to the learning of the scientific concepts. Metaphors and analogies used in the expla-
nation can result in a satisfactory explanation, and consequently, in a lack of interest for the phe-
nomenon. Bachelard called those subterfuges epistemological obstacles, and the objective of this pa-
per were identify them in students at the last level of elementary school and at the first level of high
school, in atomistic teaching, and compare them, considering they learned that through different ma-
terials. Thus, 291 questionnaires asking about atom conceptions and a drawing of it were applied and
they show an evident existence of those obstacles. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 96-109.

Key Words: atomistic; epistemological obstacles; Bachelard; learning;

 - O.B de Oliveira é Graduada em Ciências Biológicas Modalidade Médica, Licenciatura (Organização Educacio-
nal Barão de Mauá) e Pedagogia (PUC-Católica), Mestre em Educação (Universidade Estadual de Campinas) e Dou-
tora em Educação (Universidade de São Paulo). Atualmente é Professora (UFPR). E-mail para correspondência:
odissea@terra.com.br. H.J.P. Gomes é Graduando do Curso de Ciências Biológicas, Modalidade Licenciatura
(UFPR). E-mail para correspondência: henrique.polato@gmail.com.

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1. Introdução
“Quando se acompanham os esforços do pensamento
contemporâneo para compreender o átomo,
é se quase levado a pensar que o papel fundamental
do átomo é o de obrigar os homens a estudar matemática.”
Gaston Bachelard

É comum o uso, em sala de aula, de de conhecer que aparecem, por uma espécie
diversas estratégias com o intuito de facilitar a de imperativo funcional, lentidões e confli-
aprendizagem. Muitas delas, como analogias, tos”.
metáforas, imagens, modelos entre outras pré- Muito dessa problemática, deve-se ao
sentes nos materiais didáticos e amplamente fato dos docentes não levarem em conta o co-
utilizadas por docentes, deveriam ser fonte de nhecimento que os educandos já possuem e
reflexão sobre suas implicações. Ainda que por conceberem a aquisição do novo conhe-
empregadas com a intenção de facilitar a cimento como uma adição, que pode ser atin-
compreensão de um determinado assunto, na gida através de meras repetições. Além disso,
realidade não auxiliam verdadeiramente, sal- normalmente esses conhecimentos não cientí-
vo em casos específicos muito bem traba- ficos oferecem uma satisfação imediata à cu-
lhados. Ao contrário, esses subterfúgios peda- riosidade, o que indiferente de seu caráter,
gógicos fazem com que sejam substi-tuídas não se constitui em benefícios, ao contrário
linhas de raciocínio por resultados e esque- passa-se a admirar as imagens e a contentar-se
mas, o que se por um lado suscita atrativos e simplesmente com resultados.
interesse, por outro se cristaliza intuições. As- Na visão de Bachelard (1996), a preo-
sim, práticas como essas podem ser pernicio- cupação dos educadores deveria ser alt-erar
sas à aprendizagem. A assimi-lação de noções essa cultura cotidiana prévia, pois não é pos-
inadequadas, sejam elas advindas dos conhe- sível incorporar novos conhecimentos às con-
cimentos empíricos que o educando vivencia cepções primordiais já enraizadas. Para que a
em seu cotidiano ou adquiridas na escola, po- aprendizagem ocorra de maneira efetiva, é
derá resultar na constituição de obstáculos preciso mostrar ao aluno razões para evoluir.
epistemológicos (Bachelard, 1996). O que significa estabelecer uma dialética en-
Os obstáculos epistemológicos são i- tre variáveis experimentais e substituir sabe-
nerentes ao processo de conhecimento, cons- res ditos estáticos e fechados, por conheci-
tituem-se em acomodações ao que já se co- mentos abertos e dinâmicos.
nhece, podendo ser entendidos como anti- Contra a formação do espírito cientí-
rupturas. O conhecimento comum seria um fico, um exemplo de obstáculo episte-
obstáculo ao conhecimento científico, pois mológico é o que Bachelard (1996) denomina
este é um pensamento abstrato. Na visão de de experiência primeira, a qual gera apego à
Lecourt (1980: 26) os obstáculos “preenchem beleza do experimento e não à explicação ci-
a ruptura entre o conhecimento comum e o entífica. É possível minimizar e até mesmo
conhecimento científico e restabelece a conti- retificar essa experiência primeira por meio
nuidade ameaçada pelo progresso do conhe- de uma ação que o autor chamou de “trazer a
cimento científico”, podem aparecer na forma bancada do laboratório para o quadro-negro”,
de um contra-pensamento ou como paragem ou seja, procurar impedir que aconteçam ape-
do pensamento. São encarados como resistên- nas satisfações e admirações por imagens,
cias do pensamento ao pensamento. preocupando-se com os fundamentos explica-
Segundo Bachelard (1996: 17) não se tivos dos fenômenos presentes nas atividades
tratam de “obstáculos externos, como a com- experimentais. Segundo Bachelard, uma ciên-
plexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem cia que aceita imagens é vítima de metáforas
de incriminar a fragilidade dos sentidos e do e experiências repletas delas são, na realidade,
espírito humano: é no âmago do próprio ato sem grande valor se não for extraído o abstra-

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to do concreto, isto é, o experimento deve ser (Andrade et al., 2002). E, de fato, há que se
utilizado como uma ferramenta auxiliar ilus- considerar que, quando apropria-damente u-
trativa e não se resumir a uma sucessão de sadas, metáforas e analogias podem ser boas
resultados visual-mente interessantes (Bache- ferramentas para ilustrar uma explicação; mas
lar, 1996). essas devem ser transitórias, devem ser usa-
Assim, essa ausência da busca pela dos como andaimes (scaffolding), conforme
explicação do fenômeno faz com que se esta- terminologia de Jerome Bruner, isto é, apenas
beleça a dita doutrina do geral. A genera- como um suporte para o alcance do conheci-
lização é colocada por Bachelard como outro mento científico.
obstáculo epistemológico e sua utiliza-ção em Talvez pareça incoerente fazer essa
sala de aula também pode ser igualmente im- analogia ao andaime, explicando como fazer
peditiva da formação do espírito científico, uma analogia por meio de outra, mas a idéia
pois generalizações tornam uma lei tão clara, do uso de um andaime deve ser entendida
completa e fechada, que dificilmente levanta- como um auxílio, como algo temporariamente
se o interesse por questionar suas premissas. utilizado para atingir um determinado fim;
A generalização facilita momentaneamente não como algo inicial ou a primeira coisa que
uma compreensão, mas esse entendimento deve ser feita para que se aproxime do conhe-
pode bloquear o interesse pelo estudo mais cimento. Bachelard não é perempto-riamente
aprofundado. A lei geral é suficientemente contra o uso de metáforas, contanto que elas
satisfatória para que se perca o interesse por venham após a teoria, como um auxílio no
estudá-la. Parte dos obstáculos propostos é, de esclarecimento.
alguma forma, conseqüência de generaliza- O problema ocorre quando há o uso
ções inapropriadas, de modo que o conhe- anterior à explicação da hipótese ou teoria,
cimento geral acaba sendo um conhecimento pois pode ocorrer uma tendência à estagnação
vago (Costa, 1998). do pensamento, o aluno se apega e aceita essa
O mesmo acontece quando, nas aulas aproximação como um estratagema conclu-
de ciências, fenômenos são explicados por sivo, não havendo necessidades de maiores
meio de expressões, imagens, metáforas ou elucidações o que impossibilita a abstração
analogias, denominadas por Bachelard de necessária ao conhecimento.
obstáculo verbal, isto é, uma tendência a as- Outro obstáculo proposto por Bache-
sociar uma palavra concreta a uma palavra lard (1996) é o substancialista, que pode ser
abstrata. Essa situação ocorre quando uma em parte oriundo do materialismo promovido
palavra é tão suficientemente explicativa, que pelo uso de imagens ou da atribuição de qua-
funciona como uma imagem e pode vir a lidades aos fenômenos. Ele cita como exem-
substituir a explicação (Andrade et al, 2002). plo, a teoria de Boyle que atribuía qualidades
Bachelard observou, em sua obra A formação de viscoso, untuoso e tenaz ao fluído elétrico,
do espírito científico (1996), que o uso abusi- é como se a eletricidade fosse uma cola, como
vo da palavra esponja, por exemplo, desenca- se tivesse um espírito material.
deou uma imagem que manteve o pensamento Também denominou de obstáculo e-
preso a ela enquanto objeto, não avançando pistemológico animista ao fato de que atribuir
para o nível da idéia. vida daria relevância a um determinado fe-
Ainda assim, alguns autores defendem nômeno. Para Bachelard (1996: 191), “vida é
o uso de analogias como estratégia pedagógi- uma palavra mágica”, ela marca um valor às
ca válida para melhor compreensão e integra- substâncias, assim ele relata que no século
ção na estrutura cognitiva (Adrover e Duarte, XVIII a ferrugem era vista como uma doença
1995); também existem trabalhos que apre- que acometia o ferro, ou que se comparava a
sentam propostas de metodologias de ensino fecundidade dos minerais à das plantas.
com analogias (Nagem et al., 2001) e há até Para Bachelard (1996: 21). “a noção
mesmo os que julgam o raciocínio metafórico de obstáculo epistemológico pode ser estuda-
e analógico como inerente ao ser humano da no desenvolvimento histórico do pensa-

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mento científico e na prática da educação”. prendizagem, pois os alunos que atualmente


Dessa maneira, existem inúmeras formas de encontram-se na 1ª série, aprenderam esse
obstáculos epistemológicos que, independente conteúdo na oitava série, com o uso de aposti-
de sua natureza, necessitam ser identificados e la produzida por uma organização educacio-
retificados. Contudo, os obs-táculos e entra- nal da cidade. Esse material didático possui
ves não devem ser compre-endidos apenas divisão entre matérias, possuindo uma parte
como algo falho ou como aspectos pontuais específica de química, a qual começa com o
de alunos com dificuldades; eles são impor- estudo do átomo e enfoca principalmente a
tantes à aprendizagem e para que esta ocorra evolução dos modelos atômicos. Já os alunos
satisfatoriamente é necessário que haja, além que estão atualmente na oitava série estão a-
de questionamentos e críticas, ruptura entre prendendo esse conteúdo com auxílio de um
conhecimento comum e científico, construin- livro didático de outra rede educacional, o
do este e desconstruindo aquele (Lopes, qual não possui divisão entre física e química
1993). e tem o conteúdo de atomística como primeiro
A preocupação com a aprendizagem assunto de química propriamente dita, enfati-
de determinados conceitos advém de nossa zando mais caráter elétrico do que a estrutura
experiência como professor assistente em uma dos materiais. Sendo assim, também é objeti-
escola da rede particular de ensino, na qual vo do trabalho verificar se há diferença signi-
observamos dificuldades nos alunos em mani- ficativa nos conceitos apresentados pelos alu-
festarem idéias abstratas, por exemplo, em nos que possa ser atribuída a influência do
relação ao modelo atômico e suas estruturas, material didático.
bem como de suas interações moleculares. A Para isso, nossas questões de estudo
leitura de Bachelard nos instigou a buscar nesta pesquisa são: quais concepções os alu-
respostas para tais dificuldades, uma vez que nos possuem sobre estrutura e finalidade da
observamos grande uso de analogias por parte eletrosfera? Quais modelos atômicos são re-
dos professores regentes em sala de aula, co- presentados por eles? O que tem influen-ciado
mo por exemplo, a distribuição eletrônica em a constituição dessas concepções?
camadas sendo explicada através de uma as-
sociação com gavetas que se enchem progres- 2. Métodos
sivamente, de maneira que, à medida que uma
delas fica cheia de elétrons, essa se fecha e No que tange ao delineamento meto-
abre-se a próxima gaveta; ou de forma seme- dológico, esta pesquisa é de natureza qualita-
lhante, a analogia da mesma distribuição com tiva, dada a tentativa de compreender aspectos
os assentos de um ônibus que vão sendo pre- singulares e não meramente a sua caracteriza-
enchidos gradativamente pelos passagei-ros. ção, de levar em consideração o contexto em
O funcionamento da eletrosfera como um tri- que foi feita a análise e de procurar explica-
lho de trem por onde percorreria o elétron e a ções para os resultados em variáveis, como os
comparação de ligações covalentes com “sal- materiais didáticos. Também faz uso de dados
sichões” estabelecidos como conexão com- quantificáveis na análise das respostas.
partilhada entre átomos são alguns dos exem- A presente investigação foi realizada
plos por nós presenciados. em uma escola da rede particular de educação
O objetivo desse trabalho é, portanto, do município de Curitiba (PR), que atende
identificar alguns destes obstáculos propostos alunos do Ensino Fundamental, Médio e Edu-
por Bachelard, relacionados ao ensino de cação de Jovens e Adultos. Fizemos um le-
química no conteúdo de atomística e analisar vantamento no mês de abril de 2007, através
o porque dessas manifestações nas respostas de questionários aplicados durante algumas
de estudantes da 8ª série do ensino Funda- aulas cedidas por diferentes professores Esse
mental e 1ª série do Ensino Médio a perguntas tipo de instrumento foi utilizado por possibili-
correlatas. Assim como comparar os materiais tar atingir um grande número de pessoas, oti-
didáticos utilizados em cada situação de a-

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mizar o tempo e garantir o ano-nimato das tionário continha apenas três perguntas para
respostas. que o maior número possível voltasse respon-
O questionário consistiu em 3 pergun- dido, ou seja, que não ficasse cansativo para
tas, sendo a primeira objetiva e as outras duas os alunos.
abertas. Na primeira questão, havia 8 alterna-
tivas a respeito da estrutura e finalidade da 3. Resultados e discussão
eletrosfera, buscando identificar as concep-
ções que os alunos possuíam dela. Nessa Obtivemos um total de 291 questioná-
questão, não havia apenas uma alternativa que rios, desses 156 eram de alunos do primeiro
melhor representasse um ponto de vista; havi- ano e 135 da oitava série. Mesmo os questio-
a, na realidade, três alternativas relativamente nários que não estavam completa-mente res-
complementares que poderiam ser considera- pondidos foram analisados. Como era de se
das corretas. esperar, as perguntas abertas tiveram um nú-
As demais questões eram abertas e visa- mero menor de respostas, acreditamos que por
vam pesquisar qual modelo de átomo o res- exigir maior esforço.
pondente aceitava como correto, ou que mais Todos os alunos de ambas as séries res-
se aproximasse da sua compreensão. Para is- ponderam a questão 1, primeiro porque ela
so, foi pedido que os alunos desenhassem era uma questão fechada e de grau de dificul-
como estariam “visualizando” o átomo caso dade baixo. A tabela 1 mostra os percentuais
esse fosse visto através de um microscópio obtidos em cada uma das afirmativas propos-
com lentes de aumento muito poderosas e tas na questão 1.
como eles poderiam separá-lo se pudessem Para esta questão, as porcentagens de
manipulá-lo com pinças igualmente sensíveis acerto em relação à alternativa A em ambas as
e poderosas. Optamos por fazer essa relação séries mostra que a grande maioria dos alunos
entre o aluno imaginar como é a constituição tem noção da existência e localização dos elé-
de um átomo se fosse possível “vê-lo por den- trons. A resposta esperada para o aluno que
tro” com a elaboração de um modelo, já que tivesse compreendido corretamente os concei-
concebemos modelo como: tos relacionados à estrutura e finalidade da
eletrosfera, era conjuntamente as alternativas
“uma imagem que construímos da reali- A, E, e G. Na 1ª série do Ensino Médio a as-
dade e que nos ajuda a entendê-la. Nes- sociação dessas respostas foi obtida em ape-
se sentido, deve haver aspectos em co- nas 5 questionários, totalizando 3 % de acerto
mum entre a realidade e o modelo; uma e na 8ª série essa associação não foi encon-
transformação que ocorre na realidade trada nenhuma vez.
pode ser representada através do mode-
lo. Isso não significa que o modelo te- Isso demonstra que embora haja a no-
nha que ser uma cópia exata da realida- ção de eletrosfera, o pesquisado não tem clara
de e sim que deve representá-la.” (Mor- a dinâmica de movimento de elétrons, o que
timer, 2000: 189) pode ser verificado pela marcação das afirma-
tivas F e H. Uma associação incoerente en-
Por fim a terceira questão, também aberta, contrada foi a das afirmativas E e F, pois, elas
perguntava qual a explicação que o aluno da- são frontalmente contraditórias. No primeiro
va para a aceitação da teoria atomística, tendo ano essa associação aparece em três respostas
em vista que o átomo nunca foi visualizado. A (2 %), e na oitava série apenas uma vez (a-
resposta esperada seria algo relacionado a al- proximadamente 1 %). Além disso, a alterna-
guma evidência da existência atômica, como tiva E, que era uma das afirmativas corretas,
por exemplo, a existência de carga elétrica, obteve o menor percentual de aparecimento
campo magnético, emissão de fótons ou a em ambas as séries.
mistura de dois elementos químicos. O ques-

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Ta-
bela 1 - Comparação do percentual de respostas à questão 1.

Outros obstáculos que podem ser i- eletrônico ocorre linearmente com a condição
dentificados foram os representados pela a- da camada anterior já estar preenchida, o que
firmativa C, em que a camada da eletrosfera é comumente visto em sala de aula sob as

funciona como uma gaveta, com altos índices analogias de gavetas ou bancos de ônibus, que
de marcação em ambas as séries; e a resposta são preenchidos gradativamente e da frente
B, segundo a qual a camada da eletrosfera su- para trás.
porta uma quantidade máxima de elétrons, A comparação da porcentagem de res-
mas nunca pode ficar vazia. Esses dois obstá- postas simples e combinadas pode ser vista no
culos, a nosso ver, são de mesma natureza, gráfico 1.
uma vez que dão a idéia que o preenchimento
Gráfico 1 - Comparação dos percentuais de resposta da questão 1.

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A questão 2 era dividida em dois itens, com a divisão em um núcleo com prótons e
no primeiro era requisitado o desenho do á- nêutrons e uma eletrosfera com elétrons. O
tomo sob a possibilidade hipotética de que o modelo de átomo de Rutherford-Böhr, que
estariam vendo através de equipamento pró- mostraria os níveis de energia das camadas, e
prio; o segundo item perguntava em que par- o modelo atômico de Sommerfeld, no qual a
tes poderiam separá-lo caso existissem pinças eletrosfera seria composta de órbitas elípticas,
muito sensíveis que possibilitassem essa ma- com um aspecto de tridimensionalidade, fo-
nipulação. A análise dos desenhos obtidos foi ram contabilizados juntamente com o modelo
feita enquadrando-os através de semelhanças de Rutherford. Alguns modelos, por não po-
com os modelos pré-estabelecidos na literatu- derem ser classificados como nenhum dos
ra. No total cinco modelos foram identifica- expostos acima, foram classificados como
dos: ANIMISTA (Galiazzi et al, 1997), que OUTROS; isso se deu pelo fato de se apresen-
coloca características das células dos seres tarem em um estado “intermediário”, isto é,
vivos à matéria; MODELO DE DALTON, com características de mais de um modelo, o
referente ao átomo como “bola de bilhar”, que que dificulta o seu enquadramento.
seria a menor parte da matéria, sendo portan- A comparação entre as respostas pode
to, indivisível e indestrutível; MODELO DE ser vista no gráfico 2.
THOMSON, que seria o modelo “pudim de
passas” e o MODELO DE RUTHERFORD ,

Gráfico 2 - Comparação entre as respostas à pergunta 2, na parte referente aos modelos atômicos.

Conforme pode ser visto no gráfico, o lidade de cópia ou de alguma forma de influ-
modelo animista foi encontrado na resposta ência nessas respostas. Dessa maneira, como
de 9 alunos de primeiro ano. Vale dizer que pode ser visto na figura 1, é muito evidente a
destes, apenas quatro alunos estavam, dois a confusão com a idéia de célula, o que prova-
dois, na mesma sala, o que elimina a possibi- velmente se deve à aprendizagem recente des-

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se conceito como menor parte do organismo compacta, maciça e sólida, sendo assim indi-
vivo e ao fato de ambos, célula e átomo, pos- visível e indestrutível, foi encontrado que, no
suírem um núcleo. Além disso, na segunda primeiro ano, 8 alunos (5 %) permanecem
parte da questão que perguntava sobre as pos- presos a esse conceito, enquanto que na oitava
síveis separações, 1 dos alunos escreveu que série esse número cai para 2 pessoas (1,5 %).
separaria o núcleo da membrana, o que expli- Isso pode estar relacionado de alguma forma
cita bem esse equívoco. ao material didático, pois os alunos de primei-
ro ano aprenderam esse conteúdo na oitava
série, com uma apostila que possuía um tópi-
co sobre Dalton e seu modelo “bola de bi-
lhar”; os alunos atualmente na oitava série
estão fazendo uso de um livro didático cujo
enfoque sobre esse conteúdo paira predomi-
nantemente na natureza elétrica dos materiais,
passando diretamente das primeiras noções de
átomo de Demócrito a Rutherford, não citan-
do Dalton. Obviamente que, pelo aparecimen-
Figura 1 - Modelo Animista, que apareceu to desse modelo, a professora deve tê-lo ex-
apenas nas respostas de alunos do 1º ano. plicado em sala de aula, mas o fato de não ser
encontrado no livro didático pode ser um fator
No que tange ao conceito atômico de que explica a disparidade de resultados. E-
Dalton, isto é, de átomo como a menor partí- xemplos de modelos encontrados podem ser
cula da matéria, formada de uma estrutura observados se na tabela 2:

Tabela 2 - Comparação dos Modelos de Dalton obtidos.

Entretanto, esse resultado não se repe- considerando novamente que esse modelo,
te no que diz respeito ao modelo atômico de pelo seu aparecimento, também foi explicado
Thomson, pois da mesma forma, a apostila em sala. Contudo, no primeiro ano houve a-
traz um tópico explicando seu modelo “pudim penas 6 casos (4 %) identificáveis como se-
de passas”, no qual o átomo seria uma esfera guidores do modelo de Thomsom, enquanto
de carga positiva, onde estariam imersas as que na oitava série obteve-se 13 esquemas (10
partícula negativas (elétrons), enquanto que o %), o que indica que, provavelmente tenha
livro atualmente utilizado também não cita sido dada maior importância à esse modelo
Thomson. Sendo assim, era esperado um re- em sala de aula, talvez em virtude da ênfase
sultado semelhante ao modelo Daltoniano, no aspecto elétrico feita pelo livro didático,

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esse modelo tenha sido mais utilizado como sentados na tabela 3:


base para compreensão dos posteriores. E-
xemplos de modelos encontrados estão repre-

Tabela 3 - Comparação dos Modelos de Thomson obtidos.

O modelo de Rutherford, por sua vez, encontrasse um número semelhante entre as


foi contabilizado juntamente com o modelo duas séries. Assim, foram encontradas 117
de Rutherford-Böhr , visto que os dois são amostras no primeiro ano (80 %), e 105 na
muito próximos e comumente ensinados con- oitava série, perfazendo um percentual seme-
juntamente, e com o de Sommerfeld , que não lhante de 80 %. Esse resultado majoritário
é tratado em nenhum dos dois materiais didá- era, de certa forma, esperado, tendo em vista
ticos e foi enquadrado seguindo Galiazzi e que esse modelo é o atualmente mais aceito
colaboradores (1997). Pelo fato do modelo de para esse nível de escolaridade, sendo muitas
Rutherford ser ensinado tanto na apostila vezes tratado como a melhor explicação atual
quanto no livro didático, era esperado que se para a estrutura atômica. (Tabela 4).

Tabela 4 - Comparação dos Modelos de Rutherford, Rutherford-Böhr, e Sommerfeld obtidos.

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Contudo, comparando-se esse resulta- nos não possuem conhecimentos sobre mode-
do com as respostas da primeira questão, no- los quânticos. É evidente que quando se pede
ta-se que na maioria das vezes há uma boa que os alunos façam um desenho do que esta-
noção na localização da eletrosfera, mas que riam vendo ao microscópio, o resultado tam-
possivelmente há um obstáculo epistemológi- bém será, de certa forma, um esquema. Mas
co no que tange a sua funcionalidade, sendo estas respostas obtidas, apresentam um nível
essa muito comumente representada como maior de abstração que as demais, pois repre-
uma “coisa” física e palpável. Ainda assim, sentaram apenas os elétrons ao redor do nú-
foram encontrados alguns modelos que a re- cleo. Foram encontrados 2 amostras no pri-
presentaram de uma maneira mais correta, se meiro ano (1 %) e 5 amostras na oitava série
aproximando do que seria o ideal (tabela 5) (4 %).
esperado para essa idade, visto que esses alu-

Tabela 5 - Comparação dos modelos mais próximos ao ideal.

Em ambas as séries alguns modelos no primeiro ano e em 12 questionários (9 %)


não puderam ser encaixados em nenhum dos na oitava série. Alguns desses exemplos po-
pré-estabelecidos, e foram classificados como dem ser vistos na tabela 6.
“Outros”, aparecendo em 10 respostas (7 %)

Tabela 6 - Modelos classificados como “Outros”.

Na segunda parte da questão, como já ano (19 %) e 37 vezes na oitava série (14 %).
citado, foi pedido para que os alunos separas- Muitos alunos, entretanto, apresentam algu-
sem o átomo nas partes que julgassem possí- mas evidências de obstáculos, como, por e-
veis. A separação que indica a noção mais xemplo, a possibilidade de separação da ele-
correta seria em: “prótons, nêutrons e elé- trosfera, o que só seria possível conside-
trons” e foi apontada 23 vezes no primeiro rando-a uma camada física, o que no primeiro

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ano apareceu em 66 respostas (54 %) e na oi- lidade atômica, não está clara para os alunos,
tava série em 70 respostas, perfazendo um seja por excluírem partículas importantes na
total de 56 %. separação ou por equívocos graves, como a
Como pode ser visto no gráfico 3, pela separação em número atômico ou de massa,
quantidade de separações encontradas, pode- que são apenas conceitos.
se inferir que a estrutura e mesmo a funciona-

Gráfico 3 - Comparação das possibilidades de separações atômicas encontradas.

Por fim, a questão número três ques- de elétrons, como por exemplo, em telas de
tio-nava os alunos a respeito da exis-tência do televisores; e propõe um experimento com o
átomo, considerando que ele nunca foi visto. aquecimento de diferentes metais, que quando
Ambos os materiais didáticos apresen-tam submetidos ao fogo, alteram a coloração da
evidências de sua existência. O livro didático chama.
tenta mostrá-lo através de duas experiências: Assim, seria de esperar que respon-
A verificação da eletricidade estática pela a- dessem à pergunta com alguma evidência
tração de pequenos pedaços de papel em uma dessa natureza. Mas não houve resposta ple-
régua atritada por uma flanela, e o calor, até namente satisfatória. Na oitava série a questão
então inexistente, resultando da mistura de foi respondida por 109 alunos (81 %), en-
gesso em pó com água. A apostila, por sua quanto que no primeiro ano obteve-se 85 res-
vez, dá exemplos de aplicações tecno-lógicas postas (54 %). As respostas mais freqüen-tes
que dependam do direciona-mento de feixes estão no gráfico 4.

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Gráfico 4 - Comparação das respostas em comum para a questão 3.

Dentre as respostas comuns, na oitava existência atômica às reações químicas e 2


série, das 9 que atribuíram a existência atômi- respostas relacionando a sua existência a ex-
ca à inovações tecnológicas, 5 justificaram plosões de bombas atômicas. Ainda assim,
que a certeza ocorre graças a observação do boa parte das respostas obtidas são, em ambas
átomo no microscópio; no primeiro ano, isso as séries, superficiais. Isso dificulta qualquer
ocorreu em apenas uma resposta, embora um inferência de nossa parte, pois mesmo as res-
aluno tenha atribuído a observação a um te- postas mais próximas do correto, são demasi-
lescópio. Das amostras que se referem a exis- ado simplistas. As respostas que certificavam
tência pelo fato do átomo ser a menor parte da o átomo por “estudos e experiências realiza-
matéria, ou seja, se fosse possível dividi-la das”, por exemplo, não possibilitam identifi-
continuamente, se chegaria até ele, na oitava car se há realmente alguma forma de obstácu-
série as 2 pessoas que escreveram essa respos- lo epistemológico na explicação.
ta apresentaram o modelo atômico de Ruther-
ford-Böhr na questão 2; já no primeiro ano, 4. Conclusão
das 8 respostas, duas apresentaram o modelo
de Dalton, as demais também apresentaram o A intenção desse trabalho foi identifi-
de Rutherford-Böhr. car alguns dos possíveis obstáculos epistemo-
Algumas questões não puderam ser lógicos propostos por Bachelard (1996) pre-
enquadradas em nenhum quesito e foram sentes no ensino de química, em alunos de
classificadas como outros, como por exemplo, oitava e primeiro ano do ensino médio, além
2 respostas na oitava série e 1 no primeiro a- de verificar se sua existência está, de alguma
no, que atribuíam a existência atômica ao re- forma, relacionada ao material didático utili-
gistro arqueológico pré-histórico escrito e pic- zado.
tórico, ou ainda um estudante da oitava série Assim, após sua realização, pôde-se
que defendia a existência de átomos fossiliza- evidenciar a existência de alguns obstáculos
dos por erupções vulcânicas. Além dessas epistemológicos no ensino de atomística em
respostas, na oitava série também apareceram ambas as séries analisadas. A dificuldade de
3 amostras dizendo que o átomo existia por- superação dos modelos utilizados, conside-
que “a professora disse”. rando inclusive que muitos deles não são os
As respostas que mais se aproximaram atualmente aceitos, mas são mostrados com a
do ideal foram 6 que atribuíram a certeza da finalidade de fazer uma abordagem histórica,

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são bons exemplos de possíveis entraves. Para Obviamente que, embora esse conteúdo seja
a aprendizagem do conhecimento científico, é relativamente revisado, a defasagem de um
preciso que se tenha um modelo apenas como ano desde a exposição desse conteúdo deve
uma representação, havendo necessidade de ser considerada como um fator. Por sua vez, a
abstrair de suas figuras e esquemas para que oitava série, provavelmente por ter recém o
haja uma verdadeira compreensão. Além dis- visto, na maior parte das vezes apresentou
so, não é apenas o conceito que está se consti- maior índice de acerto.
tuindo em um obstáculo, as partículas atômi- Podemos traçar algumas implicações
cas também não são bem compreendidas pe- desse nosso estudo para o ensino de ciências.
las séries estudadas. É possível que as duas A primeira delas diz respeito à aprendizagem
questões estejam relacionadas, pois as repre- de outros conteúdos relacionados à compreen-
sentações podem conduzir a idéias erradas de são do átomo, como é o caso da aprendizagem
localização e funcionabilidade. sobre reações químicas. Certamente a com-
A atuação docente também é certa- preensão de quaisquer interações moleculares
mente muito importante para a aceitação ou é prejudicada em alunos que aceitem como
refutação de um dos modelos atômicos, pois, correto o modelo de Dalton, que ainda não
considerando que o novo material didático possuía divisão em partículas. Da mesma
não trazia alguns dos modelos analisados, e forma, no modelo de Thomson, que já propõe
ainda assim esses modelos continuaram a apa- o conceito de elétron, mas não o de eletrosfe-
recer, a ação do professor fica aqui evidente. ra, assuntos como ligações químicas, magne-
Isso não representa necessariamente um pro- tismo, e emissões de fótons também teriam a
blema. Na realidade, como o material não tra- aprendizagem seriamente dificultada. Na rea-
zia essas idéias, é interessante que o professor lidade, defendemos a abstração do modelo,
as mostre, ampliando as abordagens que deve- pois mesmo o modelo mais aceito, pode oca-
rão conduzir ao conceito; mas essa aproxima- sionar entraves, como mostraram Fukui e
ção deve ter o enfoque histórico, formando Pacca (1999), que estudaram a concepção a-
uma linha de raciocínio, progredindo através tômica relacionada à compreensão de corrente
de rupturas e incentivando a superação dos elétrica. Em seus resultados, o grupo estudado
modelos. Ademais, é responsabilidade docen- não mostrou apego aos modelos atômicos an-
te a retificação das analogias e metáforas exis- tigos, mas ainda assim:
tentes no material didático, bem como a dili-
gência de suas utilizações nas suas explana- “A estrutura atômica, o átomo para o
ções, refletindo se seu uso está sendo, de fato, aluno, praticamente tem existência pró-
um auxílio. pria, sem que esteja vinculado à maté-
Assim, a mudança do material didático ria, a um substrato. O elétron é uma en-
não surtiu grandes efeitos na melhoria das tidade muitas vezes desvinculada de
concepções atômicas, tendo em vista que em uma estrutura, podendo aparecer sozi-
ambos os materiais, embora a dinâmica de nho e sem interferir em nada.” (Fukui e
abordagem seja diferente, há noções que po- Pacca,1999: 9)
dem levar a formação de obstáculos, como
por exemplo, as representações atômicas co- Outra implicação se refere à necessi-
mo sistemas planetários. dade de reconhecimento por parte dos profes-
Também se esperava que os alunos de sores das evidências aqui detectadas e da pos-
primeiro ano, por se encontrarem em uma i- sibilidade de estabilização do pensamento dos
dade mais avançada e já terem estudado ou- alunos num determinado modelo atômico que
tros aspectos de maior complexidade das par- não o aceito atualmente, para que o docente
tículas atômicas, como por exemplo, os orbi- trabalhe numa perspectiva de questionar essas
tais e os números quânticos, apresentassem concepções fazendo o aluno avançar nesta
uma maior capacidade de abstração e concei- construção. Ou seja, possibilitar ao estudante
tos mais claros, o que não foi encontrado. a compreensão e a conscientização de que um

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modelo rompe com o anterior de tal forma investigaciones psicologicas, Facultad de psi-
que ele possa apreender a constituição da ma- cologia, Universidade de Buenos Aires.
téria segundo uma concepção de senso co- Andrade, B.L.; Zylbersztajn, A. e Ferrari, N.
mum, de ciência clássica e de ciência quânti- (2002). As analogias e metáforas no ensino de
ca. A essa pluralidade, Bachelard (1984) ciências à luz da epistemologia de Gastón Ba-
chama “perfil epistemológico”, isto é, diferen- chelard. ENSAIO- Pesquisa em Educação em
tes formas de ver e representar a realidade. Ou Ciências, 2 (2), 1-11.
ainda em suas palavras: Bachelard, G. (1996). A formação do espírito
científico: contribuição para uma psicanálise
“Poderíamos relacionar as duas noções do conhecimento. Trad. Estela dos Santos A-
de obstáculo epistemológico e de perfil breu. Rio de Janeiro: Contraponto.
epistemológico porque um perfil epis- Bachelard, G. (1984). A filosofia do não.
temológico guarda a marca dos obstácu- Trad. Joaquim José Moura Ramos, 2ed. São
los que uma cultura teve que superar.” Paulo: Abril Cultural.
(Bachelard, 1984: 30) Costa, R.C. (1998). Os Obstáculos epistemo-
lógicos de Bachelard e o ensino de ciências.
Para reafirmar nossas conclusões fina- Cad. Educ. FaE/UFPel, Pelotas, 11, 153-167.
lizamos recorrendo mais uma vez ao pensa- Fukui, A. e Pacca, J.L.A. (1999). Modelo a-
mento deste autor (Bachelard, 1984: 84): tômico e corrente elétrica na concepção dos
estudantes. Em: Encontro Nacional de Pes-
“Não nos parece com efeito que se pos- quisa em Educação em Ciências – Atas, II
sa compreender o átomo da física mo- ENPEC (pp.1-9), Valinhos.
derna sem evocar a história das suas Galiazzi, M.C.; Oliveira, L.R; Moncks, M.D.
imagens, sem retomar as formas realis- e Gonçalves, M.G.V. (1997). Perfis conceitu-
tas e as formas racionais, sem lhe expli- ais sobre o átomo. Em: Encontro Nacional de
citar o perfil epistemológico.” Pesquisa em Educação em Ciências, Anais, I
ENPEC (pp.345-356), Águas de Lindóia.
Explicitar os diferentes modelos é im- Lecourt, D. (1980) Para uma crítica da epis-
portante, mas é preciso ter muito cuidado para temologia. Lisboa: Assírio e Alvim., 2 ed., p.
que ocorram as rupturas necessárias, ou seja, 25- 32
para que a explanação ocorra construindo Lopes, A.R.C. (1993). Contribuições de Gas-
uma linha de raciocínio que conduza à real ton Bachelard ao ensino de ciências.
aprendizagem. Enseñanza de las ciencias, 11(3), 324-330.
Mortimer, E.F. (2000). Linguagem e forma-
5. Referências bibliográficas ção de conceitos no ensino de ciências. Belo
Horizonte: UFMG.
Adrover, J.F e Duarte, A. (1995). El uso de Nagem, R.L.; Carvalhaes, D.O. e Dias,
analogias en la enseñanza de lãs ciências. J.A.Y.T. (2001). Uma proposta de metodolo-
Programa de estudios cognitivos, Instituto de gia de ensino com analogias. Rev. Port. Ed.,
14 (1), 197-213

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 110-114 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 05/09/2007 | Revisado em 27/11/2007 | Aceito em 30/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

Integrando o ensino da patologia às novas competências educacionais


Integrating the learn of pathology to new education competences

Mário Ribeiro de Melo-Júnior, a, b, Jorge Luiz Silva Araújo-Filhoa, Vasco José Ramos Malta
Patua, Marcos Cezar Feitosa de Paula Machadoa e Nicodemos Teles de Pontes-Filhoa
a
Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (LIKA), Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), Recife, Pernambuco, Brasil; bAssociação Caruaruense de Ensino Superior (ASCES), Caru-
aru, Pernambuco, Brasil

Resumo

Buscando integrar o ensino tradicional da patologia geral à construção de novas competências educa-
cionais e baseando-se nos apontamentos preliminares obtidos por pesquisa realizada com 350 alunos
de diferentes cursos de graduação da área de saúde da Universidade Federal de Pernambuco, este tra-
balho propõe uma adequação das técnicas de ensino, com os objetivos de passar os conteúdos pro-
gramados e de preparar todos os graduandos para utilizarem conhecimentos contextualizados e as
competências adquiridas em situações reais da vida profissional. © Ciências & Cognição 2007; Vol.
12: 110-114.

Palavras-chave: novas competências; patologia geral; ensino superior.

Abstract

With the objective of integrate the general pathology traditional teaching to the construction of new
educational abilities, and based on the preliminary notes carried out by 350 different health's sci-
ences undergraduate students of the Federal University of Pernambuco, this work point out an ade-
quacy of the education techniques, with the aims of transmit the programmed contents, and of pre-
pare all the graduates to use contextualized knowledge and the abilities acquired in real situations of
the professional life. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 110-114.

Key Words: new competences; general pathology; higher education.

A patologia e a construção das competên- damental, já que o estudante implementará na


cias sua prática profissional futura os conhecimen-
tos dos processos patológicos como profissio-
A Patologia Geral é a ponte entre dis- nais de saúde ou pesquisador engajado em
ciplinas básicas e profissionalizantes da área diagnosticar e participar das condutas assis-
de saúde. O ensino da patologia é um elo fun- tenciais para promover a saúde (Chandrasoma
 - M.R. de Melo-Júnior é Biólogo, Mestre em Patologia (UFPE) e Doutor em Ciências Biológicas (UFPE). Atua
como Professor da disciplina de Patologia Geral (PPG) e Patologia Especial na Faculdade Maurício de Nassau (FMN),
ASCES e Faculdade do Vale do Ipojuca (FAVIP). Endereço para correspondência: Laboratório de Imunopatologia
Keizo Asami (LIKA), UFPE. Av. Morais Rêgo s/n, Cidade Universitária, Recife, PE 50670-910. Telefone: (81) 2101-
2504. E-mail para correspondência: mariormj@gmail.com. N.T. de Pontes-Filho é Professor Titular do Departamen-
to de Patologia (UFPE).

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e Taylor, 2004). desmotivador para a maioria dos alunos, jus-


Observamos que nos últimos anos, o tamente devido à ausência de atualizações e
déficit do ensino da patologia geral se acentu- busca de novos recursos pedagógicos que au-
ou, a partir do momento em que a disciplina xiliem o aprendizado dos processos patológi-
Processos Patológicos Gerais (PPG) foi insti- cos de uma forma proveitosa e suficiente.
tuída pelo Conselho Federal de Educação De acordo com a visão do ensino pela
(LDB, 1996), como obrigatória em todos os construção de competências, sugerimos al-
cursos superiores da área de saúde (nutrição, guns princípios fundamentais para um ensino
ciências biomédicas, fisioterapia, terapia ocu- da patologia geral que, de acordo com algu-
pacional, farmácia, fonoaudiologia e odonto- mas correntes pedagógicas aprimora e estimu-
logia) e não só em medicina e enfermagem. la continuamente alunos e professores (LDB,
Com isso, ocorreu um aumento brusco no 1996).
número de alunos, sem que tivessem sido Deve-se desde o princípio, estabelecer
preparadas adequações didático-pedagógicas um “Contrato pedagógico” entre o professor e
para o atendimento necessário a cada curso, os alunos, buscando firmar posições que cada
dentro das competências para esses. uma das partes deverá assumir durante o pro-
Dentre os diversos modelos de gestão cesso de aprendizado. Os alunos expressam
pedagógica para que o ensino da Patologia ao docente o que esperam obter com o estudo
fique condizente com as diretrizes de cada e quais as suas aspirações. Por outro lado, o
curso, podemos destacar o desenvolvimento professor estabelece quais as diretrizes e pa-
de novas competências, tese elaborada pelo râmetros a serem trabalhados durante o curso.
sociólogo suíço Philippe Perrenoud, Professor Estabelecido isso, inicia-se o processo
da Universidade de Genebra e especialista em de construção de competências que irão auxi-
práticas pedagógicas. Ele defende que compe- liar na apreensão e entendimento dos conteú-
tências em educação são as faculdades de dos. Aqui sugerimos algumas abordagens que
mobilizar um conjunto de recursos cognitivos poderão nortear esse processo.
– como saberes, habilidades e informações – O professor deverá saber:
para solucionar com pertinência e eficácia
uma série de situações, buscando conectar os • Gerenciar a classe como uma comuni-
assuntos trabalhados em sala de aula com a dade educativa. Estabelecer o senso de
realidade encontrada no ambiente social dos coletividade, evitando atividades exclu-
alunos (Perrenoud, 1999). dentes e particularizadas;
Atualmente, essa contextualização dos • Organizar trabalhos utilizando ao má-
saberes é uma das bases do ensino por compe- ximo os recursos disponíveis. Elaborar
tências, tornando-se palavra de ordem da edu- aulas diferentes com enfoques diversos,
cação em vários países e também no Brasil. utilizando reportagens, entrevistas, pai-
O processo educacional equivocado néis, cartazes, pesquisas, plenárias dentre
que ocorre atualmente consiste em imprimir outros recursos;
novas reações sobre pessoas totalmente male- • Conceber e dar vida a dispositivos pe-
áveis e passivas. Contudo, tem-se observado dagógicos motivadores. Buscar com o
que, simplesmente dar o conteúdo e esperar auxílio dos alunos atividades dinâmicas e
que ele seja reproduzido não forma o indiví- interessantes que facilitem o aprendizado,
duo que o mercado de trabalho e a sociedade utilizar diferentes técnicas pedagógicas;
atual exigem. • Identificar e modificar aquilo que dá
O ensino por competências baseia-se sentido aos saberes e às atividades esco-
em princípios complexos que devem ser ade- lares. Estimular discussões pertinentes a
quados a realidade de cada área do conheci- patologia e áreas afins, buscando integrar
mento. No caso da patologia, de acordo com os alunos ao conteúdo estudado;
nossa vivência em sala de aula e laboratório • Criar e gerenciar situações-problema.
temos observado um aprendizado mecânico e Motivar o debate sobre relatos de casos

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anátomo-clínicos e buscar, através dos sedimentados, porém na maioria dos casos há


conhecimentos dos conteúdos estudados, pouca carga horária disponível. Como fazer
as possíveis soluções para os casos; então?
• Observar os alunos durante a elabora- É certo que todo esse processo de-
ção dos trabalhos. Integrar os alunos às manda um esforço maior, mas o professor de-
atividades coletivas, buscando resolver ou ve gerenciar esta questão estabelecendo o
minimizar as deficiências individuais; conteúdo programático mínimo e essencial de
• Avaliar as competências em construção disciplina de Patologia, para o curso.
nos alunos. Elaborar fichas de auto- A questão-chave é criar no processo
avaliação para monitorar os progressos de ensino da patologia o hábito de estabelecer
dos alunos e atividade docente durante o “conexões teórico-práticas”, capacitando os
curso. alunos a buscar informações, onde quer que
elas estejam, para utilizá-las nas situações-
Os alunos deverão desenvolver as se- problema que possam vir a enfrentar.
guintes competências: Um bom exemplo de como equacionar
esta dificuldade é o uso da criatividade, utili-
• Dominar a leitura e a escrita de termos zando métodos motivadores e a discussão de
específicos da área. Na patologia existe problemas concretos, como o estudo de casos
uma grande quantidade de termos que se anátomo-clínicos. Nesta modalidade de aula,
não forem bem trabalhados são motivos os tradicionais conteúdos são apenas um dos
de empecilho ao aprendizado; elementos do processo de aprendizagem.
• Resolver situações-problema. É de suma Cria-se uma situação a partir da gera-
importância conectar os processos patoló- ção de conflitos que estimula a classe a resol-
gicos aos problemas de saúde e compor- vê-la. Neste caso, a solução de um problema
tamento encontrados a todo momento em concreto fará com que a teoria ganhe uma fi-
nosso meio social; nalidade aplicável (Feuwerker, 2002).
• Analisar, sintetizar e interpretar dados, Quando uma pessoa se depara com
fatos e situações. Desenvolver o senso uma situação desafiadora, mesmo no campo
crítico e o discernimento para que o aluno de aquisição de conhecimentos, sem que seus
possa lidar de forma eficiente com situa- esquemas mentais disponham de elementos
ções que exijam uma rápida solução; suficientes para enfrentar o desafio, ocorre um
• Compreender seu entorno social e atu- desequilíbrio momentâneo. Então, a pessoa
ar sobre ele. Estimular a conscientização ativa seus esquemas assimilatórios, retirando
de cada um, do papel social e como, atra- do meio as informações necessárias, e mobili-
vés dos conhecimentos adquiridos, pode- za seus esquemas de acomodação, reorgani-
se melhorar a sua comunidade; zando seus novos dados e superando a situa-
ção de desafio; gera-se, dessa maneira, um
• Localizar, acessar e usar melhor as in-
novo estado de equilíbrio (Ceccin e Feuer-
formações acumuladas. O essencial não
werker, 2004).
é decorar todo o livro, mas sim, saber co-
mo resgatar estes conhecimentos quando
for preciso; A interdisciplinaridade na prática de ensi-
no
• Planejar, trabalhar e decidir em grupo.
Desenvolver a capacidade de atuar em e-
A interdisciplinaridade é uma das fer-
quipe e compartilhar informações traçan-
ramentas bastante utilizada para construção de
do planos de ação.
competências, pois se sabe que depois de
formado e inserido no mercado de trabalho, o
Alguns podem questionar a desvanta-
profissional de saúde não encontrará proble-
gem do tempo, já que no caso do ensino da
mas divididos por disciplina.
patologia geral há uma extensa lista de assun-
tos diversos que precisam ser trabalhados e

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Um bom exemplo do seu emprego é excelência. Os alunos são comparados e de-


observado quando são abordados os processos pois classificados em virtude de uma norma
que geram a calcificação patológica. Neste de excelência, definida no conceito de legiti-
caso, obrigatoriamente, discutem-se questões midade absoluta encarnada pelo professor e
ligadas à fisiologia (mecanismo de ação hor- pelos melhores alunos.
monal), bioquímica (metabolismo de melani- No decorrer do ano letivo, os traba-
na), biofísica (efeitos das radiações), clínica lhos, as provas de rotina, as avaliações orais, a
médica (reações sistêmicas associadas) e cul- notação de trabalhos pessoais criam “peque-
tura (hábitos alimentares). nas” hierarquias de excelência, sendo que ne-
Em turmas pertencentes a cursos dife- nhuma delas é decisiva, mas o seu somatório
rentes, é imprescindível atrair a atenção dos prefigura a classificação do aluno dentro da
alunos com questões pertinentes a sua área de hierarquia final (Perrenoud, 1999).
conhecimento e atuação. Não é restringir ou Surge, então, outro ponto importante,
especializar, mas interrelacionar o saber aca- como avaliar as competências?
dêmico com o campo de atuação profissional. Costuma-se, infelizmente, colocar as
Quando se constroem estratégias de ensino provas e os testes previamente marcados, co-
como, por exemplo, os mecanismos de hiper- mo ponto culminante do processo de aprendi-
sensibilidade, em turmas do curso de farmá- zagem, contudo, estudos demonstraram que a
cia, não se deve esquecer de enfatizar as prin- avaliação deve ser algo contínuo e não pontu-
cipais substâncias farmacologicamente ativas al (Cecim e Feuerwerker, 2004). Deve-se
liberadas pelas células, enquanto no curso de mesclar os momentos de avaliação escrita,
nutrição se dá mais ênfase aos aspectos nutri- com atividades orais (seminários, debates),
cionais promotores dos processos alérgicos e aulas práticas (nos laboratórios e museus de
esta etapa de construção do conhecimento in- peças anatômicas), estudos dirigidos e outras
tegrado, atualmente, tem se denominado de atividades que motivem os alunos a mostra-
contextualização de conteúdos. rem seus conhecimentos.
Fica claro que não existem modelos Devemos lembrar que toda a aprendi-
definitivos para ensinar por competências. zagem bem conduzida se caracteriza como
São as necessidades de cada grupo que devem um processo altamente dinâmico, que depen-
nortear o processo de ensino-aprendizagem. de da atividade mental do educando e que se
Não se pode ter o mesmo ritmo, dinâmica e desenvolve pela mobilização de seus esque-
postura didática em turmas diferentes e prin- mas de raciocínio. Para isso, o ensino deve
cipalmente em cursos diferentes. O professor apelar para atividade mental do aluno, levan-
deve avaliar os interesses dos alunos ade- do-o a observar, manipular, perguntar, pes-
quando os conteúdos a serem trabalhados, quisar, trabalhar, construir, pensar e resolver
personalizando-os a cada realidade. situações problemáticas (Gonçalves, 2001).
Todo professor sabe muito bem como Em pesquisa realizada com 350 alunos
reagem os alunos à situação global da classe; de diferentes cursos de graduação da área de
eles são influenciados não apenas pelo desafio saúde da Universidade Federal de Pernambu-
da questão formulada ou do conhecimento co, que estudaram a disciplina de patologia
novo a ser fixado, mas pelo tom da voz do geral nos períodos entre 2002 e 2003, de-
professor, por sua expressão facial e pela ati- monstra-se que 35,6% dos alunos encontra-
tude dos outros alunos, enfim o aprendizado ram dificuldades em apreender os conteúdos,
está condicionado a uma série de questões e, além disso, 50,2% consideraram as aulas
sociológicas e comportamentais. desmotivadoras, embora a maioria (320 alu-
nos) não percebesse desmotivação dos profes-
Avaliando as competências sores. Cerca de 98,2% acreditam que ativida-
des didáticas estimulantes como, aulas práti-
A avaliação é tradicionalmente associ- cas, estudo de casos, seminários, estudos diri-
ada, na escola, à criação de hierarquias de gidos, facilitariam bastante o aprendizado.

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Desta forma, podemos concluir que o se transformar em um simples concurso clas-


problema do aprendizado não está no aspecto sificatório de excelências.
motivacional do corpo docente apenas, mas Assim concluímos que, o estudo da
na forma de ensinar (metodologias e didáticas patologia associado à construção de compe-
escolhidas), que de acordo com esta amostra- tências, pode tornar-se algo muito prazeroso,
gem, necessita de um aprimoramento e atuali- motivador e útil para os graduandos tornando-
zação. os mais capazes de se destacar como indiví-
Na avaliação, segundo a doutrina da duos mais críticos e atuarem de forma mais
construção de competências, os seguintes as- segura dentro das suas áreas profissionais.
pectos devem ser considerados:
Referências bibliográficas
• Desenvolver autonomia progressiva (auto-
regulação da aprendizagem); Ceccim, R.B. e Feuerwerker, L.C.M. (2004).
• Ver o erro, não como um ponto de repro- Mudança na graduação das profissões de saú-
vação, mas como deficiência a ser supera- de sob o eixo da integralidade. Cad. Saúde
da; Pública, 20(5), 1400-1410.
• Não deve haver qualquer limitação rígida Chandrasoma P., Taylor C.R. (1998). Concise
de tempo quando da avaliação das compe- Pathology. Connecticut: Appleton & Lange.
tências; Feurwerker L.C.M. (2002). Mudanças na e-
• Ter domínio do conteúdo sob diferentes ducação médica: os casos de Londrina e de
aspectos causais e temporais (aprendiza- Marília. Tese de doutorado, Faculdade de
gem contextualizada); Medicina de São Paulo, Universidade de São
• Decidir a melhor forma de expor os co- Paulo, São Paulo, SP.
nhecimentos apreendidos; Gonçalves, E.L. (2001). “Pedagogia e didáti-
• Utilizar instrumentos de auto-avaliação ca: Relações e aplicações no ensino médico”.
cruzada (o docente avalia o discente, e vi- Rev. Bras. Educ. Med, 25(1), 20-26.
ce-versa). LDB. (1996). Lei de diretrizes e bases da e-
ducação nacional. FTD Editora, 5a Ed.
Contudo, a aplicação desses conceitos pode se Perrenoud, P. (2002). Dez novas competên-
tornar algo complexo, enquanto a escola der cias para ensinar. Porto Alegre: ArtMed Edi-
tanto peso à aquisição de conhecimentos de- tora.
sarticulados e tão pouca importância à contex- Perrenoud, P. (1999). Avaliação: da excelên-
tualização e à construção de competências. cia à regulação das aprendizagens entre duas
Desta forma, toda avaliação correrá o risco de lógicas. Porto Alegre: Artmed Editora.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
S u b me t i d o e m 1 5 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Artigo Científico

Psicopedagogia: limites e possibilidades a partir de relatos de


profissionais
Psychopedagogy: limits and possibilities according from the professionals experiences

Maria Regina Peres e Maria Helena Mourão Alves Oliveira

Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Campinas, SP, Brasil.

Resumo

A psicopedagogia tem sido uma das áreas de conhecimento que tem gerado grande interesse nos pro-
fissionais ligados à educação. Este trabalho tem por objetivo investigar a prática do professor - psico-
pedagogo, seus desafios, suas limitações, suas possibilidades, frente ao cotidiano da atuação psicope-
dagógica preventiva em instituições regulares de ensino. São sujeitos dez professores – psicopedago-
gos de diferentes instituições de ensino. O material utilizado é um questionário de entrevista semi es-
truturada. Os resultados mostram que 100% dos sujeitos são do sexo feminino, entre 26 a 50 anos. As
contribuições obtidas para melhores resultados na atuação nesta área são diminuição do número de a-
lunos nas classes, necessidade da continuidade de estudos, melhor compreensão sobre as possibilida-
des de realização do diagnóstico psicopedagógico institucional, valorização de uma atuação conjunta
com diversos profissionais, ampliação de psicopedagogos em espaços institucionais. © Ciências &
Cognição 2007; Vol. 12: 115-133.

Palavras-chave: psicopedagogia; aprendizagem; prevenção; professor – psicopeda-


gogo; atuação psicopedagógica.

Abstract

Psychopedagogy has been one of the areas of knowledge that has created great interest in profession-
als attached to education. This work has as its objective to investigate the practice of
teacher/pscychopedagogue; his challenges, his limitations, his possibilities concerning the day-to-day
routine of preventive psychopedagogy in regular educational institutions. The subjects studied are
ten teacher/psychopedagogues from different educational institutions. The material used was a ques-
tionnaire of semi-structured interviews. The results show that 100% of the subjects are of the feminine
sex between the ages of 26 and 50. The contributions obtained for better results in performance in
this area are: diminishing the number of students in the classroom, the necessity of continuing studies,
better comprehension concerning the possibilities of institutional psychopedagogic diagnosis, valuing
the unified performance of several professionals, and elevating the number of psychopedagogues in
educational institutions. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 115-133.

 - M.R. Peres é Graduada em Biologia (PUC-Campinas) e Pedagogia (ASMEC), Mestre em Metodologia do Ensi-
no (Universidade Estadual de Campinas) e Doutoranda em Psicologia (PUC-Campinas). Atualmente é Professora da
Faculdade de Educação e Coordenadora de Curso de Especialização em Psicopedagogia (PUC-Campinas). É integran-
te do Grupo de Pesquisa Aprendizagem, Linguagem e Leitura (PUC-Campinas). E-mail para correspondência:
peresmare@hotmail.com. M.H.M.A. Oliveira é Graduada em Fonoaudiologia (PUC-São Paulo), Mestre em Psicolo-
gia Escolar (PUC-Campinas) e Doutora em Psicologia Ciência e Profissão (PUC-Campinas). Atualmente é Professora
Titular (PUC-Campinas) e Líder do Grupo de Pesquisa Aprendizagem, Linguagem e Leitura (PUC-Campinas). E-mail
para correspondência: maria.marimourao@gmail.com.

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Key Words: psychopedagogy; learning ability; prevention; teacher/ psychopeda-


gogue; psychopedagogic performance.

Introdução ela também considera as valiosas contribui-


ções, de outras áreas de conheci-mento como
A busca pela continuidade de estudos, a Antropologia, a Sociologia, a Fonoaudiolo-
tem-se constituído em uma crescente neces- gia, a Medicina, a Neurologia, a Lingüística.
sidade quer seja, por questões pessoais e/ou Desta forma se valoriza a construção de uma
profissionais. Esta constatação nos motivou a educação mais ampla que integre as diversas
realizar este trabalho considerando que uma áreas de conhecimento, na construção dos sa-
das áreas de conhecimento que têm apresen- beres do aluno.
tado grande demanda para a continuidade de A prática psicopedagógica prevê além
estudos, entre os profissionais oriundos de da atuação em clinicas, a atuação em institui-
cursos de formação de professores, tem sido a ções. De modo geral, o atendimento clínico
área de psicopedagogia. visa intervir em situações de insuces-sos que
Ao se considerar a importância da já se apresentam instaladas. A atuação insti-
formação continuada para profissionais de tucional ocorre, geralmente, em instituições
diversas áreas, destacamos as idéias de Batista de ensino, empresas, organizações assistenci-
(2000), ao enfatizar a demanda histórica que ais. Esta forma de atuação apresenta um cará-
os cursos de especialização, ou seja, que os ter preventivo que visa evitar ou minimizar
cursos de pós-graduação lato sensu vêm con- possíveis situações de insucessos.
seguindo na cultura educacional brasileira. Na prática institucional preventiva, um
Este crescente interesse, dentre outras ques- dos aspectos que merece destaque tem sido a
tões, estaria relacionado às exigências do dificuldade dos psicopedagogos em propor
mercado de trabalho que, juntamente com o procedimentos de avaliação e de intervenção.
tempo de duração dos cursos de especializa- Esta questão também é uma das preocupações
ção, geralmente um ano letivo, vêm atraindo a de Bossa (2000) ao enfatizar que uma das di-
muitos. ficuldades práticas com que se deparam os
A psicopedagogia, concebida como psicopedagogos brasileiros, reside nos proce-
uma área de conhecimento relativamente atu- dimentos diagnósticos para a intervenção. Se-
al, historicamente apresenta como objeto de gundo a autora, a indefinição quanto ao ins-
estudos, o processo de aprendizagem e suas trumental utilizado no trabalho psicope-
interfaces com os vários campos de conheci- dagógico merece ser pensada, de forma que
mento. Atualmente, segundo Rubinstein e co- novas perspectivas possam daí surgir e aten-
laboradores (2004: 227) “o objeto de estudo der as reivindicações inerentes à atividade
da psicopedagogia contem-porânea continua psicopedagógica. Ela também acrescenta que
sendo a aprendizagem, entretanto passa-se a vários autores já se debruçaram sobre esta
valorizar a amplitude do fenômeno educacio- questão, entretanto enfatiza que ainda há mui-
nal” e mais intensamente a relação do sujeito to por se fazer.
com a aprendizagem. Considera-se assim o Neste mesmo sentido, quanto aos pro-
contexto, a situação e as interações realizadas cedimentos de diagnóstico e intervenção, a-
pelo aprendiz durante o processo de ensino e presentamos as recentes inquietações de Ru-
aprendizagem. Diante destes referenciais é binstein e colaboradores (2004) e Masini
que a ação psicope-dagógica será proposta e (2006). Estas estudiosas enfatizam que a di-
desenvolvida. versidade de práticas psicopedagógicas em
Isto, também contribui para que se função da ampliação do campo de atuação do
possa situar a psicopedagogia como uma área psicopedagogo impõe o desafio da realização
de conhecimento interdisciplinar. Neste senti- de novos estudos. Esses estudos poderiam se
do temos que a psicopedagogia, além de ter o iniciar junto aos cursos de formação do psico-
seu referencial na Psicologia e na Pedagogia, pedagogo se estendendo aos programas for-

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mais de pesquisa desenvolvidos nas universi- do? o por que?; o para que?; se ensina e se
dades, especialmente junto a grupos de pós- aprende. Com isto a visão positivista de edu-
graduação. Isto contribuiria para obtermos cação cede espaço a uma concepção de ensino
uma visão mais aprofundada que expressasse e de aprendizagem decorrente da epistemolo-
as atuais tendências da prática psicopedagógi- gia genética. Este novo enfoque, realça a
ca brasileira. construção do conhecimento por meio do a-
Assim diante destas e de outras consi- prender fazendo. Com isto passa-se a conside-
derações, o interesse pelo tema psicopedago- rar as etapas de desenvolvimento cognitivo do
gia amplia-se e articula-se à experiência de aprendiz.
uma das pesquisadoras que atua como profes- Isto segundo Kiguel (1990: 39), vem
sora universitária e coordenadora de curso de favorecer a “[...] compreensão do fenômeno
psicopedagogia em uma instituição particular da aprendizagem de forma a integrar as várias
de ensino. Merece também destaque, o fato de áreas do conhecimento, considerando ainda,
que este tema se converteu em projeto de pes- os diferentes níveis evolutivos.” Este mesmo
quisa de doutorado, culminando na elabora- estudioso sugere que será pela interdisci-
ção deste artigo entre orientadora e orientan- plinariedade, ou seja, por meio da conjugação
da, junto ao programa de pós-graduação em de esforços das várias áreas do conhecimento
psicologia. e conseqüentemente de vários especialistas,
Nesta perspectiva, o presente estudo ao que se poderá intervir no complexo fenômeno
pretender desenvolver uma investigação sobre da aprendizagem humana.
a atual prática do psicopedagogo utilizou co- Assim, ao considerarmos a psicopeda-
mo referencial além de um levanta-mento bi- gogia como uma área de conhecimentos sen-
bliográfico sobre o tema, uma investigação sível a questões relativas do processo educa-
com professores que também são psicopeda- cional e a contextualizarmos a partir de seus
gogos e que estejam atuando em diferentes referenciais teóricos, nos defrontamos especi-
instituições de ensino públicas e particulares. almente com as inegáveis contribuições da
Entendemos que isto nos auxilia a melhor psicologia e da pedagogia. Segundo Visca
compreender os diversos limites e possibili- (1987), a psicopedagogia foi sendo construída
dades da atuação psicopedagógica institucio- como uma área de conhecimento ao mesmo
nal preventiva no nosso país. tempo independente e complementar da peda-
gogia, por considerar as questões metodológi-
1. O Objeto de estudo, os fundamentos e as cas e em especial o trabalho docente. E em
relações da psicopedagogia relação à psicologia, por considerar especial-
mente, as contribuições das escolas psicanalí-
Existe consenso entre vários estu- ticas, piagetiana e da psicologia social, por
diosos da psicopedagogia, dentre eles Fer- meio de Enrique Pichón-Rivière. A partir des-
nández (1994), Kiguel (1990), Macedo tes referenciais, a psicopedagogia enfatiza os
(1992), Rubinstains e colaboradores (2004), aspectos cognos-citivos, afetivos, emocionais,
Massini (2006) Visca (2002), e outros, de que sociais, além de outros.
a psicopedagogia desde a sua origem tem si- Portanto partimos da premissa de que
tuado o seu objeto de estudo junto às quês- a construção de conhecimentos não pode se
tões diretamente relacionadas à aprendi- limitar a contribuições isoladas de qualquer
zagem. área que seja, mas sim da inter-relação entre
Respeitando-se os estudos, o contexto, elas em função de um objetivo maior. Assim,
as particularidades, dentre outras questões, a psicopedagogia entendida como uma área
destacamos as contribuições de Macedo de conhecimentos, geradora de uma prática
(1992) e Visca (1987), que ao enfatizarem o interdisciplinar, não pode ignorar as contri-
objeto de estudo da psicopedagogia consi- buições das várias áreas de conhecimentos.
deram especialmente as questões de origem Diante disto, Lima (1990: 19), apre-
metodológica, dentre elas, o como?; o quan- senta a importância de um “dialogo confronto

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especialmente entre a psicologia e a pedago- A atuação clinica na psicopedagogia


gia de forma que se faça algo mais efetivo em apresenta um caráter terapêutico, inferindo a
função do sujeito cognoscente”. Desta forma, idéia de cura, de resgate da saúde do apren-
não se trata de substituir a psicologia pela psi- der. Neste sentido, ela atende aos portadores
copedagogia, pedagogia, antropologia, filoso- de dificuldades de aprendizagens, que já se
fia, lingüística, biologia, fonoaudiologia, me- encontram instaladas. Nada impede, porém
dicina, ou por qualquer outra área de conhe- que ao se diagnosticar e proceder a interven-
cimento. Entendemos assim que a busca por ção, visando eliminar ou minimizar os pro-
melhorias educacionais passa pela articulação blemas, também se atue de forma a prevenir
das diversas áreas em busca de significados outras, possíveis dificuldades. Neste sentido,
para a atuação profissional. Neste sentido es- o trabalho psicopedagógico na clinica, pode
tamos incluindo também a atuação psicope- também ser considerado um trabalho preven-
dagógica que, no nosso entender, em muito tivo. Com isto, o psicope-dagogo atua inici-
pode contribuir com o sucesso da dinâmica almente realizando o diagnóstico da situação
educador-conhe-cimento-educando. problema para, em seguida buscar as formas
Dentre os estudiosos que abordam as mais adequadas para a intervenção. O diag-
contribuições das várias áreas de conhe- nóstico visa principalmente investigar os
cimento à área da psicopedagogia, destaca- quês? e, por quês?, de determinadas situa-
mos as de Bossa (2000), e de Stroili (2001). ções. A fase de intervenção visa a busca das
Assim, segundo os estudos desenvolvidos, melhores opções de procedimentos para se
sobre este tema, temos alguns subsídios que efetivar a ação.
se destacam. Dentre eles, os: da pedagogia Na atuação institucional, segundo Fa-
que ao estudar as diversas abordagens do pro- gali (1998), a ênfase do trabalho psicopeda-
cesso de ensino e aprendizagem procura em- gógico reside na construção de conhecimentos
basar a ação docente; da epistemologia e da desenvolvidos em nível preventivo. Este tra-
psicologia genética que analisa e descreve o balho pode ser realizado em diversas frentes
processo de construção do conhecimento pelo institucionais visando evitar o desenvolvi-
sujeito em interação com outros e com os ob- mento de possíveis problemas de aprendiza-
jetos; da psicologia social que se preocupa gem ou de outras situações que possam com-
com as relações familiares, grupais, institu- prometer a educação para a vida social. Den-
cionais, com as interferências socioculturais e tre as possibilidades de atuação institucional
econômicas que permeiam a aprendizagem; do psicopedagogo temos trabalhos na área
da neuropsicologia que possibilita a compre- hospitalar, empresarial, familiar, escolar, e
ensão dos mecanismos cerebrais que servem outras.
de base para o aprimoramento das atividades Em especial, enfocaremos a atuação
mentais; da psicanálise que aborda o mundo psicopedagógica institucional e neste sentido
do inconsciente, das representações, que se podemos constatar que, em grande parte das
expressa por meio de sintomas e símbolos; da instituições, o ‘fazer psicopedagógico’ ocor-
lingüística que traz a compreensão da língua- re, de modo geral, tendo como referencial três
gem, da língua enquanto código disponível vertentes. A primeira, quando o psicopedago-
aos membros de uma sociedade. go é contratado temporariamente, para uma
Com isto, tomando como referencial a assessoria psicopedagógica. Neste trabalho,
idéia de complementaridade das funções em geralmente as intervenções ocorrem direta-
busca de articulá-las as diversas áreas do co- mente junto ao grupo de docentes que por sua
nhecimento humano para a compreensão do vez, estão em busca de metodologias diferen-
fenômeno educacional, temos que a psicope- ciadas de trabalho, visando um melhor apro-
dagogia, segundo Fagali (1998), se caracteriza veitamento escolar por parte do aluno. A as-
como uma área de atuação interdisciplinar sessoria pode se dar também junto a pais ou
desenvolvida por meio das modalidades, cli- familiares de alunos que apresentam possíveis
nica e institucional. dificuldades de aprendizagem. Neste caso,

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geralmente ocorre o encaminhamento para um cia do processo integrado de gestão no interi-


atendimento psicopedagógico fora do ambien- or da sala de aula visando um melhor aprovei-
te escolar. Diante disto, o psicopedagogo difi- tamento educacional.
cilmente irá criar vínculos com o grupo, uma Desta forma, ao considerarmos os tra-
vez que seu trabalho, na maior parte dos ca- balhos do professor-psicopedagogo, no inte-
sos, é esporádico, ou seja, se restringe a en- rior da sala de aula, temos que ele poderá in-
contros semanais, quinzenais e até mesmo tervir, dentre outras questões, no sentido de
mensais. prevenir ou minimizar possíveis dificuldades
A segunda vertente se dá quando a de aprendizagem. Esta tendência se constitui
instituição escolar contrata o psicopedagogo no aspecto central, portanto de maior interesse
para integrar a sua equipe de trabalho. Ao a- neste trabalho, pois se vincula diretamente a
tuar junto a equipe escolar, geralmente com- nossa intenção de investigar o desenvolvi-
posta por diretores, coordenadores, orientado- mento da prática do professor-psicopedagogo.
res educacionais, professores, alunos, pais, Nele estaremos enfatizando os possíveis ins-
familiares e outros segmentos o psicopedago- trumentos utilizados no processo de avaliação
go tem a oportunidade de interagir diretamen- e intervenção, visando a realização de uma
te com o cotidiano das ações desenvolvidas na prática institucional preventiva.
instituição. Neste caso, ele passa a realizar um
trabalho em conjunto com outros profissio- 2. Algumas concepções de prevenção e pre-
nais, contribu-indo assim, dentre outras ques- venção em psicopedagogia
tões, com: o desenvolvimento de estudos e
reflexões sobre os materiais didáticos escolhi- As primeiras concepções sobre pre-
dos e utilizados; a organização e seleção dos venção, historicamente aparecem associadas à
temas de ensino; o processo metodológico e idéia de saúde, a idéia de bem estar físico e
avaliativo; as situações de sucessos e insu- emocional. Entretanto, Durlak (1997) concei-
cessos escolares; os relacionamentos interpes- tua a prevenção como um conhecimento mul-
soais e outros temas e questões que sejam de tidisciplinar que envolve as diversas áreas de
interesse e necessidade da instituição. O psi- conhecimentos, dentre elas a educação, a psi-
copedagogo também além de desenvolver tra- cologia, a medicina, a sociologia, além de ou-
balhos sistemáticos junto a equipe escolar po- tras. Isto se justifica em função da multicausa-
de atuar junto a grupos de pais, ou como al- lidade dos fatores e dos objetivos que devem
guns estudiosos preferem, junto a ‘escola de contemplar, os programas de prevenção, em
pais’. Neste caso, dentre outros, o objetivo função das necessidades pessoais ou dos gru-
maior seria a busca de melhorias nas relações pos. Diante disto, os trabalhos preventivos
entre pais e filhos frente aos desafios de um deverão considerar objetivos múltiplos, dentre
mundo em constante mudança. eles os de: evitar o aparecimento de proble-
Na terceira vertente temos a presença mas, evitar que os problemas já existentes se
do professor-psicopedagogo, cuja atuação irá agravem, reduzir a gravidade de novos pro-
ocorrer diretamente com alunos em sala de blemas ou mesmo, retardar o desenvolvimen-
aula. Isto certamente favorecerá, um relacio- to do problema.
namento de proximidade, de confiança propi- Historicamente temos, segundo Albee
ciando um melhor conhecimento das possí- e Gullotta (1997), que as primeiras propostas
veis dificuldades de aprendizagem dos alunos. formais de intervenção em sentido preventivo,
Possibilidade semelhante a esta tem sido alvo consideraram o aspecto mental, emocional e
dos recentes estudos dos pesquisadores fran- educacional. Essas ações ocorreram no século
ceses Hétu e Carbonneuau (2002), que inves- XX e tiveram como referencial a segunda
tigam as contribuições dos psicopedagogos no guerra mundial e a guerra do Vietnã. Assim
processo de gestão da sala de aula em institui- ao final dos anos setenta, os Estados Unidos
ções de ensino da França. Esses pesquisadores foi o primeiro país a oficializar a criação da
enfatizam, dentre outras questões, a importân- primeira comissão de prevenção à saúde. Esta

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proposta envolvia a participação de diversos tamente implicará em melhorias sociais. Com


profissionais, dentre eles, os médicos, os pa- isto, podemos observar que o nível de maior
ramédicos, os psicólogos, os educadores que abrangência para o desenvolvimento das a-
atuavam junto a vitimas de problemas emo- ções psicopedagógicas preventivas é o que vai
cionais. Dentre os problemas mais comuns, atuar junto aos processos educativos no senti-
entre as vítimas das guerras, estavam a pobre- do de evitar ou diminuir os problemas de a-
za, a depressão, a raiva, a discriminação, o prendizagem.
desemprego. Com o tempo as ações preventi-
vas se ampliaram e passaram a ser desenvol- 2.1. Intervenção psicopedagógica institu-
vida junto a famílias e instituições escolares, cional preventiva
não somente para as vitimas da guerra, mas
sim em sentido preventivo, para toda a comu- Ao tomarmos como referencial os ní-
nidade. veis de prevenção, Bossa (2000) propõe três
Desta forma se amplia a importância e níveis de intervenção psicopedagógica. No
a necessidade do desenvolvimento de pro- primeiro nível, o psicopedagogo atuaria junto
gramas de intervenção. Os estudos e pesqui- aos processos educativos visando evitar os
sas sobre este tema também se expandem. possíveis problemas de aprendizagem. Para
Com isto, podemos encontrar em Albee e Jof- isto, é proposto um trabalho que considere as
fe (1977) uma das mais significativas contri- questões didático-metodológicas, e também a
buições, ao proporem diferentes níveis para formação e a orientação de professores, além
um trabalho preventivo. Assim segundo estes do aconselhamento aos pais. No segundo ní-
autores, temos a prevenção primária, a secun- vel, a finalidade esta em, ao mesmo tempo,
dária e a terciária. A prevenção primária se diminuir e tratar os problemas de aprendiza-
constitui de ações a serem realizadas visando gem que já se encontram instalados. Para isto,
evitar as situações problemas. Elas ocorrem a proposta reside na elaboração de um diag-
especialmente por meio do desenvolvimento nóstico da realidade institucional, a partir daí
de programas educacionais. Esses programas se iniciaria a elaboração dos planos de inter-
são destinados à todos e não somente a um venção. Esse plano deverá considerar tanto o
determinado grupo da população. A preven- currículo como o trabalho dos professores,
ção secundária consiste em, após o diagnósti- visando evitar que os problemas, os transtor-
co de um determinado problema, propor uma nos, se repitam. No terceiro nível, o objetivo
intervenção focalizada a um determinado gru- consiste na eliminação dos trans-tornos que
po. Com isto ela tem por objetivo proteger já se encontram instaladas. Neste caso, o cará-
determinadas populações de risco. A preven- ter preventivo estaria em prevenir o apareci-
ção terciária é mais ampla que as anteriores mento de outros problemas, decorrentes ou
tendo por objetivo a intervenção em popula- mesmo diferentes dos já eliminados. Para isto,
ções ou grupos onde os problemas já estão a proposta de intervenção deverá ser a de pro-
instalados. Desta forma ela visa reduzir os por alternativas para minimizar as decorrên-
efeitos, as conseqüências desses problemas. cias dos problemas, além de atuar para preve-
Diante disto, podemos constatar a im- nir o surgimento de outras conseqüências.
portância das ações de prevenção, em especial Ao ampliar essas idéias, e enfatizar
da prevenção primária, pela possibilidade de concretamente a elaboração de ações para o
se trabalhar de forma ampla, ou seja, com to- desenvolvimento de propostas de intervenção
da a população. Isto contribuiria para evitar o em nível preventivo, com o objetivo de apri-
surgimento de possíveis problemas, para im- morar o processo de construção do conheci-
pedir a instalação de situações indesejáveis, mento, Fagali e Vale (1994) também propõe
antes mesmo que elas se manifestem concre- algumas alternativas. Essas alternativas con-
tamente. Programas como este também cola- sideram a importância da: revisão dos pro-
bora para o envolvimento e conseqüente gramas curriculares das instituições bem co-
comprometimento da coletividade, o que cer- mo a articulação dos mesmos aos aspectos

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afetivo-cognitivos; atenção para a utilização mesmos. Desta forma, o professor-


de diferentes formas de trabalhar o conteúdo psicopedagogo também estaria trabalhando no
programático; elaboração de diversos materi- sentido de fortalecer as relações do grupo, não
ais para uso do próprio aluno de forma a inte- deixando de considerar a influência da escola,
grar o raciocínio, a afetividade, a cognição, o da família e da sociedade.
conhecimento. Ao abordarmos a importância da pre-
Assim, a intervenção psicopedagógica venção e da intervenção psicopedagógica, não
preventiva proposta, toma como referencial a podemos ignorar a fase que precede a essas
ação curricular e os aspectos afetivo-cogni- ações. A etapa de avaliar, ou seja, a avaliação
tivos dos aprendizes. No que se refere a ques- psicopedagógica, que deverá anteceder a toda
tão curricular, se torna evidente a necessidade e qualquer proposta de intervenção, seja ela
do desenvolvimento de práticas que sensibili- clinica ou institucional.
zem os docentes sobre a importância da refle- A avaliação psicopedagógica, de mo-
xão critica e possível revisão de: concepções do geral, aparece associada a uma queixa.
de educação; orga-nização e seleção dos con- Segundo Barbosa (2001), os sintomas regis-
teúdos de ensino; metodologia e avaliação. trados em uma queixa, são em princípio, ori-
Aliado a isto se destaca a importância de se ginários das observações desencadeadas na
considerar a existência de vínculos afetivo- instituição. Essas observações deverão, por
emocionais, como possíveis elementos facili- um lado, considerar as atitudes da criança ou
tadores do processo de ensino e aprendiza- adolescente ao assistirem as aulas, durante os
gem. intervalos e recreios, nas atividades extra
Entretanto, se torna oportuna a consta- classe, nos relacionamentos com os colegas e
tação de que as propostas apresentadas, apesar professores. Por outro lado, na avaliação psi-
de serem muito adequadas e pertinentes, nas copedagógica a instituição de ensino também
ações que são sugeridas, para a intervenção deverá ser considerada. Desta forma, a análise
psicopedagógica institucional, não se conside- da adequação dos materiais didá-ticos, da
ra a possibilidade, do professor ser um psico- proposta pedagógica, da método-logia, da a-
pedagogo. Neste sentido partimos do pressu- valiação, associadas a entrevistas com profes-
posto de que, em tese, o professor- sores, tem se constituído em importante ins-
psicopedagogo, sendo um profissional especi- trumento de avaliação.
alizado e estando diária-mente inserido no Assim diante das diversas possibi-
ambiente da sala de aula, poderia também in- lidades de intervenção psicopedagógica, po-
tervir preventivamente. demos constatar, que no Brasil os recursos
Esta nova configuração, em principio, mais utilizados para a avaliação na instituição,
oportunizaria a reflexão e a possibilidade de têm sido as entrevistas, as observações, os
revisão da prática do professor-psicopeda- inventários, as pesquisas, as dinâmicas gru-
gogo e talvez, até mesmo da proposta pedagó- pais e em especial os jogos pedagógicos.
gica da instituição. Diante disto, consi- Comtudo a importância da ação psico-
deramos que, este profissional estaria mais pedagógica preventiva, deverá sempre consi-
sensível a buscar propostas de trabalho que, derar a subjetividade do aluno, bem como as
ao mesmo tempo em que, atendessem aos in- particularidades de cada situação, além da
teresses e necessidades pessoais e sociais de complexidade dos fatores que a permeiam.
seus alunos, propicias-sem possíveis melhori- Uma realidade diferente da brasileira,
as nos relacionamentos e no próprio ato de no que se refere a avaliação e intervenção psi-
ensinar e de aprender. No que se refere ao a- copedagógica, pode ser encontrada na Ar-
luno, esse professor especializado em psico- gentina. Neste país, é prática comum, o psico-
pedagogia por meio do convívio diário, pode- pedagogo utilizar, tanto na clinica como na
ria, dentre outras questões, estar atento para instituição, diversos testes como instru-mento
melhor auxiliar no desenvolvimento cogniti- para a avaliação do aluno. Entretanto o refe-
vo, afetivo, emocio-nal, psicomotor, dos mes-

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rencial para o atendimento tanto clinico como gente deve considerar as contribuições das
institucional está na família e na escola. escolas de Genebra, da Psicanalítica e da Psi-
Desta forma, as propostas de interven- cologia Social. Dentre outros fatores, os tra-
ção, de modo geral, se iniciam a partir de en- balhos da escola de Genebra subsidiariam os
trevistas estruturadas ou semi-estrutu-radas fundamentos sobre a construção do conheci-
com pais ou familiares, com os docentes ou mento, os da escola psicanalítica auxiliariam
coordenadores das escolas e com o aluno. Es- na explicação de questões relaci-onadas a afe-
sas entrevistas se constituem em uma anam- tividade e os trabalhos da psicologia social
nese que, com os pais ou familiares, tem por enfocariam as questões culturais, os processos
objetivo principal conhecer o histórico de vi- grupais e suas relações com o individuo.
da do aluno e as relações que permearam es- Assim, ao abordarmos a diversidade
sas histórias. As entrevistas com os docentes, de recursos da avaliação psicopedagogia insti-
coordenadores ou orientadores, visam obter tucional na Argentina e confrontá-la com a
informações sobre o processo de ensino e a- realidade da avaliação psicopedagógica no
prendizagem, conhecer a proposta da institui- Brasil, podemos constatar a existência de um
ção, a metodologia, a avaliação, o material enorme distanciamento entre elas. Talvez a
didático, e especialmente as relações profes- mais significativa diferença relacionada à ava-
sor e aluno e entre os alunos. A entrevista ini- liação e intervenção psicopedagógica resida
cial com o aluno, dentre outros, tem por obje- na própria questão da formação do psicope-
tivo o levantamento de hipóteses sobre os dagogo. Na Argentina os cursos que formam
comportamentos, os relaciona-mentos, os in- o psicopedagogo apresentam disci-plinas co-
teresses, e até mesmo os pos-síveis silêncios muns nos dois primeiros anos à formação do
do aluno diante de algumas questões. psicólogo e do psicopedagogo. Além disso,
Juntamente com a entrevista, o psico- os currículos dos cursos de psicopedagogia
pedagogo argentino, também utiliza com as apresentam uma significativa carga horária
crianças, alguns instrumentos específicos de para disciplinas de técnicas de diagnóstico
avaliação. Dentre os instrumentos que irão psicopedagógico, diagnóstico psicopedagógi-
nortear as propostas de intervenção psicope- co institucional, intervenção psicopedagógica
dagógicas estão os testes de inteligência, as em instituições escolares, além de outras dis-
provas de nível do pensamento ou também ciplinas. Isto, dentre outros fatores, favorece a
chamadas de piagetianas, a avaliação do nível possibilidade da liberação do o uso de testes
pedagógico, a avaliação perceptomotora, os tanto para os psicólogos como para os psico-
testes projetivos, os testes psicomotores e ou- pedagogos argentinos, além de propiciar uma
tros. melhor possibilidade de preparação para o
exercício profissional.
Também merece destaque como forma de ins- No Brasil a avaliação por meio do uso
trumento mais amplo e subjetivo de avaliação de testes psicológicos, de inteligência, proje-
o que Fernández (1990: 44) denomina de “o tivos e outros, são de uso exclusivo dos psicó-
olhar e a escuta psicopedagógica”. Segundo a logos. No nosso entender isto é muito coeren-
autora, essa postura é revelada por meio da te, especialmente com os pressupostos que
disponibilidade do psicopedagogo ouvir aten- norteiam a formação do psicopedagogo no
tamente a família, a instituição escolar e o a- Brasil que é muito diferente dos valorizados
luno visando formular hipóteses sobre deter- em alguns outros paises. Assim temos que
minados fatos, situações, contextos. dentre outros paises, na Argentina, a forma-
Temos ainda que o referencial teórico ção básica do psicopedagogo ocorre após qua-
mais utilizado na avaliação psicopedagógica tro anos de estudos, em nível de graduação.
argentina, é o da “Epistemologia Conver- Em continuidade a formação inicial, são pro-
gente em Psicopedagogia” . Nesta proposta o postos cursos de especia-lização, mestrado ou
psicólogo argentino Visca (2002) parte da doutorado.
concepção de que a psicopedagogia conver-

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Na França, a formação inicial ocorre fissão regulamentada no nosso país, ela en-
por meio dos programas de ciências da educa- contra-se legitimada.
ção. A formação continuada ocorre nos cursos Desta forma, a questão da formação
de pós-graduação na área de psicopedagogia. interfere diretamente na avaliação psicopeda-
Isto caracteriza uma enorme diferença em re- gógica perpassando pela possibilidade de
lação a atual formação do psicopedagogo no construção e sedimentação de um referencial
Brasil. Podemos afirmar que, exceto raríssi- teórico que irá servir de parâmetros para a
mas exceções, são os cursos de especializa- organização de instrumentos avaliativos e,
ção, geralmente com duração de aproxima- sobretudo para analises dos resultados obti-
damente 360 horas distribuídas em um ano dos.
letivo, que teoricamente formam o psicopeda-
gogo brasileiro. Não podemos nos esquecer 3. Objetivos
também que estes cursos de especialização
recebem profissionais de diversas formações Diante do exposto são objetivos deste
iniciais, porém de ‘áreas afins’. Isto certamen- estudo descrever e analisar a prática de pro-
te se constitui em um diferencial altamente fessores que também são psicopedagogos,
significativo, para o exercício desta atividade, investigar seus possíveis limites e possibili-
que já se inicia na formação, perpassa pela dades. São objetivos específicos:
atuação e reflete diretamente na identidade e
na questão da regulamentação da profissão. • caracterizar o professor – psicopedagogo, a
No Brasil a psicopedagogia não pos- partir de alguns dados pessoais e profis-
suem o status de profissão regulamentada, ela sionais;
esta oficialmente catalogadas, junto ao Códi- • identificar a instituição em que estes pro-
go Brasileiro de Ocupação – CBO, como uma fissionais estão atuando;
ocupação. Este fato não desmerece o trabalho • descrever a prática cotidiana do professor -
do psicopedagogo. Ao contrário, partimos do psicopedagogo;
pressuposto de que este posicionamento além • verificar a opinião dos entrevistados so-
de mais coerente em sentido educacional con- bre as influências da formação inicial na
tribui para se evitar dificuldades que esbar- prática psicopedagógica;
ram, sobretudo, na construção da identidade e • verificar os trabalhos de intervenção psi-
da legalidade para o exercício profissional. copedagógica preventiva e os procedi-
mentos de diagnósticos mais utilizados;
Se por um lado o exercício da psicopedagogia • descrever as propostas de intervenção psi-
esbarra na questão da legalidade, por outro copedagógica considerada como bem su-
lado, temos também a realidade de que vários cedida;
municípios, especialmente nos estados do Sul
• identificar, segundo os participantes, as
e de São Paulo, ignoram o reconhecimento da contribuições da psicopedagogia institu-
profissão e realizam concursos públicos para cional preventiva, os seus desafios e suas
psicopedagogos. No estado de São Paulo, sugestões, para a obtenção de melhorias
também temos a aprovação do projeto lei n.º na prática psicopedagógica.
128/2000, que estabelece a assistência psico-
lógica e psicopedagógica em todas as institui-
4. Metodologia
ções de ensino básico, abrindo a possibilidade
do psicopedagogo se integrar profissional- Assim, visando atingir os objetivos
mente na área educacional. Acreditamos que, propostos buscamos, por meio da trajetória
fatos como estes contri-buem com idéias po- metodológica, dos relatos e das ações, des-
pularmente dissemi-nadas entre os psicopeda- crever os limites e as possibilidades da prática
gogos de que, apesar da psicopedagogia ainda cotidiana do professor – psicopedagogo. Para
não ter conquistado o status de ser uma pro- isto utilizamos como referencial os dados ob-
tidos por meio de questionário semi estrutura-

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do além da análise qualitativa para os dados apresentou três partes, sendo que na primeira
obtidos. buscamos informações referentes a dados pes-
Para isto, utilizamos inicialmente um soais dos entrevistados. Na segunda parte,
pré-teste com dois psicopedagogos, tivemos buscamos situar o professor – psicopedagogo
com isto, o objetivo de verificar validade do quanto a sua formação inicial e continuada e
instrumento. Diante dos resultados obtidos, o seu tempo de atuação. Na terceira parte, enfo-
instrumento sofreu pequenas adequações vi- camos os relatos sobre a atuação profissional
sando atender ao novo universo da pesquisa e a possível existência de intervenções psico-
que passou a considerar o grupo de professo- pedagógicas preventivas.
res – psicopedagogos que deveriam estar atu-
ando em sala de aula, junto ao Ensino Fun- Procedimento
damental, em instituições publicas ou particu-
lares do estado de São Paulo. No contato inicial com os partici-
pantes apresentamos o Termo de Consen-
Participantes timento Livre e Esclarecido. Este termo foi
aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa,
Os dez professores – psicopedagogos por meio do protocolo 362/06, tendo também
participantes desta pesquisa, foram convida- sido registrado junto a Comissão Nacional de
dos pela pesquisadora, para que pudéssemos Ética em Pesquisa – CONEP, por meio da fo-
obter um universo variado em termos de tem- lha de rosto – FR 97120. Ao apresentarmos o
po de experiência profissional e de realidades termo aos participantes da pesquisa, ressalta-
de instituições de ensino. mos a importância do registro de aceite, bem
Os entrevistados foram escolhidos in- como explicitamos os objetivos da mesma
tencionalmente em função de pertencerem a além da forma de participação dos envolvi-
diferentes realidades educacionais e atende- dos, e do caráter sigiloso das informações a
rem aos objetivos da pesquisa. Isto segundo serem obtidas. Enfatizamos assim que todo o
Thiollent (1986), se apresenta como um prin- desenvolvimento da pés-quisa considerou a
cípio perfeitamente adequado ao contexto de preservação da integridade física, cognitiva,
uma pesquisa que enfatiza aspectos qualitati- afetiva e moral dos partici-pantes. Atendendo
vos. Apesar do convite, a participação na pes- assim as normas éticas implícitas nas pesqui-
quisa, se deu de forma voluntária, sendo pos- sas com seres humanos.
sível que o participante se retirasse em qual- Os procedimentos utilizados na pés-
quer momento sem que houvesse nenhuma quisa foram desdobrados nas seguintes etapas:
espécie de penalidade ou ônus. Também foi
destacado o nosso compromisso em respeitar • Elaboração de pré-teste. O pré-teste foi
a privacidade e o sigilo em relação aos dados realizado de forma voluntária com dois
ou informações obtidos, bem como o nosso psicopedagogos;
objetivo de retornar aos participantes os resul- • Contato inicial com os professores – psi-
tados obtidos com este trabalho. copedagogos. Neste encontro, foram apre-
sentados os objetivos do trabalho de pes-
Material quisa, sendo questionado o interesse ou
não em participar da mesma. Em caso a-
O material utilizado consistiu de um firmativo, o termo de consentimento livre
questionário semi-estruturado. Os participan- e esclarecido foi entregue, formalizando
tes da pesquisa tiveram acesso a este instru- assim a concordância na participação;
mento de diferentes formas, conforme a mani- • Encaminhamento dos questionários. Essa
festação explicitada. Assim o questionário etapa ocorreu para os pesquisados que no
chegou aos participantes, nos meses de março contato inicial manifestaram o desejo de
e abril de 2007, via correio eletrônico ou pes- colaborarem com a pesquisa. Conforme a
soalmente, isto é em mãos. O questionário opção de cada participante, o questionário

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já foi entregue ao final do contato inicial Em relação a instituição de Ensino


para que depois de respondido, fosse de- Fundamental em que os participantes atuam
volvida por meio de correio, via carta se- como professores – psicopedagogos, temos
lada. Para outros participantes que dese- que 50% delas são instituições de origem
jaram responder por correio eletrônico, foi pública, 40% de origem particular. Temos
solicitado o e-mail pessoal, sendo o ques- também 10% do total de participantes que a-
tionário encaminhado posteriormente; tuam ao mesmo tempo em instituição publica
• Sistematização e análise dos dados obti- e particular.
dos. Ao relatarem como desenvolvem os
seus trabalhos os entrevistados indicaram co-
5. Resultados e discussão mo principais procedimentos metodoló-gicos:
aula teórica, aula prática (jogos variados, mu-
Os entrevistados são todos professores sica, alfabeto móvel), exercícios de compre-
– psicopedagogo pertencentes ao sexo femi- ensão e aplicação, leitura e releitura de textos,
nino com idades entre 26 a 50 anos. Do total produção de textos. Os recursos didáticos re-
de entrevistados, 60% são formados exclusi- latados foram: livro didático, livro paradidáti-
vamente em pedagogia, 20% fizeram cursos co, materiais concretos, televisão e vídeo.
de licenciatura, sendo, português e inglês e Os dados obtidos revelam a predomi-
matemática, 10% possui dupla formação, pu- nância de duas áreas de conheci-mentos, a de
blicidade e propaganda e pedagogia e 10% língua portuguesa e a de matemática. Isso o-
apresenta a formação em psicologia. correu apesar de contarmos somente com um
Neste último caso, podemos constatar entrevistado formado em língua portuguesa e
a existência do psicólogo, atuando como pro- um formado em matemática que atuam espe-
fessor em sala de aula. Isto não nos causou cificamente nestas áreas de conhecimento. Os
grande surpresa, pois é de conhecimento pú- demais estão atuando preferencialmente nes-
blico, a existência de vários outros profissio- tas áreas, no ensino de 1ª. a 4ª.série. Podemos
nais que embora não apresentem a formação considerar que isto já era esperado em função
desejada para a atuação, desenvolvem seus das orientações da atual LDB 9394/96, que no
trabalhos como coordenadores, como orienta- artigo 32, enfatiza que o Ensino Fundamental,
dores educacio-nais e até mesmo como gesto- dentre outros, deverá ter por objetivos o de-
res, especial-mente junto a instituições parti- senvolvimento da capacidade de aprender,
culares de ensino. Para isto, partimos do pres- tendo como meios básicos o pleno domínio da
suposto de que, neste caso, embora não se jus- leitura, da escrita e do cálculo. Desta forma se
tifique, o curso de psicopedagogia deve ter ressalta o desenvolvimento das habilidades
contribuído para auxiliar na preparação deste diretamente ligadas à essas áreas. Justamente
profissional para o desempenho da função de as duas áreas de conhecimento mais enfatiza-
professor - psicopedagogo. das pelos entrevistados.
Temos também que 70% dos entre- Entretanto, se por um lado a atual
vistados realizaram seus cursos de formação LDB ressalta a importância de um trabalho
inicial em instituições particulares e 30% são nas áreas de língua portuguesa e matemática,
provenientes de instituições públicas de ensi- por outro lado, no mesmo artigo 32, da LDB,
no. O tempo de formação inicial dos entrevis- outros objetivos são propostos. Dentre eles
tados varia entre dois anos a vinte e dois anos. destacamos os relacionados à compreensão do
Dos participantes, 90% atuam na formação de ambiente natural e social do sistema político,
origem e somente 10% não atua na formação da tecnologia, das artes e dos valores em que
de origem. Também temos uma variação que se fundamenta a sociedade. Neste sentido
compreende a faixa de um a nove anos, para o também se valoriza o trabalho com outras á-
tempo de formação como especialista em psi- reas de conhecimentos, como as de ciências
copedagogia. naturais, história, geografia, artes. Enten-
demos como altamente significativa essa falta

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de referências a outros componentes curricu- Outro diferencial a ser considerado na prática


lares. Esperamos que isto não signifique a au- do professor - psicopedagogo, se refere a op-
sência de um trabalho com as áreas de ciên- ção de escolha do material didático a ser utili-
cias, história, geografia, dentre outras, pelos zado. Assim, mesmo que a instituição escolar
professores – psicopedagogos, em detrimento imponha determinados materiais e recursos
da exclusividade para a realização de um tra- didáticos, em especial, o livro didático, que o
balho isolado somente com as áreas de língua professor - psicopedagogo não se detenha a
portuguesa e de matemática. este único material. Que ele tenha a sensibili-
Os procedimentos metodológicos dade de possibilitar aos seus alunos a experi-
mais utilizados pelos entrevistados são a aula ência de trabalhar com diferentes materiais,
teórica, a aula prática, exercícios de compre- por meio de diversos procedimentos metodo-
ensão e aplicação, leitura e releitura de textos, lógicos. Também seria fundamental que o
produção de texto. No nosso entender são professor – psicopedagogo considerasse a
procedimentos viáveis que devem ser utiliza- possibilidade da efetivação da avaliação diag-
dos de forma variada. Entretanto, independen- nóstica. Ela poderia se consti-tuir em um pro-
temente do procedimento que se utilize, enfa- jeto, visando inicialmente, dentre outras ques-
tizamos a importância de que o professor - tões, a própria organização do como e do
psicopedagogo incentive os alunos para que quando seria mais oportuno realizá-la. Neste
registrem as atividades desenvol-vidas. Esta sentido esta proposta possibilitaria melhor
estratégia se constitui em um referencial sig- situar o aluno, frente as diferentes áreas de
nificativo, pois auxilia na melhor compreen- conhecimentos, além de se transformar em
são dos temas estudados, possibilitando a or- um recurso de trabalho do professor - psico-
ganização de idéias e estimulando a aprendi- pedagogo, que se somaria a outros visando
zagem dos alunos. Ela também pode se cons- uma aprendizagem mais real e significativa.
tituir em parte do processo avaliativo. No nosso entender, isso também é atuar pre-
Partindo do referencial de que os pro- ventivamente na sala de aula.
fessores - psicopedagogos utilizam nas aulas Obtivemos também como resultado
práticas, materiais concretos, recorre-mos a que 90% dos entrevistados percebem as influ-
Lorenzato (2006), que se refere aos materiais ências da formação inicial na atual prática.
concretos como recursos didáticos que agem Eles afirmam que, de modo geral, isto se re-
diretamente no processo de ensino e aprendi- vela por meio do desenvolvimento de ativida-
zagem, dependendo dos objetivos a serem a- des na escola. Isto vem de encontro às idéias
tingidos. Assim é de fundamental importância de Castanho (2001) ao explicitar que na atua-
que ao utilizar esses materiais em sala de aula, lidade se valoriza a formação inicial bem co-
o professor planeje muito bem o seu trabalho, mo a formação continuada com base na reali-
selecione e organize os conteúdos a serem dade da prática e na constituição da profissão
desenvolvidos bem como a possibilidade de docente. Deste grupo que consegue perceber
utilização dos mesmos. Diante disto, se torna as influências da formação inicial na atual
interessante ressaltar a importância de um tra- prática, se destacam 60% de professores –
balho com uma grande variedade de materiais psicopedagogos que se referem às dificulda-
concretos bem como, com a exploração de des de aprendizagem. Essas dificuldades apa-
atividades diversas com um mesmo tipo de recem compreendendo vários fatores, dentre
material, atendendo assim as diferentes, mas eles, os de origem cognitiva, emocional, dis-
complementares áreas de conhecimentos. ciplinar. Relacionamos situa-ções como estas
Assim, diante dos dados obtidos junto às idéias de Visca (2002) ao se referir a psi-
aos entrevistados, seria altamente relevante copedagogia como uma área de conhecimento
que o professor - psicopedagogo construísse que favorece inter-relações com outras áreas,
uma prática apoiada em sólidos referenciais não deverá se prender somente a busca de
teóricos e que ao exercê-la, não se limitasse respostas que envolvam a questão cognitiva
ao ensino de língua portuguesa e matemática. de forma isolada. Ao contrário, é na interação

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dos vários fatores, dentre eles os de origem Esta realidade é altamente preocu-
cognitiva, afetiva, emocional, social, familiar, pante, uma vez que a psicopedagogia institu-
neurológica, que estão as respostas mais pre- cional se caracteriza especialmente pelo de-
cisas e coerentes às questões de aprendiza- senvolvimento de um trabalho em nível pre-
gem. ventivo. Desta forma, segundo Bossa (2000),
Juntamente a isto, temos que 70% dos o trabalho psicopedagógico preven-tivo na
entrevistados afirmam realizarem um trabalho instituição, está diretamente relacio-nado ao
psicopedagógico preventivo. Constatamos processo de ensino e aprendizagem de forma
uma tendência, em indicar os jogos como um individual ou grupal. Neste sentido caberá ao
dos recursos mais utilizados para o diagnósti- psicopedagogo, dentre outras ações, identifi-
co visando um trabalho preventivo. Além dos car as possíveis perturbações no processo e-
jogos, os entrevistados indicaram os brinque- ducacional, atuar conjuntamente com demais
dos, as brincadeiras, os desenhos, as produ- profissionais da instituição, contribuir na ori-
ções escolares, os questionários para entrevis- entação do trabalho didático metodológico
tas com a família, a observação, o olhar e a junto aos docentes, buscar melhorias educa-
escuta psicopedagógica, o inventário com os cionais. Como, estamos aqui com um grupo
registros dos dados. de professores – psicope-dagogos, entende-
A importância dos jogos como instrumento mos que ações como estas, além de outras,
avaliativo, para a realização de um trabalho que considerassem especial-mente a questão
preventivo é inegável, entretanto, Lorenzato metodológica, afetiva, o envolvimento dos
(2006), lembra que por melhor que seja um pais e familiares bem como dos demais pro-
material didático, ele não é garantia sucesso fissionais da escola, deveriam ser uma cons-
na aprendizagem. Isto vai depender muito de tante na rotina de possibilidades de trabalho
como o material será utilizado. Isto obvia- dos entrevistados.
mente também vai depender dos referen-ciais Ao serem questionados sobre o(s)
teóricos do psicopedagogo. Também ressal- procedimento(s) diagnóstico(s) utilizados para
tamos que os jogos, os brinquedos, as produ- a intervenção psicopedagógica, os professores
ções do aluno, por exemplo, podem ser utili- – psicopedagogos mais uma vez indicaram os
zados inicialmente como instrumento de di- jogos e em seguida as atividades de leitura e
agnóstico e posteriormente como junto às prá- escrita. Outros procedimentos também foram
ticas de intervenção, como um recurso meto- citados como: atividades matemáticas, ativi-
dológico, visando à superação de possíveis dades lúdicas, representações, dramatiza-ção,
dificuldades de aprendizagem. desenho, brincadeiras, entrevistas com pais,
Os dados obtidos revelam a existência de entrevistas com alunos, observações e a avali-
professores - psicopedagogos que apresentam ação dinâmica do potencial da aprendizagem
maior clareza sobre que a atuação preventiva, – LPAD. Este ultimo proce-dimento pro-
chegando a apresentar algumas ações concre- posto por Reuven Feuerstein, se refere Pro-
tas. Outros se referem a importância do traba- grama de Enriquecimento Curricu-lar – P.E.I.
lho preventivo, mas não chegam a apresentar que dentre outras questões, compreende um
ações para a sua realização, eles apresentam a trabalho de avaliação do potencial cognitivo.
intenção, mas explicitam como seria o desen- Os resultados também revelam a difi-
volvimento do trabalho preven-tivo institu- culdade de muitos dos entrevistados em rela-
cional. tarem ou até mesmo de situarem e se posicio-
Temos também um significativo grupo narem sobre a utilização de procedi-mentos
representado por 30% dos entrevistados, que para um diagnóstico institucional. Isto pode
apesar de estarem atuando como professores - ser constatado quando os professores – psico-
psicopedagogos em instituições de ensino a- pedagogos confundem procedimentos com
firmaram não realizarem um trabalho psico- materiais utilizados. Assim, temos entrevis-
pedagógico preventivo. tados que diante da solicitação de registrarem
os procedimentos mais utilizados indicaram

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materiais como: noticias de jornais e revistas; intervenções para a realização de um trabalho


atividades que envolvem o uso da visão, da integrado.
audição, de coordenação motora grossa e fi- A importância do trabalho integrado,
na; histórias clássicas e em quadrinhos. já foi apontada por Barbosa (2001), Visca
Diante disto, seria fundamental que os (2002), Saravali (2004) dentre outros, como
professores – psicopedagogos não tomassem um dos diferenciais da prática do psicopeda-
um único instrumento como fonte exclusiva gogo. Neste momento, entretanto, retomamos
para a avaliação, mas sim considerassem a e ampliamos estas idéias destacando a rele-
possibilidade de utilização de vários proce- vância de que o professor – psicopedagogo
dimentos bem como das várias frentes de realize um trabalho diagnóstico e de interven-
investigação, dentre elas a escola, a família, ção, articulado com as equipes interna e ex-
as relações sociais, os interesses pessoais e terna da escola.
outros. Também deve ser analisada a possibi- Diante dos relatos de intervenções
lidade de se recorrer a avaliação de outros bem sucedidas, podemos perceber que muitas
profissionais em função das necessidades a- das questões relacionadas a aprendizagem se
presentadas. misturam as relacionadas a afetividade. Neste
Assim temos segundo Rubinstains e caso o professor – psicopedagogo parece as-
colaboradores (2004), que as práticas avalia- sumir a posição de um mediador entre conhe-
tivas e de intervenção psicopedagógica são cimentos formalmente exigidos pela escola, o
extremamente variadas no Brasil uma vez que interesse dos alunos, o nível de desenvolvi-
os psicopedagogos ancorados em suas forma- mento cognitivo dos mesmos, as expectativas
ções, em seus referenciais teóricos desenvol- da família, as relações afetivas, dentre outras,
vem um estilo próprio de avaliação e inter- que permeiam o processo educacional.
venção psicopedagógica. Elas ainda explici- Ao considerar a indicação das contri-
tam que apesar das particularidades, podemos buições essenciais da psicopedagogia obtive-
encontrar pontos comuns na prática psicope- mos junto aos entrevistados resultados que se
dagógica brasileira. Isso se revela especial- referem a: busca de melhorias na aprendiza-
mente na opção em atuar utilizando recursos gem; melhor compreensão do processo de
como os jogos, a observação, o P.E.I., os pro- construção do conhecimento; revisão da pró-
jetos de trabalho. pria prática docente; prevenção a problemas
Ao serem convidados a relatarem uma de aprendizagem; diagnostico das dificulda-
intervenção psicopedagógica considerada bem des de aprendizagem; consideração do con-
sucedida muitos professores – psicopedago- texto emocional e cognitivo do aprendiz; pos-
gos a fizeram em várias instan-cias. Desta sibilidade de realização um trabalho conjunto;
forma eles destacaram interven-ções realiza- avaliação do aluno como um todo; aprendiza-
das diretamente com os alunos, com os pais e gem para a ouvir o aluno e sua família; com-
com outros profissionais da instituição. Os preensão da complexidade dos diversos fato-
entrevistados também utilizaram ou mencio- res envolvidos no processo educacional; de-
naram a importância da utilização de vários senvolvimento de um olhar diferenciado para
recursos para isto. Com os alunos os recursos a aprendizagem e para as dificuldades de a-
cognitivos mais utilizados foram: histórias, prendizagem; analise do processo de ensino e
caderno, lousa, leituras, figuras, representa- aprendizagem a partir do sujeito que aprende
ções gráficas, materiais concretos para alfabe- e da instituição que ensina; busca de metodo-
tização, atividades pedagógicas. Com os alu- logias diferenciadas de trabalho.
nos também foram destacadas situações que Como pode ser constatado, a grande
envolvem a afetividade, a estimulação, a ob- parte dos entrevistados, atribuem como con-
servação, a auto-avaliação. Com os pais fo- tribuições da psicopedagogia, os fatores que
ram destacadas as conversas informais e as se articulam diretamente ou indiretamente a
entrevistas. Com os demais profissionais as obtenção de melhorias relacionadas ao pro-
cesso de ensino e aprendizagem. Entre-tanto

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entendemos que a psicopedagogia vai além aprendizagem, promovendo a aprendizagem;


disto pois, segundo Kolyniak Filho (2001) a realização de um trabalho integrado; o reco-
também seria importante que os psicopedago- nhecimento profissional e cientifico.
gos que atuam em escolas, não se limitassem Ao retomarmos a idéia do excessivo
a considerar somente a superação de possíveis número de alunos em sala e da dificuldade de
dificuldades de aprendizagem. Eles poderiam se fazer um bom trabalho ou um trabalho psi-
e deveriam, criar mecanismos pelos quais os copedagógico por causa disto, os entrevista-
alunos pudessem interagir com mais seguran- dos reforçaram as idéias de Angelini (2006)
ça, apreço, solidariedade, respeito, dentre ou- que destaca a existência de condições que im-
tros valores. Enfim, que a psicopedagogia pedem ou comprometem a qualidade da edu-
também pudesse contribuir para a formação cação no Brasil. Dentre elas, esta pesquisa-
ética e cidadã do aluno. dora destaca as classes numerosas; o que se
Ampliando os dados obtidos junto aos entende por progressão continuada; a ausência
entrevistados, temos também os estudos e de condições mínimas para o trabalho; a de-
pesquisas dos educadores franceses Hétu e sestruturação das famílias; a inadequada for-
Carbonneuau (2002), que dentre outras ques- mação de muitos professores; a má remu-
tões, apontam que uma das atuais contribui- neração dos professores.
ções da psicopedagogia institucional reside Essas questões, com exceção da que se
em auxiliar na reflexão individual e do grupo refere a má remuneração, já haviam sido a-
sobre a prática dos docentes e sobre a adequa- pontadas em outros momentos também pelos
ção e diversidade dos projetos da instituição. entrevistados. Assim entendemos que seria
Essa diversidade se refere, aos projetos insti- importante que, de um lado, as instituições de
tucionais, objetivos esperados, interesses e ensino, sejam elas públicas ou particulares
necessidades dos alunos, seus possíveis limi- revissem as questões de caráter estruturais e
tes e suas possibilidades, seus vínculos afeti- pedagógicas que possam estar comprometen-
vos, emocionais, familiares e mais recente- do a qualidade da aprendizagem. Por outro
mente as situações de violência por eles en- lado, também se torna fundamental que o pro-
frentados. fessor, se prepare para o trabalho educacional,
A seguir registramos os resultados ob- que após a sua formação inicial, dentre outras
tidos diante da solicitação de tomar como re- questões, ele invista na continuidade de seus
ferencial a relação teoria e prática e indicar os estudos.
principais desafios na área psicopedagógica. Neste sentido, a expectativa de traba-
Mais uma vez se destaca a preocupação com lho com o professor – psicopedagogo, se tor-
elevado número de alunos em sala de aula. E na uma alternativa, se considerarmos que esse
novamente esta situação é apontada como e- profissional já apresenta um diferencial que
lemento que dificulta o bom desenvolvimento reside na formação continuada. A isto acres-
do processo educacional. Juntamente a isto, centamos a expectativa de que ele também
os entrevistados agora, evocam esta realidade apresente uma sensibilidade maior para o de-
também como elemento desafiador para um senvolvimento de uma prática diferenciada,
trabalho psicopedagógico institucional. Ou- que não ignora as possíveis dificuldades dos
tros fatores também foram apontados como seus alunos, mas que diante dela, trabalha à
desafiadores da área de psicopedagogia como: partir das possibilidades do mesmo.
a ausência de supervisão que acompanhe o A coerência entre a relação teoria e
trabalho psicopedagógico; a existência de tra- prática, é o elemento essencial que irá funda-
balho psicopedagógico na escola; a existência mentar as ações psicopedagógicas. Isto talvez
da psicopedagogia na rede pública de ensino; se constitua em um dos maiores desafios da
a ampliação do número de professores – psi- psicopedagogia, resgatar a concepção de edu-
copedagogos; a ampliação dos atendimentos cação do professor - psicopedagogo e sensibi-
psicopedagógicos nas escolas; a possibilidade lizá-lo para a sua importância no trabalho de
de auxiliar na superação das dificuldades de diagnóstico e intervenção junto a seus alunos.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Neste sentido temos as contribuições de Moo- mos”. Esses estudos foram realizados pelo
jen (2004), que resgata a importância de um Instituto PNBE (Pensamento Nacional das
trabalho de diagnóstico e de intervenção coe- Bases Empresariais) que tem a sua principal
rentes, subsidiados por teorias atuais que, atividade centrada na educação e contou com
dentre outras questões, considerem os avan- a participação de renomados educadores. Os
ços do mundo cultural. resultados obtidos foram divulgados no ano
Ao serem questionados sobre as con- de 2003 visando a obtenção de melhorias para
tribuições visando melhorias na atuação psi- o país em diversos setores. No que se refere a
copedagógica, 90% dos professores – psico- educação e ao estado de São Paulo, temos por
pedagogos se manifestaram indicando a ne- meio do relatório apresentado em 27.04.06, a
cessidade de: diminuição do número de alu- ênfase dada a necessidade do desenvolvimen-
nos nas classes; investir na continuidade de to de estudos, para que se possa diminuir o
estudos, melhorias no diagnóstico psicopeda- número de alunos em sala de aula. Segundo
gógico, atuar de maneira conjunta conside- esse mesmo estudo, o estado de São Paulo
rando o envolvimento da família e dos diver- conta hoje com a média de quarenta estudan-
sos profissionais, ampliar o número de psico- tes em sala de aula, o que tende a comprome-
pedagogos nas instituições. Muitas das indi- ter a qualidade do ensino.
cações já haviam sido apresentadas em mo- Diante disto, torna-se evidente a ne-
mentos anteriores, é o caso do elevado núme- cessidade da redução do número de alunos em
ro de alunos em sala de aula, da importância a sala de aula. Entretanto, entendemos que isto
continuidade de estudos, do diagnóstico psi- não poderá se constituir como condição isola-
copedagógico e da atuação conjunta com os da para a obtenção de melhorias educacionais
diversos profissionais. e muito menos para a realização de um traba-
Ao considerarmos as contribuições a- lho psicopedagógico preventivo. Outros fato-
presentadas pelos professores - psicopedago- res merecem consideração dentre eles, a pró-
gos, partimos do pressuposto que elas se ca- pria formação do professor e do psicopedago-
racterizam como elementos complementares. go; as condições físicas, estruturais da insti-
Os elementos ou atitudes isoladas, dificilmen- tuição escolar; a questão curricular; o projeto
te se caracterizam como melhorias. Se to- pedagógico da escola; a avaliação e interven-
marmos como referencial, por exemplo, a im- ção psicopedagógica em nível preventivo; a
portância da continuidade de estudos, isto cer- formação de uma equipe para o desenvolvi-
tamente influirá na realização de um melhor mento de um trabalho integrado.
diagnóstico, na sensibilidade para a formação
de uma equipe de trabalho, no desenvolvi- 6. Considerações finais
mento de ações conjuntas, dentre outras ques-
tões. Os resultados indicam por um lado, a
A queixa sobre a dificuldade de se fa- existência de vários elementos limitantes, ou
zer um trabalho de melhor qualidade, por cau- dificultadores do trabalho psicopedagógico
sa do alto número de alunos em sala de aula e institucional. Estas questões perpassam, em
a proposta de se diminuir a quantidade consi- muitos casos, pela própria dificuldade de con-
derada como excessiva, não se caracteriza ceber em que se constitui um trabalho institu-
como uma dificuldade exclusiva do professor cional preventivo. Juntamente ao desafio de
- psicopedagogo. Temos vários estudos que, se elaborar e realizar diagnósticos e interven-
dentre outras questões, apresentam a necessi- ções na instituição. Estas dificuldades, no
dade de se rever o excesso de alunos em salas nosso entender, dentre outras, se relacionam
de aula, especialmente em algumas regiões do diretamente a ausência deste tipo de experiên-
nosso país. Dentre esses estudos e propostas, cia que deveria ter sido propiciada, especial-
destacamos as do “Projeto Brasil 2022 – Do mente pelos cursos de especialização em psi-
país que temos para o país que queremos” – copedagogia e também pelas próprias institui-
que enfoca o tema “A educação que quere- ções onde estes profissionais atuam.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Por outro lado, os resultados também ta voltada para o trabalho do professor -


apontam para a enorme possibilidade que se psicopedagogo, investindo na preparação
constitui o trabalho do professor - psicopeda- de seus alunos também para este tipo de
gogo realizado de maneira preventiva na insti- atuação;
tuição. Como este trabalho estaria sendo rea- • os professores – psicopedagogos sejam
lizado diretamente pelo professor - psicope- incentivados a construir instrumentos pró-
dagogo, portanto, de maneira natural, mas in- prios para uma melhor investigação das
tencional, ele excluiria a necessidade de no- situações apontadas como dificuldades no
vos espaços, bem como a de novos profissio- processo de ensino e aprendizagem. Esses
nais da psicopedagogia que fariam o contato instrumentos deveriam considerar a pro-
com o professor, visando obter informações posta pedagógica da escola, o material di-
para trabalhar com o aluno. Não estamos com dático, o próprio trabalho do professor –
isso, excluindo a necessidade de um trabalho psicopedagogo, as expectativas do aluno,
extra-instituição, mas estamos atentando para da família, os relacionamentos familiares
a possibilidade de que este trabalho também a estabilidade afetivo – emocional, dentre
seja realizado pelo professor – psicopedago- outras;
go, de forma rotineira e preventiva em sala de • a auto avaliação da própria atuação dos
aula. professores – psicopedagogos seja uma
Assim, os resultados obtidos revelam prática constante, assim como a realização
uma tendência na direção da importância de de atividades que desenvolvam a constru-
se ampliar os trabalhos institucionais preven- ção e a formação da autonomia e de um
tivos em função de minimizar o surgimento autoconceito positivo por parte do aluno;
de possíveis dificuldades de aprendizagem, ao • a atuação do professor – psicopedagogo
mesmo tempo em que contribui com a auto- seja registrada, discutida e apresentada em
nomia, com a cidadania, com o preparo do fóruns especiais, produzindo material ci-
aluno para o enfrentamento de novos e cons- entificamente qualificado, com conse-
tantes desafios. qüente aumento nas publicações da área.
Neste sentido temos segundo Tonet
(2004), que as mudanças sociais estão alte- Essas contribuições, no nosso enten-
rando as características da sociedade e conse- der, são viáveis, apesar de ainda convivermos
qüentemente de seus grupamentos humanos. com questionamentos sobre a validade do tra-
Isto implica diretamente em alterações na es- balho psicopedagógico. Questionamentos
cola e no perfil desejado pela mesma, para estes veementemente contestados por vários
seus professores. Desta forma o professor - estudiosos, dentre eles, Bossa (2002), Fernán-
psicopedagogo se constitui como um profis- dez (2001), Hétu e Carbonneau (2002), Visca
sional qualificado que dentre outras questões, (2002), ao enfatizarem que a psicopedagogia
promove condições para que seus alunos te- busca respostas onde as outras áreas de co-
nham de forma continua e independente, o nhecimento parecem ter deixado lacunas.
acesso a cultura. Isto contribui para a melhor Desta forma, o valor da psicopedago-
preparação do aluno para o desenvolvimento gia preventiva, já se encontra comprovado,
de suas potencialidades e, conseqüentemente em uma dimensão institucional, ao ser aceita
para a vida. e considerada como um diferencial para a a-
Diante disto, apresentamos algumas quisição de melhorias educacionais. A psico-
contribuições que consideramos essenciais pedagogia também já adquiriu o status de ser
para a ampliação do trabalho a ser realizado reconhecida como objeto de pesquisa nos cur-
pelo professor – psicopedagogo em sala de sos de graduação e pós-graduação, ampliando
aula. Assim sugerimos que: assim a possibilidade de se estender cada vez
mais aos educadores e áreas afins. Mais re-
• os cursos de especialização em psicope- centemente estamos constatando a exigência
dagogia passem a considerar uma propos- desta especialização ou mesmo a indicação de

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

literatura referente a esta área de conhecimen- prevention programs for children and adoles-
to, em concursos públicos para professores. cents. (pp.01-25). New York: John
Podemos também acrescentar a estas situa- Winley&Sons.
ções, os resultados obtidos neste trabalho, on- Fagali, E.Q. (1998). Por que e como a psico-
de os professores – psicopedagogos entrevis- pedagogia institucional?. Rev. da Assoc. Bras.
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possibilidade da atuação psicopedagógica ins- Fagali, E.Q. e Vale, Z.R.(1994). Psicopeda-
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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
S u b me t i d o e m 1 3 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Artigo Científico

Pensamento, crenças e complexidade humana


Thinking, beliefs and human complexity

Cristina Satiê de Oliveira Pátaro

Departamento de Metodologia de Ensino (DME), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),


São Carlos, São Paulo, Brasil; Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de São Pau-
lo (FE/USP), São Paulo, São Paulo, Brasil

Resumo

Considerando a complexidade do funcionamento psíquico e mental, o artigo discute as relações entre


crenças e pensamento humano. Parte-se do pressuposto de que processos relativos ao pensamento en-
volvem não apenas a cognição, mas também aspectos de outra natureza, como afetivos ou sociocultu-
rais (crenças). São apresentados os resultados de uma investigação cujo objetivo foi verificar possíveis
influências das crenças no pensamento. A pesquisa envolveu a aplicação de questionário a quatro gru-
pos (católicos, adventistas, espíritas e estudantes universitários sem considerar a religião), totalizando
100 sujeitos. As questões, sobre temáticas de sexualidade, solicitavam do sujeito, primeiramente, um
posicionamento pessoal e, em seguida, a postura de sua religião. Os dados evidenciaram a influência
das crenças no raciocínio humano e, ao mesmo tempo, a existência de outros fatores atuantes nos pro-
cessos do pensamento, ressaltando a efetiva complexidade do funcionamento mental e das relações en-
tre aspectos culturais e sujeito. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 134-149.

Palavras-chave: crenças; cultura; complexidade; modelos organizadores do pensa-


mento.

Abstract

Considering the complexity of mental and psychic functioning, this article discusses the relations be-
tween beliefs and human thinking. It assumes that processes of human thinking involve not only cogni-
tion but also suffers the influence of other aspects such as affective or cultural (beliefs). The article
presents the results of a research that studied the possible influences of beliefs in human thinking. A
questionnaire was applied to four groups (Catholics, Adventists, Spiritualists and academic students
without considering the religious tendency), a total of 100 persons. The questions are concerning hu-
man sexuality themes; it was asked the personal positioning and subject’s religion positioning. Results
indicated the influence of beliefs and, simultaneously, the influence of other factors in human thinking,
that indicate the complexity of mental functioning and of relations between culture and subject. ©
Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 134-149.

Key Words: beliefs; culture; complexity; organizing models of thinking.

1. Introdução O presente artigo busca discutir a in-


fluência de aspectos culturais no pensamento
 - C.S.O. Pátaro é Graduada em Pedagogia (Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP), Mestre em Educa-
ção (UNICAMP) e Doutoranda (FE/USP). Atualmente é Professora Substituta (UFSCar). E-mail para correspondên-
cia: crispataro@yahoo.com.br.

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humano, compreendendo que o funcionamen- dade dos sujeitos. Em um terceiro momento,


to mental se dá a partir de elementos que não nosso olhar estará voltado para a Teoria dos
se limitam apenas à cognição, à lógica e ra- Modelos Organizadores do Pensamento, refe-
cionalidade. Neste percurso, nosso intuito será rencial teórico e metodológico que orientou a
o de apontar a perspectiva da complexidade pesquisa apresentada, e que permite conside-
como um caminho possível na compreensão rar o pensamento humano a partir da articula-
não apenas das certezas e regularidades que ção de aspectos de diferentes naturezas (cog-
possam permear o funcionamento psíquico e nitivos, mas também afetivos, socioculturais,
mental, mas também das ambigüidades, alea- biológicos, etc.). Por último, apresentaremos a
toriedades e incertezas presentes nas relações pesquisa realizada, os resultados encontrados
entre sujeito, cultura e pensamento humano. e as análises e discussões levantadas a partir
Nossa referência para as idéias que dos dados da investigação.
configuram a Teoria da Complexidade é o
trabalho de Edgar Morin (1991, 1994, 2002a). 2. Dimensões constituintes do sujeito
De acordo com Morin, a complexidade do
mundo real – dos objetos e fenômenos da na- Compreender o psiquismo humano de
tureza – só pode ser compreendida a partir de uma forma que seja coerente com os princí-
uma perspectiva multidimensional (em lugar pios de complexidade, expostos anterior-
de unidimensional e fragmentada) e que tenha mente, exige que consideremos o ser humano
em vista as incertezas e incompletudes de to- em sua totalidade e multidimensionalidade,
do o conhecimento. Nesse sentido, a perspec- levando em conta os inúmeros elementos e
tiva de complexidade considera, na compre- relações que influenciam o funcionamento
ensão do mundo real, a ordem, a certeza e a psíquico.
regularidade tanto quanto a desordem, a incer- Encontramos essas características no
teza, as não-regularidades. Busca conhecer as trabalho de Araújo (1999; 2003). Este autor
partes sem desvinculá-las da existência de um apresenta um modelo cujo objetivo é explicar
todo e vice-versa, levando em conta, assim, as o funcionamento psíquico em uma perspecti-
grandes quan-tidades de interações e unidades va complexa e não-fragmentada, que conside-
existentes na realidade, de forma que as de- re a influência de fatores diversos, tanto ex-
terminações e previsões dão lugar às não- ternos quanto internos ao sujeito, que ocorrem
determinações, às possibilidades e aos fenô- simultaneamente.
menos aleatórios. Segundo Araújo, cada ser humano, seu
A partir desta perspectiva de comple- modo de ser, agir, pensar e sentir, é resultado
xidade, nossa intenção será a de buscar com- da interação de diferentes dimensões, com
preender o funcionamento psíquico e mental características específicas, mas que se inter-
do ser humano. Para tanto, apresen-taremos relacionam, e que, em conjunto, fazem parte
os resultados e discussões de uma investiga- de um sistema mais complexo que define a
ção realizada que teve como objetivo analisar individualidade do sujeito.
as possíveis relações entre o pensamento do O autor afirma que o sujeito psicoló-
sujeito e os aspectos vinculados à cultura, em gico é, ao mesmo tempo, um ser biológico,
especial, as crenças. que sente fome, frio e sede, mas que também
Assim, levando em conta os pressu- tem sentimentos, emoções, desejos. Este
postos aqui discorridos, pretendemos inicial- mesmo sujeito interage com a realidade ex-
mente apresentar, neste artigo, de que forma terna (objetiva) e também interna (subjetiva)
compreendemos o sujeito psicológico e as e, nesta relação, constrói uma capacidade
diferentes dimensões que o constituem. Em cognitiva de organizar suas experiências (A-
seguida, discutiremos acerca das relações en- raújo, 2003). Todos os aspectos constituintes
tre sujeito e cultura, analisando de que forma do sujeito (biológico, afetivo, sociocultural e
os elementos culturais (como é o caso das cognitivo) atuam simultaneamente, influenci-
crenças) passam a fazer parte da individuali-

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ando a maneira de ser, pensar, agir e sentir de relação deste conjunto como um todo junto ao
cada ser humano. meio.
Adotar este modelo como explicação Segundo a representação de Araújo
para o funcionamento psicológico do sujeito (2003: 156), a seguir, o sujeito psicológico é
implica considerar que em qualquer situação constituído por diferentes dimensões – cogni-
da vida cotidiana entram em ação diferentes tiva, afetiva, biológica e sociocultural – e seu
aspectos relativos às diferentes dimensões funcionamento se dá a partir das inter-
constituintes do sujeito: o funcionamento bio- relações destas entre si e com o mundo exter-
fisiológico do organismo, as estruturas cogni- no – físico, interpessoal e sociocultural – com
tivas, os sentimentos, emoções, valores, cren- o qual o sujeito interage:
ças, desejos do indivíduo, bem como a inter-

Figura 1 – Modelo para o sujeito psicológico, segundo Araúo (2003).

Os estudos feitos a partir deste modelo espaço ao inesperado, ao aleatório, à possibi-


psicológico, de acordo com Araújo, não po- lidade de desordem e incerteza. Estes pontos
dem perder de vista a sua totalidade e a noção são de fundamental importância se queremos
de organização interna e externa das dimen- uma teoria que explique o funcionamento psí-
sões propostas, de forma que é possível estu- quico, o sujeito da vida real, e que esteja de
dar, separadamente, cada uma das dimensões acordo com os princípios de complexidade.
– afetiva, cognitiva, sociocultural e biológica É neste contexto, e a partir deste olhar
– mas não podemos deixar de considerar que de complexidade, que devem ser compreendi-
estes aspectos se inter-relacionam e que esta das as discussões propostas no presente arti-
dinâmica exerce e recebe influências da ma- go. Assim, sem perder a noção do funciona-
neira como o sujeito psicológico lida e intera- mento do sujeito psicológico como um todo,
ge com o mundo interno e externo. nosso foco, a seguir, estará voltado para a di-
Dadas estas considerações, é possível mensão sociocultural, a partir da discussão a
dizer que o funcionamento psíquico ocorre a respeito das crenças pessoais e das relações
partir de um certo grau de previsibilidade, de entre sujeito e cultura.
certezas; ao mesmo tempo, entretanto, abre-se

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3. Crenças, cultura e sujeito pouco mais de perto as relações entre sujeito e


cultura, buscando compreender como se dá a
Ao tecer suas considerações acerca da internalização dos aspectos culturais pelo in-
mente humana, Morin (2002a) considera a divíduo.
existência de dois tipos de pensamento: o O estudo de tais relações entre cultura
pensamento racional, ligado à lógica, ao cál- e sujeito são pontos altamente discutidos em
culo e à razão, e o pensamento mítico, rela- estudos de diferentes campos do conhecimen-
cionado a um âmbito mitológico, do imaginá- to, em especial da Psicologia. Para abordar-
rio, das analogias e dos símbolos. Segundo o mos estas relações a fim de orientar a discus-
autor, o raciocínio humano acontece a partir são do presente artigo, iremos nos ater mais
da articulação destes dois tipos de pensamen- especificamente nas perspectivas trazidas por
to, que não podem ser vistos separadamente, Morin (2002b), Vygotsky (1998) e também
de forma que a esfera imaginária – dos mitos, por Martins e Branco (2001).
religiões, crenças – adquire para o ser huma- Para Morin (2002b), o ser humano es-
no tanta importância quanto a esfera do pen- tá em constante interação com o mundo físi-
samento racional. co, com os fenômenos naturais, e, principal-
Diante de tal constatação, Morin colo- mente, com outros sujeitos ao seu redor. É
ca que o conhecimento é uma re-construção desta interação entre os seres humanos que
do real pelo ser humano e que, portanto, não é nasce a cultura.
completo, nem pode ser encarado como uma Própria da natureza humana e da vida
cópia exata do mundo objetivo, sendo sempre coletiva, a cultura é definida por Morin
permeado por constantes “erros e ilusões”. (2002b: 35) como sendo constituída pelo:
Tudo isso leva o autor a ressaltar que o co-
nhecimento humano não se encerra nos prin- “Conjunto de hábitos, costumes, práti-
cípios da razão e da lógica, e deve ser sempre cas, savoir-faire, saberes, normas, inter-
considerado dentro de seus limites e incerte- ditos, estratégias, crenças, idéias, valo-
zas. res, mitos, que se perpetua de geração
A partir desta premissa, passamos a em geração, reproduz-se em cada indi-
nos debruçar sobre o estudo das relações entre víduo, gera e regenera a complexidade
as crenças pessoais e o pensamento humano. social.”
Considerando, desta forma, que tanto o pen-
samento quanto a construção do conhecimen- Em cada sociedade, de geração em ge-
to são permeados não apenas por processos ração, a cultura é protegida, nutrida, regene-
relativos à racionalidade e à lógica, mas tam- rada e, ao mesmo tempo, modificada, para
bém por fatores de outra natureza, fomos em que não seja destruída, não caia em extinção.
busca de investigar em que medida as crenças Segundo o autor, da mesma forma que não
– enquanto construção cultural, proveniente existe cultura sem as competências propor-
do imaginário, da “esfera mitológica” (Morin, cionadas pelo cérebro humano, também não
2002a) – podem vir a influenciar a organiza- haveria linguagem ou pensamento sem a cul-
ção do pensamento. Ao optarmos por estudar tura.
as crenças, elegemos assim um elemento rela- De acordo com Morin, as relações en-
tivo à cultura, a fim de investigar até que pon- tre cultura e sujeito são estreitas e mútuas. Se,
to essa dimensão cultural, que se incorpora ao por um lado, a cultura depende da vida em
indivíduo a partir de seu contato com diferen- sociedade, por outro, o ser humano, em sua
tes grupos e com a sociedade, exerce influên- constituição, também possui muito da cultura
cias no pensamento dos sujeitos. à qual pertence.
Partindo do pressuposto de que as Essa “reprodução” da cultura em cada
crenças, provenientes do meio cultural e soci- sujeito é o que o autor denomina imprinting.
al, passam a fazer parte da individualidade do Para Morin, o imprinting pode ser compreen-
ser humano, é necessário explorarmos um dido como uma marca, uma inscrição, impos-

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ta à mente humana pela cultura. Desde o nas- De acordo com Vygotsky (1998), a in-
cimento, através da cultura familiar e, poste- ternalização é a reconstrução interna de uma
riormente, através da cultura social, o imprin- operação externa ao sujeito e implica uma sé-
ting vai impondo sua marca e, tal qual uma rie de transformações psicológicas, a seguir:
cicatriz, passa a fazer parte da constituição do
sujeito, sua individualidade, e com ele perma- a) Uma operação externa é reconstruída e co-
nece continuamente. meça a ocorrer internamente ao sujeito;
Entretanto, a cultura exerce suas influ- b) Um processo inicialmente interpessoal tor-
ências não apenas externamente, impondo sua na-se intrapessoal. As funções superiores
marca, mas também internamente, fazendo (como é o caso do pensamento), segundo
emergir do próprio sujeito o poder de suas Vygotsky, originam-se das relações entre
idéias, suas crenças e paradigmas. Em muitos os indivíduos e, no desenvolvimento da
casos, estas influências vão além, de modo criança, aparecem inicialmente no nível
que a cultura – através das idéias, de suas in- social, entre pessoas (interpsicológica) e
fluências no pensamento e na visão de mundo posteriormente no nível individual, no in-
– age também em outra direção: é ela que i- terior da criança (intrapsicológica).
gualmente “impede de aprender e de conhecer c) A transformação do processo interpessoal
fora dos seus imperativos e das suas normas, em intrapessoal vem como resultado de
havendo, então, antagonismo entre o espírito um longo processo de desenvolvimento.
autônomo e sua cultura” (Morin, 2002b: 35).
Assim, para Morin, a cultura passa a Nas palavras do autor,
fazer parte do sujeito e não imprime apenas
suas marcas, mas traz também uma consigna- “O processo, sendo transformado, con-
ção de como deve o sujeito organizar, conce- tinua a existir e a mudar como uma
ber, lidar com o mundo ao seu redor e com os forma externa de atividade por um lon-
demais seres humanos. go período de tempo, antes de internali-
Diante de tais considerações e partin- zar-se definitivamente. (...) [as funções]
do do pressuposto de que as crenças possuem somente adquirem o caráter de proces-
suas raízes na cultura, conforme colocamos sos internos como resultado de um de-
anteriormente, é possível afirmar que o sujei- senvolvimento prolongado. Sua trans-
to, ao mesmo tempo em que possui determi- ferência para dentro está ligada a mu-
nadas crenças e tende a agir de acordo com danças nas leis que governam sua ativi-
elas, é também, em certa maneira, tomado por dade; elas são incorporadas em um no-
suas crenças, passando assim a pensar e a en- vo sistema com suas próprias leis.” (Vy-
xergar o mundo através delas. Neste aspecto, gotsky, 1998: 75)
a crença é ao mesmo tempo uma forma de
guiar as condutas e também de limitá-las. As idéias de Vygotsky, como é possí-
Entretanto, é preciso considerar que, vel notar, auxiliam na compreensão dos pro-
se por um lado o imprinting imprime as mar- cessos psicológicos envolvidos na internaliza-
cas da cultura no sujeito, por outro, como já ção dos aspectos culturais pelos seres huma-
afirma o próprio Morin, o sujeito não é passi- nos, a qual está intimamente relacionada ao
vo nesta relação. Vejamos. próprio desenvolvimento do sujeito.
Adentrando mais especificamente o A partir dos estudos de Vygotsky,
campo da Psicologia, encontramos os estudos Martins e Branco (2001) abordam igualmente
do psicólogo russo Lev S. Vygotsky. Dentre o conceito de internalização, ao discutirem as
seus estudos sobre as relações entre cultura e relações entre cultura e sujeito. A partir de
sujeito, destacaremos, no presente trabalho, uma perspectiva sociocultural construtivista,
suas considerações acerca do conceito de in- propõem considerar a relação bidirecional que
ternalização. caracteriza a transmissão da cultura para o
sujeito. De acordo com estes autores, os parti-

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cipantes do processo de transmissão cultural no interior de um universo amplo de


estão ativa e constantemente transformando as possibilidades. Por outro lado, a cultura
mensagens culturais. Assim: à qual o indivíduo está ligado, e na qual
ele se constitui, orienta suas expectati-
“Emissor e receptor organizam e reor- vas e comportamentos em uma certa di-
ganizam ativamente a informação cultu- reção, sem com isto impor-lhe, necessa-
ral de forma que a cultura se encontra riamente, um padrão definido de cren-
continuamente em transformação medi- ças, valores e comportamentos. Em fun-
ante a ação de todos os participantes da ção de aspectos motivacionais próprios,
experiência social.” (Martins e Branco, o indivíduo pode se opor de forma mais
2001: 171) ou menos intensa às orientações apon-
tadas pelas sugestões sociais, dando o-
Esta perspectiva nos traz amplas pos- rigem à singularidade de sua constitui-
sibilidades na relação entre sujeito e cultura, ção subjetiva e, em conseqüência, per-
abrindo espaço para a participação de ambos mitindo-lhe introduzir novos aspectos
na construção do novo ao longo deste proces- na cultura coletiva.” (Martins e Branco,
so de constante interação. 2001: 172)
Para Martins e Branco, embora o estu-
do do conceito de internalização venha rece- No trecho que acabamos de citar, tanto
bendo a atenção de vários pesquisadores e de o indivíduo quanto a cultura estão abertos à
diferentes áreas do conhecimento, a noção transformação, à formação de novos signifi-
apresentada por Vygotsky é a que mais trouxe cados, que ocorrerão em função da forma co-
contribuições para o campo de pesquisa do mo se dá a relação entre ambos. Ou seja, não
desenvolvimento humano. Nas palavras dos é possível considerar cultura sem indivíduo
autores, o processo de internalização pode ser ou vice-versa.
entendido como: Realizando um paralelo entre tais co-
locações e as considerações de Edgar Morin
“[um] processo através do qual suges- (2002b), apresentadas anteriormente, pude-
tões ou conteúdos externos ao indivíduo mos verificar nestas últimas, de forma análo-
apresentados por um ‘outro social’ são ga, as estreitas inter-relações entre cultura e
trazidos para o domínio intra- sujeito. Segundo Morin, através do imprin-
psicológico (do pensar e do sentir subje- ting, a cultura inscreve no indivíduo um con-
tivos), passando a incorporar-se à subje- junto de práticas, saberes, crenças, valores,
tividade do indivíduo. Este ‘outro’ são idéias, conhecimento, que influenciam o de-
pessoas, instituições sociais ou mesmo senvolvimento da individualidade do sujeito.
instrumentos mediados culturalmente.” Mas evidentemente, embora todos os indiví-
(Martins e Branco, 2001: 172) duos de um determinado grupo sejam subme-
tidos ao mesmo imprinting cultural, cada su-
A compreensão apresentada por estes jeito, em sua individualidade, irá constituir-se
autores evidencia a dinâmica entre indivíduo e construir-se de maneira diferente, uma vez
e cultura, demonstrando de que forma ocor- que não é a cultura unicamente que influencia
rem as influências mútuas recebidas e exerci- o ser humano – o qual, para Morin, deve ser
das por ambos os pólos desta relação: considerado de maneira multidimensional,
como um sujeito ao mesmo tempo físico, bio-
“No que se refere ao indivíduo, a inter- lógico, psíquico, afetivo, cultural e social
nalização de aspectos culturais é ante- (Morin, 2002b, 2002c). Ou seja, entram em
cedida e orientada por elementos moti- ação, entre outros fatores, os “aspectos
vacionais, afetivos, que elegem e priori- motivacionais” próprios de cada sujeito
zam objetivos e conteúdos culturais, a- (Martins e Branco, que acabamos de citar),
tribuindo-lhes um significado próprio que possibilitarão que os aspectos culturais
sejam apreendidos pelo indivíduo adquirindo

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didos pelo indivíduo adquirindo significado estádios do desenvolvimento cognitivo, colo-


próprio. cando o sujeito como organizador da realida-
Diante do quadro exposto até agora, de – mas também apontam para suas limita-
entendemos que uma compreensão das rela- ções. Neste sentido, Moreno e colaboradores
ções entre cultura e indivíduo, que leve em (1999) consideram que o desenvolvimento
conta toda complexidade inerente a estes ele- cognitivo, na perspectiva de Piaget, é tomado
mentos, necessita, por um lado, de uma noção apenas a partir do ponto de vista estrutural,
de cultura que esteja aberta a transformações, sem dar muita atenção ao fato de que o em-
que exerça suas influências sobre o indivíduo prego de determinadas operações depende não
em uma relação não-unilateral e não- apenas dos estádios, mas também dos conteú-
determinista. Por outro lado, exige também dos aos quais se aplicam. Assim, as autoras
uma noção de indivíduo ativo que, embora propõem que o funcionamento mental se dê
possua, em sua subjetividade, traços da cultu- não apenas em vista dos aspectos estruturais,
ra e da sociedade da qual participa, tenha pos- internos ao sujeito, mas também, de maneira
sibilidades de (re)significar e (re)construir os articulada, considerando os conteúdos presen-
aspectos culturais. Esta noção de indivíduo só tes na realidade – ou seja, os elementos, en-
se faz, do nosso ponto de vista, à medida que quanto “um produto da interpre-tação que o
encaramos esse ser humano de forma com- sujeito faz dos objetos e fatos perceptíveis”
plexa e multidimensional (como já nos propõe (Moreno et al., 1999: 77).
Morin), e nos parece coerente com o modelo Um segundo ponto em que se baseia a
de sujeito psicológico apresentado no início teoria dos Modelos Organizadores do Pensa-
deste artigo (Araújo, 1999, 2003) – o qual mento é a idéia defendida por Philip Johnson-
considera as diferentes dimensões constituin- Laird de que o raciocínio humano opera por
tes do ser humano, a partir de uma perspectiva meio de modelos mentais. Johson-Laird con-
de complexidade. sidera que o raciocínio não segue unicamente
Neste contexto, em busca de analisar a lógica formal, mas envolve a compreensão
as relações entre as crenças e o pensamento de significados e a manipulação de modelos
humano, os pressupostos apresentados até a- mentais, estes vistos como uma representação
gora nos conduziram à opção pela Teoria dos interna que o sujeito realiza do mundo ao seu
Modelos Organizadores do Pensamento, que redor (Johson-Laird, 1993, apud Moreno et
discorreremos a seguir. al., 1999). De acordo com este autor, por
meio de modelos mentais, o ser humano re-
4. A Teoria dos Modelos Organizadores do presenta a realidade que o cerca e é capaz de
Pensamento raciocinar, verificar hipóteses e alternativas.
Assim, a compreensão envolve a elaboração
A Teoria dos Modelos Organizadores de modelos do mundo, e o raciocínio consiste
do Pensamento (Moreno et al., 1999; Arantes, na manipulação de tais modelos. O papel da
2000) é uma das bases que fundamenta a pes- representação na teoria dos modelos mentais
quisa aqui apresentada e constitui-se, assim, é de fundamental importância para explicar a
na base teórica e metodológica para a mesma. elaboração dos modelos, bem como sua ma-
Esta teoria foi inicialmente proposta por Mo- nipulação, que se dá através do pensamento.
reno, Sastre, Leal e Bovet, e parte dos traba- A partir da articulação entre as idéias
lhos de Jean Piaget, e também da teoria de da teoria dos modelos mentais e da epistemo-
modelos mentais de Johnson-Laird. Vejamos. logia genética de Piaget – conforme destaca-
As autoras adotam como um dos pon- mos – Moreno e colaboradores (1999) desen-
tos de partida os estudos de Jean Piaget acerca volvem então a teoria dos Modelos Organiza-
dos aspectos estruturais do pensamento e o dores do Pensamento, segundo a qual o ser
funcionamento cognitivo. Reconhecem a im- humano, a fim de orientar-se e conhecer o
portância e abrangência de tais idéias – que mundo que o cerca, constrói modelos da rea-
inovam ao constituírem uma teoria acerca dos lidade em sua interação com os objetos, pes-

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soas e relações ao seu redor, e também consi- A abstração de elementos ocorre uma
go mesmo. vez que o sujeito seleciona alguns elementos
Os Modelos Organizadores do Pensa- da realidade observada para que constituam o
mento – que influenciam a forma de agir, modelo organizador. Assim sendo, nem todos
pensar, ser e sentir do sujeito, assim como a os elementos da situação observada são ne-
própria construção do conhecimento – são cessariamente abstraídos e, ao mesmo tempo,
construídos com base em elementos estrutu- o modelo organizador pode contemplar ele-
rais internos ao sujeito, mas também externos mentos que não se encontram na realidade e
a ele, ou seja, os conteúdos da realidade. De que são, assim, inferidos pelo próprio sujeito.
acordo com as autoras, Na elaboração do modelo organizador, os e-
lementos que não são vistos como significati-
“Concebemos um modelo organizador vos ou pertinentes são desconsiderados e pas-
como uma particular organização que o sam a não fazer parte do modelo elaborado.
sujeito realiza dos dados que seleciona e Aos elementos que são abstraídos, o
elabora a partir de uma determinada si- sujeito atribui significados. Não há, portanto,
tuação, do significado que lhes atribui e no modelo organizador, elemento sem signifi-
das implicações que deles se originam. cado. Entretanto, segundo as autoras, contex-
Tais dados procedem das percepções, tos diferentes podem levar um mesmo sujeito
das ações (tanto físicas como mentais) e a atribuir significados diferentes a um mesmo
do conhecimento em geral que o sujeito elemento, da mesma forma que, a este mesmo
possui sobre uma certa situação, assim elemento, sujeitos diferentes podem atribuir
como das inferências que a partir de tu- significados diferentes.
do isso realiza. O conjunto resultante é O estabelecimento de implicações e/ou
organizado por um sistema de relações relações diz respeito às conseqüências que o
que lhe confere uma coerência interna, a sujeito atribui na relação entre elementos e
qual produz, no sujeito que o elaborou, significados do modelo em questão.
a idéia de que mantém também uma co- A construção do modelo organizador
erência externa, ou seja, uma coerência depende de como estes três processos, que
com a situação do mundo real que re- ocorrem simultaneamente, são articulados in-
presenta.” (Moreno et al., 1999: 78) ternamente pelo sujeito: um determinado ele-
mento é abstraído em função do significado
De acordo com o trecho acima, é pos- que lhe é atribuído no contexto da construção
sível verificar que, como se baseiam na repre- de um determinado modelo, e destes dois as-
sentação e interpretação do sujeito, os mode- pectos dependem as implicações estabeleci-
los organizadores nem sempre correspondem das.
exatamente à situação do mundo real. Desta Um aspecto importante a ser ressalta-
forma, embora confiram ao sujeito uma “coe- do é que a construção dos modelos organiza-
rência interna”, a qual, por sua vez, “produz dores permite a imaginação do sujeito, a infe-
a idéia de uma coerência externa”, isso não rência de novos elementos (Arantes, 2000),
significa que o modelo construído correspon- pois o modelo organizador pode ser constituí-
da exatamente à realidade que representa. do também de alguns elementos não necessa-
Segundo Moreno e colaboradores riamente presentes na realidade. Tais elemen-
(1999), o sujeito constrói os modelos organi- tos passam a integrar o modelo organizador
zadores a partir da avaliação que faz diante de construído, adquirindo tanta importância
determinada situação do mundo real, processo quanto os demais na constituição do modelo.
em que estão envolvidas as seguintes ativida- A imaginação do sujeito pode se basear em
des cognitivas: abstração de elementos, atri- aspectos da razão, de natureza lógico-
buição de significados e estabelecimento de matemática, mas também de outra natureza.
implicações e/ou relações. Vejamos: E, desta forma, podemos dizer que a Teoria
dos Modelos Organizadores avança no senti-

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do de considerar que a organização do pen- lher?” e Questão B – “Para sua religião, qual
samento está relacionada não apenas a aspec- o papel da relação sexual no relacionamento
tos (e processos) cognitivos, mas também aos entre um homem e uma mulher?”.
sentimentos e emoções, desejos, fantasias, Para a análise dos dados, foram identi-
representações sociais, crenças, que influenci- ficados os modelos organizadores aplicados
am os próprios processos mentais de seleção pelos sujeitos, a partir das respostas dadas em
de elementos, atribuição de significados e es- cada uma das questões. De posse destes da-
tabelecimento de implicações. dos, foram analisadas as relações entre a dis-
É neste sentido que a Teoria dos Mo- tribuição dos modelos organizadores dentro
delos Organizadores do Pensamento permite- de cada um dos grupos entrevistados, bem
nos considerar que as crenças pessoais podem como as relações entre o posicionamento de
exercer tanta influência no pensamento hu- um mesmo sujeito diante de ambas as ques-
mano quanto os aspectos cognitivos. É neste tões.
contexto, portanto, que se desenvolveu a pes-
quisa apresentada a seguir. 7. Resultados e discussões

5. Objetivos da pesquisa Na seqüência, temos os modelos orga-


nizadores encontrados e a distribuição dos
O problema central da pesquisa foi mesmos dentro dos diferentes grupos entre-
investigar se os modelos organizadores apli- vistados, considerando primeiramente a Ques-
cados diante de situações da vida cotidiana tão A e, em seguida, a Questão B:
estão de alguma forma relacionados às cren-
ças do sujeito, ou, dito de outra maneira, veri- • Análise da Questão A: “Na sua opinião,
ficar em que medida as crenças influenciam a qual o papel da relação sexual no relacio-
organização do pensamento. O tipo de crença namento entre um homem e uma mu-
considerado foi a crença religiosa, e o conteú- lher?”
do das situações apresentadas aos sujeitos foi
a sexualidade. Dos dados da Questão A é relevante
destacar, por um lado, a presença do Modelo
6. Metodologia 1, que agrega em si elementos e significados
associados à religião (Deus, casamento, pro-
Para atender aos objetivos da pesquisa, criação). Este modelo se faz presente nos 3
foi aplicado um questionário a um total de grupos religiosos entrevistados, principalmen-
100 sujeitos adultos, entre 20 e 40 anos, divi- te dentro do grupo Católico, e evidencia que
didos em 4 grupos: 25 Católicos, 25 Adven- de fato as crenças religiosas parecem influen-
tistas, 25 Espíritas e 25 estudantes universitá- ciar a organização do pensamento.
rios sem que fosse considerada a religião. O Por outro lado, é importante ressaltar
questionário foi aplicado a cada grupo, em que, mesmo sendo composto por uma maioria
seu próprio espaço religioso, o que, no caso de sujeitos que declararam possuir alguma
dos estudantes, foi feito na própria Universi- religião, nenhum dos entrevistados do grupo
dade. de estudantes aplicou o Modelo 1 ao respon-
Ao responder às questões, que versa- der à primeira questão. Este dado indica que o
vam sobre temáticas de sexualidade, os sujei- grau de influência das crenças parece variar
tos deveriam, primeiramente, dissertar sobre de acordo com o contexto social, e que deve
seu posicionamento pessoal diante da temáti- haver outras variáveis que influenciam igual-
ca apresentada e, em um segundo momento, mente o pensamento dos sujeitos ao organiza-
colocar a postura de sua religião. As duas rem seu pensamento diante do tema solicitado
questões analisadas foram: Questão A – “Na (experiências pessoais, emoções e sentimen-
sua opinião, qual o papel da relação sexual no tos, crenças de outra natureza).
relacionamento entre um homem e uma mu-

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Modelos Organizadores %
Modelo 1 Relação sexual pautada em princípios religiosos tradicionais (criação de 37
Deus, casamento, procriação)
Modelo 2 Relação sexual como elemento que define a continuidade ou não do relacio- 8
namento entre o casal
Modelo 3 Relação sexual como fator de união entre o casal 24
Modelo 4 Relação sexual como complemento do relacionamento entre o casal 24
Modelo 5 Relação sexual valorada de diferentes maneiras, em função do tipo de rela- 7
cionamento entre o casal
Tabela 1 - Modelos organizadores e freqüência (%) considerando o total de sujeitos na Questão A.

Gráfico 1 - Distribuição dos modelos organizadores referentes à Questão A nos diferentes grupos.

• Análise da Questão B: “Para sua religião, qual o papel da relação sexual no relacionamento en-
tre um homem e uma mulher?”

Analisando os dados da Questão B que aplicaram este modelo afirmaram ser ca-
podemos notar uma grande quantidade de su- tólicos, e que a maioria dos sujeitos do grupo
jeitos aplicando o Modelo 1, pautado em católico aplicou o Modelo 1, veremos que, em
princípios ligados tradicionalmente à religião, nossa amostra, uma mesma religião deu ori-
correspondendo a 61% da amostra como um gem a raciocínios diversos, orientados em di-
todo e à maioria dos sujeitos dos grupos cató- reções opostas. Este dado nos faz considerar
lico e adventista. que as crenças, relacionadas a uma cultura,
O que chama a atenção, entretanto, é o não são internalizadas de uma mesma maneira
grupo de estudantes, onde encontramos uma por todos os sujeitos, sendo que outros aspec-
parcela de 6 sujeitos aplicando o Modelo 5, tos subjetivos (ex: sentimentos, valores, co-
que considera a postura religiosa insuficiente nhecimentos do sujeito) parecem atuar na
e antiquada para explicar o papel da relação forma como os indivíduos incorporam suas
sexual. Ao notarmos que todos os estudantes crenças.

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Modelos Organizadores %
Modelo 1 Relação sexual pautada em princípios religiosos tradicionais (criação de Deus, 61
casamento, procriação)
Modelo 2 Relação sexual exige responsabilidade, pois traz conseqüências 12
Modelo 3 Relação sexual como fator de união entre o casal 7
Modelo 4 Relação sexual como complemento do relacionamento entre o casal 7
Modelo 5 A postura religiosa é insuficiente, antiquada, ortodoxa, para explicar o papel da 6
relação sexual
----- Não respondeu à Questão B 7

Tabela 2 - Modelos organizadores e freqüência (%) considerando o total de sujeitos na Questão B.

Gráfico 2 - Distribuição dos modelos organizadores referentes à Questão B nos diferentes grupos.

Partindo agora para uma análise das suas respostas às questões A e B, primeira-
respostas dadas por um mesmo sujeito às di- mente considerando o total da amostra e, em
ferentes questões, temos os gráficos a seguir, seguida, levando em conta os diferentes gru-
que apresentam a freqüência de sujeitos que pos entrevistados:
mantiveram ou alteraram seu raciocínio em

Gráfico 3 - Distribuição dos sujeitos que apli-


caram o mesmo modelo organizador e mode-
los diferentes nas questões A e B.

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Gráfico 4 - Distribuição, por grupo entrevistado, dos sujeitos que aplicaram o mesmo modelo
organizador e modelos diferentes nas questões A e B

Como mostram os dados, embora as


crenças religiosas tenham exercido um certo Como vimos, os resultados gerais ob-
grau de influência nas respostas, levando uma tidos demonstraram que efetivamente os mo-
parcela dos sujeitos a manter seu raciocínio delos organizadores aplicados pelos sujeitos,
nas duas questões, a maioria da amostra apli- ao se posicionarem diante de tematicas de se-
cou raciocínios diferentes ao responderem xualidade, tiveram associados a seus elemen-
sobre o papel da relação sexual, primeira- tos, significados e implicações, aspectos e
mente segundo sua opinião pessoal e, em se- conteúdos relativos às crenças religiosas,
guida, sob a postura de sua religião. mesmo quando estas não estavam explicita-
Os dados da investigação sugerem que mente presentes no contexto.
a cultura, internalizada pelos sujeitos, embora Como exemplo do que acabamos de
influencie a individualidade de cada membro colocar, dentre os modelos organizadores en-
da sociedade, não anula os demais aspectos contrados a partir das respostas da amostra
subjetivos que se manifestam na dinâmica do entrevistada, podemos citar o Modelo 1 da
funcionamento psíquico. Ao mesmo tempo, Questão A, que, por sua vez, correspondia ao
os resultados obtidos permitem considerar que Modelo 1 da Questão B. Nestes casos, o ra-
tal funcionamento deve ser entendido a partir ciocínio empregado pelos sujeitos fundamen-
de uma visão de complexidade, a qual, ao tava-se em princípios religiosos tradicionais
considerar as diferentes variáveis que podem para explicar o papel da relação sexual no re-
atuar no pensamento humano de forma não lacionamento de um casal, citando elementos
previsível, ajuda a explicar a tendência à mu- como Deus, procriação e casamento, de ma-
dança no raciocínio dos sujeitos, verificada neira coerente com alguns dos pressupostos
em nossa amostra. encontrados nas religiões com as quais traba-
Por outro lado, os dados demonstra- lhamos. Na primeira questão, que não fazia
ram também que cada uma das três religiões referência explícita a princípios religiosos, tal
consideradas influenciou de forma diferente a raciocínio foi aplicado por 37% dos sujeitos,
organização do pensamento, levando em con- correspondendo a 18 católicos, 12 adventistas
ta as variações intrapessoais diante das ques- e 7 espíritas. Já na Questão B, que solicitava
tões analisadas. Este fato anuncia que o grau do sujeito a postura de sua religião, 61% de
de influência exercida pelas crenças na orga- nossa amostra aplicou o Modelo 1, sendo 23
nização do pensamento de um sujeito pode católicos, 22 adventistas, 9 espíritas e 7 estu-
também estar, de alguma maneira, relaciona- dantes.
do à própria natureza da crença. Diante da ocorrência destes dados,
podemos afirmar que os seres humanos incor-
7.1. Regularidades e não-regularidades poram elementos vinculados às suas crenças

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na forma de pensar e de posicionar-se frente xidade dos processos que envolvem o pensa-
às situações cotidianas, o que indica que, de mento humano e as relações entre o sujeito e a
uma maneira geral, os aspectos culturais, in- cultura:
ternalizados pelos indivíduos em sua relação
com os grupos e com a sociedade, podem in- • Uma mesma situação apresentada aos su-
fluenciar a própria organização de seu pensa- jeitos da investigação deu origem a racio-
mento. Tal fato, portanto, confirma, em parte, cínios diversos, de modo que foram en-
a hipótese central, de que as crenças influen- contrados, em cada uma das questões ana-
ciam a organização do pensamento humano. lisadas (Questão A e B), cinco modelos
Assim sendo, como já propôs Morin, é organizadores diferentes, dentre os quais
possível dizer que as crenças e a cultura – nem todos haviam sido elaborados levan-
que, confirme vimos, relacionam-se ao “pen- do em conta aspectos relativos a crenças
samento mítico”, da criação, do imaginário e religiosas. Tal fato pode ser explicado pe-
das analogias – são aspectos de fato tão im- la própria Teoria dos Modelos Organiza-
portantes para o ser humano quanto a esfera dores do Pensamento, e demonstra que a
do “pensamento racional”, já consagrado e elaboração dos modelos organizadores
exaltado desde a Modernidade, com as idéias passa pela interpretação do sujeito, o qual
Iluministas e o pensamento cartesiano. (re)organiza internamente a realidade ob-
Nesse sentido, consideramos que os jetiva a partir daquilo que, estando ou não
resultados contribuem com uma perspectiva presente no contexto, considera significa-
recente, dentro dos estudos da Psicologia, que tivo.
busca compreender os processos do pensa-
mento para além dos aspectos e processos • Uma mesma “cultura religiosa” deu ori-
cognitivos da mente humana. gem a raciocínios diversos. Mais especifi-
Entretanto, como um trabalho de Psi- camente, diferentes indivíduos que se de-
cologia que adota o referencial da Teoria da clararam Católicos incorporaram, nos mo-
Complexidade, a análise dos dados obtidos delos organizadores aplicados, elementos
com nossa investigação contempla não apenas relativos a esta religião, integrando, con-
as regularidades presentes, mas atenta tam- tudo, raciocínios orientados em direções
bém para as não-regularidades, as incertezas e opostas. É o que pudemos observar ao
aleatoriedades que regem os fenômenos ob- comparar os Modelos 1 e 5 da Questão B:
servados. enquanto um deles fundamentava-se em
Desta forma, o que chama a atenção princípios religiosos tradicionais para ex-
na investigação é o fato de que, mais do que plicar o papel da relação sexual, o outro
as regularidades, as permanências, foram en- considerava a postura religiosa como insu-
contradas mudanças, variações, tanto na for- ficiente para explicar tal papel. Nos dados
ma com a qual os sujeitos organizaram seu apresentados, verificamos que 23 sujeitos
pensamento quanto no grau de influência e- do grupo católico (92%) aplicaram o Mo-
xercida pelas crenças religiosas nos modelos delo 1 em suas respostas à Questão B. Por
organizadores identificados. Sendo assim, em outro lado, o Modelo 5 foi aplicado por 6
busca de compreender as relações entre as sujeitos do grupo de estudantes, sendo
crenças e a organização do pensamento, foi que, deste total, 5 deles afirmaram ser Ca-
encontrado um número maior de hipóteses e tólicos. Assim, diferentes sujeitos de uma
de novos questionamentos do que propria- mesma religião, ao responderam à mesma
mente respostas e/ou considerações conclusi- questão, fundamentados em suas crenças
vas. religiosas, partiram para direções comple-
A seguir, discutiremos rapidamente tamente diferentes. Estes dados deixam
cada uma das não-regularidades identificadas claro que a internalização dos elementos
diante dos dados apresentados, as quais vêm, da cultura ocorre de forma não-linear, e
do nosso ponto de vista, confirmar a comple- em meio a outros processos subjetivos

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(ex: valores, estruturas cognitivas, senti- mais acentuada. Isso fica claro quando ob-
mentos, representações sociais) que po- servamos, por exemplo, que, ao contrário
dem levar o sujeito a aceitar ou contestar, do que encontramos nos grupos religiosos,
de forma mais ou menos intensa, aquilo nenhum dos sujeitos do grupo de estudan-
que lhe é sugerido pela cultura (Martins e tes (entrevistados no espaço da Universi-
Branco, 2001). Desta maneira, a organiza- dade) fez referência às suas crenças reli-
ção do pensamento do sujeito não neces- giosas ao responderem à Questão A; den-
sariamente é determinada por aquilo que é tro deste grupo, entretanto, mais da meta-
veiculado pela cultura da sociedade ou de dos sujeitos declarou vincular-se a al-
grupo do qual este participa. guma religião. Ao mesmo tempo, as dife-
rentes crenças religiosas com as quais tra-
• Diante de temáticas de sexualidade apre- balhamos influenciaram de formas e em
sentadas de formas diferentes, a tendência níveis diferentes o pensamento dos sujei-
dos sujeitos foi de alterar seu raciocínio, tos entrevistados. Basta verificarmos, den-
isto é, de uma maneira geral, um mesmo tro de cada grupo religioso, a quantidade
sujeito aplicou modelos organizadores di- de sujeitos que, influenciados por suas
ferentes ao responder às questões apresen- crenças religiosas, aplicaram o mesmo ra-
tadas. Resgatando os dados encontrados, ciocínio ao responderem às questões A e
temos que, ao compararmos as respostas B: enquanto que, no grupo católico, 80%
dadas pelos sujeitos às questões A e B, dos sujeitos mantiveram a coerência, nos
39% mantiveram o mesmo tipo de racio- grupos adventista e espírita, esta porcen-
cínio – isto é, aplicaram modelos organi- tagem corresponde a 48% e 24%, respec-
zadores análogos nas duas respostas –, ao tivamente. Assim, consideramos que a in-
passo que a maioria, 54%, aplicou racio- fluência exercida pelas crenças na organi-
cínios diferentes. Este dado indica que a zação do pensamento humano pode ser
influência das crenças na organização do mais ou menos acentuada, a depender de
pensamento, no caso dos sujeitos que par- seu conteúdo e da maneira com a qual o
ticiparam de nossa investigação, não foi sujeito relaciona-se ao grupo cultural no
tão intensa a ponto de garantir uma coe- qual se insere.
rência no pensamento dos mesmos. O que
fica evidente, portanto, é que a influência A partir dos pontos aqui discutidos,
das crenças religiosas no pensamento não podemos afirmar que os resultados obtidos
foi determinante, e isso, por sua vez, con- com a pesquisa que aqui se coloca, embora
duz-nos para o fato de que os modelos or- confirmem a hipótese inicial, também trazem
ganizadores elaborados pelos sujeitos di- indícios para considerar que as relações entre
ante de situações semelhantes podem va- as crenças – e por extensão os aspectos cultu-
riar de acordo com o contexto, influencia- rais – e o pensamento humano são permeadas
dos por outros fatores como os sentimen- por uma série de outros fatores que atuam si-
tos, os valores, as experiências anteriores multaneamente durante a organização do ra-
do sujeito, apenas para citar algumas hipó- ciocínio, isto é, na elaboração dos modelos
teses. organizadores. Tais fatores podem ser de or-
dem inter e intrapsíquica, sendo que, neste
• Foi possível verificar variações no grau de último caso, podem estar relacionados, supo-
influência das crenças no pensamento dos mos, a diferentes dimensões constituintes do
sujeitos, de acordo com os diferentes con- sujeito: afetiva (através da atuação de senti-
textos sociais e também com o conteúdo mentos e valores); biológica (com o próprio
da própria crença. Assim foi que, no caso funcionamento cerebral); cognitiva (influen-
dos sujeitos que estavam em contato com ciada pelos esquemas de ação e estruturas
seu grupo e espaço religioso, a influência cognitivas) e até mesmo outros aspectos da
das crenças no pensamento parece ter sido

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própria dimensão sociocultural (influência da modelos organizadores aplicados incorpora-


linguagem e representações sociais). ram elementos relativos às crenças religiosas,
Para finalizar, devemos ter em vista indicando que estas de fato influenciam a or-
que este trabalho centrou-se apenas nas possí- ganização do pensamento. Por outro lado, foi
veis influências exercidas pelas crenças reli- verificado também que tal influência atuou
giosas no pensamento humano, e que há ou- em conjunto a outras variáveis concernentes
tros aspectos também relacionados à cultura ao funcionamento psíquico dos sujeitos em
(contexto familiar, linguagem, crenças de ou- questão, evidenciado pelas variações nos mo-
tra natureza) que, julgamos, certamente exer- delos organizadores encontrados, tanto entre
cem sua parcela de influência na organização os diferentes grupos entrevistados quanto na
do pensamento dos sujeitos. análise das respostas de um mesmo sujeito.
Diante de todo o exposto, gostaríamos
8. Considerações finais de encerrar as discussões com algumas consi-
derações suscitadas pelo estudo feito e pelos
O presente artigo buscou discutir as resultados obtidos.
relações entre as crenças e o pensamento hu- Não nos resta dúvida de que o funcio-
mano, a partir de uma perspectiva de comple- namento mental do ser humano deve ser com-
xidade. Partimos do princípio de que as cren- preendido a partir de uma perspectiva de
ças pessoais, ao fazerem parte da individuali- complexidade. Pensamos, assim, que os resul-
dade do sujeito, passam a influenciar o pró- tados apresentados vêm por confirmar ainda
prio funcionamento mental, a organização do mais a necessidade de considerarmos que os
pensamento, atuando juntamente aos proces- processos do pensamento humano, diante da
sos cognitivos. infinidade de variáveis que nele atuam, só po-
Para as discussões, apresentamos os dem ser de fato compreendidos levando-se em
resultados de uma investigação embasada na conta que as não-regularidades existem tanto
Teoria dos Modelos Organizadores do Pen- quanto as regularidades, que as possibilidades
samento. Esta teoria considera que o sujeito não são necessariamente previsíveis, que a-
constrói modelos da realidade em sua intera- quilo que influencia não determina.
ção com os objetos, pessoas e relações pre- O intuito, portanto, não foi delinear
sentes ao seu redor, e também consigo mes- um caminho único, com teorias acabadas e
mo. Os modelos organizadores do pensamen- que se pretendem absolutas. Pensamos que
to são construídos a partir não apenas de pro- novos estudos, que tenham como ponto de
cessos cognitivos, mas também diante da in- partida uma perspectiva ampla, encarando o
fluência de aspectos de outra natureza, como ser humano em sua totalidade e complexida-
afetiva (sentimentos, emoções) e sociocultural de, podem esclarecer ainda mais nossa com-
(crenças). preensão da realidade humana e de suas rela-
A pesquisa apresentada teve como ob- ções com o mundo.
jetivo investigar as relações entre as crenças Ao mesmo tempo, na intenção de es-
religiosas e os modelos organizadores do pen- tudar as influências das crenças na organiza-
samento aplicados por sujeitos diante de situ- ção do pensamento, a pesquisa traz também
ações que envolviam questões relacionadas ao contribuições para a discussão acerca das re-
tema da sexualidade. Em uma perspectiva lações entre o sujeito e a cultura, ao modo
mais ampla, a pesquisa buscou verificar até com o qual os elementos culturais são interna-
que ponto os aspectos culturais (aqui repre- lizados pelos sujeitos e até que ponto estes
sentados pelas crenças), que são internaliza- mesmos elementos passam a ser incorporados
dos pelos sujeitos, passam a influenciar a or- à forma de pensar do ser humano.
ganização de seu pensamento. E, neste sentido, os resultados de nos-
Os dados da pesquisa, obtidos a partir sa pesquisa apontam para o fato de que os as-
da aplicação de um questionário a sujeitos de pectos culturais, criações humanas que têm
diferentes religiões, demonstraram que os sua origem na vida social dos indivíduos, e-

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xercem sua parcela de influência, orientando tal e a influência da cultura podem contribuir
o modo de pensar dos sujeitos e sua atuação para uma compreensão ainda maior destes
no mundo e que, no pensamento humano, tais processos.
aspectos adquirem tanta importância quanto
outros, de ordem cognitiva ou afetiva, por e- 9. Referências bibliográficas
xemplo.
Por outro lado, essa mesma cultura Arantes, V.A. (2000). Estados de ânimo e os
não pode ser vista como determinante na modelos organizadores do pensamento: um
constituição da individualidade do ser huma- estudo exploratório sobre a resolução de con-
no, uma vez que, como discutido, as crenças flitos morais. Tese de Doutorado. Barcelona:
(em especial as religiosas) não foram sufici- Facultat de Psicologia, Universitat de Barce-
entes para orientar por si só a organização do lona.
pensamento diante das questões cotidianas, Araújo, U.F. (1999). Conto de Escola: a ver-
em direção à homogeneidade e constância dos gonha como um regulador moral. São Paulo:
raciocínios aplicados pelos sujeitos, já que Moderna; Campinas: Editora UNICAMP.
atuam em meio a outros fatores subjetivos. Araújo, U.F. (2003). A dimensão afetiva na
Desta forma, estamos inclinados a psique humana e a educação em valores. Em:
considerar que a cultura, ao ser internalizada Arantes, V. (Ed.) Afetividade na escola: al-
– através de aspectos como as crenças (que ternativas teóricas e práticas (pp. 153-169).
aqui elegemos para nosso estudo) – passa a São Paulo: Summus.
fazer parte da dinâmica do funcionamento Martins, L.C. e Branco, A.U. (2001). Desen-
psíquico e mental do ser humano, mas não volvimento moral: considerações teóricas a
anula os demais fatores que influenciam este partir de uma abordagem sociocultural cons-
processo, tanto vinculados à própria dimensão trutivista. Psicologia Teoria Pesq., 17 (2),
sociocultural, como a demais dimensões do 169-176.
ser humano. Moreno, M.; Sastre, G.; Leal, A. e Bovet, M.
Isso parece ser coerente com as pers- (1999). Conhecimento e Mudança: os mode-
pectivas que consideram a relação entre a cul- los organizadores na construção do conheci-
tura e o indivíduo, bem como o processo de mento. São Paulo: Moderna; Campinas: Edi-
internalização desta pelo sujeito, de uma ma- tora UNICAMP.
neira não unilateral, apresentadas ao longo do Morin, E. (1991). O paradigma de complexi-
presente artigo através das idéias de Morin dade (Matos, D., Trad.). Em: Introdução ao
(2002b), Vygotsky (1998) e Martins e Branco Pensamento Complexo (pp. 83-113). Lisboa:
(2001). Assim, ao ser incorporada à individu- Instituto Piaget (Original publicado em 1990).
alidade do sujeito, os aspectos culturais pas- Morin, E. (1994). Epistemologia da Comple-
sam, neste processo, pela subjetividade de xidade (Rodrigues, J. H., Trad.). Em: Shni-
cada ser humano, de forma que a internaliza- man, D. Novos paradigmas, cultura e subjeti-
ção não representa simplesmente a reprodu- vidade (pp. 274-289). Porto Alegre: Artes
ção dos elementos da cultura no indivíduo. Médicas.
Diante disso, ressaltamos que, em Morin, E. (2002a). O Método 1: a natureza
nossa opinião, qualquer estudo que tenha co- da natureza (Heineberg, I., Trad.). Porto Ale-
mo objetivo compreender o funcionamento gre: Sulina (Original publicado em 1977).
mental e psíquico do ser humano e sua atua- Morin, E. (2002b). O Método 5: a humanida-
ção no mundo deve fazê-lo sempre levando de da humanidade (Silva, J. M., Trad.). Porto
em conta as influências exercidas pelo con- Alegre: Sulina (Original publicado em 2001).
texto cultural nesta dinâmica. Isto é, o ser Vygotsky, L.S. (1998). A formação social da
humano não pode ser visto desvinculado da mente (Cipolla Neto, J.; Menna Barreto, L.S.;
cultura e da sociedade nas quais se insere. Afeche, S.C., Trads.). São Paulo: Martins
Ademais, acreditamos que estudos futuros Fontes (Original publicado em 1978).
sobre as relações entre o funcionamento men-

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 150-155 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 01/10/2007 | Revisado em 27/11/2007 | Aceito em 28/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Artigo Científico

Ciência da computação e ciência cognitiva: um paralelo de


semelhanças
The computer science and the cognitive science: a similarity parallel

Caroline Andréia Eifler Saraiva e Irani I. de Lima Argimon

Programa de Pós-graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul


(PUC-RS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Resumo

O presente artigo tem por objetivo apresentar a inter-relação existente entre a área da Ciência
Cognitiva e a área da Ciência da Computação, fazendo um paralelo entre suas concepções. Foram
abordados aspectos históricos de cada ciência, suas definições, aplicações e críticas. Constatou-se a
permanente investigação sobre os processos da mente em ambas áreas de conhecimento, criando uma
intersecção de visões onde a mente segue o funcionamento do computador e o computador busca
imitar as funções da mente. Nesse contexto, a Ciência Cognitiva, por ser multidisciplinar, busca
encontrar uma teoria unificada de cognição, integrando as diversas áreas do conhecimento em torno
do estudo da mente. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 150-155.

Palavras-chave: ciência cognitiva; ciência da computação; inteligência artificial; re-


des neurais; conexionismo.

Abstract

The aim of the present paper was to present the relations between the Cognitive Science Area and the
Computer Science Area, making a parallel between their conceptions. Historical aspects of each sci-
ence were approached, as well as their implications, censures and definitions. It was identified evi-
dences of a great search on the processes of the mind in both knowledge areas, creating a correlation
of views, in which the mind follows the functioning of a computer and the computer recreates mind’s
functions. In this context, the Cognitive Science, intends to find a unificated Cognition theory, putting
all the knowledge areas together around mind's study. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 150-
155.

Key Words: cognitive science; computer science; artificial inteligence; neural nets;
conexionism.

1. Introdução mação teve origem em tempos muito remotos,


quando os primeiros habitantes viviam em
A história do processamento de infor- cavernas. Ao se comunicar através de pinturas

 - C.A.E. Saraiva é Bacharel em Informática (PUC-RS), com MBA em Tecnologias da Informação e da Comuni-
cação em Educação (PUC-RS) e Mestranda do Programa de Pós-Graduação de Psicologia (PUC-RS). Atua no ensino
de informática para idosos. E-mail para correspondência: caroline@atividadepoa.com.br. I.I.L. Argimon é Doutora
em Psicologia. Atualmente é Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Avaliação e Intervenção no Ciclo Vital” do Pro-
grama de Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia (PUC-RS). E-mail para correspondência: argimoni@pucrs.br.

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rupestres, o homem primitivo já trocava idéi- especialmente importante por dois fatores: a
as, demonstrando sentimentos e preocupações ligação que fez entre cérebro e o computador
cotidianas. Na antiga Mesopotâmia, com a e o desafio implacável que lançou ao Behavi-
invenção da escrita, iniciou-se o processo de orismo.
tratamento da informação que incluía não a- O Behaviorismo de orientação positivis-
penas escrever, mas armazenar, combinar e ta, cuja idéia principal baseia-se na análise de
transmitir o que estava sendo produzido. condutas observáveis, ou seja, evitando con-
Segundo Levy (1993), o advento da ceitos “mentais”, teve lugar durante as déca-
imprensa, por Gutemberg, em 1445, foi um das de 20 a 40. Por não tentar explicar os pro-
grande marco para os meios de comunicação, cessos cognitivos, Eysenck e Keane (1994)
iniciando o período denominado de “oralidade destacam sua falha no sentido de ser superfi-
secundária”, quando a oralidade cedeu espaço cial, o que deu lugar ao surgimento de novas
à objetividade da palavra escrita. Desde então, idéias. No Simpósio de Hixon, alguns inputs
houve um processo evolutivo intenso em toda teóricos foram lançados por John Von
a forma de comunicação, com o aparecimento Neumman - matemático, por Warren McCul-
das transmissões de voz, em seguida de ima- loch – neurologista e Karl Lashley – psicólo-
gens e culminando com a transmissão de da- go, estabelecendo comparações sistemáticas
dos. Para esta, o computador apresenta-se entre o funcionamento do cérebro humano e
como condutor mestre de um processo de fa- máquinas do tipo computador eletrônico.
cilitação de tratamento de informação, pois Na metade do século XX, nos Estados
armazena, classifica, compara, combina e Unidos, surgiram os primeiros computadores
compartilha dados, de forma eficiente e com eletrônicos, criados para operarem com a
grande velocidade. grande quantidade de números da Guerra
Em razão da capacidade dessas má- Mundial. Conforme cita Hodges (2007), Alan
quinas para lidar com materiais simbólicos, Turing, em 1936, concebeu a idéia de uma
muitos pesquisadores se convenceram de que máquina simples que utilizava a lógica para
uma ciência da cognição poderia ser moldada executar cálculos. Mais adiante, Turing suge-
à imagem do computador (Gardner, 2003). riu a avaliação de uma máquina que simulasse
Na primeira metade do século XX, o pensamento humano, implementada por
tem início, então, a ciência cognitiva que, por Neumann com o armazenamento de um pro-
sua conceituação, estuda o funcionamento grama em memória. Com isso, as operações
mental baseado no modelo computacional, podiam ser preparadas e executadas interna-
sendo caracterizada como uma área de estu- mente, sem que fosse necessário reprogramar
dos interdisciplinar que se inter-relaciona com as tarefas a cada vez que era ligado o compu-
a Psicologia, a Lingüística, a Ciência da tador.
Computação, as Ciências do Cérebro e a Filo- A partir destes estudos, Claude Elwood
sofia, entre outras (Lima, 2003). Shannon, matemático norte-americano, no
final dos anos 30, formalizou o conceito da
2. Uma breve história da Ciência Cognitiva teoria da informação. Shannon considerou a
utilização de duas alternativas possíveis de
Os primeiros movimentos rumo a uma resposta através da ocorrência de bits (binary
nova ciência, denominada ciência cognitiva, digit em inglês), baseado nos estados dos re-
aconteceram em 1948, no Congresso sobre lés eletromecânicos, ligado e desligado. Pela
Mecanismos Cerebrais do Comportamento, teoria da informação de Shannon, a informa-
também chamado de Simpósio de Hixon, no ção poderia ser reduzida, assim como os ter-
Califórnia Institute of Technology, onde a mos verdadeiro e falso do cálculo proposicio-
questão clássica de discussão foi a forma pela nal, a um dígito binário, que é a quantidade
qual o sistema nervoso central controla o mínima de informação necessária para esco-
comportamento. Além dessa abordagem, co- lha de uma mensagem afirmativa ou negativa,
mo cita Gardner (2003), esse Congresso foi 1 ou 0.

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Foram os insights de Wiener que leva- Nas décadas seguintes, houve vários
ram Shannon à proposição de dissociação da movimentos no sentido de estudar a ciência
informação e seu meio transmissor. “Informa- cognitiva, com muitas publicações de livros
ção é informação, não matéria ou energia. sobre o assunto. Em Harvard, um grupo de
Nenhum materialismo que não admita isto doze estudiosos, com o objetivo de descobrir
pode sobreviver nos dias atuais” (Wiener, as habilidades representacionais e computa-
1961). cionais da mente e sua representação funcio-
Posteriormente a esses fatos, Warren nal e estrutural do cérebro, elaborou o hexá-
McCulloch e Walter Pitts, no início dos anos gono cognitivo – um hexágono que mostra as
40, defenderam a tese de que uma rede neural inter-relações entre os seis campos constituin-
formada pelas conexões dos neurônios pode- tes da ciência cognitiva, que são as áreas da
ria ser modelada em termos da lógica, ou seja, Filosofia, Lingüística, Antropologia, Neuroci-
um neurônio sendo ativado impulsionaria ou- ência, Inteligência Artificial e Psicologia. A
tro neurônio e isso implicaria numa proposi- reação da comunidade científica foi extrema-
ção. Uma analogia entre neurônios e lógica mente negativa a essa proposição, causando a
poderia ser pensada em termos elétricos – não publicação desse documento.
como sinais que passam ou deixam de passar
através de circuitos. Em função disso, a ciên- 3. Uma breve história da Ciência da Com-
cia da computação recorreu às pesquisas so- putação
bre neurônios e suas conexões para projetar
máquinas ou programas cada vez mais pare- A Ciência da Computação ensaiou
cidos com o cérebro humano. seus primeiros passos através da máquina de
Mas a consolidação do reconhecimento Turing, criada nos meados dos anos 30, que
da ciência cognitiva, por um consenso quase serviu de referência para John Von Neumann,
unânime, deu-se a partir do Simpósio sobre dez anos mais tarde, na construção dos pri-
Teoria da Informação realizado no Massachu- meiros computadores. Neumann revolucionou
setts Institute of Technology em setembro de a concepção do funcionamento de um compu-
1956. Gardner (2003) cita as publicações que tador, quando afirmou que era possível colo-
tiveram fundamental importância para tal fa- car no mesmo plano, instruções e dados, não
to: sendo necessário o uso de duas memórias. Na
área da computação o termo “arquitetura de
• “The Magical Number Seven”, de George von Neumann” é muito conhecido, o que de-
Miller: um artigo que discutia a capacida- fine que a arquitetura permite autonomia entre
de da memória humana de curto prazo li- hardware e software (Teixeira, 1998).
mitar-se a aproximadamente sete itens; Ao mesmo tempo, Norbert Wiener a-
• “Logic theory machine”, de Newell e Si- presentava o termo “cibernética”, definindo
mon: a primeira prova concreta de um teo- em modelos matemáticos toda a atividade
rema executada em uma máquina compu- psicológica humana. Enfatizou a necessidade
tadora; das máquinas seguirem o funcionamento do
• “A study of thinking” de Bruner, Good- organismo vivo no controle de suas próprias
now e Austin: obra capital da psicologia atividades.
do pensamento que abordou também con- Passados os anos cibernéticos, a pos-
ceitos artificiais; sibilidade de elaborar programas que simulas-
• “Syntatic Structure” de Noam Chomsky: sem o comportamento inteligente, tomou
versava sobre suas idéias a respeito da no- forma através da expressão “inteligência arti-
va lingüística, baseada em regras formais ficial”, cunhada por John McCarthy no cam-
e sintáticas, próximas às formalizações pus do Dartmouth College, em Hanover. Se-
matemáticas. gundo Eysenk e Keane (1994), o homem era
visto como um processador de informações,
criando uma proximidade na relação entre a

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mente e o computador, através da inteligência dotadas de inteligência comparável à inteli-


artificial, que propõe um modelo baseado em gência humana? Paralelamente a esse embate,
sistemas neurais, tentando imitar o homem em os cientistas e os engenheiros de computação,
sua complexidade, ensinando o computador a passaram a dotar as máquinas de “mentes arti-
pensar. ficiais”, seguindo os modelos definidos nas
A Inteligência Artificial proporcionou ciências cognitivas.
o passo fundamental para se tentar relacionar Segundo Pozzebon e colaboradores
mentes e computadores e estabelecer o “mo- (2004), surgiram diferentes teorias na Inteli-
delo computacional da mente” (Teixeira, gência Artificial, em razão da indefinição do
1998: 13). Não se sabe ainda se seu propósito principal conceito que é o de inteligência hu-
foi totalmente realizado, mas, como afirma mana. Dentre elas, a de Vignaux (1995) ques-
Teixeira, nos obrigou a refletir sobre o signi- tionava se era necessário fornecer ao compu-
ficado do que é ser inteligente, o que é ter vi- tador uma avalanche de dados, ou se era ne-
da mental, consciência e muitos outros con- cessário basear o estudo da cognição no nível
ceitos que freqüentemente são empregados inferior da percepção, conciliando essas duas
por filósofos e psicólogos. vertentes em uma terceira teoria híbrida, se-
gundo a qual a máquina seria capaz de racio-
4. Inteligência artificial e os sistemas espe- cinar utilizando conceitos complexos e de
cialistas perceber o seu meio envolvente.
Por volta dos anos 40 havia dois para-
Com o advento da Inteligência Artificial, digmas vigentes relacionados à Inteligência
preconizado por nomes como John McCarthy Artificial, o simbólico e o conexionista. A In-
e Marvin Minsky, futuros diretores do Labo- teligência Artificial Simbólica privilegiou es-
ratório de Inteligência Artificial do MIT e tudar a mente humana, utilizando-se de simu-
Herbert Simon e Allen Newell, pesquisadores lações e representações mentais através de
que criaram em Pittsburgh outro Laboratório programas autônomos em relação ao hardwa-
de Inteligência Artificial, surgiram as primei- re. Já a Inteligência Artificial Conexionista
ras máquinas de jogar xadrez e de demonstrar acreditava que, construindo-se um sistema
teoremas. Na visão de Newell e Simon, o que simule a estrutura do cérebro, este siste-
computador era um sistema simbólico físico ma apresentará inteligência, ou seja, será ca-
como o cérebro humano e exibia muitas pro- paz de aprender, assimilar, errar e aprender
priedades iguais às do ser humano, sendo am- com seus erros.
bos sistemas que processavam informação no Na primeira vertente, os sistemas es-
decorrer do tempo, procedendo em uma or- pecialistas foram o grande sucesso nas déca-
dem mais ou menos lógica. das de 70 e 80. Os sistemas especialistas são
Mas essa visão gerou polêmica e críticas. sistemas dotados de inteligência e conheci-
Alguns estudiosos argumentavam que toda mento, que trabalham com bancos de memó-
informação do programa do computador havia rias, sendo capazes de estender as facilidades
sido colocada por um humano; logo, o solu- de tomada de decisão para muitas pessoas. Ou
cionador de problemas estava apenas fazendo seja, são sistemas providos de mecanismos de
o que fora programado para fazer. Uma outra aprendizagem, capazes de analisar e gerar no-
linha de crítica versava sobre a capacidade vas regras na base de dados, ampliando a ca-
dos seres humanos de criar atalhos para solu- pacidade de resolver problemas a cada vez
ção de problemas, enquanto que os computa- que são utilizados (Mendes, 1997).
dores apenas repetiriam processos pré- Os primeiros Sistemas Especialistas
definidos. que obtiveram sucesso em seu objetivo foram
Conforme Gudwin (2005) relata, os filó- o sistema DENDRAL e MYCIN. O sistema
sofos tais como John Searle, Daniel Dennet, DENDRAL é capaz de inferir a estrutura mo-
Patrícia Churchland, entre outros, ocupavam- lecular de compostos desconhecidos a partir
se com questões como: pode haver máquinas de dados espectrais de massa e de resposta

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magnética nuclear. O sistema MYCIN auxilia Os fatos se entrelaçaram em toda a his-


médicos na escolha de uma terapia de antibió- tória, criando uma intersecção de visões onde
ticos para pacientes com bacteremia, meningi- a mente segue o funcionamento do computa-
te e cistite infecciosa, em ambiente hospitalar dor e o computador busca o funcionamento da
(Harmon e King, 1988). mente. Mas a Ciência Cognitiva é uma área
Atualmente os Sistemas Especialistas em ebulição que ainda tenta firmar seus pró-
estão sendo revistos, uma vez que se apresen- prios caminhos – uma área onde o consenso
taram limitados em seu potencial de “apren- ainda está muito distante (Teixeira, 1998).
der” novos conceitos. Estudos apontam para Para superar esse problema é necessária uma
um novo conceito dentro da inteligência arti- integração entre as várias abordagens no que
ficial que é a utilização de redes neurais. tange ao estudo da mente e do cérebro. A
Para Teixeira (1998), computadores e Ciência da Computação, por sua vez, tem
cérebros são sistemas cuja função principal é buscado simular o pensamento humano em
processar informação e, assim, podem-se uti- sua essência, uma tarefa nem um pouco fácil,
lizar redes artificialmente construídas para que vem se aperfeiçoando ao longo dos anos e
simular esse processamento. As redes neurais, atualmente trabalha com o conceito de redes
representantes do segundo paradigma anteri- neurais. Os sistemas especialistas que tiveram
ormente citado, consistem em um sistema seu auge nos anos 70 e 80 ressurgem com esta
com circuitos que simulam o cérebro humano, abordagem, combinando a arquitetura con-
inclusive seu comportamento, sendo capaz de vencional com uma arquitetura conexionista.
aprender regras. Tais redes constituem um Não há dúvida de que o computador
intrincado conjunto de conexões entre as neu- tem sido uma ferramenta útil àqueles que que-
ron-like units que estão dispostas em camadas rem testar virtualmente suas teorias sobre o
hierarquicamente organizadas. funcionamento da mente. Nesse sentido, os
De acordo com Fischler (1987), Ra- cientistas vêm usando cada vez mais o com-
buske (1995) e Barreto (1997), a abordagem putador como instrumentos de análise de da-
conexionista trouxe uma nova visão na tenta- dos e como laboratório para simulação dos
tiva de construir um modelo da mente, base- processos cognitivos. Mas, como aborda
ando-se em redes neurais. Apesar das limita- Gardner (2003), ainda existem alguns cientis-
ções computacionais da época, destacaram-se tas que o consideram um mero brinquedo, a-
algumas conquistas relevantes, como o sur- trapalhando ao invés de acelerar os esforços
gimento da cibernética, a modelagem de redes para entender o pensamento humano. Nos
de neurônios como um novo paradigma para a campos da lingüística e da psicologia ainda
arquitetura computacional e o desenvolvimen- existem reservas com relação à abordagem
to de alguns programas computacionais inte- computacional.
ligentes que imitavam o comportamento hu- Nesse contexto, a Ciência Cognitiva, por
mano. apresentar-se um elemento multidisciplinar,
pode buscar a integração do conhecimento
5. Conclusão sobre o estudo da mente, encontrando uma
teoria unificada da cognição, juntamente com
A semelhança de conceitos existentes entre estudiosos de várias áreas do conhecimento.
a Ciência Cognitiva e a Ciência da Computa- Para Teixeira (1998), o grande desafio da Ci-
ção surge desde a primeira geração de cientis- ência Cognitiva continua sendo efetuar pro-
tas, que acreditaram em uma ciência da cog- gressos conceituais e empíricos que permitam
nição moldada à imagem do computador. saber do que se está falando quando a refe-
Conforme Gardner (2003) afirma, poderia rência é a mente ou a consciência.
haver ciência cognitiva sem o computador,
mas ela não teria surgido quando surgiu, nem 6. Referências bibliográficas
tomado a forma que tomou, sem o apareci-
mento do computador.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 156-164 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 10/02/2007 | Revisado em 27/09/2007 | Aceito em 29/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Revisão

Estilo de vida como indicador de saúde na velhice


Life style as health indicator on ageing

Vera Lygia Menezes Figueiredo

Programa Interdisciplinar de Geriatria e Gerontologia, Hospital Universitário Antônio Pedro


(HUAP), Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo

Uma revisão da literatura gerontológica objetivou explorar o tema do envelhecimento saudável, dan-
do-se destaque aos fatores contribuintes para a manutenção da qualidade de vida. Dentre os fatores
pesquisados, o estilo de vida é considerado como um importante promotor de estímulos sócio-
emocionais que otimizam o funcionamento cognitivo. A conclusão sugere que estilo de vida possa
ser utilizado com um indicador de saúde, recebendo assim cuidadosa atenção quando se objetiva
promover ou prevenir a saúde na senescência. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 156-164.

Palavras-chave: velhice; estilo de vida; qualidade de vida; saúde coletiva; geronto-


logia.

Abstract

A gerontological literature review aimed to explore the healthy ageing emphasizing the contributive
factors for the maintenance of a life quality. Among the factors researched, life style is considered as
an important promoter of social-emotional stimuli that improve the cognitive functioning The conclu-
sion suggests that life style may be used as a health indicator and it should earn careful attention
when the objective is to promote or prevent health in senescence. © Ciências & Cognição 2007; Vol.
12: 156-164.

Key Words: ageing; life style; life quality; collective health; gerontology.

Introdução
"Quantos velhos obstinados morrem intestados!
Para eles, trata-se menos de conservar até o fim seu tesouro
ou seu império já meio desligados dos seus dedos entorpecidos,
do que de não se instalar demasiado cedo no estado póstumo de um homem
que já não tem decisões a tomar, surpresas a causar,
ameaças ou promessas a fazer aos vivos."
Marguerite Yourcenar (1980: 96-97)
 – V.L.M. Figueiredo é Psicóloga Clínica, Especialista em Psicologia Hospitalar (CPF) e Gerontologia (UFF).
Atua como voluntária pelo Programa Interdisciplinar de Geriatria e Gerontologia (HUAP/UFF) e como Coordenadora
do Plantão Psicológico e de uma Oficina de Estimulação Cognitivo-Expressiva em Grupo, voltados para idosos de
comunidade. E-mail para correspondência: vely_menezes@yahoo.com.br.

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Nas sociedades modernas industriali- le, garantindo assim a possibilidade de manu-


zadas, um fenômeno mundial recorrente é a tenção da autonomia e da independência.
saída do indivíduo do cenário social via a a-
posentadoria e, comumente, coincidente com Envelhecimento populacional e o conceito
a entrada na velhice. Apesar de a realidade de saúde
demográfica apontar para um crescimento
progressivo e expressivo da população idosa, O interesse pelo estudo dos fenômenos
que já vêm alcançando com facilidade faixas do envelhecimento é gerado pelas projeções
etárias longevas, o reengajamento funcional de crescimento da população idosa nos Esta-
ou mesmo ocupacional (que significaria o a- dos Unidos e em vários países da Europa, na
cesso aos núcleos socioculturais) não é esti- virada do século XX e em plena era industrial.
mulado ou mesmo valorizado por conta de Tanto nos países desenvolvidos como naque-
imagens ainda preconceituosas e/ou estereoti- les em desenvolvimento, guardadas as devi-
padas do indivíduo envelhecido. Assim, inex- das proporções diferenciadoras, três índices
pressivos e insuficientes estímulos sociocultu- epidemiológicos vêm mantendo-se em declí-
rais aliam-se à sensação de inabilidade pesso- nio: a mortalidade infantil, a mortalidade ma-
al para conviver em um mundo estranho aos terna, e a mortalidade por doenças crônicas. O
seus hábitos e padrões adquiridos em gera- resultado desta combinação vem significando
ções passadas, seja por uma tendência pessoal um crescente número absoluto de idosos que,
à desvalorização de suas capacidades e habi- paulatinamente, irão somando ao contingente
lidades, ou bem devido a uma dificuldade pa- populacional já existente. Há um consenso no
ra abrir-se ao novo e permitir novas aprendi- meio científico de a expectativa de vida ser
zagens. O indivíduo idoso pode, paulatina- um dos indicadores mais importantes de saú-
mente, desobrigar-se de resgatar o seu sentido de.
de pertencimento social, deixando de ser al- No entanto, somente por volta da dé-
guém 'desejante'. cada de trinta é que a Geriatria surge nos mei-
Além do desestímulo social, e por uma os científicos como uma disciplina médica,
série de fatores ligados às histórias pessoais e dedicando-se ao estudo das patologias com-
às experiências de vida, muitos idosos permi- preendidas como senis e dos seus aspectos
tem que o seu prazer de viver envelheça, im- curativos (Debert,1999). Da mesma forma
pondo-se um isolamento social ou permitindo acontece com a Gerontologia, quando a partir
que outros o façam. Outros há que vivem da década de cinqüenta os seus estudos são
bem, porém com uma vida bastante rotinizada sistematizados para a área do envelhecimento
e pouco estimulante em termos cognitivos. E normal, da prevenção e da qualidade de vida
ainda há outros idosos que, por desajustamen- na idade tardia, como apropriadamente justi-
tos psicológicos diversos, vivem sob uma fica Néri (1995: 27), "{...} de explicar os de-
qualidade de vida inferior ao esperado. terminantes e as características das mudanças
Em comum para esses estilos vivenci- da velhice, que se tornam cada vez mais visí-
ais humanos descritos, pode-se então desta- veis e, quando patológicas, cada vez mais o-
car: uso deficitário das funções cognitivas, nerosas para a sociedade”. As interfaces da
retração da expressividade emocional, e redu- Gerontologia com diversas disciplinas, alcan-
ção das trocas relacionais e com o meio. Este çando campos até mesmo transdisciplinares,
empobrecimento da qualidade de vida na ve- abrem dimensões de estudos e pesquisas enri-
lhice não encontra respaldo científico: princi- quecedores.
palmente no primeiro terço da velhice, a A velhice, hoje, é uma realidade que
grande maioria dos idosos é saudável, tanto tem longevidade. O crescimento da população
do ponto de vista orgânico como cognitivo, de idosos, em números absolutos e relativos,
ou tem as suas cronicidades ainda sob contro- já é um fenômeno mundial. Em 1950 eram
cerca de 204 milhões de idosos no mundo e,

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já em 1998, quase cinco décadas depois, este features in the environment." (WHO,
contingente alcançava 579 milhões de pessoas 2002:13)3
- um crescimento de quase oito milhões de
idosos por ano. Segundo Paschoal (apud Pa- Este ampliado conceito de saúde, desig-
paleo Netto, 1996), a expectativa média de nado como 'Envelhecimento Ativo' (Active
vida da população em geral (limite biológico) Ageing), define o processo de otimizar opor-
encontra-se atualmente projetada em torno de tunidades para a saúde, sendo o bem-estar
oitenta e cinco anos; para o Brasil de 2005 biopsicossocial uma de suas vertentes princi-
este índice já era de setenta e dois anos (Néri, pais, e para uma participação ativa e em se-
1995:36), o que contrasta enormemente com gurança de modo a aumentar a qualidade de
aquela expectativa de vida do século passado vida das pessoas que envelhecem.
de até uns sessenta e oito anos de idade. Importante destacar que o planejamen-
Envelhecer com saúde vem sendo, to estratégico desenvolvido no documento da
portanto, o atual desafio para este século XXI, OMS prioriza os direitos e já não tanto as ne-
como bem expressa a Organização Mundial cessidades do indivíduo idoso. Em outras pa-
de Saúde (OMS)1: lavras, o objetivo é a não paternalização do
indivíduo idoso, devendo ser estimulado a
"It is time for a new paradigm, one that uma participação conjunta tanto no plano de
views older people as active participants políticas públicas quanto na vida social e co-
in an age-integrated society and as ac- munitária. Os seus direitos passam a ser des-
tive contributors as well as beneficiaries taque, principalmente nos aspectos da igual-
of development.” (WHO, 2002:43)2 dade de oportunidade e do tratamento de saú-
de à medida que envelhece. No Brasil, a Polí-
A ciência já acumula pesquisas e estu- tica Nacional do Idoso, implementada em ja-
dos que oferecem algumas respostas sobre o neiro de 1994, mostra preocupação na formu-
que é ser idoso, o que é a velhice, e o que lação de uma política voltada para a velhice e
produz o envelhecimento humano. As dife- também para os que ainda irão envelhecer;
renças individuais, entretanto, por estarem através do seu 'Plano de Ação Governamental'
delimitadas por eventos de origem psicológi- (MPAS, 1996), a questão da prevenção é um
ca, sócio-histórica e genético-biológica, tra- dos destaques, justificado por tratar-se de a-
zem dificuldade para conceituar de um modo ções com menores custos e que produzem re-
homogêneo a tamanha heterogeneidade. sultados sociais melhores.
O conceito de saúde, redefinido pela Freitas e colaboradores (2001), a partir
Organização das Nações Unidas (ONU) em de uma consistente revisão da literatura cien-
1947 como um estado de completo bem-estar tífica sobre pesquisas em Gerontologia e Ge-
físico, psíquico e social, é conceituado em riatria, produzidas nos últimos vinte anos, a-
1994 pela Organização Mundial de Saúde pontam um equilíbrio nos estudos sobre a ve-
(OMS) como a busca de uma qualidade de lhice e o envelhecimento: 53,8% em Geriatria
vida: e 45,8% em Gerontologia. “Tal fato reforça o
sentido de que, na velhice, o declínio das ha-
"It is an individual perception of his or bilidades físicas e mentais não resulta somen-
her position in life in the context of the te das conseqüências do avanço da idade, mas
culture and value system where they também dos fatores socioculturais que contex-
live, and in relation to their goals, ex- tualizam o idoso”. Outra análise feita pelos
pectations, standards and concerns. It is autores diz respeito à ênfase das pesquisas na
a broad raging concept, incorporating in promoção de saúde através da educação para
a complex way a person's physical o autocuidado.
health, psychological state, level of in-
dependence, social relationships, per- Senescência e a capacidade funcional
sonal beliefs and relationship to salient

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Senescência é a condição humana de principalmente aqueles relativos à memória.


quem está envelhecendo. Há um consenso na Têm sido propostos diversos termos, tais co-
literatura científica para designar, com este mo: alteração de memória associada à idade;
termo, o envelhecimento humano normal, transtorno cognitivo leve; déficit cognitivo
sendo partes deste processo as alterações fun- leve; e etc., que alguns estudiosos do assunto
cionais, orgânicas e morfológicas. Já para o acreditam poderem ser condições intermediá-
envelhecimento patológico, senilidade é o rias entre o normal e o patológico. Por outro
termo mais utilizado, concorrendo às doenças lado, quando se intenta classificar as altera-
crônicas e/ou os quadros neurodegenerativos ções cognitivas leves (ACL) como distúrbios
que incapacitam ou restringem sobremaneira ou síndromes associados ao envelhecimento
a autonomia do indivíduo idoso. (Korten et al., 1997; Petersen et al., 1999,
Um estudo feito em janeiro de 1991, 2001; Elias et al., 2000), por exemplo, os re-
no Canadá (apud Papaleo Netto, 1996: 314), sultados das pesquisas não apresentam ex-
com uma população de idosos com mais de pressão significativa de modo a se poder infe-
75 anos, conclui que "quanto mais velho mai- rir que aquelas alterações venham a ser um
or a incidência de problemas relacionados à fator de risco para o desenvolvimento posteri-
saúde e ao desempenho das atividades da vida or de um quadro de demência. Isto porque as
diária quando comparado com grupos etários ACL não costumam comprometer as ativida-
de 60-64 anos e 65-74 anos". Esta pesquisa des sócio-ocupacionais e/ou as atividades diá-
confirma resultados semelhantes de estudos já rias, não mostram significância clínica, não se
realizados sobre a prevalência da demência enquadram nos critérios diagnósticos para
em idosos velhos; no Brasil, entre outras pes- síndromes demenciais ou transtornos psiquiá-
quisas, pode-se citar um estudo epidemiológi- tricos graves, e mais, somente a memória
co de 1998, realizada no interior de São Paulo primária (curto prazo) parece ser a função
e conhecido como ‘Estudo de Catanduva’ cognitiva atingida; em termos de tratamento
(Herrera Jr et al., 1998). clínico, ainda pouco se pode oferecer para
Segundo a Organização Mundial de modificar tal condição alterada. Destarte, não
Saúde (WHO, 2002), as doenças crônicas são se pode afirmar que o declínio das funções
causas significativas e custosas de incapaci- cognitivas globais seja típico do envelheci-
dade e de reduzida qualidade de vida; isto tan- mento, já que dados de pesquisas efetivadas
to para os países desenvolvidos como para os com idosos normais de idades até avançadas
países em desenvolvimento. Porém, "incapa- mostram-se inconclusos (Rubin et al., 1998).
cidades associadas com o envelhecimento e o A depressão é apontada em alguns estudos
início da doença crônica podem ser preveni- como causadora de problemas de memória e,
dos ou retardados" (WHO, 2002: 35). Enfati- em outros, como sendo um dos sintomas pri-
za o órgão governamental que o alerta para o mários de quadro demencial do tipo de Al-
envelhecimento patológico tem a ver com o zheimer. Apesar de ser considerada como o
fato de que o declínio na capacidade funcional segundo mais comum distúrbio psiquiátrico
pode ser prematuramente estimulado ou ace- na velhice (Wetterling e Junghanns, 2004),
lerado, bem como pode ser reversível em ainda mostra-se clinicamente inconcluso dis-
qualquer idade através de medidas individuais tinguir déficits cognitivos vistos na depressão
e das políticas públicas. com aqueles no demenciamento progressivo
Dentre os fatores precipitantes de in- (Lamberty e Bieliauskas, 1993; Flicker et al.,
capacidade funcional destaca-se a área cogni- 1993; Fischer et al., 2002).
tiva. Sua importância vem merecendo esfor- Em poucas palavras, se define falhas
ços por parte dos pesquisadores, em nível mnêmicas, popularmente conhecidas como
mundial, para estudar o perfil cognitivo do ‘falhas de memória’, como alterações funcio-
envelhecimento. Dada a heterogeneidade do nais genéricas quando não comprometem a
envelhecer, os estudos esbarram em dificul- autonomia e a independência de indivíduos
dades para classificar déficits cognitivos, idosos.

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A conhecida expressão de alerta dos o declínio funcional biológico, porém dispo-


estudiosos das Neurociências – ‘tudo que não nibilizar instrumentos que auxiliem na preser-
é usado é perdido’ vem a ser produto de inú- vação daquilo que é fundamental à condução
meros estudos e pesquisas sobre o funciona- da vida (qualidade de) no idoso: capacidade
mento cerebral. Citando alguns: Izquièrdo funcional. Manter esta capacidade na velhice
(2004: 46) comenta que “a maior parte dos significa, por conseguinte, otimizar recursos
esquecimentos resulta da falta de uso das si- que retardem a deterioração das habilidades
napses (...) o uso reiterado das sinapses causa individuais e/ou que expandam potenciais i-
o seu crescimento e sua melhora funcional”; néditos, dentro dos parâmetros normais con-
além disso, traça uma conexão direta entre siderados aceitáveis para esta população espe-
memórias e emocionalidade ao dizer que cífica.
“(…) os maiores reguladores da aquisição, da Capacidade funcional tem como prin-
formação e da evocação das memórias são cipais atributos a autonomia e a independên-
justamente as emoções e os estados de âni- cia, considerados como os fatores diferencia-
mo”. Ainda segundo este autor, “a atenção e a dores no resvaladiço terreno entre a senescên-
concentração são as capacidades mais exigi- cia e a senilidade.
das para tal” (2002: 12). Damásio (1996: 117) Consoante a Organização Mundial de
destaca a interação do organismo com o am- Saúde (WHO, 2002: 13), autonomia: “(…) is
biente, sendo suas relações “mediadas pelo the perceived ability to control, cope with and
movimento do organismo e pelos aparelhos make personal decisions about how one lives
sensoriais”, e onde “a comunicação dos seto- on a day-by-day basis, according to one's own
res de entrada entre si e dos setores de entrada rules and preferences". Independência, por
com os de saída não é direta, mas antes medi- sua vez, “(…) is commonly understood as the
ada pela utilização de uma arquitetura com- ability to perform functions related to daily
plexa de agregados de neurônios interligados” living – i.e. the capacity of living independ-
(Damásio, 1996: 119). Néri (1995) informa ently in the community with no and/or little
que pesquisas conduzidas por Baltes e colabo- help from others.”5
radores, no Instituto Max Planck4, apontam
para uma possível compensação de perdas Estilo de vida como indicador de saúde na
mnêmicas com treino da memória, associando velhice
os melhores resultados com boas condições
biológicas. Estudos conduzidos com animais A prática profissional junto à popula-
sobre novas experiências e mudanças nos pa- ção idosa costuma defrontar-se com queixas
drões neuronais corticais mostram que a expe- de falhas mnêmicas relatadas pelos próprios
riência muda preferências neuronais, a partir e/ou pelos seus familiares, preocupados com o
de novas aprendizagens; um desses estudos é espectro dos quadros demenciais. Descartados
o de Sheinberg e Logothetis (2001). os principais fatores precipitantes (hereditá-
Apesar dos esforços empreendidos a rios, alterações ou doenças orgânicas, indu-
produção científica, até o momento, exibe re- ções por substâncias), e quando não se encon-
sultados controversos quanto à possibilidade tra respaldo objetivo para as ditas queixas,
de falhas mnêmicas poderem servir como Figueiredo (2003) alerta para serem investi-
marcadores da condição do envelhecimento gados os aspectos psicossociais e comu-
humano para uma diferenciação entre uma nicacionais (relação eu-mundo); pois, muitas
condição benigna de declínio cognitivo e uma das vezes, a desarmonia nas emoções, a insu-
pré-morbidez demencial. O que se depreende ficiente estimulação intelectual e o retraimen-
dos vários estudos e pesquisas efetivados vem to na vida de relação podem ser os propulso-
reforçar a importância de se pensar o idoso a res de falhas mnêmicas, por efeito contraposto
partir do que ele preserva em si e do que é e de forma cumulativa. Canongia e colabora-
possível de ser otimizado. Para se ter uma ve- dores (2004) alertam para a morte em vida,
lhice saudável a questão central não é impedir caracterizada por um abandono existencial

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auto-imposto, isto é, pelo próprio indivíduo ce é o conceito que as pessoas têm de si mes-
idoso, tendo como pano de fundo as situações mas e não a presença de problemas ou indica-
vividas ao longo de sua existência, paralisan- dores clínicos". Néri (1995) discrimina a ve-
tes do seu viver pelo alto custo emocional en- lhice bem sucedida em perspectivas sociocul-
volvido. turais e individuais; no tocante a esta última,
Smits e colaboradores (1999) apontam diz que "[...] depende, pois, do delicado equi-
os fatores psicológicos e a capacidade cogni- líbrio entre as limitações e as potencialidades
tiva como fortes preditores do envelhecimento do indivíduo, o qual lhe possibilitará lidar,
ativo e da longevidade. Para esses autores, os com diferentes graus de eficácia, com as per-
declínios no funcionamento cognitivo são das inevitáveis do envelhecimento” (Néri,
disparados pelo desuso, enfermidades, fatores 1995: 34). Freire e Rezende (apud Néri, 2001)
comportamentais, fatores psicológicos e soci- entendem que velhice bem sucedida é um
ais, mais do que pelo envelhecimento em si. conjunto de recursos necessários à pessoa pa-
Bassuk e colaboradores (1999), face os resul- ra enfrentar eventos estressantes, envolvendo
tados de um estudo longitudinal, concluem habilidades e capacidade para solucionar pro-
que o desengajamento social é um fator de blemas, bem como a capacidade social. Re-
risco para o comprometimento cognitivo em sultados de pesquisas originadas do Seattle
adultos idosos. Herculano-Houzel (2002: 166) Longitudinal Study6 (Schaie, 1993) revelam
aponta a rotina e o cotidiano repetitivo em pertinente relação entre flexibilidade compor-
que estacionam alguns indivíduos como res- tamental e adaptação na velhice. Destes estu-
ponsáveis por pouco exercício para o cérebro. dos mencionados se depreende que a capaci-
“É sabido que problemas novos colocam para dade de adaptação a mudanças está direta-
funcionar muito mais neurônios no córtex do mente associada a altos graus de abertura à
que outros que podem ser resolvidos ‘sem experiência.
pensar’, no ‘modo automático’”. Bem-estar subjetivo, enquanto uma
Pode-se entender, então, porque estilo das vertentes do atual paradigma do ‘Enve-
de vida e cognição compartilham uma estreita lhecimento Ativo’ (WHO, 2002: 43), é consi-
relação: a redução da qualidade de um afeta derado pela literatura científica como um dos
diretamente a qualidade do outro. principais propulsores para a competência a-
A qualidade de vida na senescência daptativa7 do indivíduo idoso; isto porque en-
vem sendo uma preocupação hodierna da Ge- volve uma abertura à experiência e uma flexi-
rontologia, enfatizando-se a importância da bilidade comportamental.
promoção e prevenção de saúde. Pois, apesar Importante lembrar que mudanças no
de o declínio na capacidade funcional poder estilo de vida podem e devem ser estimulados
estar influenciado tanto por fatores ligados ao junto ao idoso, porém não é algo que se ad-
estilo de vida do adulto como ao seu ambiente quire no meio exterior. Estudos gerontológi-
externo, estudos conduzidos em diversos paí- cos concluem consensualmente para a impor-
ses, na área da biogerontologia, vêm apontan- tância de o indivíduo idoso ser o promotor de
do a supremacia do estilo de vida entre os fa- atitudes positivas que o levarão a enfrentar,
tores de saúde e longevidade, no processo de com qualidade, esta sua etapa evolutiva
envelhecimento. A OMS traça, em suas pu- (WHO, 2002; Silva, 2001; Baltes, 1994). As-
blicações, uma estreita relação entre manu- sim explica Wood, ao discorrer sobre mudan-
tenção de comportamentos favoráveis e enve- ças atitudinais (1994: 271): “Os seres huma-
lhecimento saudável (WHO, 2002). Conforme nos, ao mudarem as atitudes internas de suas
Silva (2001), a autonomia e a saúde mental mentes, podem mudar os aspectos externos de
são apontadas como contribuintes principais suas vidas”; este autor entende que estar-se
para a satisfação de viver, possibilitando a receptivo para mudanças advém, essencial-
vivência de uma velhice bem–sucedida. Gui- mente, de um processo sentido pelo indiví-
marães (1999: 100) afirma que "o maior indi- duo, de uma receptividade nem sempre cons-
cador do bem-estar na maturidade e na velhi- cientizada ou pronta - uma prontidão em po-

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 156-164 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

tencial. E. Rogers (1991: 166), ao conceituar rado em 23/03/2003, do endereço eletrônico:


o objetivo do processo do viver, argumenta: http://mpib-berlin.mpg.de/.
Bassuk, S.S; Glass, T.A. e Berkman, L.F.
“A ‘vida plena’ é um processo, não um (1999). Social disengagement and incident
estado de ser. É uma direção, não um cognitive decline in community-dwelling eld-
destino. A direção representada pela erly persons. Ann. Intern. Med., 131 (3), 165-
‘vida plena’ é aquela que é escolhida 73.
pelo organismo total, quando existe li- Canongia, M.B; Figueiredo, V.L.M.; Lima,
berdade psicológica para se mover em J.A.M.C. e Dias, K.P. (2004). Velhice e rou-
qualquer direção.” (grifos do autor) pagens da morte: reflexões para o profissional
de saúde {Resumo}. Em: Sociedade Brasilei-
Considerações finais ra de Geriatria e Gerontologia (Org.), Resu-
mos, XIV Congresso Brasileiro de Geriatria e
A linha divisória entre senescência e Gerontologia (p.45). Bahia: SBGG.
senilidade pode ser traçada a partir da capaci- Damásio, A.R. (1996). O erro de Descartes:
dade funcional e da cognição. Por outro lado, emoção, razão e o cérebro humano. 1ª Reim-
ao se focalizar promoção e prevenção de saú- pressão. São Paulo: Companhia das Letras.
de, o estilo de vida de um indivíduo idoso de- Debert, G.G. (1999). A reinvenção da velhice:
ve ser levado em alta consideração, dentre os socialização e processos de reprivatização do
outros indicadores de saúde. A revisão da lite- envelhecimento. São Paulo: Eduap-Editora da
ratura gerontológica efetivada aponta a impor- Universidade de São Paulo: FAPESP.
tância do estilo de vida para a qualidade do Elias, M.F.; Beiser, A.; Wolf, P.A.; AU, R.;
viver na velhice. White, R.F. e D'Agostinho, R.B. (2000). The
Deve ser salientado que estilo de vida preclinical phase of Alzheimer disease: a 22-
e bem-estar subjetivo são produtos da consci- year prospective study of the Framingham
entização do indivíduo de suas necessidades, cohort. Arch. Neurol., 57, 808-813.
desejos, limitações, potencialidades e, princi- Figueiredo, V.L.M. (2003, Novembro). Fa-
palmente, do grau de abertura individual à lhas mnêmicas: estudo e pesquisa por uma
aceitação e incorporação de novas experiên- perspectiva gerontológica Trabalho apresen-
cias; enquanto aspectos passíveis de oscila- tado no X Encontro Interdisciplinar sobre o
ções temporais necessitam de eventuais adap- Envelhecimento e o Idoso, Rio de Janeiro,
tações ou ajustamentos. Brasil.
A adaptação a este novo ciclo vital, Fischer, P.; Bailer, U.; Hilger, E. e Leitner, I.
para dar conta de transformações plurais que (2002). Depressive pseudodementia. Wien.
estarão acontecendo ao longo do processo de Med. Wochenschr., 152, 62-65.
envelhecimento, traz a necessidade de mu- Flicker, C.; Ferris, S.H. e Reisberg, B. (1993).
danças na postura frente à vida e o viver. Uti- A longitudinal study of cognitive function in
lizando-se as habilidades individuais e os po- elderly persons with subjective memory com-
tenciais ainda disponíveis (às vezes até mes- plaints. J. Am. Geriatr. Soc., 41, 1029-1032.
mo alguns inéditos), em forma de aprendiza- Freire, S.A. e Resende, M.C. (2001). Sentido
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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 156-164 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Notas
(1) As chamadas de citação para OMS constarão nas Referências bibliográficas sob a entrada World Health Organizati-
on.
(2) Tradução livre: "Já é tempo para um novo paradigma, aquele que vê as pessoas idosas como participantes ativos em
uma sociedade integrada etariamente, e como contribuintes ativos assim como beneficiários do desenvolvimento".
(3) Tradução livre: É uma percepção individual de sua (dele ou dela) posição frente à vida, no contexto cultural e no
sistema de valores onde vive, e em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e conceitos. É um amplo conceito,
incorporando de um modo complexo a
saúde física de uma pessoa, o estado psicológico, o nível de independência, as relações sociais, as crenças pessoais e a
relação com os aspectos relevantes no meio ambiente.
(4) Max Planck Institute for Human Development and Education. Berlim, Alemanha.
(5) Tradução livre: “Autonomia é a habilidade percebida para controlar, lidar com e tomar decisões pessoais sobre co-
mo se viver no dia-a-dia, de acordo com suas próprias regras e preferências". Independência, por sua vez, "é comumente
compreendida como a habilidade para desempenhar funções relacionadas ao viver diário, e.g., a capacidade de viver
independentemente na comunidade com nenhuma ou com pequena ajuda dos outros”
(6) Estudo longitudinal de Seattle.Trata-se de um estudo longitudinal investigativo de diferenças individuais e padrões
diferenciais de mudança para habilidades psicométricas selecionadas, efetivado ao longo de trinta e cinco anos, sobre o
desenvolvimento intelectual adulto.
(7) Termo utilizado por Freire (Néri e Freire, 2000: 24), que designa "{...} a capacidade generalizada para responder
com flexibilidade aos desafios resultantes do corpo, da mente, e do ambiente. {...} Como competência adaptativa, o
envelhecimento envolve a preservação e a expansão das reservas para o desenvolvimento pessoal".

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S u b me t i d o e m 1 6 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Revisão

Interação e construção: o sujeito e o conhecimento no construtivismo


de Piaget
Interaction and construction: the subject and the knowledge in the constructivism of Piaget

Isabelle de Paiva Sanchis e Miguel Mahfoud

Programa de Pós-graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia, Universidade Federal de


Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Resumo

O construtivismo de Piaget trata o conhecimento como uma construção, a partir da ação do sujeito,
numa interação com o objeto do conhecimento. Este artigo trata da importância da interação, na teoria
de Piaget, não apenas para a construção do conhecimento, mas também para a própria constituição e
construção do sujeito. São analisados os conceitos construtivistas que se referem aos mecanismos ge-
rais de funcionamento da inteligência, através dos quais as noções de interação e de construção podem
ser definidas; e aludidos conceitos presentes nas últimas obras de Piaget, com o objetivo de mostrar o
fio condutor entre os mecanismos mais gerais e mais específicos da inteligência humana como sendo a
ação, dentro de uma interação. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 165-177.

Palavras-chave: construtivismo de Piaget; sujeito; interação; conhecimento; cons-


trução.

Abstract

The constructivism of Piaget treats the knowledge as a construction, from the action of the subject, in
an interaction with the object of the knowledge. This article deals with the importance of the interac-
tion, in the theory of Piaget, not only for the construction of the knowledge, but also for the constitu-
tion and construction of the subject. The constructivists concepts related to the general mechanisms of
functioning of intelligence are analyzed, through which the notions of interaction and construction
can be defined; and concepts of the last workmanships of Piaget are alluded, with the objective to
show the permanence of the importance of the action, in a interaction, in his whole work. © Ciências
& Cognição 2007; Vol. 12: 165-177.

Key Words: constructivism of Piaget; subject; interaction; knowledge; construction.

Piaget, ao longo de sua obra, discutiu ria e Ilusões da Filosofia” (1965/1969); as re-
questões colocadas em diversas áreas da ciên- lações entre psicologia e pedagogia, em “Psi-
cia. Questões propriamente biológicas, em cologia e Pedagogia” (1969/1970b); ou ainda
seus primeiros trabalhos; sociológicas, como questões sobre a história da ciência, em “Psi-
em “Estudos Sociológicos” (1965/1973b); as cogênese e História da Ciência”
relações entre ciência e filosofia, em “Sabedo- (1983/1987a), em parceria com Rolando Gar-

 - I.P. Sanchis é Psicóloga e Mestre em Psicologia Social (UFMG). E-mail para correspondência:
isabellesanchis@yahoo.com.br.

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cia. Mas as questões que ocuparam a maior interação entre o sujeito e o mundo tem não
parte de sua produção e que nunca o abando- apenas um caráter construtivo, mas também
naram eram questões epistemológicas: o que é constitutivo.
o conhecimento, qual sua origem, como se
transformam o conhecimento e o sujeito do Gênese de uma teoria
conhecimento ao longo do tempo? As respos-
tas para essas perguntas foram buscadas por No construtivismo de Piaget, o pro-
ele através do ponto de vista do sujeito que cesso de construção do conhecimento confun-
conhece, visto como construtor e ao mesmo de-se com o próprio processo de constituição
tempo resultado desse processo. O fato de Pi- e de desenvolvimento do sujeito, na sua rela-
aget ter se preocupado com o que acontece no ção com o mundo, que é físico e ao mesmo
sujeito suscitou interpretações que tomam sua tempo simbólico. Esse sujeito se define como
teoria como uma psicologia cognitiva indivi- tal a partir do momento em que se constitui
dual. Como coloca Lajonquière (1997), há junto com o objeto do conhecimento, que não
interpretações que, mesmo reconhecendo a é apenas, nem necessariamente, físico. Dessa
importância da interação, reduzem-na a uma forma, falar em construção do conhecimento
interação entre duas realidades previamente significa falar ao mesmo tempo em constru-
separadas: o sujeito e a realidade. Queremos ção do sujeito que conhece e do objeto a ser
mostrar aqui que a interação está no funda- conhecido. Ambos “aparecem como resultado
mento mesmo da construção de um e outro de um processo permanente de construção”
pólo. (Coll, 1987: 186).
Através do método clínico, Piaget Piaget opôs-se ao mesmo tempo ao
buscou conhecer o desenvolvimento das for- apriorismo, que considera o processo de co-
mas de interação do sujeito com a realidade nhecimento como fruto de uma estrutura
(Delval, 2000), e a construção do conheci- pronta do sujeito; e ao empirismo, que parte
mento delas decorrente. A partir de 1936, com do princípio que o conhecimento provém ex-
“O Nascimento da Inteligência na Criança”, e clusivamente do que é externo ao sujeito. No
logo em seguida (1937) com “A Construção primeiro caso, o sujeito já nasce “pronto”;
do Real”, Piaget procurou pelo início do co- enquanto que no segundo, o sujeito é dissol-
nhecimento, pela passagem do biológico ao vido, se transforma no próprio objeto, por ad-
cognitivo através da interação mediada pela quirir como conhecimento uma cópia do real.
ação do sujeito dirigida ao objeto; e pela rela- Para ele, a natureza de todo conhecimento
ção que o sujeito e o objeto mantêm, cada um, consiste na constituição de uma relação entre
com a construção do conhecimento, como o sujeito e o objeto:
também um com o outro. É nesse momento
que ele coloca explicitamente a ação do sujei- “(...) o conhecimento repousa em todos
to, em uma interação com o objeto, como fon- os níveis sobre a interação entre o sujei-
te do conhecimento (Parrat-Dayan, 2006), a- to e os objetos, (...) mesmo quando o
inda que só fale explicitamente em sujeito e- conhecimento toma o sujeito como ob-
pistêmico mais tarde, no fim dos anos 50 jeto, há construções de interações entre
(Montangero e Maurice-Naville, 1994/1998). o sujeito-que-conhece e o sujeito-
Os conceitos fundamentais tratados nessas conhecido.” (Piaget, 1967b: 590, tradu-
obras, que se referem aos mecanismos mais ção dos autores)1
gerais de funcionamento da inteligência (a-
daptação, organização, assimilação e acomo- Isto significa, por um lado, que as es-
dação), já trazem a idéia de que o sujeito se truturas cognitivas do sujeito não estão pron-
constitui na interação com o objeto; e que é a tas ao nascer2, e por outro, que o sujeito co-
própria interação que permite a construção do nhece e interpreta o mundo a partir de estrutu-
sujeito, do objeto e do conhecimento. Idéia ras próprias, apesar de não serem estanques.
que permanece até sua última obra. Assim, a A palavra construtivismo se refere exatamente

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

a essa relação entre a estrutura e o processo Nestas duas obras, Piaget (1967/
que permite a transformação da própria estru- 1973a, 1936/1975c) trata detalhadamente do
tura. E esse processo se funda na interação que ele acredita ser a continuidade entre o bi-
entre o sujeito e o objeto, o que faz com que ológico e o intelectual, a partir de dois tipos
as estruturas sejam construídas ao mesmo distintos de fatores hereditários para o ser
tempo pelos dois, ou melhor, pela relação es- humano. No entanto, Piaget não fala de uma
tabelecida entre eles. A interação é mediada continuidade linear, e alerta para os reducio-
pela ação do sujeito. Ou seja, todo conheci- nismos possíveis decorrentes dessa interpreta-
mento está, em todos os níveis, ligado à ação: ção:
“Conhecer não consiste, com efeito, em copi-
ar o real, mas em agir sobre ele e transformá- “Há dois métodos que não devem ser
lo” (Piaget, 1967/1973a: 15), dentro de um seguidos. (...) o método que conduz a
sistema de interações. Como colocam Becker projetar nas estruturas ou fenômenos de
e Franco (1999: 7): “(...) o conhecimento se ordem inferior os caracteres das estrutu-
constitui na medida em que ele se desfaz - ele ras ou fenômenos de ordem superior
não é coisa, mercadoria, mas relação criada (inteligência, consciência intencional,
pela ação humana”. Isso significa que o co- etc); (...) ou o método que consiste em
nhecimento não é cumulativo. O que é estável suprimir as características originais dos
num determinado momento deve se desestabi- níveis superiores para reduzi-los de uma
lizar, para que um novo arranjo seja feito. E vez só (...) aos níveis inferiores (redu-
essa ação se dá através dos mecanismos sub- ção da compreensão inteligente a asso-
jacentes aos processos construtivos das estru- ciações condicionadas, etc). Nos dois
turas do sujeito, mais especificamente a assi- casos a comparação entre as funções
milação e a acomodação. Piaget define pela cognoscitivas e as formas elementares
primeira vez com precisão esses conceitos no de organização torna-se inoperante.”
momento em que procura pelas relações entre (Piaget, 1967/1973a: 51-52)
o funcionamento dos seres vivos em geral e a
inteligência, e quando busca compreender a O primeiro tipo de fator hereditário é
constituição do sujeito em seu início, num de ordem estrutural, e se refere ao sistema
processo que leva à construção de uma estru- nervoso e aos órgãos sensoriais, que colocam
tura sensório-motora. certos limites ao nosso conhecimento e à nos-
Mesmo que Piaget tenha abandonado sa percepção (e ao mesmo tempo possibilitam
os estudos propriamente biológicos, presentes a construção do conhecimento propriamente
em seus primeiros trabalhos, suas questões humana). Dessa forma, só conseguimos escu-
iniciais sobre a adaptação dos seres vivos tar um som, por exemplo, que esteja dentro de
permaneceram. Ao desenvolver sua teoria da uma determinada escala. Esses fatores estru-
epistemologia genética, buscou encontrar as turais influem na construção de noções fun-
relações entre o biológico, o psicológico e o damentais (como o espaço) de modo a res-
epistemológico. Sua obra “Biologia e Conhe- tringir as nossas possibilidades de percepção:
cimento” (1967/1973a), publicada original- “As nossas percepções são tão-somente aquilo
mente em 1967, tem essa preocupação explí- que são, entre todas as que seriam concebí-
cita em seu sub-título: “Ensaio sobre as rela- veis” (Piaget, 1936/1975c: 14). Já o segundo
ções entre as regulações orgânicas e os pro- tipo diz respeito ao funcionamento da inteli-
cessos cognoscitivos”. Mas já em “O Nasci- gência, e não à transmissão de uma ou outra
mento da Inteligência na Criança” estrutura específica. Esse funcionamento é
(1936/1975c), de 1936, 31 anos antes, essas traduzido pelas duas grandes invariantes fun-
relações são enfatizadas, principalmente na cionais: a adaptação e a organização, que,
introdução, com o título de “O Problema Bio- como diz Abib (2003), dizem respeito a uma
lógico da Inteligência”. propensão para a transformação e para a cons-

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trução de um sistema de relações e coordena- Os conceitos de inteligência e de in-


ções, respectivamente. tencionalidade só fazem sentido se referidos
A adaptação e a organização são as ca- ao ser humano. Pode-se falar em coordenação
racterísticas fundamentais de qualquer ser vi- de esquemas conceituais ou sensório-motores
vo. Mas, se: como inteligência, mas “nada disso se aplica
ao genoma” (Piaget, 1967/1973a: 53). E
“O organismo adapta-se construindo quanto ao conceito de intencionalidade3, ele
materialmente novas formas para inseri- só “tem sentido no caso da consciência, e não
las nas do universo, [a inteligência] pro- tem mais nenhum fora dos atos mentais.” (Pi-
longa tal criação construindo, mental- aget, 1967/1973a: 54).
mente, as estruturas suscetíveis de apli- A adaptação, na perspectiva de Piaget,
carem-se às do meio.” (Piaget, não significa um estado, e nem pressupõe um
1936/1975c: 15-16) equilíbrio com o ambiente, uma adequação do
sujeito com o meio. Pelo contrário, ela é o
E Piaget completa: próprio processo -dialético- que permite uma
transformação permanente, tanto de um, como
“Afirmar que a inteligência é um caso do outro. O processo de adaptação é regido
particular da adaptação biológica equi- por dois mecanismos, que supõem, ambos, a
vale, portanto, a supor que ela é, essen- ação do sujeito (por isso há transformação): a
cialmente, uma organização e que sua assimilação e a acomodação, que são “os dois
função consiste em estruturar o universo pólos de uma interação que se desenvolve en-
tal como o organismo estrutura o meio tre o organismo e o meio, a qual constitui a
imediato” (Piaget, 1936/1975c: 15, gri- condição indispensável de todo funcionamen-
fo nosso). to biológico e intelectual” (Piaget, 1937/
1975a: 328). Mas as formas biológicas de as-
Assim, se a inteligência estrutura o u- similação são hereditárias, enquanto que “a-
niverso, ele é o universo humano, que supõe o quilo que é característico das assimilações
mundo físico, assim como a cultura, as redes cognitivas é construir sem cessar novos es-
simbólicas, os valores, as relações e seus sig- quemas em função dos precedentes ou aco-
nificados (Becker, 2003; Ramozzi- modar os antigos” (Piaget, 1983/1987a: 246).
Chiarottino, 1997). Além do quê, não há uma Adaptação, nesse sentido, confunde-se
equivalência entre as funções gerais de qual- com a própria inteligência. Melhor dizendo, a
quer ser vivo e as funções especificamente inteligência seria a forma de adaptação huma-
humanas: na, que, enquanto assimilação, “(...) incorpora
nos seus quadros todo e qualquer dado da ex-
“(...) se as funções que caracterizam os periência” (Piaget, 1936/1975c: 17), conser-
mecanismos cognoscitivos fossem exa- vando o ciclo de organização anterior, e coor-
tamente as mesmas que as grandes fun- denando os dados para que seja possível in-
ções do organismo em geral, isto signi- corporá-los a esse ciclo. E enquanto acomo-
ficaria que o conhecimento não contém dação modifica o próprio ciclo já organizado,
nenhuma função própria. Daí decorreria de modo a responder às exigências do meio.
duas conseqüências igualmente absur- A inteligência, vista dessa perspectiva, se dis-
das, a saber, ou a inteligência já está tingue de uma concepção pré-formista, como
presente em todos os níveis da vida or- também daquela que a toma como o resultado
gânica, ou nada introduz de novo e não de um processo. Ela é o próprio processo.
contém, assim, nenhuma razão funcio- Tanto que os esquemas mesmos de ação “são
nal de desenvolvimento.” (Piaget, ‘formas’ da organização vital, mas formas
1967/1973a: 170) funcionais de estrutura dinâmica e não mate-
rial” (Piaget, 1967/1973a: 45). A adaptação
não é, então, o equilíbrio progressivo entre o

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sujeito e o meio, mas sim entre os mecanis- mundo, como entre os esquemas e as estrutu-
mos de assimilação e acomodação, através de ras próprias do sujeito. A possibilidade de o
um processo em que sujeito e objeto são cons- sujeito se constituir como tal, assim como o
truídos em parceria. Ela não tem como objeti- objeto, está na existência desta relação, sendo
vo atingir uma harmonia perfeita entre os su- que “(...) a atividade do sujeito é relativa à
jeitos e o mundo. Pelo contrário, supõe um constituição do objeto” e que há “uma inter-
desequilíbrio permanente, para que novas es- dependência irredutível entre a experiência e
truturas possam surgir. Significa, em suma, a a razão” (Piaget, 1936/1975c: 26). A própria
abertura para as possibilidades de compreen- conservação, procurada pela auto-
são e de relacionamento com o mundo. organização, diz respeito à transformação:
Apesar das diferenças de natureza que
separam a vida orgânica, a inteligência prática “Não se trata, porém, da manutenção de
ou a inteligência reflexiva, a adaptação em estados ou estruturas, mas, isto sim, da
todos os casos é possibilitada pela assimilação preservação do processo, ele mesmo, de
dos objetos (que também são de naturezas di- auto-organização: o que se preserva é a
ferentes) pelo sujeito4. E a partir daquilo que é invenção incessante de novas possibili-
incorporado, o sujeito se reorganiza de modo dades.” (Abib, 2003: 64)5
a se incorporar ao objeto:
Através desse duplo processo de adap-
“A assimilação nunca pode ser pura, tação e organização, e consequentemente da
visto que, ao incorporar os novos ele- assimilação e da acomodação, há uma relação
mentos nos esquemas anteriores, a inte- permanente entre estrutura e gênese, pois são
ligência modifica incessantemente os esses processos que permitem a construção
últimos para ajustá-los aos novos dados. das estruturas.
Mas, inversamente, as coisas nunca são As estruturas são construídas ao longo
conhecidas em si mesmas, porquanto do tempo através de um processo dialético.
esse trabalho de acomodação só é pos- Uma estrutura tem o caráter de totalidade, de
sível em função do processo inverso de transformação e também de auto-regulação
assimilação.” (Piaget, 1945/1975b: 18) (Piaget, 1970a). No entanto, Piaget reivindica
a todo momento a existência de um sujeito
A organização, segunda invariante como centro organizador das próprias estrutu-
funcional, caminha necessariamente junto ras:
com a adaptação, como a outra face de um
mesmo mecanismo. Nas palavras de Piaget, “Se as estruturas existem e comportam
ela é “(...) o aspecto interno do ciclo do qual a mesmo, cada uma, sua auto-regulação,
adaptação constitui o aspecto exterior” (Pia- fazer do sujeito um centro de funciona-
get, 1936/1975c: 18). Ou seja, enquanto a a- mento não significa reduzi-lo à posição
daptação diz respeito à relação do sujeito com de simples teatro, como o censurávamos
o que é exterior a ele (experiência), a organi- à teoria da Gestalt e não é voltar às es-
zação atua na relação do sujeito consigo pró- truturas sem sujeito, com as quais so-
prio (atividade racional), permitindo novas nham um certo número de estruturalis-
maneiras de adaptação, que por sua vez per- tas atuais? Se elas permanecessem está-
mitem novas formas de organização. Nenhum ticas, é evidente que seria este o caso.
esquema ou operação intelectual está desco- Porém, se por ventura se pusessem a es-
nectado de todos os outros. “Todo e qualquer tabelecer ligações entre si, de outro mo-
ato de inteligência supõe um sistema de im- do que por harmonia pré-estabelecida
plicações mútuas e de significações solidá- entre mônadas fechadas, então o órgão
rias” (Piaget, 1936/1975c: 19). A partir disso, de ligação volta a ser, de direito, o su-
pode-se ver que conhecimento significa ne- jeito.” (Piaget, 1968/1970a: 58)
cessariamente relação. Tanto do sujeito com o

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Ou seja, o sujeito existe apesar das es- Então, a constituição das estruturas
truturas, ou porque “de maneira geral, o ‘ser’ não pode “ser dissociada do desenrolar histó-
das estruturas é sua estruturação” (Piaget, rico da experiência” (Piaget, 1936/1975c:
1968/1970a: 114). Dessa forma, pode-se pen- 359). E essa importância da formação históri-
sar a relação entre o ser e o tornar-se como ca vem desde os esquemas mais elementares:
um dos pontos mais importantes do construti- “Um esquema resume em si o passado e con-
vismo piagetiano (Macedo, 1994). siste sempre, portanto, em uma organização
O processo dialético é caracterizado pela ativa da experiência vivida” (Piaget,
construção de “interdependências não estabe- 1936/1975c: 56). Piaget diz ainda “da impos-
lecidas até então entre dois sistemas, [de] in- sibilidade de divorciar qualquer conduta, seja
terdependências (...) entre as partes de um ela qual for, do contexto histórico de que ela
mesmo objeto” (Piaget, 1980/1996a: 199), de faz parte” (Piaget, 1936/1975c: 56).
superações que levam a uma nova totalidade. O construtivismo apresenta, por de-
Como também pela “intervenção de circulari- fender uma construção possibilitada pela inte-
dades ou espirais na construção das interde- ração, um modo de existir relacional, tanto do
pendências” e por desembocar em relativiza- sujeito quanto do objeto (Abib, 2003). Dessa
ções, já que “um caráter até então isolado” é forma, o objeto nunca é “coisa”, é sempre re-
posto “em relação com outros pelo jogo das lação, pois ele também depende da interação
interdependências” (Piaget, 1980/1996a: 198- para se constituir como objeto. Até mesmo
200). Isso significa que há interdependência características físicas de um objeto, por e-
em todos os níveis: entre a assimilação e a xemplo, o fato de ser sólido, é já um fenôme-
acomodação, entre os esquemas e também no constituído por sua relação com o sujeito.
entre as estruturas e a totalidade. Ou seja, a Não há outra maneira de perceber e significar
principal característica da dialética é a “cons- um objeto, a não ser a partir das estruturas e
trução de interdependências entre domínios da ação do sujeito. No entanto, isso não signi-
ou subsistemas concebidos anteriormente co- fica que o sujeito crie o objeto, independente
mo opostos ou sem relação entre si” (Mon- do próprio objeto, pois ele é, de fato, um dos
tangero e Maurice-Naville, 1994/1998: 72). dois pólos a constituir a relação.
Piaget refere-se ao papel da dialética como Em “A Construção do Real na Crian-
sendo o de constituir “o aspecto inferencial de ça”, Piaget trata especificamente desse ponto,
toda equilibração” (Piaget, 1980/1996a: 200), fundamental, do papel da relação na constitui-
sendo que a equilibração não é a manutenção ção do sujeito e do objeto, desde o nascimento
de um estado ou estrutura, mas sim um “pro- de toda criança:
cesso construtivo que conduz à formação de
estruturas” (Piaget, 1980/1996a: 200). O pro- “(...) assimilar significa, desde esse
cesso dialético gera superações (equilibração momento [em que se instaura um con-
majorante) que constituem uma mudança qua- junto de relações elaboradas pela ativi-
litativa em relação ao estado anterior, sem dade do sujeito com os objetos], com-
que, com isso, os elementos presentes anteri- preender e deduzir, e a assimilação con-
ormente deixem de fazer parte da nova orga- funde-se com a relacionação.” (Piaget,
nização: 1937/1975a: 7)

“Enfim, o construtivismo relacional ou E continua:


dialético, por sua dupla preocupação
com a totalização e a formação históri- “(...) o sujeito assimilador entra em re-
ca, é naturalmente levado a fazer a sín- ciprocidade com as coisas assimiladas:
tese entre as considerações de estrutura a mão que apanha, a boca que chupa ou
e de gênese.” (Piaget, 1967a: 1238, tra- o olho que observa, deixam de limitar-
dução dos autores)6. se a uma atividade inconsciente de si
própria; embora concentrada em si pró-

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pria; passam a ser concebidas pelo su- e os objetos, o primeiro não aprendendo
jeito como coisas entre coisas, manten- a se conhecer senão agindo sobre estes e
do com o universo relações de interde- os segundos só tornando-se conhecíveis
pendência.” (Piaget, 1937/1975a: 7) em função do progresso das ações exer-
cidas por eles.” (Piaget, 1974: 281-282,
Quando a criança nasce, o universo tradução dos autores)7
para ela não é composto por objetos perma-
nentes, presentes em um espaço objetivo; A progressiva construção do real (na
também as noções de tempo ou de causalida- medida em que há também construção do su-
de ainda não se constituíram. Mas desde esse jeito) implica a definição de dois conceitos de
momento ela começa a elaborar esse universo extrema importância para a constituição de
exterior, que vai sendo construído e identifi- uma noção de sujeito na teoria de Piaget: ob-
cado na medida em que ela identifica e cons- jeto e interação. Pois é precisamente através
trói a si própria: “(...) essa construção não é o da interação com o objeto do conhecimento
produto de uma dedução a priori, tampouco é que o sujeito se constitui. Como já dito, o ob-
devida às tentativas e explorações puramente jeto não pode ser considerado “coisa”, mas
empíricas” (Piaget, 1937/1975a: 90). E Piaget deve ser pensado como “um fragmento de
enfatiza a construção mútua: “(...) ao desco- cultura a ser reconstruído” (Lajonquière,
brir o objeto, a criança organiza seus esque- 1997, sem página), pois ele é um “objeto situ-
mas motores e elabora relações operatórias, ado ou intelectualizado por outras inteligên-
ao invés de sofrer passivamente uma pressão cias, mais ainda, ele é, por sua vez, um frag-
dos fatos” (Piaget, 1937/1975a: 90). A intera- mento da interação sujeito-objeto”
ção entre o sujeito e o objeto se refere tam- (Lajonquière, 1997, sem página). Além do
bém aos mecanismos que tornam possível o que, ele se torna objeto apenas quando o su-
conhecimento: jeito o constitui como significante (Piaget,
1937/1975a).
“(...) a interação do sujeito e do objeto é Se é através de sua relação com o ob-
tal, dada a interdependência da assimi- jeto que o sujeito se transforma, o objeto é,
lação e da acomodação, que se torna então, “a mediação entre o sujeito atual e o
impossível conceber um dos termos sem sujeito que se constrói a partir dessa interação
o outro.” (Piaget, 1936/1975c: 388) com o objeto” (Franco, 1999: 16). Lembran-
do-se também da constituição do sujeito para-
Piaget se refere, neste momento, a lela à constituição do real, não se deve pensar
uma organização prática do universo, numa a interação como sendo simplesmente a pre-
época em que a criança ainda não domina a sença simultânea de um sujeito e de um obje-
linguagem, que por sua vez está subordinada to. Piaget define o tipo de interação na teoria
ao exercício da função simbólica (Piaget, construtivista, contrapondo a outras visões
1945/1975b). No entanto, o desenvolvimento, que ele buscava combater:
em qualquer época da criança ou do adulto, se
dá de acordo com esse mesmo processo dialé- “(...) de fato em todas as epistemologias
tico de construção mútua (Piaget, 1936/1975a, clássicas, o conhecimento é interpretado
1945/1975b). A tomada de consciência, por sob o modo da contemplação ou do
exemplo, não é uma espécie de iluminação de pensamento, e o problema dos papéis do
algo que já existia e estava apenas escondido. objeto e do sujeito reduz-se então a de-
Ela é uma construção, que tem como funda- terminar se esse pensamento ‘especula-
mento uma interação mediada pela ação: tivo’ (no sentido estrito) se limita a a-
preender, sob a forma de um tipo de có-
“(...) o estudo da tomada de consciência pia, uma realidade exterior e ele, ou se
nos conduziu a colocá-la na perspectiva ele retira em parte esse conhecimento
geral da relação circular entre o sujeito dele próprio, enquanto fonte de estrutu-

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rações. A posição construtivista ou dia- o que contém, simultaneamente, um e outro.


lética consiste, ao contrário, em sua O sujeito do conhecimento
própria raiz, a considerar o conhecimen-
to como ligado a uma ação que modifi- “É subjectum, isto é, emerge das pro-
ca o objeto e que, por conseguinte, não fundezas de um organismo, mas não se
o atinge senão por intermédio das trans- reduz a esse organismo, pois interage
formações introduzidas por essa ação. com a cultura abstraindo - não só dessa
Nesse caso o sujeito não está mais fren- cultura, mas, sobretudo do resultado
te ao objeto, e num outro plano, olhan- dessa interação - os mecanismos de seu
do-o tal como ele é ou através de lentes desenvolvimento.” (Becker, 2003: 26)
estruturantes: ele mergulha no objeto
por seu organismo, necessário para a A partir das interações, o conhecimen-
ação, e reage sobre o objeto enrique- to se direciona simultaneamente para os dois
cendo-o com as contribuições da ação; pólos. Isto é, há um duplo processo de interio-
quer dizer que o sujeito e o objeto estão rização e exteriorização, na direção de uma
doravante situados exatamente no mes- compreensão do sujeito e do objeto, respecti-
mo plano, ou melhor, sobre os mesmos vamente. O sujeito se constrói, então, nesta
planos sucessivos ao longo das mudan- dupla relação de construção do conhecimento
ças de escalas espaciais e do desenrolar do outro e de si, na interação mesma com o
genético e histórico. Enfim, em princí- outro. Pode-se pensar num diálogo constante
pio, não há mais fronteira entre o sujeito do sujeito com o mundo e com sua própria
e o objeto (...).” (Piaget, 1967a: 1244, subjetividade, que se transforma por causa
tradução dos autores, grifo nosso)8 mesmo desse diálogo.
Daí a importância do conceito de ação
Vê-se, então, que o sujeito e o objeto na teoria piagetiana, pois é ela que faz a me-
do conhecimento não são construídos pela diação na interação do sujeito com o mundo, é
interação entre duas realidades previamente ela que permite haver a assimilação e a aco-
constituídas, estanques e separadas. Mais do modação, inclusive a assimilação da própria
que isso, a interação através da ação (assimi- interação. Mesmo a percepção só tem sentido
lação e acomodação) permite que tanto um se ligada às ações (Piaget, 1967/1973a: 16):
quanto o outro passem a ser conhecidos, não
simplesmente por suas próprias característi- “Perceber uma casa, dizia o neurologis-
cas, mas sim pelas características da relação ta v. Weiszäcker, não é ver um objeto
estabelecida entre elas: que entra pelos olhos, mas, ao contrário,
assimilar um objeto no qual se vai en-
“A inteligência não principia, pois, pelo trar”.
conhecimento do eu nem pelo das coi-
sas como tais, mas pelo da sua intera- Essa idéia é compartilhada por Piaget,
ção; e é orientando-se simultaneamente que coloca a ação como a explicação para o
para os dois pólos dessa interação que a papel da assimilação, que por sua vez “expri-
inteligência organiza o mundo, organi- me o fato fundamental de que todo o conhe-
zando a si própria.” (Piaget, cimento está ligado a uma ação (...)” (Piaget,
1937/1975a: 330, grifo nosso) 1967/1973a: 15). Uma ação que é na verdade
interação, pois não se dá no vazio, mas se di-
Pode-se definir a constituição do sujei- reciona para o objeto. Da mesma forma que
to se dando precisamente pela interação. Não um objeto não pode ser entendido como um
porque essa interação permita que o sujeito objeto apenas físico e sim como qualquer ob-
assimile o objeto; o mais importante é que ela jeto do conhecimento para o sujeito, a ação
possibilita a assimilação da própria interação, também deve ser considerada a ação humana
em todos os seus aspectos: “Ação física, ação

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simbólica, ação social, ação cultural, ação lin- dos tais quais do meio” (Montangero e Mau-
güística, ação concreta, ação formal, ação de rice-Naville, 1994/1998: 68). Assim, num
primeiro grau, ação de segundo grau...” (Bec- primeiro momento a construção das estruturas
ker, 2003: 53). A operação é uma ação, diz foi explicada apenas em termos de um fun-
Piaget, como também a reflexão (Piaget, cionamento geral dos seres vivos (mesmo que
1974/1996b, 1977/1995). Uma ação que é ao analisado em termos de um sujeito e um
mesmo tempo, e permanentemente, estrutura- mundo humano, com suas características pró-
da e estruturante. prias): a assimilação e acomodação. Neste
momento, passam a ser enfatizados modos de
Permanência e prospectiva de uma teoria construção do conhecimento específicos do
ser humano. Mas os novos conceitos introdu-
Piaget, através desses conceitos, dis- zidos nesta época aperfeiçoam, detalham e
cutia as relações entre a possibilidade de co- enriquecem os conceitos mais gerais, sem, no
nhecimento e o sujeito conhecedor. Um sujei- entanto, contradizê-los. Assim, por exemplo,
to epistêmico, nas suas palavras, abstrato e Piaget (1974) explica a tomada de consciência
universal, presente em todos os sujeitos reais, como uma reconstrução, necessária, na passa-
que se constitui na sua relação com o mundo. gem entre o inconsciente e a consciência, não
Essa relação não é uma relação qualquer, mas podendo ser reduzida a um simples processo
uma interação com o(s) objeto(s) do conhe- de iluminação. E insere este conceito também
cimento mediada pela ação do próprio sujeito, em suas conclusões mais gerais de que “o co-
que dessa forma assimila – não o objeto puro, nhecimento procede a partir, não do sujeito,
mas o resultado da interação – e acomoda-se, nem do objeto, mas da interação entre os
construindo, assim, novas estruturas de com- dois” (Piaget, 1974: 263)9. Novamente, pro-
preensão da realidade. Através de um proces- cura definir a posição construtivista, desta vez
so dialético, as estruturas são reconstruídas, apoiando-se na formação dos “possíveis”:
assim como também as estruturas do mundo
na medida em que este adquire significado “Para justificar nossa epistemologia
para o sujeito. Isto é, para falar em constitui- construtivista contra o inatismo ou o
ção do sujeito, faz-se necessário falar em empirismo, não é suficiente mostrar que
constituição do objeto e construção do conhe- todo conhecimento novo resulta de re-
cimento, pois é exatamente nesse processo – gulações, de uma equilibração portanto,
de uma determinada relação de um sujeito pois sempre se poderá supor que mesmo
com um objeto, tendo como resultado o co- o mecanismo regulador é hereditário
nhecimento - que surge, se constitui e se cons- (...), ou ainda que resulta de aprendiza-
trói qualquer sujeito. Os mecanismos funda- gens mais ou menos complexas. Procu-
mentais de adaptação (ou seja, assimilação e ramos, por isso, abordar o problema da
acomodação) e de organização traduzem, res- produção de novidades de outro modo,
pectivamente, o diálogo do sujeito com o centrando as questões na formação dos
mundo externo e consigo próprio, que é tam- ‘possíveis’.” (Piaget, 1981/1985: 7)
bém o duplo processo resultante da interação.
Estrutura e gênese não podem ser dissociadas, Pois o possível “não é algo observá-
já que não existem estruturas inatas/prontas. vel, mas o produto de uma construção do su-
Elas se constroem, na medida mesmo em que jeito” (Piaget, 1981/1985: 7), que interage
há construção de conhecimento. E têm, no com o objeto, mas que o insere em interpreta-
sujeito, seu centro organizador. ções devidas à sua própria atividade sobre ele.
Piaget passa a se preocupar mais, nas A obra “Vers Une Logique des Signi-
últimas décadas de sua produção, com a ex- fications” (Piaget e Garcia, 1987b)10 traz a
plicação para o aparecimento de conhecimen- idéia de que existe uma lógica das significa-
tos realmente novos, não sendo “nem prede- ções (baseada na ação) que precede a lógica
terminados no espírito do sujeito nem retira- dos enunciados. Isso significa que, uma ação

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não sendo nem verdadeira nem falsa, as im- mento gerou diversas críticas, como por e-
plicações entre as ações são suscetíveis de xemplo a de Boesch11, que aponta para uma
verdade ou falsidade. A lógica das significa- insuficiência na teoria de Piaget, justamente
ções estaria fundada, então, sobre as implica- por se concentrar nesses aspectos lógicos:
ções entre as ações, ou entre as significações,
pois toda ação ou operação é carregada de “Podemos, como Piaget demonstrou,
significações para o sujeito. Talvez este con- estudar a construção de conceitos lógi-
ceito traga uma relação mais próxima entre cos amplamente sem levar em conta as
forma e conteúdo. Mas pode-se ver a idéia de ações que levaram a eles. Entretanto, se
significação do objeto pelo sujeito já contida quisermos olhar para resultados indivi-
no conceito de assimilação, pois todo conhe- dualmente ou culturalmente diferentes
cimento supõe uma assimilação, que “consiste do processo de construção, não pode-
em conferir significações (...) ao que é perce- mos divorciá-los das experiências nas
bido ou concebido” (Piaget, 1967/1973a: 17). quais estão baseados. A ação se torna
E a significação é ligada à ação: assim um conceito de muito maior im-
portância do que Piaget alguma vez te-
“A importância da noção de assimilação nha a ela atribuído.” (citado por Simão,
é dupla. De um lado implica, como aca- 2002: 116)
bamos de ver, a noção de significação, o
que é essencial, pois todo conhecimento No entanto, Piaget mostrou a impor-
refere-se a significações (...). Por outro tância da ação precisamente (ou até mesmo)
lado, exprime o fato fundamental de que para a construção de conceitos lógicos. Não
todo o conhecimento está ligado a uma apenas para a construção do conhecimento,
ação (...).” (Piaget, 1967/1973a: 14-15) mas para a própria constituição do sujeito:

A assimilação, ao permitir a significa- “O intermediário entre os objetos e os


ção, constrói novos conhecimentos, mas está acontecimentos, por um lado, e os ins-
também em no fundamento mesmo de qual- trumentos cognitivos, por outro lado, é
quer conhecimento: de facto, como foi possível verificar por
diversas vezes, a acção. O modo como a
“Julgar (...) é assimilar, isto é, incorpo- acção participa no processo de conhe-
rar um novo dado a um esquema anteri- cimento, na perspectiva própria da epis-
or, num sistema de implicações já ela- temologia genética, dá a esta posição
borado. Portanto, a assimilação racional epistemológica um sentido preciso, que,
supõe sempre, é verdade, uma organiza- ao mesmo tempo que converge para
ção prévia. Mas donde vem essa organi- uma linha de pensamento já clássica em
zação? Da própria assimilação, pois to- filosofia dialética, confere-lhe entretan-
do conceito e toda relação exigem um to uma identidade em si própria, na me-
julgamento para se constituírem.” (Pia- dida em que a prática é analisada nas
get, 1936/1975c: 382) suas acções constituintes que aparecem
então como factores essenciais no ponto
Piaget procurou encontrar, por um la- de partida do processo cognoscente.”
do, as estruturas cognitivas do sujeito e, por (Piaget e Garcia, 1983/1987a: 228)
outro, o funcionamento da inteligência que
permite a construção do conhecimento, e das A ação, portanto, é fundamental, mas
próprias estruturas. Isto é, um sujeito univer- também seu contexto, já que todo esquema é
sal que se direciona para a aquisição de uma “uma organização ativa da experiência vivi-
lógica capaz de interpretar o mundo, de forma da” (Piaget, 1936/1975c: 56), e que qualquer
cada vez mais abrangente. O olhar de Piaget ação de um sujeito “é sempre coordenada por
voltado para os aspectos lógicos do conheci- outros porque não existem acções isoladas,

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[sendo que] os seus significados são sempre Referências bibliográficas


solidários” (Piaget, 1983/1987a: 247). Na a-
ção está também implicada a significação, Abib, J.A.D. (2003). O Sujeito na Epistemo-
pois o objeto é conhecido pelo sentido atribu- logia Genética. Disponível no endereço ele-
ído a ele. O sujeito adquire conhecimento dos trônico: http://72.14.207.104/search?q=cach
objetos em contextos determinados, “com o e:4vgR0iSorwJ:www.scielo.br/pdf/pe/v8n2/v
tipo de significados sociais que lhe são atribu- n2a06.pdf+abib+sujeito+genetica&hl=ptBR&
ídos” (Piaget, 1983/1987a: 244). Afinal, como gl=br&ct=clnk&cd=1.
diz o próprio Piaget: “o que é a criança em si Becker, F. (2003). A Origem do Conhecimen-
mesma se não existem crianças a não ser em to e a Aprendizagem Escolar. São Paulo:
relação a certos meios coletivos bem determi- Artmed.
nados?” (Piaget, 1965/1973b: 26). A ação não Becker, F. e Franco, S.R.K (1999). Introdu-
é realizada em função de impulsos internos; ção. Em F. Becker; S.R.K. Franco (Orgs.).
pelo contrário: Revisitando Piaget. (pp.5-8). Porto Alegre:
Mediação.
“na experiência da criança, as situações Coll, C. (1987). As Contribuições da Psicolo-
com as quais ela se depara são engen- gia para a Educação: Teoria Genética e A-
dradas pelo seu ambiente social envol- prendizagem Escolar. Em L. Banks-Leite
vente, as coisas aparecem em contextos (Org). Piaget e a Escola de Genebra. (pp.
que lhe conferem significados particula- 164-197). São Paulo: Cortez.
res.” (Piaget e Garcia, 1983/1987a: 228) Delval, J. (2000). Hoje todos são Construti-
vistas. Em: Assis, M.C. e Assis, O.Z.M.
Em conclusão, o mais fundamental é (Orgs.). Construtivismo e Prática Pedagógi-
que essa ação se dá numa interação que não ca. (pp. 25-34). Campinas: UNICAMP-FE-
permite apenas a construção do conhecimen- LPG.
to, mas que é constitutiva do próprio sujeito: Flavell, J.H. (1975). A Psicologia do Desen-
as “relações entre o sujeito e seu meio consis- volvimento de Jean Piaget. (M.H.S. Patto,
tem numa interação radical” (Piaget, Trad.). São Paulo: Pioneira. (Original publi-
1936/1975c: 386). O sujeito aparece, assim, cado em 1965).
“imerso num sistema de relações” (Piaget e Franco, S.R.K (1999). Piaget e a Dialética.
Garcia, 1983/1987a: 244), que se dá com os Em: Becker, F. e Franco, S.R.K. (Orgs.). Re-
objetos e com os outros sujeitos. Mas os pró- visitando Piaget. (pp.9-20). Porto Alegre:
prios objetos não são “puros”, não são “defi- Mediação.
nidos por seus parâmetros físicos” (Piaget e Lajonquière, L. (1997). Piaget: Notas para
Garcia, 1983/1987a: 228). Eles são já constru- uma Teoria Construtivista da Inteligência.
ídos em função de outras interações, carrega- Psicologia USP, 8 (1), 131-142. Retirado em
dos de significações construídas por outros 28/03/2006, do endereço eletrônico:
sujeitos. Pode-se pensar então em uma inter- http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art
subjetividade constituinte, a partir da qual o text&pid=S0103-65641997000100008
sujeito se constrói, ao mesmo tempo que o Macedo, L. (1994). Ensaios Construtivistas.
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Piaget se aproxima do sujeito ao pensar na Montangero, J. e Maurice-Naville, D. (1998).
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gar, de fato, da construção. e na Educação: Uma Avaliação. Promovido

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Notas

(1) “(...) la connaissance repose à tous les niveaux sur des interactions entre le sujet et les objets, (...) même quand la
connaissance prend le sujet comme objet, il y a construction d’interactions entre le sujet-qui-connaît et le sujet-connu.”
(2) Isto não quer dizer que não haja, nesse momento, nenhuma estruturação. Mas os esquemas reflexos com os quais a
criança nasce irão se transformar em esquemas de ação prática ou mental, que por sua vez se coordenarão em formas de
estruturas de fato, cada vez mais complexas, que permitirão outras formas de relacionamento com o mundo.
(3) “A intencionalidade define-se pela consciência do desejo, ou da direção do ato” (Piaget, 1975c, p.146), ou então
pela “direção global do ato” (Piaget, 1974). Segundo Flavell (1975), Piaget considera a intencionalidade como uma das
características distintivas da inteligência humana.
(4) Piaget distingue a assimilação presente no processo de construção do conhecimento da assimilação físico-química:
“a assimilação é apenas uma noção funcional e não estrutural. (...) é, pois, evidente que a assimilação cognoscitiva deve
representar formas completamente diferentes(...)” (Piaget, 1973a, p71).
(5) Piaget enfatiza esse ponto tanto em “O Nascimento da Inteligência na Criança”, como em “O Estruturalismo”.
(6) “Enfin, le constructivisme relationnel ou dialectique par sa double préoccupation de la totalisation et de la formation
historique est naturellement conduit à faire la synthèse entre les considérations de structure et de genèse.”

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(7) “(...) l’étude de la prise de conscience nous a conduit ainsi à la replacer dans la perspective générale de la relation
circulaire entre le sujet et les objets, le premier n’apprenant à se connaître qu’en agissant sur ceux-ci et les seconds ne
devenant connaissables qu’en fonction du progrès des actions exercées par eux”.
(8) “(...) en fait dans toutes les épistémologies classiques, la connaissance est interpreté sur le mode de la contemplation
ou de la pensée, et le problème des rôles de l’objet ou du sujet revient alors sans plus à déterminer si cette pensée
‘spéculative’ (au sens propre) se borne à appréhender, sous la forme d’une sorte de copie, une réalité estérieur à elle, ou
si elle tire en partie cette connaissance de son propre fonds, en tant que source de structurations. La position
constructiviste ou dialetique consiste au contraire, en son principe même, à considérer la connaissance comme liée à une
action qui modifie l’objet et qui ne l’atteint donc qu’à travers les transformations introduites par cette action. Em ce cas
le sujet n’est plus face à l’objet, _et sur un autre plan_, à le regarder tel qu’il est ou à travers des lunettes structurantes: il
plonge dans l’objet par son organisme, nécessaire à l’action, et réagit sur l’objet en l’enrichissant des apports de
l’action; c’est à dire que le sujet et l’objet sont désormais situés exactement sur le même plan, ou plutôt sur les mêmes
plans successifs au fur et à mesure des changements d’échelles spatiales et des déroulements génétiques et historiques.
Em bref, il n’y a plus en droit de frontière entre le sujet et l’objet (...)”.
(9) “la connaissance procède, non pas du sujet, ni de l’objet, mais de l’interaction entre les deux”.
(10) Piaget faleceu antes de poder terminá-la.
(11) Boesch, E.E. (1991). Symbolyc Action Theory and Cultural Psychology. Berlin, Heidelberg: Apringer, Verlab.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
S u b me t i d o e m 2 4 / 0 9 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Ensaio

O que é ser humano?


What is to be a human being?

Luiz Antonio Botelho Andrade, a, Edson Pereira da Silvab e Eduardo Passosc


a
Departamento de Imunobiologia, Instituto de Biologia, Universidade Federal Fluminense (UFF),
Niterói, Rio de Janeiro, Brasil; bLaboratório de Genética Marinha, Departamento de Biologia Mari-
nha, UFF, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil; cDepartamento de Psicologia, ICHF, UFF, Niterói, Rio de
Janeiro, Brasil

Resumo

Este artigo tenta mostrar que o humano do ser humano é mais o resultado de um devir do que o apo-
geu de um acabamento biológico capturado e engessado por uma concepção tipológica de espécie. A
partir do processo evolutivo e de algumas etapas da evolução humana, ressalta-se a importância da so-
ciabilidade para o surgimento da linguagem articulada e desta para a explosão da inventividade huma-
na, o surgimento da cultura e a emergência da autoconsciência. © Ciências & Cognição 2007; Vol.
12: 178-191.

Palavras-chave: australopithecus; autoconsciência; cultura; evolução; linguagem;


ser humano.

Abstract

This essay tries to demonstrate that the adjective “human” attached to the term “human being” is not
given as the result or the end of the biological process; it can not be understood under a typological
concept of species. Using the evolutionary process and especially some of its steps, the importance of
the sociability to the development of language which explains the explosion of human creativity, the
appearance of the culture and the emergence of the self-consciousness is underlined. © Ciências &
Cognição 2007; Vol. 12: 178-191.

Key Words: australopithecus, self-consciousness, culture, evolution, language, hu-

 - L.A.B. Andrade é Doutor em Imunologia (Instituto Pasteur, França). Atua como Professor Adjunto do Departa-
mento de Imunobiologia, Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da Faculdade de Educa-
ção da UFF. O professor Andrade se dedica ao estudo e desenvolvimento das idéias de Humberto Maturana e Francis-
co Varela à educação. Endereço para correspondência: Departamento de Imunobioloiga, Instituto de Biologia, Outeiro
São João Batista, s/n, Campus do Valonguinho, Niterói, RJ, Brasil. E-mail para correspondência:
labauff@yahoo.com.br. E.P. Silva é Doutor em Genética (Universidade de Wales-Swansea). Atua como Professor
Adjunto do Instituto de Biologia e Chefe do Laboratório de Genética Marinha (UFF), onde trabalha com genética de
populações utilizando métodos moleculares. O professor Edson é responsável por artigos científicos nas áreas de Ge-
nética e Evolução, bem como sobre a epistemologia e aprendizagem nestas áreas. Endereço para correspondência:
Laboratório de Genética Marinha, Instituto de Biologia, UFF, Niterói, RJ, Brasil, 24.001-970. E-mail para correspon-
dência: gbmedson@vm.uff.br. E. Passos é Doutor em Psicologia (Universidade do Rio de Janeiro). Professor Associ-
ado I do Departamento de Psicologia (UFF). Atua como Professor na Graduação e Pós-graduação (Departamento de
Psicologia, UFF). Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia, Instituto de Ciências Humanas e Filo-
sofia, Campus do Gragoatá, s/n, bloco O, segundo andar, UFF, Niterói, RJ. E-mail para correspondência:
e.passos@superig.com.br.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

man being.

1. Introdução los registros fósseis encontrados, tudo indica


que essas pegadas pertenceram a dois indiví-
O principal objetivo deste ensaio é duos da espécie Australopithecus afarensis
ressaltar o devir e o inacabamento biológico e (Johanson e Edey, 1981).
histórico do ser humano usando, para tanto, o A partir de várias evidências fósseis,
ferramental teórico da Biologia do Conhecer os especialistas deduziram que o A. afarensis
(Maturana e Varela, 1990, 1997; Maturana, possuía um cérebro pequeno, se comparado
1997). Assim, para dar início à nossa emprei- ao do homem moderno, mas de igual tamanho
tada intelectual, analisamos a questão coloca- ao cérebro de um macaco. Sua estatura corpo-
da no título desse artigo a partir de duas eta- ral era, também, pequena, sendo os machos
pas importantes do processo evolutivo huma- maiores e mais pesados do que as fêmeas. Os
no, a saber: (a) do andar bípede ao gênero dentes caninos dos machos eram significati-
Homo e (b) do gênero Homo ao Homo sapi- vamente maiores do que os das fêmeas, acen-
ens, para alcançar a questão que nos interessa tuando o dimorfismo sexual. Como caracterís-
discutir: (c) do Homo sapiens ao vir a ser hu- tica comum da espécie, as mandíbulas do A.
mano. Ou seja, o que é ser humano? afarensis se projetavam mais para frente
Na primeira parte, chamaremos aten- (prognatismo) do que em qualquer outra es-
ção para o bipedismo e para algumas espécies pécie pertencente à família hominídea. Com
de australopitecos situadas em pontos chave relação às suas proporções corporais - inter-
do processo de hominização. Na segunda par- mediárias entre o macaco e o homem - os bra-
te, destacaremos o surgimento dos artefatos ços eram muito longos em relação às pernas e
de pedra lascada e as características anatômi- o antebraço longo e forte. Essas característi-
cas e comportamentais de algumas espécies cas, combinadas com a curvatura dos ossos
do gênero Homo, chamando atenção para a dos dedos das mãos e dos pés (falanges),
dispersão desse gênero para fora da África, permitiam aos membros dessa espécie uma
berço da humanidade. Na terceira e última grande agilidade para subir em árvores, à se-
parte, avançaremos a idéia e discutiremos a melhança dos macacos. Pela análise de todos
questão de que o humano do ser humano é os fósseis encontrados até agora, datados de
mais o resultado de um devir do que o apogeu 3,8 e 2,9 milhões de anos atrás, o A. afarensis
de um acabamento biológico capturado e en- atravessou um período de mais ou menos um
gessado por uma concepção tipológica de es- milhão de anos, sem muita mudança (Leakey,
pécie. Assim, ao invés de darmos ênfase à 1995; McHenry e Coffing, 2000; Klein e Ed-
corporalidade do Homo sapiens, ressaltare- gar, 2005).
mos o devir, ou seja, o vir a ser humano. Embora alguns estudos demonstrem
que a marca temporal de 3,6 milhões de anos
2. Do andar bípede ao gênero Homo para o bipedismo deva ser recuada no tempo
evolutivo, nenhuma demonstração do andar
Nossa aventura poderia começar com bípede é mais convincente do que os registros
a descoberta de uma trilha de vinte e sete me- fósseis deixados pelo A. afarensis (Klein e
tros de comprimento com pegadas deixadas Edgar, 2005). O leitor poderá indagar agora:
por dois indivíduos que caminharam juntos muito bem, macacos bípedes, mas por que o
numa superfície mole de cinzas vulcânicas bipedismo é tão importante?
que endureceu por volta de 3,6 milhões de Várias hipóteses têm sido propostas
anos atrás. Haja vista as marcas feitas pelo para responder a pergunta acima formulada:
calcanhar, pelo arco das plantas dos pés e pelo (a) adaptação às savanas, (b) vigília contra a
dedão não-opositor, as pegadas de outrora se ação de predadores, (c) aumento da eficiência
assemelham ao andar bípede humano, de ago- locomotora, (d) liberação das mãos para o
ra (Leakey, 1995). Pela marca temporal e pe- transporte de alimentos ou da prole (McHenry

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

e Coffing, 2000, Klein e Edgar, 2005). Embo- descobriu que se batesse uma pedra contra a
ra todas estas hipóteses sejam plausíveis, elas outra, de maneira adequada, produziria lascas
se apóiam em um argumento muito questio- finas capazes de penetrar e cortar o couro de
nável em biologia – o finalismo. Por tanto, na um animal morto, podendo, assim, descarná-
ausência de uma boa explicação, nos resta um lo completamente. Essa descoberta aumentou
consolo, ou melhor, um consenso: o bipedis- consideravelmente as chances de sobrevivên-
mo constituiu uma novidade evolutiva impor- cia desta espécie e da linhagem que a sucedeu
tante uma vez que a linhagem de macacos bí- (McHenry e Coffing, 2000, Klein e Edgar,
pedes diversificou e proliferou. Além disso, 2005).
depois de iniciado o bipedismo, o processo de Esta tecnologia primitiva de produção
hominização “sempre caminhou por dois destes artefatos é denominada de indústria
pés”. olduvaiana, em referência ao importante sítio
Embora ainda exista um debate sobre arqueológico conhecido como a “Garganta de
o provável ancestral do gênero Homo (Asfaw Olduvai”, na Tanzânia, onde muito destes ar-
et al., 1999), algumas simplificações podem tefatos foram encontrados (Leakey, 1995;
ser feitas sem comprometer os objetivos desse McHenry e Coffing, 2000; Klein e Edgar,
ensaio – ênfase no processo de humanização. 2005).
Nesse sentido, é importante ressaltar a desco- Se por um lado é certo que o Homo
berta de fragmentos de um hominídeo desco- habilis produziu e utilizou artefatos de pedra
berto em Afar, na Etiópia, em 1999. Esse ma- lascada, não é evidente, por outro, que esse
terial foi datado em 2,5 milhões de anos e, comportamento possa ser chamado de cultura,
após análise, classificado como uma “nova” no sentido que discutiremos no próximo tópi-
espécie - Australopithecus garhi (Asfaw et co. Um forte argumento para não incluir a
al., 1999). Como afirmam vários autores, essa produção destes primeiros artefatos de pedra
espécie se encontra no lugar certo e na locali- no legado cultural da humanidade é o fato de-
zação temporal correta para ser considerada les terem sido produzidos, por mais de um
como um possível ancestral do gênero Homo. milhão de anos, sem nenhuma variação.
O primeiro registro fóssil do gênero Voltando aos registros fósseis do gê-
Homo – um pedaço de crânio - foi encontrado nero Homo, é importante ressaltar a descober-
por Jonathan Leakey na garganta Olduvai, ta do esqueleto de uma criança - o menino de
Tanzânia, África (Leakey, 1964). A pouca Turkana - que media aproximadamente 1,62
espessura relativa do crânio indicou que este metros quando morreu, mas que poderia atin-
indivíduo tinha uma constituição ligeiramente gir cerca de 1,80 metros, se tivesse sobrevivi-
mais leve do que qualquer uma das espécies do até a idade adulta. Esse fóssil foi classifi-
conhecidas de australopitecíneos. Ele tinha cado como Homo ergaster (McHenry e Cof-
dentes molares menores e, o que é mais signi- fing, 2000, Klein e Edgar, 2005). Os mem-
ficativo, seu cérebro era quase 50% maior bros dessa espécie apresentavam as mesmas
(650 cm3) do que o cérebro de qualquer outro proporções corporais mostradas pelos seres
australopiteco já encontrado (350 cm3). Ele humanos atuais no que tange ao tamanho e
recebeu o nome de Homo habilis - homem proporções entre braços e pernas. Com rela-
habilidoso - pela grande correlação temporal e ção ao volume do cérebro, estimado em 880
estratigráfica existente entre os registros fós- cm3, ele era maior do que o do H. habilis (650
seis dessa espécie e os primeiros artefatos de cm3) e menor do que o do homem moderno
pedra lascada (Leakey, 1995; Klein e Edgar, (1.350 cm3), em valores absolutos.
2005). A descoberta do fóssil do menino de
Turkana teve um grande valor para a paleon-
3. Do gênero Homo ao Homo sapiens tologia e antropologia. Assim como Lucy
(fóssil de A. afarensis) não deixou dúvida
Em torno de dois milhões e quinhentos quanto ao fato de pertencer à categoria dos
mil anos atrás uma criatura bípede e franzina macacos bípedes, o menino de Turkana, i-

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gualmente, não deixou dúvida quanto ao fato perativo entre macho e fêmea tenha aumenta-
de pertencer à linhagem que deu origem aos do também a atenção e o cuidado dispensado
humanos. Algumas de suas características e- à prole, teremos assim o embrião do núcleo
videnciam isto: testa chata e recuada; nariz familiar, fundamental ao processo de humani-
projetado para frente, com narinas orientadas zação, como discutiremos mais adiante.
para baixo. Nesse ponto, diferenciava-se do Acredita-se que o H. ergaster – que
H. habilis, que possuía narinas embutidas no significa homem trabalhador – tenha sido o
rosto, semelhantes às dos macacos. Apesar ancestral comum do H. erectus e do H. hei-
das mandíbulas serem muito projetadas para delbergensis (McHenry e Coffing, 2000; Kle-
frente e os dentes de mastigação significati- in e Edgar, 2005). As características do Homo
vamente maiores do que os nossos, as feições ergaster e do Homo erectus são tão similares
do menino de Turkana forneceram uma de- entre si que alguns autores preferem a deno-
monstração inequívoca a respeito da estrutura minação de “complexo ergater/erectus”. Ou-
corporal de nossos antepassados (McHenry e tros utilizam de critérios temporais e geográ-
Coffing, 2000, Klein e Edgar, 2005). ficos para fazerem a distinção entre essas es-
Uma característica marcante do H. er- pécies e, assim, consideram a emergência do
gaster - a diminuição do comprimento dos Homo ergarter como anterior à do Homo e-
braços, em relação às pernas - assinala o a- rectus e restringem, ao primeiro, o espaço ge-
bandono final de qualquer utilização tipica- ográfico que constitui o continente africano.
mente símia das árvores, seja para alimento É importante ressaltar que os indiví-
ou para refúgio. É importante ressaltar que a duos das espécies Homo ergaster, Homo erec-
exclusividade da vida no solo significou uma tus e Homo heidelberguensis possuíam uma
ênfase maior no andar bípede, o que poderia anatomia, uma fisiologia e uma tecnologia
explicar, no decorrer do tempo evolutivo, o (corpo robusto, inclusão da caça na dieta,
estreitamento dos quadris. Nas fêmeas, esse produção de artefatos de pedra e uso do fogo)
estreitamento acarretou, também, o estreita- que lhes permitiam andar por longas distân-
mento do canal vaginal, a diminuição do tem- cias e, portanto, migrar e habitar territórios
po de desenvolvimento intra-uterino, o nas- nunca dantes ocupados. Assim, por exemplo,
cimento precoce e, por conseguinte, a expan- o Homo erectus chegou à China e à Indonésia
são da neotênia e uma maior dependência do e, por algum desvio para o norte e/ou oeste,
recém nascido aos seus progenitores (Leakey, chegou, também, à Europa.
1995; McHenry e Coffing, 2000; Klein e Ed- Com relação ao domínio tecnológico
gar, 2005). Estas duas últimas conseqüências demonstrado pelo complexo ergaster/erectus,
serão ressaltadas quando discutirmos o pro- há de se remarcar um novo tipo de artefato de
cesso de humanização. pedra, mais sofisticado, o machado de mão,
Alguns autores enfatizam a existência em forma de lágrima. Há registros deste tipo
de uma relação inversa entre o dimorfismo de utensílio em vários sítios arqueológicos na
sexual e o comportamento cooperativo. Essa África, datados de cerca de 1,4 milhões de
idéia é fortalecida pela observação de que, em anos. Os arqueólogos chamam a produção
algumas espécies de símios, quando os ma- deste novo tipo de utensílio de indústria a-
chos são muito maiores do que as fêmeas, eles cheulense, em alusão ao sítio arqueológico de
tendem a competir intensamente entre si pelas Saint Acheul, localizado na França, onde este
fêmeas sexualmente receptivas, mas não esta- mesmo tipo de produção industrial foi encon-
belecem com as mesmas o que os especialis- trado, em uma versão temporalmente posteri-
tas denominam de relações cooperativas. As- or. Embora a forma do machado de mão já
sim, é sugestivo pensar que, pari passo à re- exija um modelo mental para produzi-lo, não
dução do dimorfismo sexual em nossa linha- consideramos que esse seja ainda o ponto de
gem, intensificou-se o comportamento coope- inflexão para o desencadeamento da explosão
rativo entre macho e fêmea. Se imaginarmos da inventividade humana e o surgimento da
que a intensificação do comportamento coo- cultura. Há de se destacar, no entanto, que

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independente da discussão acadêmica sobre a em pelo menos três levas, uma em torno de 25
inclusão ou não da indústria acheulense no mil e as outras duas em torno de 15 e 12 mil
conceito de cultura, a confecção dos macha- anos atrás (Groves, 1994; Klein e Edgar,
dos de mão e o fogo aumentaram ainda mais a 2005).
chance de sobrevivência da linhagem que Embora saibamos que o Homo sapiens
dominou essas técnicas, seja pela utilização substituiu os seus contemporâneos Homo ne-
das mesmas como proteção, seja pelo enri- andertalensis - que já se encontravam na Eu-
quecimento alimentar, com maior aporte pro- ropa, ainda há um debate acadêmico a respei-
téico à dieta, derivado das atividades de caça to de como essa substituição ocorreu (Groves,
animal e preparação do alimento. 1994).
Voltando ao processo evolutivo da li-
nhagem humana, destacaremos agora o sur- 4. Do Homo sapiens ao vir a ser humano
gimento do Homo heidelbergensis (600 a 500
mil anos atrás). Essa espécie parece ter evolu- Neste tópico, advogaremos que o aper-
ído, abruptamente, no complexo ergas- feiçoamento da linguagem, em algum período
ter/erectus. Alguns autores mostraram que o de nossa pré-história mais recente, produziu
Homo heidelbergensis compartilhava traços uma dimensão inteiramente nova para o Ho-
primitivos comuns, tanto com Homo ergaster mo sapiens - a cultura. Seguindo essa linha
quanto com o Homo erectus, incluindo o rosto argumentativa, demarcaremos o surgimento
largo e projetado um pouco para frente, man- da linguagem, a explosão da inventividade
díbula inferior sem queixo, dentes grandes, humana e o principal ponto deste ensaio – o
extensas arcadas superciliares, osso frontal processo de humanização.
(testa) chato e baixo, parede craniana grossa. Tendo anunciado a nossa linha argu-
Por outro lado, divergia do H. ergaster e do mentativa para este tópico, iniciaremos com
H. erectus sob vários aspectos: cérebro relati- alguns comentários sobre a linguagem, a par-
vamente grande, medindo 1.200 cm3, maior tir do paradigma da Biologia do Conhecer.
do que o do ergaster (900 cm3) e do erectus Assim, no âmbito desse paradigma, a lingua-
(1000 cm3), arcadas superciliares mais curvas gem é um processo progressivo de orientação
- em oposição à arcada em forma de prateleira e re-orientação de condutas entre indivíduos,
(Leakey, 1995; McHenry e Coffing, 2000; ou seja, uma coordenação de coordenação
Klein e Edgar, 2005). condutual consensual (Maturana, 1997). Mas
As evidências arqueológicas sugerem o que é uma coordenação de coordenação
que o Homo heidelbergensis foi o ancestral condutual consensual? Como ela se estabele-
comum que deu origem às espécies Homo sa- ce? Qual o seu significado para a humaniza-
piens e Homo neandertalensis. A primeira ção? Para responder essas questões, propore-
evoluiu na África, há cerca de 180 mil anos mos um exemplo, um cenário. Imaginemos
atrás. Os registros fósseis do H. neandertalen- uma situação de caça em que o animal caçado
sis, no entanto, foram encontrados principal- (touro enfurecido) é muito mais forte do que o
mente na Europa, mas já se demonstrou sua caçador (hominídeo). Visto assim, a única
dispersão para fora deste continente, particu- maneira do caçador obter sucesso nessa difícil
larmente na Ásia. empreitada é através de um “chamamento”,
A biologia molecular e alguns marca- da formação de um coletivo. No entanto, esse
dores genéticos (DNA mitocondrial) sugerem coletivo só terá sucesso se as ações individu-
que uma pequena população da espécie H. ais estiverem, relativamente, coordenadas.
sapiens emigrou, com sucesso, para fora da Cabem aqui dois comentários impor-
África em torno de 70 mil anos atrás. Essa tantes para nossa discussão. No primeiro, as-
pequena população proliferou e se dispersou sumimos como pressuposto que os artefatos
para várias partes do mundo tais como a Eu- até então produzidos por esse hominídeo não
ropa, a Ásia e também a América. A chegada tinham o valor de armas com suficiência para
neste último continente parece ter ocorrido superar a dificuldade dessa caça específica -

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um pressuposto razoavelmente plausível. Em Deixando os exemplos lingüísticos,


segundo lugar, é preciso ressaltar que o nos propomos agora a imaginar situações e/ou
“chamamento” diz respeito à coordenação de cenários que pudessem, num passado longín-
coordenação de condutas e não ao fato de se quo, favorecer a recorrência de encontros e de
encontrar um parceiro, uma vez que o com- re-encontros entre nossos antepassados e, as-
portamento societário é comum a várias espé- sim, possibilitar o surgimento da linguagem.
cies, particularmente nos mamíferos. Embora nunca possamos ter certeza de como
Chamamos a atenção do leitor para o era a vida diária dos nossos antepassados, po-
fato de que, a todo o instante, nós, seres hu- demos utilizar nossos conhecimentos atuais
manos, coordenamos as nossas condutas com para imaginar e recriar alguns cenários, como
as de outra pessoa. Se essa observação for um esses que estão propostos logo a seguir.
pouco mais aguçada veremos que, a todo o
momento, novas coordenações são geradas 4.1. Redução do dimorfismo sexual e socia-
sobre as primeiras e, assim, sucessivamente. bilidade
A esse processo recursivo de coordenar uma
ação sobre outra, já coordenada - como se Embora possamos detectar um grau de
déssemos uma volta sobre a volta – pode ser sociabilidade em todos os primatas, este fe-
denominado “coordenação de coordenação”. nômeno é particularmente bem desenvolvido
Há de se fazer agora um comentário impor- entre os humanos. Para explicar o aumento de
tante para o entendimento da unidade básica relações cooperativas entre os machos e as
da linguagem, qual seja: uma coordenação de fêmeas, chamaremos atenção para a ocorrên-
coordenação de ação entre dois indivíduos só cia de uma relação inversa entre dimorfismo
ocorre se houver, em ambos, uma vontade, sexual e sociabilidade.
um desejo e a partir daí um consenso. Como É bem conhecido pelos primatologis-
toda ação humana é conduta, chega-se, com tas que, em muitas espécies de macacos,
isso, à unidade básica da linguagem: uma co- quanto maior a diferença corporal entre ma-
ordenação de coordenação condutual consen- chos e fêmeas, maior será a competição entre
sual (Maturana, 1997). os machos maduros por oportunidades de aca-
Dito isto, voltemos ao nosso exemplo salamento. Assim, por exemplo, entre os ba-
anterior no qual os caçadores primitivos en- buínos das savanas, os machos são duas vezes
frentam um touro enfurecido. Advogamos maiores em tamanho do que as fêmeas e se
que, para se obter sucesso nessa empreitada observa que eles competem fortemente entre
arriscada, aqueles caçadores de outrora já de- si por domínio territorial e por oportunidades
veriam estar imersos em alguma rede lingüís- de acasalamento. Os machos de chipanzés,
tica, mesmo que rudimentar, na qual gestos, por outro lado, apresentam um comportamen-
disposições corporais, grunhidos ou mesmo to mais cooperativo entre si e isto parece ser o
algum tipo mais elaborado de som, se torna- resultado da redução, nessa espécie, do di-
ram palavras no devir, ou seja, na recursivi- morfismo sexual (Leakey, 1995; Klein e Ed-
dade do próprio processo. gar, 2005). É importante ressaltar que outros
A partir desta reflexão, podemos ima- fatores, além da redução do dimorfismo sexu-
ginar pequenas conversações, gestuais ou so- al, devem ter contribuído para a sociabilidade
noras, do tipo: nos primatas, dentre os quais, a própria sexua-
lidade, como demonstrado por Frans B. M. de
- Oi! - Olá! (coordenação); Waal (2007), ao comparar o comportamento
- Veja o touro! - Onde? - Atrás! (coordenação dos chipanzés com o dos bonobos.
de coordenação) Sabendo-se que os machos australopi-
- Vamos correr! Não, vamos pegá-lo (conduta tecíneos seguiam o mesmo padrão dimórfico
consensual). dos babuínos, é razoável supor que a coopera-
ção entre eles fosse menor do que àquela que
ocorreu, supostamente, nas espécies do gêne-

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ro Homo, com a redução do dimorfismo sexu- marcante estreitamento da pélvis e, por con-
al. Seguindo essa linha de raciocínio, acredi- seguinte, do canal vaginal, podemos inferir
ta-se que as mudanças fisiológicas e compor- que o nascimento precoce significou uma
tamentais que ocorreram nas fêmeas ao longo vantagem adaptativa em face de uma alta taxa
da linhagem evolutiva humana, fazendo com de mortalidade durante o nascimento. Se as-
que as mesmas se tornassem mais receptivas sim o foi, tornou-se fundamental uma maior
sexualmente aos machos, independentemente atenção dos pais para com a prole excessiva-
do período fértil, possam ter contribuído para mente frágil. Se aceitarmos que a expansão da
o aumento da freqüência dos encontros e dos neotênia e tudo que ela implicava (e ainda
reencontros entre macho e fêmea e, por con- implica) desencadearam mudanças emocio-
seguinte, do estabelecimento de um compor- nais mais perenes, de aceitação sem maiores
tamento mais cooperativo entre ambos. Se exigências, e que essas mudanças foram con-
acrescentarmos a esse prazer do encontro co- servadas transgeracionalmente, isto explicaria
operativo a dinâmica que envolvia o cuidado o aumento da sociabilidade entre humanos e,
dispensado à prole, teremos o surgimento do de acordo com o que estamos defendendo a-
núcleo familiar. qui, o ambiente adequado ao surgimento da
linguagem. O correspondente dessa emoção
4.2. O amor como emoção fundamental pa- fundamental de aceitação do outro, enquanto
ra a sociabilidade legítimo outro, na convivência, é denomina-
do, na nossa cultura, de amor.
Para discutir a assertiva explicitada a-
cima, é importante entender que as emoções, 4.3. Cooperação em atividades complexas,
diferentemente do que a nossa tradição cultu- perigosas ou prazerosas
ral costuma associar com sentimentos, são
disposições corporais (ou estados do corpo) Assim como foi mostrado no exemplo
que nos abrem ou nos fecham à possibilidade da caça ao touro, a cooperação deve ter sido
de realizar certas condutas (Bloch, 2002; Ma- benéfica para a linhagem evolutiva que levou
turana e Bloch, 2003). Assim, por exemplo, ao homem moderno. Alguns antropólogos
não se espera uma conduta gentil no âmbito argumentam que a cooperação deve ter sido
emocional do ódio. importante não só para a coesão e sociabilida-
Destarte, quando o amor é apontado de do grupo, mas também como defesa contra
como emoção fundamental para a construção predadores ou mesmo contra grupos rivais.
da sociabilidade, não se está falando de sen- Outra atividade complexa, que deve ter en-
timento, mas apontando a disposição corporal volvido uma mudança organizacional centra-
que permitiu, ao primata bípede, a aceitação da na sociabilidade e na recursividade dos en-
do outro, de forma mais intensa e perene, na contros, deve ter sido aquela produzida pela
convivência. E porque o amor seria assim tão construção e utilização de abrigos coletivos.
importante para a sociabilidade e para a hu- Se acrescentarmos a esses abrigos o conforto
manização? Fundamentalmente, porque o gerado com o domínio do fogo - aquecimento,
amor permitiu o prazer na espontaneidade dos possibilidade de um sono ininterrupto, prepa-
encontros e dos reencontros e, assim, a convi- ração da carne e o seu compartilhamento - a
vência ininterrupta entre humanos (Maturana, convivência e a sociabilidade deve ter sido
1997). muito intensificada. O fogo criou o lar, este
Seguindo essa linha de raciocínio que espaço de convivência onde ocorriam o parti-
considera o amor como emoção fundamental lhar de alimentos, a elaboração de ferramentas
para a convivência (Maturana, 1997), retorna- de pedra, a proteção mútua, as relações sexu-
remos ao ponto de discussão sobre o nasci- ais e todo um sistema complexo de reciproci-
mento precoce do bebê e a expansão da neo- dade e cooperação. Acreditamos que o estabe-
tênia. Se considerarmos que durante o proces- lecimento e a perenidade destes espaços de
so evolutivo da linhagem humana houve um convivência favoreceram aquilo que veio a

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surgir bem mais tarde no tempo evolutivo: o mos, simplesmente, afirmando que essa cor-
aperfeiçoamento da linguagem. poralidade, por si só, não é suficiente.
É importante explicitar neste ponto de Interessa-nos a discussão que na litera-
nossa argumentação que não estamos advo- tura se apresenta como o caso das “crianças
gando que a convivência tenha induzido mu- selvagens”. São casos de crianças criadas sem
danças genéticas que levaram ao aperfeiçoa- contato, ou com muito pouco contato com
mento da linguagem. Estamos simplesmente outros seres humanos. Linnaeus, em seu Sys-
dizendo que a conservação transgeracional tema Naturae, de 1758, já descrevera seis ca-
deste modo particular do viver na linguagem, sos do que ele designou de Homo ferus, elo
facilitou a fixação de mudanças genéticas que perdido entre o homem e os primatas, que o
reforçaram esse mesmo modo de viver (Matu- naturalista buscava recuperar. Malson (1967)
rana e Podozis, 1992), ou seja, o fluir do viver distingue, entre as crianças selvagens, aquelas
humano, na linguagem. que foram criadas por animais daquelas que
foram enclausuradas e/ou privadas do contato
4.4. Aperfeiçoamento da linguagem humano, como são os casos de Victor de A-
veyron, encontrado vivendo sozinho nos Piri-
Como sugere Maturana (1997), a lin- neus, no ano de 1799, e de Kasper Hauser,
guagem originou-se na intimidade de peque- jovem que vivia confinado em Nuremberg e
nos grupos de nossos antepassados que con- que foi descoberto em 1828.
viviam na sensualidade, compartilhando ali- Há registros de 105 casos encontrados
mentos, na participação dos machos na cria- em diferentes regiões do mundo, sendo a Ín-
ção das crianças e nas coordenações de coor- dia o país onde se tem notícias do maior nú-
denações de conduta que isso implicava. A mero deles. Embora se possa crer que estes
essa rede cooperativa da comunidade lingüís- registros sejam todos antigos, alguns casos
tica, subjaz o amor como emoção básica que recentes contraria esta crença. Assim, em
possibilitou tanto a aceitação quanto a legiti- 2004, foi identificado na Rússia um menino
midade do outro, fundado na relação. criado por cães e, logo no ano seguinte, em
Embora esta história transgeracional 2005, foram registrados seis casos de crianças
de interações recorrentes, própria da lingua- selvagens que viviam enclausuradas nos
gem, tenha surgido lenta e paulatinamente em EUA, Alemanha, Romênia, Quênia e Índia
nossa linhagem evolutiva, advogaremos agora (http://www.feralchildren.com).
que o surgimento da linguagem falada ou o Aprofundaremos nossa discussão nar-
seu aperfeiçoamento produziu a explosão da rando a história de duas crianças hindus que
inventividade humana. Essa hipótese tem sido foram “resgatadas” de uma família de lobos
levantada por vários antropólogos, dentre os com a qual elas viviam no norte da Índia. Elas
quais Diamond (1997). Este autor afirma que foram criadas isoladas de qualquer contato
a linguagem, em si mesma, já é pura inven- humano e “resgatadas” da família lobo pelo
ção: cada sentença é uma nova invenção, pro- reverendo anglicano J. Singh, em 1920.
duzida pela combinação de elementos familia- Quando elas foram resgatadas, uma das meni-
res. nas tinha cerca de oito anos e a outra era mui-
to mais jovem. Elas foram transferidas para o
4.5. O vir a ser humano orfanato dirigido pela família do missionário
e lá receberam o nome de Amala, a mais jo-
Neste subitem reforçaremos a idéia de vem, e, a outra, de Kamala.
que o humano do ser humano surge com a Quando foram transferidas para o or-
dinâmica relacional própria do modo de viver fanato, as meninas não sabiam andar em dois
humano. Não queremos dizer com isso que pés, mas se moviam com desembaraço an-
estamos negando a corporalidade do Homo dando de quatro. Elas não sabiam falar, comi-
sapiens ao fazer referencia ao humano, esta- am carne crua, lambiam os líquidos e se ani-
nhavam, de quando em vez, nos cantos do

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quarto. À noite, quando ficavam mais ativas, (Malson, 1967; Newton, 2002). Embora Ka-
uivavam e gemiam com o desejo de fugirem. mala tenha aprendido a falar algumas dezenas
Elas rejeitavam o contato humano, preferindo de palavras e a andar com os dois pés, a famí-
a companhia uma da outra ou de cães. O gos- lia do reverendo teria dito que eles nunca a
to quase exclusivo por carne levava Kamala a sentiram, verdadeiramente, humana.
caçar frangos para comê-los e, de quando em Este relato demonstrou que a triste
vez, enterrava as carcaças ou entranhas no condição de Amala e Kamala não era devida
chão. Com o passar do tempo, Kamala mudou a uma incapacidade física ou mental inata,
seus hábitos alimentares e seus ciclos de ati- mas, principalmente, à ausência do contato
vidade (Malson, 1967; Newton, 2002). humano e/ou do modo de viver humano, nu-
Amala morreu em setembro de 1921, ma fase precoce da ontogenia. Ou seja, em-
um ano após a sua transferência para o orfa- bora as meninas-lobo possuíssem a anatomia
nato, enquanto Kamala sobreviveu por mais e a fisiologia do Homo sapiens, elas não pu-
oito anos, vindo a morrer em 1929. deram compartilhar a dinâmica relacional
Depois da morte das duas crianças, o humana em uma janela importante do desen-
reverendo Singh descreveu a evolução psico- volvimento – a primeira infância.
lógica de Amala e Kamala. Considerando que Interessa-nos perguntar, neste ponto
tanto o bipedismo quanto a linguagem são de nossa discussão, que dinâmica relacional é
pontos importantes para a nossa discussão, essa que nos faz humanos? Muitos autores
nos limitaremos a transcrever, a partir das formularam esta pergunta e a responderam
observações do reverendo Singh, algumas utilizando referenciais de natureza mais filo-
poucas passagens que consideramos ilustrati- sófica (Heidegger, 1982; Nietzsche,
vas e marcantes. 1873/1974), científica (Morin, 1979; Matura-
Com relação ao refinamento da motri- na, 1992; Changeaux, 1985) ou religiosa (Sto
cidade e do andar, o reverendo disse: “pro- Tomáz de Aquino, 1258/1973). Para respon-
gressiva e muito lentamente a motricidade da dê-la, vamos nos basear nas contribuições ad-
criança humanizou-se”. Ao fim de dez meses vindas do arcabouço teórico da Biologia do
no orfanato, Kamala estendia a mão para so- Conhecer (Maturana, 1997; 2000; Maturana e
licitar alimentos. Depois de um ano e quatro Bloch, 2003).
meses (fevereiro de 1922), ela conseguiu se Assim, para a Biologia do Conhecer,
erguer com o auxílio de um apoio. Um ano o humano e toda construção humana, ideal e
mais tarde conseguiu ficar de pé, sem o auxí- material, se dá com e na linguagem (Matura-
lio de apoio. Em dezembro de 1926 conse- na, 1997, 2000). Como nos mostra Maturana
guiu andar com os dois pés, com certa desen- (1997), o humano surge no entrelaçamento
voltura. Entretanto, voltava a assumir a mar- do linguajar e do emocionar, a que chamamos
cha lupina e a correr de quatro toda vez que de conversar. Destarte, nós, membros da es-
ela se sentia em apuros (Malson, 1967; New- pécie Homo sapiens, nos tornamos humanos
ton, 2002). ao viver no entrecruzamento de muitas redes
Com relação à linguagem, Kamala a- de conversações, de muitos domínios opera-
prendeu a pronunciar duas palavras: “ma” cionais (Maturana, 1992). Se aceitarmos que
que significava mãe, ao referir-se à esposa do o conversar é o entrelaçamento do linguajar
missionário, e “bhoo” para exprimir fome ou com o emocionar, segue-se que as redes de
sede. Em 1923, dizia sim ou não com a cabe- conversações em que vivemos interferem na
ça e já pronunciava oralmente o sim - “hoo”. dinâmica entre o nosso ser e o nosso atuar.
Em 1924, conseguiu expressar “eu quero ar- Nesta ótica, fica mais fácil entender a trans-
roz” (“am jab bha”). Em 1926, já dominava formação do homem no devir das redes de
três dezenas de palavras e quando estas lhe conversações que ele mesmo configura. Ou
faltavam, recorria aos gestos. Já no final de seja, atuamos de acordo como somos, mas
sua vida, em 1929, dominava cinqüenta pala- também somos de acordo como atuamos (Ei-
vras, reconhecendo o nome das pessoas cheveria, 1994).

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própria reflexividade, ou autoconsciência,


4.5.1. Surgimento da Cultura surgem com a linguagem.
Ainda que seja muito forte afirmar
Se aceitarmos que o humano é consti- que a linguagem da arte surge com a arte da
tuído no conversar, o viver humano se dá linguagem, muitos autores corroboram com
como uma rede de conversações ou, de uma esta afirmação (Leakey, 1995; Charbonnier e
forma mais ampla, na trama de várias redes Lévi-Strauss, 1989). A seguir apresentaremos
de conversações. Estas diferentes redes de alguns exemplos dessa correlação.
conversações constituem o que nós aponta- Dentre as várias manifestações artísti-
mos como diferentes culturas. cas, daremos prioridade às pinturas rupestres
Nessa perspectiva e de acordo com surgidas no período conhecido como paleolí-
essa linha argumentativa, se um grupo hu- tico superior. Assim, os rinocerontes dese-
mano mantiver, recursivamente, uma rede de nhados a carvão, os touros e os cavalos mul-
conversações relativamente durável no tem- ticoloridos encontrados em várias cavernas
po, estaremos diante de uma cultura. Como a da Europa - Lascaux, Chauvet, Altamira, etc.
conversação implica tanto o linguajar quanto - são exemplos da resplandecência dessa arte
o emocionar, há de se incluir as emoções na e do comportamento simbólico de nossos an-
definição de cultura. Assim: tepassados (Leakey, 1995; Klein e Edgar,
2005).
“uma cultura é uma rede de conversa- Com relação às pinturas rupestres, du-
ções que define um modo de viver, um as questões interessantes podem ser formula-
modo de estar orientado no existir, um das: como explicar o surgimento das mesmas
modo de crescer no atuar e no emocio- e porque elas levaram um tempo evolutivo
nar. Cresce-se numa cultura vivendo longo para se manifestar? Embora estas duas
nela como um tipo particular de ser questões sejam difíceis de responder, alguns
humano na rede de conversações que a autores sugerem a existência de uma relação
define.” (Maturana, 1997) direta entre as pinturas rupestres e os diversos
rituais culturais que as ensejavam tais como a
Não queremos afirmar que toda a cul- fartura da caça, a criação de ambientes propí-
tura humana possa ser reduzida à linguagem. cios à entoação de cantos, acompanhados ou
Estamos afirmando apenas que não há ne- não por instrumentos musicais, de motivação
nhum lugar fora da linguagem desde o qual mais imanente ou transcendente e o xama-
podemos observar a cultura. Como nos mos- nismo (Leakey, 1995; Klein e Edgar, 2005).
tra Echeverría (1994), somente através do Com relação ao longo intervalo de
mecanismo de reconstrução lingüística é que tempo que levou para o surgimento das mani-
podemos ter acesso aos fenômenos não- festações artísticas e simbólicas, alguém po-
linguísticos de nossa existência. deria tentar explicá-lo, seja pela ausência de
Assim, no contexto que estamos dis- matéria prima disponível aos “artistas poten-
cutindo, a linguagem humana não somente ciais de outrora”, seja pela insuficiência de
precede todas as características apontadas um desenvolvimento sensório-motor mais
como indicadoras da cultura - idioma, cren- refinado, ou seja, uma habilidade especial.
ças, concepções, sistemas de conhecimento, Estas explicações ficam, a nosso ver, prejudi-
normas, hábitos, costumes, arte, símbolos, cadas, principalmente quando consideramos
objetos - como também é geradora das mes- que o subproduto das fogueiras - o carvão - já
mas. era regularmente disponível há, pelo menos,
Tendo em vista que essa dimensão ge- 250 mil anos atrás e que o simples ato de im-
rativa da linguagem não é auto-explicativa, primir as mãos ou os dedos nas paredes das
mostraremos como alguns dos epifenômenos cavernas, como faria qualquer uma de nossas
anteriormente citados, tais como a arte, os crianças de agora, dispensaria qualquer habi-
símbolos, os sistemas de conhecimento e a lidade especial. Se não foi pela falta de maté-

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ria prima nem por uma incapacidade motora Quênia, de vários fragmentos de ovos de a-
ou habilidade especial, o que foi então? vestruz talhados em forma de contas, datadas
Advogamos que o aperfeiçoamento da de cerca de 40 mil anos. Pelo imenso número
linguagem permitiu tanto a emergência do de sobras quebradas ou imperfeitas, foi suge-
comportamento simbólico quanto o surgi- rido que aquelas populações de outrora dedi-
mento das técnicas de pintura que envolvia, cavam muitas horas de trabalho para a fabri-
entre outras coisas, a busca, o transporte e a cação das referidas contas, sem nenhum mo-
mistura de pigmentos e fixadores naturais. tivo utilitário imediato (Ambrose, 1998). Es-
Afirmamos isso porque entendemos que a sa marca temporal de 40 mil anos para o sur-
mistura, enquanto processo, é uma coordena- gimento do comportamento simbólico na Á-
ção de coordenação de ações e, portanto, é frica pode ser ainda recuada para 75 mil anos
linguagem. Os preparativos para a execução atrás, ou mesmo mais, considerando a desco-
das pinturas policromadas em locais de difícil berta do sítio arqueológico “Caverna de
acesso, que envolveria, entre outras coisas, a Blombos”, África do Sul, onde foi encontra-
produção de uma iluminação artificial e até do um número relativamente grande de con-
mesmo a montagem de “andaimes”, só pode- chas da espécie Nassarius kraussianus, perfu-
ria ocorrer na linguagem. Destarte, reforça- radas intencionalmente. Estas e outras obser-
mos a idéia de que os preparativos e as técni- vações corroboram com a tese de que a e-
cas básicas de pintura de nossos antepassados mergência do comportamento simbólico e o
já deveriam ser produtos de redes de coorde- desencadeamento da inventividade humana
nações de coordenações de ações bem sofisti- tiveram início na África, bem antes das popu-
cadas, provavelmente a linguagem falada. lações humanas se deslocarem para a Europa.
Continuando a nossa discussão sobre Por conseguinte, a África é o berço da huma-
a linguagem da arte e a arte da linguagem, é nidade (Klein e Edgar, 2005).
importante fazer uma referência ao compor- Já tivemos a oportunidade de apresen-
tamento simbólico de nossos antepassados, tar a vinculação entre a linguagem e os siste-
haja vista que os animais representados nas mas de conhecimento (Andrade e Silva,
paredes das cavernas nem sempre eram os 2005). Assim, de forma bem sintética, se
mais consumidos. O antropólogo francês prestarmos atenção para o que é produzido
Claude Lévi-Strauss nos brinda com uma por alguém quando esse alguém evoca a no-
magnífica expressão antropológica produzida ção de conhecimento, notaremos que esse
a partir dos estudos com os povos San do Ka- produto não passa de enredos explicativos
lahari e com os aborígines australianos: “cer- para enredos fenomênicos. Na qualidade de
tos animais eram representados mais frequen- enredos, eles estão, necessariamente, na lin-
temente não porque eram bons para comer, guagem.
mas sim porque eram bons para se pensar”
(Lévi-Strauss, apud Leakey, 1995). Para nós, 4.5.2. A emergência da autoconsciência
tanto a representação do que se come quanto
a representação do que se pensa é simbólico e Dedicaremos nossos últimos comentá-
os símbolos, por não existirem em si mes- rios para a emergência da autoconsciência no
mos, surgem na linguagem e com a lingua- devir do processo de humanização. Ainda
gem. É por isso que podemos criar novos que este termo - autoconsciência – suscite
símbolos a partir do fluir recursivo de nossas outros termos correlatos – mente e pensamen-
conversações. to - em torno dos quais é travado um intenso
Antes de passarmos a correlacionar a debate acadêmico na contemporaneidade
linguagem com os diferentes sistemas de co- (Searle, 1998), vamos nos restringir a comen-
nhecimento, gostaríamos de ressaltar que a tar a capacidade do homem em fazer referên-
emergência do comportamento simbólico não cia a si e ao mundo com o qual interage.
surgiu na Europa, mas sim na África. Isso Acreditamos que a dificuldade de
ficou demonstrado com a descoberta, no compreender a autoconsciência como um fe-

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nômeno imanente, particular ao viver bioló- voso, como um todo, é sensível somente à
gico humano, reside no fato de termos de en- intensidade dos sinais químicos de seu pró-
contrar o mecanismo pelo qual somos capa- prio modo de operar e, portanto, não podem
zes de distinguir a nós mesmos, como se fos- captar e processar “informações” ou qualida-
semos entidades independentes de nosso pró- des do mundo lá fora, como música, cheiro,
prio viver e, ao mesmo tempo, de especifi- sabor, cores, etc. Como nos mostra Heins
carmos um eu que nos habita e que, portanto, Von Foerster (1994) não há uma correspon-
é dependente de nossa biologia. dência, ponto a ponto, do que acreditamos ser
Este aparente paradoxo pode ser re- o mundo lá fora com o que acreditamos ser o
solvido se aceitarmos que a operação de au- mundo de dentro - nossa mente. Somente pa-
toconsciência é uma distinção reflexiva de ra se ter uma idéia da ordem de grandeza e do
um “eu” forjado na linguagem, de tal forma diferencial que separa estes dois mundos, pa-
que este eu não somente constitui o corpo que ra os duzentos ou trezentos milhões de recep-
surge na distinção, mas também que este eu tores sensóreos, há cerca de dez bilhões de
pode ser referenciado, como uma abstração, sinapses no sistema nervoso, sugerindo que
no fluir da rede lingüística. as dinâmicas internas de nosso próprio orga-
Para tornar mais claro este argumento, nismo, ao se entrecruzarem com as perturba-
desdobraremos a questão em duas perguntas, ções advindas do meio externo, participam na
quais sejam: criação interna do que o organismo "vê",
“sente” e “nomeia”, tais como cores, sons e
1- Como este eu, corpóreo e abstrato, é capaz sensações. Quais as conseqüências desse en-
de fazer referência ao mundo e se auto- tendimento para nossa discussão?
referenciar, ou seja, como nos tornamos ob- A conseqüência mais fundamental é a
servadores? de que o mundo lá fora, com os seus objetos
2- Como os laços da rede lingüística, que nos e acontecimentos, não pré-existem ao obser-
liga uns aos outros e ao mundo, mesmo se vador, pois que eles não são entidades primá-
mantendo na exterioridade de nossa corpora- rias ao ato de observar e, portanto, indepen-
lidade, nas franjas das relações interpessoais, dentes da biologia do observador. As caracte-
cria em nós o que, em nós, é tão intimo - a rísticas que supostamente são dadas às coisas
autoconsciência? mostram-se também como características do
observador. As cores não estão lá fora, inde-
Vamos tentar responder estas duas pendentes de nossa biologia, mas também
perguntas e esperamos que, ao final, tenha- não estão cá dentro, independentes de nosso
mos explicado nossa indagação inicial, qual mundo cultural. Se isso é assim, nega-se tan-
seja: como nos tornamos autoconscientes no to o realismo de um mundo predeterminado
devir? que o organismo é capaz de representar quan-
Cônscios de que toda explicação exi- to o idealismo que toma a percepção como
ge tanto uma condição formal, mecanismo uma projeção de um mundo interno prede-
gerativo, quanto uma informal, aceitabilida- terminado (Varela et al., 1993).
de, convidamos o leitor para participar co- É com essa dupla negação que se diz
nosco da formulação de um mecanismo gera- que os objetos não antecedem à distinção que
tivo para a autoconsciência. Antes, porém, deles é feita pelo observador. Os objetos sur-
faremos uma solicitação, sem a qual será im- gem na práxis do viver do observador e o que
possível caminharmos juntos: é indispensável é essa práxis do viver humano senão as coor-
romper com a crença de que representamos denações de coordenações de ações que reali-
os objetos que estão no mundo em nossa zamos em nosso cotidiano?
mente, como um espelho. Seguindo esta linha de raciocínio, o
A razão de nosso alerta e da contro- observar surge no domínio das coerências
versa que ela suscita advém do fato de que experienciais inerentes ao próprio viver. Ao
tanto a célula nervosa quanto o sistema ner- darmos ênfase ao processo, deslocamos a po-

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sição do observador de ente corporificado auto-referencial, mas, também, coletivo, por-


para ente operacional. que necessariamente relacional, poderemos
Se o leitor aceitou que é impossível a compreender o surgimento de seres vivos ca-
este ente operacional fazer referência a algo pazes de fazer referência ao mundo e se auto-
fora de seu domínio de experiências, fora de referenciar, sem termos de apelar para uma
sua própria história, deduz-se que os objetos, transcendência ou para a imanência de um
o corpo e suas partes e, por extensão, o pró- suposto “eu”, independente e centro desta vi-
prio “eu”, surgem no operar das coordena- vência (Depraz et al., 2000).
ções de coordenações condutuais consensu- Se o leitor aceitou que o nosso viver
ais, ou seja, na linguagem. É importante notar humano é gerado no fluir recursivo de nossas
que, embora enclausurados em nossa própria próprias conversações e que estas, por serem
biologia, nós só nos tornamos observadores abertas ao indeterminado, abrem-nos, tam-
na presença do outro, ao partilharmos do pro- bém, a possibilidade de construção de novos
cesso recursivo e transgeracional que é o vi- mundos possíveis, torna-se evidente que o
ver na linguagem. humano é forjado na linguagem e que toda
O importante é que nós, seres huma- conversa tem um fundo ético, porque consti-
nos, repetimos esse processo transgeracio- tutiva do mundo humano, e revolucionário,
nalmente a cada ontogenia. Assim, quando porque capaz de mudar a história.
nascemos e nos inserimos no mundo através
das primeiras triangulações criadas pelo a- 5. Referências bibliográficas
pontar da mãe, no sentido lato deste termo,
para um objeto, que pode ser o nosso corpo Andrade, L.A.B. e Silva, E.P. (2005). O co-
ou parte dele, já estamos na linguagem. nhecer e o conhecimento: comentários sobre o
A necessidade do outro, fundado na viver e o tempo. Ciências & Cognição. 4, 35-
relação, já nos coloca frente ao desafio de 41. Disponivel no endereço eletrônico:
responder à segunda questão anteriormente http://www.cienciasecognicao.org/.
formulada, qual seja: como os laços de uma Ambrose, S.H. (1998). Chronology of the
rede lingüística podem criar em nós o que, later stone age and food production in East
em nós, é tão intimo - a autoconsciência? Africa. J. Archeological Sci., 25, 377-392.
Chamamos atenção, neste contexto, Aquino, Sto T. (1973). Compêndio de
para intuição de Luigi Pirandello Teologia (Baraúna, L.J., Trad.). Em: Civita,
(1926/1989): V. (Ed.). Os Pensadores (Vol. 8, pp. 73-105).
São Paulo: Abril Cultural. (Original publicado
“... se, por acaso, a visão dos outros em 1258).
não nos ajudar a constituir em nós, de Asfaw, B.; White, T.D.; Lovejoy, O.; Lati-
algum modo, a realidade daquilo que mer, B.; Simpson, S. e Suwa, G. (1999). Aus-
vemos, os nossos olhos já não sabem o tralopithecus garhi: A new species of early
que vêem; a nossa consciência perde-se, hominid from Ethiopia. Science, 284, 629-
porque aquilo que pensamos ser a nossa 635.
coisa mais íntima, a consciência, signi- Bloch, S.A. (2002). Alba emoting: bases cien-
fica os outros em nós; e não podemos tíficas del emocionar. Santiago do Chile: Edi-
sentir-nos sós.” torial Universidade de Santiago.
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Para além desta intuição, a Biologia Lisboa: Publicações Dom Quixote.
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autoconsciente pode ser entendido como uma Arte, linguagem, etnologia. Campinas: Papi-
co-emergência da experiência de um mundo rus.
vivido e da identidade do eu vivente. Se acei- De Waal, F.B.M. (2007). Eu, primata: porque
tarmos a ressalva que a experiência é tanto somos como somos (Motta, L.T., Trad.). São
um evento pessoal, porque necessariamente

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Submetido em 28/06/2007 | Revisado em 29/11/2007 | Aceito em 30/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Ensaio

A teoria da representação cognitiva de Hobbes


Hobbes´s theory of cognitive representation

Cláudio R. C. Leivas

Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil

Resumo

O presente artigo procura analisar a teoria da representação cognitiva no contexto da filosofia natural
de Hobbes, objetivando mostrar que o filósofo inglês possui uma consistente teoria do conhecimento
fundada em conceitos derivados da experiência e de estudos ópticos e metafísicos. © Ciências & Cog-
nição 2007; Vol. 12: 192-202.

Palavras-chave: representação natural; metafísica; óptica.

Abstract

This article intends to analyze the theory of cognitive representation in the context of Hobbes´s Natu-
ral Philosophy, aiming at to show that the British Philosopher had a solid epistemology established
on concepts derived from experience and from his optical as well as metaphysical studies. © Ciências
& Cognição 2007; Vol. 12: 192-202.

Key Words: natural representation; metaphysics; optica.

Concepções e pensamentos são repre- qual somos capazes desse conhecimento, é o


sentações no modo de compreender de Hob- que aqui denomino por poder cognitivo ou
bes. Considerados isoladamente ou desenca- conceptual" (Hobbes, 1983: 48).
deados - isto é, não articulados como elos a- As representações cognitivas podem
marrados e justapostos numa rede ou cadeia apresentar-se de diferentes formas conforme o
de pensamentos - cada pensamento ou con- tipo de "faculdade da mente" (Hobbes, 1983:
cepção em particular "é uma representação ou 48) escolhido para entrar em contato com o
aparência" (Hobbes, 2003: 9) dos objetos ex- objeto externo. Como tudo começa na sensa-
ternos. O modo de acesso ao conhecimento da ção, a própria sensibilidade é definida inici-
realidade externa é inicialmente representa- almente como um tipo de representação ori-
cional: "Estas imagens mentais e representa- ginária.. A representação cognitiva, nesse
ções das qualidades das coisas fora de nós, caso, é denominada representação sensível.
são o que chamamos cognição, imaginação, Esse tipo de representação depende da pre-
idéias, informação, concepção, ou conheci- sença do objeto. Constatada a ausência do ob-
mento delas. E a faculdade, ou poder, pelo jeto e o conseqüente enfraquecimento ou obs-

 - C.R.C. Leivas é Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRS), Doutor em Filosofia
(UFRS). Atualmente é Professor (UFPel). E-mail para correspondência: clleivas@hotmail.com.

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curecimento de sua imagem chamamos então em Hobbes. O início das representações sen-
a representação cognitiva de representação síveis se assenta naquilo que na visão de
imaginativa. A diferença entre essas duas ver- Hobbes é o acontecimento mais admirável de
sões oriundas das representações cognitivas é toda a vida cognitiva das criaturas sensíveis,
assinalada por Hobbes a seguir: "Uma con- isto é, o próprio aparecer:
cepção obscura é aquela que representa todo o
objeto em conjunto... e quanto mais ou menos “De todos os fenômenos ou aparências
partes forem representadas, assim se diz que que existem próximos de nós, o mais
a concepção ou representação é mais ou me- admirável é a própria aparição (to
nos clara. Considerando então a concepção phainesthai); ou seja, que alguns corpos
que, quando produzida pela sensação era clara naturais têm neles mesmos as estruturas
e representava distintamente as partes do ob- [ou modelos (patterns)] de quase todas
jeto, e quando nos vem novamente é obscura, as coisas e outros de nenhuma. De for-
achamos que nela falta algo que esperávamos ma que se os fenômenos ou aparências
e, por isso, a julgamos passada e enfraqueci- são os princípios pelos quais nós conhe-
da" (Hobbes, 1983: 62). cemos todas as outras coisas, devemos
necessariamente reconhecer a sensação
As representações sensíveis como o princípio pelo qual conhecemos
aqueles princípios, e que todo conheci-
O conhecimento sensível assinala o mento que temos é dela originário."
principio da vida cognitiva dos seres vivos. (Hobbes, 2000: 389)
Através da sensação o mundo externo é pri-
meiramente percebido como objeto de conhe- Consideremos, antes de tudo, que os
cimento. Porém, como o acesso cognitivo à termos fenômeno, aparência, fantasma e ima-
realidade externa é indireto, a natureza dotou gem são termos equivalentes em Hobbes, pois
os seres vivos de um medium para extrair as de acordo com o que ele diz no Exame do
informações dos objetos que pressionam os “De Mundo” de Thomas White, “[em meu
diversos órgãos sensoriais. Essa estrutura me- esquema] um e o mesmo movimento da men-
diúnica é a própria sensação metamorfoseada te tem agora recebido quatro [diferentes] no-
como fantasma ou representação: "A sensa- mes para quatro diferentes pontos de vista ...:
ção é um fantasma, feito pela reação e esforço Esses nomes são: phantasma, imago, imagi-
para fora no órgão da sensação, causado por natio e memoria” (Hobbes, 1976: 367). Po-
um esforço para dentro a partir do objeto, demos dizer, porém, que as representações
permanecendo ali por algum tempo" (Hobbes, cognitivas — sejam elas sensíveis, imaginati-
2000: 391). vas ou visuais - são definidas por Hobbes me-
No Curto tratado dos primeiros prin- ramente como tipos distintos de efeitos cau-
cípios Hobbes se refere a uma sutil equivalên- sados por um mesmo movimento que ocorre
cia entre phantasma e repraesentatio: - "Co- no interior de nossas vidas mentais? São as
mo os objetos são um, por união ou reunião, representações cognitivas simples efeitos des-
assim são os fantasmas que os representam" ses movimentos internos operados mental-
(Hobbes, 1988: 42). Enfim, nas primei-ras mente?
linhas do primeiro capitulo do Leviatã Hob- Felizmente, o point de départ da phi-
bes enfatiza que considerados não por união losophia prima de Hobbes no capítulo VII do
ou reunidos em cadeia, mas isoladamente, De Corpore esclarece de forma definitiva essa
cada pensamento do individuo humano per- questão ao estabelecer ali uma divisão fun-
ceptivo "é uma representação ou aparência damental quanto à forma como conhecemos
de alguma qualidade, ou outro acidente de um as coisas, ou seja, (1) como acidentes internos
corpo exterior a nós, o que comumente se da mente ou (2) como não existindo realmen-
chama um objeto" (Hobbes, 2003: 15). A sen- te, mas simplesmente parecendo existir:
sação tem pois uma função representacional

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“Conseqüentemente as coisas podem cer-lhe-iam, porém como externas e não


ser consideradas ... ou como acidentes dependentes da mente." (Hobbes, 2000:
internos de nossa mente, de tal modo 389)
que as consideramos quando a questão é
sobre alguma faculdade da mente; ou O estatuto representacional da sensa-
como espécies (species) das coisas ex- ção, mutatis mutandis, vem a ser possível, em
ternas, não como existindo realmente, primeiro lugar, porque a sensação é dotada de
mas apenas como parecendo existir, ou uma memória de curtíssima duração, porém
[parecendo] ter uma existência (being) suficiente para gerar uma sensação aparente
fora de nós.” (Hobbes, 2000: 94) de exterioridade que permite a percepção do
percebido:
Essa sensação aparente de exteriori-
dade - que o professor Zarka denomina de "Não podemos começar nossa busca por
consciência de exterioridade - é o que, num tais princípios [isto é, a busca de nossas
só tempo, define as representações cognitivas representações da realidade externa] por
e impede que elas sejam diluídas pela força outro fenômeno que a própria sensação,
avassaladora da teoria do movimento hobbe- ... [ou seja,] pela memória que por al-
siana. Nos Elementos da Lei Hobbes diz que gum tempo permanece em nós das coi-
as "representações das qualidades das coisas sas sensíveis, ... pois aquele que perce-
fora de nós são o que chamamos cognição" be que tem percebido, lembra." (Hob-
(Hobbes, 1983: 48). A representação cogniti- bes, 2000: 389)
va é pois a capacidade de conhecer as quali-
dades sensíveis dos objetos conforme esses A equivalência entre sensação e repre-
aparecem para nós e parecem fora de nós. sentação é assegurada, em segundo lugar, pela
Esses objetos se apresentam em nós e capacidade de mudança, que resulta da forma
para nós, originando, a partir disso, fenôme- diversa como os fantasmas são representados,
nos distintos, que aparecem na forma de fan- por exemplo, quando o objeto da percepção é
tasmas ou representações, isto é, como uma alterado e novos fantasmas tomam o lugar dos
aparição das coisas exteriores, de forma que primeiros. Essa capacidade de mudança —
o que é próprio da representação é o "apresen- aqui associada com as representações sensí-
tar ou representar alguma coisa sem ser ela veis — é identificada por Hobbes como sendo
mesma uma coisa, quer dizer, sem receber o o conatus, isto é, um tipo de movimento in-
estatuto de uma realidade" (Zarka, 1992: 18). terno plenamente compatível com a sensação:
Hobbes acredita que a forma como represen- tal compatibilidade parece justificada pelo
tamos as coisas é tão forte e intensa que mes- fato que a sensação é ela própria um tipo de
mo na configuração apocalíptica da hipótese movimento — além de ser, como foi dito an-
da destruição do mundo externo continuaría- tes, a sede central das representações ou fan-
mos a acreditar nas imagens representadas das tasmas intermitentes que aparecem continua-
coisas armazenadas no interior de nosso cére- mente em nossa vida mental. Ver-se-á a se-
bro antes do the day after como algo indubi- guir que é justo através da capacidade da mu-
tavelmente externo e independente da mente: dança que se abre um campo cognitivo bas-
tante extenso e complexo em que o principio
"A esse homem [isto é, o único sobrevi- de comparação e de diferença atuará como
vente do apocalipse] ficariam as idéias uma espécie de chef d´équipe.
do mundo e de todos os corpos que ha-
via contemplado com seus olhos antes Comparação, diferença e representação
da aniquilação... tudo o qual, ainda que
não fosse mais que idéias e fantasmas O princípio de comparação e diferen-
que estariam presentes internamente ça é fundamental para que as representações
somente a quem as imaginasse, apare- enquanto fantasmas surjam nos órgãos sensí-

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veis das criaturas vivas. De fato, "não se pode “Embora pela reação dos corpos inani-
falar de sensação se não há comparação e dis- mados um fantasma possa ser feito, ces-
tinção de fantasmas" (Zarka, 1992: 18). A saria, contudo, tão logo o objeto fosse
aparição dessas entidades fenomênicas cha- removido. Pois a menos que esses cor-
madas fantasmas - entidades essas que sur- pos tenham órgãos, como as criaturas
gem por reação sensível provocada pela pre- vivas os têm, adequados para reter tais
sença de um objeto epistêmico qualquer - é movimentos, sua sensação seria tal que
engendrada por um processo de discriminação eles nunca se lembrariam." (Hobbes,
ou separação operado pelo principio de com- 2000: 300-301)
paração e diferença:
Pudemos perceber anteriormente que
"Por sensação compreendemos comu- na opinião de Hobbes a sensação deve de ter
mente o juízo que fazemos dos objetos em si mesma uma variedade contínua de fan-
por seus fantasmas; a saber, ao compa- tasmas para que esses possam ser discernidos
rar e distinguir aqueles fantasmas ... de uns dos outros. Pois da mesma forma que sem
forma que a sensação tem necessaria- sensação não há memória, sem memória não
mente alguma memória aderente a ela, há retenção de fantasmas, e, por conseguinte,
pela qual os primeiros e os últimos fan- nada para ser discernido ou diferenciado
tasmas podem ser comparados juntos, e comparativamente. É de se indagar no mo-
diferenciados uns dos outros." (Hobbes, mento se essa multiplicidade fenomênica, en-
2000: 393) quanto submetida àquele princípio fundamen-
tal que orienta a comparação e a distinção de
A seletividade e a diversidade são pois fantasmas (isto é, o princípio de comparação e
dois aspectos inerentes à sensação e sem os diferença) é algo que se dá num só tempo ou
quais não haveria conhecimento sensível e, em tempos distintos. E Hobbes dirá que a na-
conseqüentemente, as representações cogniti- tureza da sensação é tal que a comparação e a
vas. Se quisermos uma analogia com o adágio diferenciação dessas entidades fenomênicas
popular que diz que uma única andorinha não chamadas fantasmas ocorre uma de cada vez,
faz o verão, diremos com Hobbes que na hi- de forma que dois objetos registrados nos ór-
pótese de podermos representar um único fan- gãos sensoriais não produzem dois fantasmas
tasma isso implicaria uma suspensão da sen- distintos, mas um só resultante da composição
sação, pois "sentir sempre o mesmo e não de ambos.
sentir vem a ser o mesmo" (Hobbes, 2000: Verbi gratia, quando abrimos um livro
394). O princípio de comparação e diferença, percebemos uma página inteira. Mas isso não
dessa forma, atua de modo a fazer com que a nos dá acesso ao seu conteúdo: - Dessa forma,
multiplicidade de fantasmas gerados no centro somente ao lermos cada palavra, uma de cada
nervoso da vida cognitiva dos indivíduos sen- vez, podemos com isso fazer associações,
síveis seja submetida a um discernere - isto é, comparando umas com as outras, etc., o que
uma clara percepção das diferenças - justa- nos permitirá enfim emitir um juízo sobre o
posto no plano de uma ordem de prioridades. conjunto das informações extraídas. Tudo isso
A seleção e a discriminação de fantasmas, requer, obviamente, a representação de cada
por outro lado, influi decisivamente na inten- uma das partes numa certa linha de tempo.
sidade daquela memória que é própria da sen- Com efeito, nossas representações sensíveis,
sibilidade animal. Aliás, uma das diferenças determinadas como sensações aparentes da
fundamentais dos vegetais em relação aos a- exterioridade ou consciências da exteriorida-
nimais é que os primeiros não possuem ór- de, não podem estar separadas da consciên-
gãos que funcionem como retentores mnemô- cia do tempo.
nicos da multiplicidade de fantasmas gerados
na sensação: O objeto da rpresentação

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O objeto que é próprio da representa- O mais importante no momento, pri-


ção é formado por um engano da sensação ma facie, parece ser concentrar esforços na
que ao considerar um acidente interno da tentativa de não confundir o objeto real com o
mente como sendo algo externo e objetivo objeto da representação. De fato, se o primei-
fixa os limites das aparências perceptivas ro é determinado no estrito âmbito do movi-
como se fossem os limites de entidades reais. mento exterior, o segundo, por sua vez, é o
Objeto real, no vocabulário de Hobbes, é tudo resultado de uma consciência de exteriorida-
aquilo que constitui o mundo exterior e pode de proveniente da projeção de qualidades e
ser concebido como independente de estrutu- acidentes considerados, de forma ilusória ou
ras mentais. Numa acepção mais ampla os enganosa pelo espírito, como sendo aquelas
objetos reais são corpos e “Hobbes define um propriedades pertencentes à realidade exteri-
corpo como aquilo que não depende para sua or. Um passo além e veremos Hobbes afirmar
existência do pensamento humano e que coin- que essas qualidades e acidentes das coisas
cide com algum espaço” (Zarka, 1992: 53). que constituem nossas representações cogni-
(Veremos depois que na compreensão de tivas não estão na verdade nas próprias coisas,
Hobbes considerar um corpo como possuidor mas pertencem in totum à vida mental do su-
de certa substancialidade imaterial é uma con- jeito epistêmico. Opera-se aqui, portanto, uma
tradictio in adiecto, isto é, uma contradição visível subsunção das qualidades secundárias
nos termos.) e primárias à vida cognitiva subjetiva, pois de
A percepção ou apreensão da multipli- acordo com o que diz Hobbes a seguir:
cidade de objetos ou coisas que constituem a
realidade exterior depende da forma como as “Quaisquer acidentes ou qualidades que
capacidades sensório-perceptivas de uma cria- os nossos sentidos nos fazem pensar
tura sensível são estimuladas pelos movimen- que existam no mundo, não estão lá,
tos externos constitutivos desses mesmos ob- constituindo apenas aparências e apari-
jetos ou coisas. O objeto real se metamorfo- ções. As coisas que realmente estão no
seia num objeto aparente — isto é, num obje- mundo, fora de nós, são os movimentos
to representacional — quando um movimento que causam essas aparências.” (Hob-
ou conatus exterior pressiona um determinado bes, 1983: 56)
órgão sensorial originando ali (como resulta-
do de sua força centrífuga) um movimento ou Todos os nossos pensamentos podem
conatus interior que, devido a sua natureza então ser definidos, diz Hobbes, como uma
reativa, é então fisiologicamente pressionado "representação ou aparência de alguma qua-
para fora, cujo efeito no indivíduo senciente é lidade ou acidente de um corpo exterior a
aquilo que denominamos antes de sensação nós" (Hobbes, 2003: 15). Definir os pensa-
aparente de exterioridade: mentos como representações cognitivas pare-
ce plenamente justificável no âmbito de um
"A causa da sensação é o corpo exterior, sistema de pensamento que combina compo-
ou objeto, que pressiona o órgão próprio nentes empíricos com componentes fenomê-
de cada sentido ... a qual pressão, pela nicos. Essa combinação revela uma démarche
mediação dos nervos e outras cordas e fundamental no interior do Leviatã quando
membranas do corpo, prolongada para Hobbes inscreve ali o seguinte axioma: “O
dentro em direção ao cérebro e coração, homem não pode ter nenhum pensamento re-
causa ali uma resistência, ou contra- presentando uma coisa que não esteja sujeita
pressão, ou esforço do coração para se à sensação” (Hobbes, 2003: 29).
transmitir, cujo esforço, porque para fo-
ra, parece ser de algum modo exterior. As representações imaginativas
(Hobbes, 2003: 15)
No contexto da pura sensibilidade a-
nimal, porém, essas representações sensíveis

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— aqui traduzidas em pensamentos — estão é uma coisa, e a imagem ou ilusão uma outra"
todas invariavelmente circunscritas a enganos (Hobbes, 2003: 16).
e ilusões. A razão disso é que todo pensamen- Hobbes está abrindo caminho aqui pa-
to representando algo está sujeito à sensação ra a instituição de um outro tipo de represen-
e a sensação é uma fonte originária de enga- tação cognitiva. De fato, se a distinção no
nos e ilusões ocorridos na vida cognitiva dos momento é entre objeto real e objeto imagi-
indivíduos sencientes: nário, as representações sensíveis se trans-
formam então em representações imagina-
“As coisas que realmente estão no tivas. Essa transformação ocorre sem que o
mundo, fora de nós, são os movimentos segundo termo implique a exclusão do pri-
que causam essas aparências. E esse é o meiro, em nosso entendimento, porque em
maior engano da sensação, que também Hobbes a capacidade da imaginação é defini-
deve ser corrigido pela sensação, pois, da como um tipo específico de sensação, ou
assim como a sensação me diz, quando seja, ela é uma sensação enfraquecida ou de-
vejo diretamente um objeto, que a cor bilitada, e isso devido ao estatuto da ausência
parece estar no objeto, assim também a de seu objeto. Com efeito, dada a ausência de
sensação me diz, quando vejo por refle- um objeto epistêmico atual - representado an-
xão um objeto, que a cor não está nele.” teriormente no contexto de um objeto presen-
(Hobbes, 1983: 56) te responsável por aquela geração fenomênica
de um objeto aparente - devemos pensar no
O De Homine-óptico (isto é, a parte óptica momento num objeto aparente imaginário
do De Homine) tece importantes considera- que é o objeto próprio das representações i-
ções relativas a esse engano originário da maginativas cognitivas. As representações
sensação. De fato, Hobbes diz ali que "se- imaginativas são definidas por Hobbes da se-
gundo uma instituição da natureza todo ser guinte forma:
animado começa por julgar que essa imagem
[uma luz, uma cor assim representada] é a vi- “Quanto à maneira pela qual se tem co-
são da coisa mesma" (Hobbes, 1974: 43). Ob- nhecimento de uma concepção passada,
servemos que Hobbes está ali usando nova- recorde-se a definição da imaginação
mente um modelo da percepção animal em onde dissemos que se trata de uma con-
geral para explicar o engano da sensação. En- cepção que pouco a pouco declina, ou
ganar-se ou iludir-se é pois algo inerente a se vai tornando mais obscura. Uma con-
todos os seres vivos animados. Em outras pa- cepção obscura é aquela que representa
lavras, o engano originário da sensação é uma todo o objeto em conjunto, mas nenhu-
propriedade de todo indivíduo senciente que ma das suas partes por si mesmas; e
cai dentro do reino animal, gênero maior em quanto mais ou menos partes forem re-
que os sencientes humanos estão compreendi- presentadas, assim se diz que a concep-
dos como simples partes na relação com o ção ou representação é mais ou menos
todo. A confusão quanto à distinção entre ob- clara. Considerando então a concepção
jetos reais e objetos aparentes é originada pois que, quando produzida pela sensação
naturalmente no interior da sensibilidade a- era clara e representava distintamente
nimal. Decorre disso que representações sen- as partes do objeto, e quando nos vem
síveis cognitivas — isto é, "as representações novamente é obscura, achamos que nela
das qualidades das coisas fora de nós" (Hob- falta algo que esperávamos e, por isso, a
bes, 1983: 48) - apresentarão ou representa- julgamos passada e enfraquecida.”
rão interiormente os objetos externos como se (Hobbes,1983: 62)
eles fossem exteriores ao processo mental:
"Muito embora, a certa distancia, o próprio Na próxima seção desejo examinar a
objeto real pareça confundido com a aparên- teoria da representação visual de Hobbes ob-
cia que produz em nós, mesmo assim o objeto jetivando com isso uma melhor compreensão

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de sua teoria da representação cognitiva. Co- remete dessa forma a uma teoria da intromis-
meço ali explicando como Hobbes concebe são da luz ao definir as causas físicas da luz
sua teoria física da luz para depois concernir à pelo termo lux e a uma teoria da emissão da
formação das representações visuais. luz compreendida como lumen ou fantasma2.
A primeira explicação do fenômeno óptico na
As Representações Ópticas terceira seção do Curto Tratado evidencia a
objetividade da causa da luz respaldada na
(a) Teoria física da luz idéia clássica da emissão da luz pelas espécies
através de um medium:
A teoria da intromissão da luz de Al-
Hazen (isto é, a idéia que vemos através de “Luz, cor, calor e outros objetos pró-
raios de luz que entram nos olhos a partir do prios da sensação ... nada mais são do
exterior) substitui gradativamente a teoria da que as diferentes ações das coisas exte-
emissão da luz dos antigos (isto é, a idéia que riores sobre os espíritos animais, pelos
vemos através de raios visuais emitidos pelo diferentes órgãos. Pois se a luz e o calor
olho). Vitelo continua os estudos de Al-Hazen fossem qualidades inerentes em ato às
e acrescenta que o raio de luz deve ser defini- espécies, e não diferentes modos de a-
do como um feixe de linhas matemáticas ção - porque as espécies entram por to-
(Prins, 1987: 296). A explicação física da luz dos os órgãos para ir aos espíritos - se
recebe com Vitelo um “tratamento puramente deveria ver o calor e sentir a luz, o que é
geométrico” de forma que o fenômeno óptico contrário à experiência.” (Hobbes,
passa a ser explicado em termos de “pontos e 1988: 45)
linhas”. Prins sugere que os estudos desen-
volvidos pelos ópticos medievais reduzem a O Curto Tratado apresenta dessa for-
óptica à geometria de forma que a natureza da ma uma explicação da teoria mediúnica da luz
luz é por eles formulada a partir de um trata- fundada no conceito de Species. O fundamen-
mento puramente geométrico de problemas to dessa explicação — conforme estabelecido
físicos justificado pelo conceito de raio de por Hobbes na terceira seção do Curto Trata-
luz. Em resumo, a forma geométrica como os do - consiste em que a causa eficiente está do
antigos explicavam a visão através da noção lado do objeto e não do lado do sujeito. De
de raio visual sofre uma readequação com os fato, a terceira seção do Curto Tratado escla-
medievais de forma a conduzir a uma explica- rece que "o objeto é a causa eficiente ou a-
ção física da luz justificada pela geometriza- gente do desejo e os espíritos animais o paci-
ção do raio de luz. ente" (Hobbes, 1988: 53). Uma vez estabele-
A teoria física da luz de Hobbes pare- cido que o princípio de causalidade é da or-
ce compatível com a teoria da intromissão da dem do objeto e não da ordem do sujeito se-
luz dos ópticos medievais. Hobbes utiliza, por gue como corolário que a natureza mediúnica
exemplo, o termo lux para se referir à fonte da luz é compatível com a teoria da emissão
original de luz que irradia de um corpo lumi- das Species: - “Todo agente que age sobre um
noso antes de se dirigir para o centro do olho. paciente à distância o toca seja pelo Medium,
Lux, dessa forma, é distinto de lumen, visto seja por alguma coisa que sai dele mesmo, a
que esse último termo se refere não à luz ori- qual será denominada Species" (Hobbes,
ginal mas à luz refletida — isto é, à luz como 1988: 25).
fantasma, que pertence à sua teoria da visão1. Essa concepção começa porém a so-
A objetividade da causa física da luz — lux frer mudanças a partir do Tractatus Opticus I
— é diferenciada em Hobbes da subjetividade onde Hobbes afirma que se não houvesse vi-
da qualidade sensível – lumen -, que surge são não haveria nada que chamaríamos de
como uma reação no interior do dispositivo luz. A aparição da luz e das cores é doravante
óptico em decorrência de estímulos nervosos um fenômeno subjetivo e situa-se em claro
no cérebro e no coração. A óptica hobbesiana contraste com a tese objetivista da emissão da

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luz pelas espécies do Curto Tratado. Se no além disso, que o Optical Thesaurus de 1572
plano da origem da luz a teoria da luz de traz uma identificação entre fantasma e ima-
Hobbes — dada a inserção das teses do Trac- gem refratária5. Uma outra observação que
tatus Opticus I — indica um movimento que nos parece relevante é que se na Critica do
articula a ação do meio a partir da fonte lumi- 'De Mundo' Hobbes se refere à luz como fan-
nosa, esse movimento, concebido como pro- tasia, no De Homine ele se refere à luz como
pagação da luz a partir do meio, vem a ser luz fantasma. Seria devido ao fato que na Critica
somente quando há um sentimento da luz em do 'De Mundo' ele em muitos aspectos se
nós, sentimento esse que é definido como vi- mostra disposto a seguir Aristóteles para
são. Em resumo, lux e lumen são agora expli- quem a raiz etimológica da palavra fantasia é
cados de forma subjetiva. A conclusão das dada pelo vocábulo luz? De fato, Dherbey su-
teses ópticas no pensamento maduro3 de gere que a identificação de fantasia e luz em
Hobbes parece indicar o que segue: — A ação Aristóteles serve para dissipar o erro de não
física da luz não basta para explicar todas as se diferenciar a sensação da imaginação: —
modalidades da visão4. A passagem das cau- “A confusão feita por Protágoras entre sentir e
sas físicas da luz para a explicação da visão imaginar se explica se atentamos à etimologia
através da constituição do conceito de repre- de phantasia que, nos diz Aristóteles, vem de
sentação visual é o que pretendemos exami- phaos, a luz” (Dherbey, 1983: 61).
nar no próximo item. Diferentemente de Aristóteles, con-
forme podemos observar nos escritos ópticos
(b) A formação das representações visuais do De Homine, Hobbes não está preocupado
em identificar fantasia e Luz para separar sen-
Estabelecida a hipótese que a ação fí- sação e imaginação e sim identificar fantasma
sica da luz é insuficiente para produzir a vi- e luz para separar a imagem visual do objeto
são, a teoria óptica hobbesiana remete a um da visão. Com efeito, após definir a luz no De
complexo sistema psíquico-fisiológico para Homine como fantasma de nosso mundo inte-
adequar a teoria da luz à teoria da visão: rior, Hobbes pode operar uma distinção fun-
damental entre o que é da ordem da represen-
“A ação de um objeto luminoso, quando tação visual e o que é da ordem da própria
propagada para o fundo do olho e con- coisa:
seqüentemente para o cérebro, é a causa
da reação pela qual um movimento é “Uma luz, uma cor assim figurada [isto
transmitido para fora do cérebro, atra- é, representada], isso se chama uma i-
vés do olho, na direção dos objetos ex- magem. E, segundo uma instituição da
ternos. O ultimo movimento, contudo, é natureza, todo ser animado começa por
experimentado não como movimento julgar que essa imagem é a visão da
mas como fantasia ou imagem ... de al- coisa mesma ... [Sendo que] mesmo os
gum corpo luminoso. Essa fantasia homens ... confundem a imagem com o
chamamos iluminação ou luz.” (Hob- próprio objeto.” (Hobbes, 1974: 43)
bes, 1976: 102)
Lembremos que essa idéia de uma se-
Doravante a luz e a cor são considera- paração radical entre o fenômeno visual e a
das “não como emanações do objeto mas co- própria coisa estabelecida por Hobbes no De
mo fantasmas de nosso mundo interior” Homine de 1658 remonta ao ano de 1649
(Hobbes, 1974: 43). É de se observar que a quando ele escreve o tratado óptico A Minute
idéia de fantasma como recurso para explicar or First Draught of the Optiques. Essa consta-
o fenômeno visual faz parte da literatura ópti- tação se deve ao fato de que a parte óptica do
ca dos medievais e dos renascentistas. Vitelo, De Homine corresponde quase que integral-
por exemplo, recorre à idéia de fantasma para mente à segunda parte do First Draught, parte
explicar a ilusão visual e podemos constatar, essa que Hobbes dedica ao estudo da visão6.

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A construção óptica da representação em é, representada], isso se chama uma i-


Hobbes começa a ser delineada enfim através magem.” (Hobbes, 1974: 43)
da justaposição de uma fundamental
diferenciação entre o que é da ordem do O estatuto representacional da visão
aparecer e o que é da ordem da realidade. da forma apresentada nessa passagem no De
Tendo isso em mente podemos consta- Homine óptico é plenamente compatível com
tar que a imagem é construída visualmente em o que Hobbes descreve na Crítica do 'De
nosso cérebro na medida em que somos afeta- Mundo' nos termos de uma superfície aparen-
dos por um objeto externo e que quando essa te imaginária: - “A área aparente do sol ou de
imagem é projetada de dentro para fora por qualquer outro objeto não é inerente no pró-
reação dos estímulos nervosos centrais temos prio objeto mas é meramente imaginária”
a ilusão que o que vemos é a coisa mesma. (Hobbes, 1976: 40). A superfície aparente
Constata-se pois que as teses ópticas de Hob- imaginária é constituída ponto por ponto a
bes se posicionam de forma antagônica com a partir das informações visuais que temos das
óptica antiga uma vez que "aquilo que um partes do objeto luminoso. Ora, no De Homi-
Antigo vê num espelho é a coisa mesma"7. ne Hobbes enuncia justamente que a configu-
Em A teoria aristotélica da visão Cappelletti ração dos pontos de visão justapostos numa
diz, por exemplo, que é importante sublinhar linha reta no centro retinal do aparelho óptico
que existe em Aristóteles uma teoria realista se chama linha de visão: “Cada ponto visto é
da sensação visual segundo a qual o sujeito situado sobre uma linha reta que passa primei-
capta qualidades que se encontram verdadeira ramente pelo centro da retina, depois por um
e realmente no objeto, de forma que os "erros ponto de sua superfície ... [sendo que] essa
e ilusões se referem aos sensíveis comuns linha reta chamar-se-á linha de visão” (Hob-
(distancia, magnitude, etc.) e não são na reali- bes, 1974: 44). O lugar aparente das imagens
dade erros da vista mas do entendimento" que temos dos objetos - a saber, “a forma co-
(Cappelletti, 1977: 91). mo aparecem na visão direta” - é então expli-
Explicar como se formam as imagens cado no capítulo terceiro do De Homine a par-
visuais a partir de uma separação radical entre tir da mencionada noção de linha visual: “Por
o que é da ordem do fenômeno e o que é da conseguinte, se damos a distancia aparente de
ordem das coisas é o tema do primeiro capitu- um objeto (colocado em linha reta), [bem co-
lo da parte óptica do De Homine. De fato, a mo] a sua grandeza aparente e a sua figura
noção de representação visual orienta ali o aparente, [segue que] o seu lugar aparente é
processo de formação das imagens. A percep- igualmente dado” (Hobbes, 1974: 59).
ção visual da irradiação do corpo luminoso é A localização dos objetos na represen-
enviada através do dispositivo óptico para o tação é dessa forma estabelecida na linha de
sistema nervoso central provocando ali uma visão - isto é, na linha reta - pela determina-
reação para fora que consistirá nas aparições ção do lugar e da distancia real dos objetos a
ou fantasmas de nosso mundo interior. O que partir de seu lugar e de sua distância aparente.
segue disso tudo é uma síntese dos múltiplos Sobre essa questão Zarka esclarece que em
pontos de visão que irão constituir a imagem Hobbes “a constituição visual da representa-
visual do objeto segundo uma correspondên- ção governa o problema da determinação da
cia ordenada: distancia e do lugar real do objeto a partir de
seu lugar aparente”8. O lugar e a distancia
“Uma visão [isto é, uma imagem visual] real são dessa forma reduzidos ao que apare-
distinta e figurada ocorre quando a luz ce. A imagem visual, formada a partir da li-
ou a cor forma uma figura cujas partes nha de visão, é percebida pelo individuo re-
tem por origem as partes do objeto, e ceptor “como se”9 fosse a própria coisa. Nos
lhes corresponde uma à uma na ordem. Elementos da lei, lembremos novamente,
Uma luz, uma cor assim figurada [isto Hobbes esclarece essa questão da seguinte
forma:

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 192-202 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Hobbes, T. (1997). De la Nature Humaine,


"Por isso, segue-se também que quais- traduzido do inglês para o francês pelo barão
quer acidentes ou qualidades que os d´Hilbach, comentário de E. Roux. Saint-
nossos sentidos nos fazem pensar que Amand-Montrond: Actes Sud.
existam no mundo, não estão lá, consti- Hobbes, T. (1993). Do Cidadão, tradução de
tuindo apenas aparências e aparições. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins
As coisas que realmente estão no mun- Fontes.
do, fora de nós, são os movimentos que Hobbes, T. (1976). Exame do ‘De Mundo’ de
causam essas aparências.” (Hobbes, Thomas White, tradução inglesa do Latim fei-
1983: 56) ta por Harold Whitmore Jones cujo título é
Thomas White´ s De Mundo examined. Brad-
Existindo no mundo apenas aparên- fort: Bradford University.
cias e aparições, a realidade se encontra sub- Hobbes, T. (2003). Leviatã. (Monteiro, J.P. e
sumida nas representações visuais. A forma Silva, M.B.N., Trad.). São Paulo: Martins
como vemos as coisas é então a forma como o Fontes.
visível se manifesta. Tudo isso constitui a ins- Hobbes, T. (1985). Leviathan. London: Pen-
tigante e ainda hoje pouco explorada teoria guin Books.
óptica de Hobbes. A relação do desejo com as Hobbes, T. (1983). A Natureza Humana (tra-
cores ou a metafórica comparação da filosofia dução para o português da primeira parte dos
política com “lentes prospectivas... que per- Elementos da lei d Hobbes). Lisboa: Imprensa
mitem ver de longe” (Hobbes, 2003: 158) são Nacional – Casa da Moeda.
algumas das questões que surgem de forma Hobbes, T. (1975-1999). Tratado Óptico I.
surpreendente diante de nossos olhos quando (Ross, G.M., Trad.). Disponível no endereço
examinamos o mundo predominantemente eletrônico: http://www.philosophy.leeds.ac.uk
visual de Hobbes. /GMR/hmp/texts/modern/hobbes/optics/tracto
pt.html.
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Thomas Hobbes (Molesworth, W. Ed.). Lon-
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principes, edição bilíngüe inglês-francês, sob L´Apparence dans L´Optique de L´Antiquité.
os cuidados de J. Bernhardt. Paris: P.U.F. Paris: Éditions du Seuil.
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Zarka, Y.C. (1986). Vision et désir chez n° 8. Paris: CNRS.


Hobbes. Em: Recherches sur le XVII' siecle,

Notas

(1) É de se observar que já no CurtoTratado Hobbes se refere ao termo lux como luz primitiva e ao termo lumen como
luz derivada. Na medida que “por luz primitiva se entende lux [e] por [luz] derivada lumen” surge então como corolário
que assim como “a luz primitiva e a cor estão para os corpos luminosos ou coloridos assim a luz derivada e a cor estão
para as espécies”.
(2) Segundo Prins a óptica de Hobbes não é geométrica uma vez que ela está determinada causalmente pelo movimento.
A óptica de Hobbes estaria, ainda segundo Prins, situada no plano da física matemática. Zarka sugere, ao contrário, que
ela é geométrica e remete ao começo do De Homine onde Hobbes diz que a óptica é uma ciência demonstrativa da
mesma forma que a geometria, de modo que, continua Zarka, é importante não confundir “os movimentos da matéria
que produzem em nós a representação da luz ou do calor com as qualidades sensíveis”.1 Em nossa opinião, são dois
diferentes enfoques da teoria óptica de Hobbes que não precisam ser necessariamente excludentes. Há em Hobbes a
compatibilidade entre uma mecanização da luz e uma geometrização do olhar, o que podemos observar, por exemplo,
através da passagem em Hobbes das razões físicas da luz para o ato da construção geométrica do visível, ou ainda pela
comparação do termo lux com o termo lumen.
(3) Isto é, no Tractatus Opticus I e II, no De Homine, etc.
(4) Cf. Zarka, idem, p. 137.
(5) Cf. Prins, op. cit., pp. 303-304.
(6) O motivo pelo qual Hobbes deixou a primeira parte do First Draught, isto é, a teoria da luz, fora do De Homine ain-
da hoje é um mistério para os que estudam sua teoria óptica. Seria porque ao tratar do homem (De Homine) ele pensava
que as razões físicas da luz podem ser subsumidas na noção de luz como fantasma de nosso mundo interior? O fato é
que dois anos depois do First Draught Hobbes escreve no inicio do Leviathan (1651) — sua obra política maior — que
embora “o próprio objeto real pareça confundido com a aparência que produz em nós, mesmo assim o objeto é uma
coisa, e a imagem ou ilusão uma outra”. A critica à doutrina óptica escolástica da emissão da luz por species visível é o
recurso que Hobbes usa no Leviathan para sustentar a diferença entre percepção visual e a realidade. Aristóteles criticou
Protágoras por não diferenciar sensação e imaginação. O primeiro capítulo do Leviathan é dedicado ao exame da sensa-
ção e o segundo capitulo ao exame da imaginação. Mas ao contrário de Aristóteles, embora Hobbes num primeiro mo-
mento diferencie sensação e imaginação, num segundo momento ocorre a subsunção da imaginação à sensação, isto
pelo fato que para ele “a imaginação é uma sensação diminuída”.
(7) Simon, G. op. cit., p. 197.
(8) Cf. Zarka, op. cit., p. 138.
(9) É de se observar, contudo que o componente racional não está presente nesse estágio de argumentação. Em outras
palavras, as correções efetuadas pelo raciocínio — por exemplo, aquelas relativas às ilusões ópticas — remetem a um
plano objetivo que não interessa a Hobbes nesse estágio do argumento. (A critica de Hobbes das Species invisíveis dos
escolásticos, por exemplo, é uma critica da razão dirigida a todos aqueles que postulam raciocínios equivocados por não
conseguirem decifrar os enganos da visão natural a partir da distinção entre a dimensão do aparecer e a dimensão da
realidade ou ainda a partir da distinção entre o que é da ordem da subjetividade e o que é da ordem da objetividade.) O
que realmente importa aqui é que “por natureza” a luz e a cor são compreendidas como fantasmas puramente subjetivos
que determinam o modo como vemos as coisas.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 15/10/2007 | Revisado em 28/11/2007 | Aceito em 29/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Ensaio

Robôs como artefatos


Robots as artifacts

Dulce Maria Halfpap, Gilberto Corrêa de Souza e João Bosco da Mota Alves

Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (EGC), Universidade Fede-


ral de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

Resumo

Robôs são artefatos criados pelo homem. Essa visão é apresentada a partir da investigação primeira do
papel do conceito de artefato na evolução da história humana, até o desenvolvimento de artefatos es-
pecíficos, os robôs. Esses também foram então destacados na história da humanidade como artefatos
especiais que tentam reproduzir as funções humanas. Nessa empreitada foram identificadas gerações
de robôs, as quais puderam exemplificar melhor o desenvolvimento dos robôs como artefatos na soci-
edade humana, desde seu surgimento até os dias de hoje. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 203-
213.

Palavras-chaves: robôs; artefatos; história.

Abstract

Robots are artifacts created by man. This vision has been presented since the earliest investigation of
the role of the artifact concept in the evolution of human history until the development of specific arti-
facts, the robots. These were also pointed out in the humanity history as special artifacts that try to
reproduce the human functions. In that effort, generations of robots were identified, which could bet-
ter exemplify the development of the robots as artifacts in the human society, since its beginning until
today. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 203-213.

Key Words: robots; artifacts; history.

1. Introdução ser distintos, justamente porque a idéia inicial


que se tem de artefato é que se trata de algu-
Antes de discorrer sobre robôs, consi- ma coisa elaborada artesanalmente, mais ru-
dera-se pertinente neste momento, colocar em dimentar. Em geral, não é bem assim. Pode-se
discussão o conceito de “artefato” e demons- observar que existem outras perspectivas a
trar como essa palavra se relaciona com a ro- serem adotadas.
bótica1. Tais termos, aparentemente parecem Sobre o significado do termo artefato

 - G.C. de Souza é Graduado em Processamento de Dados (CESUPA), Mestre em Ciência da Computação (UFSC)
e Doutorando em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC). E-mail para correspondência:
gilberto@egc.ufsc.br; D.M. Halfpap é Graduada em História (UFSC), Mestre e Doutora em Engenharia de Produção
(UFSC). E-mail para correspondência: dulce@rexlab.ufsc.br; J.B.M. Alves é Graduado em Engenharia Elétrica (Uni-
versidade Federal da Paraíba), Mestre em Engenharia Elétrica (UFSC) e Doutor em Engenharia Elétrica (Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Atua como Professor no Departamento de Informática e Estatística (UFSC). E-mail para
correspondência: jbosco@inf.ufsc.br.

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utilizado neste artigo, buscou-se suporte em alguns dicionários2, como segue:

Autor Conceito de artefato


Ferreira (1978) a) Produto da indústria. Var. de artefato.
b) Do lat. Arte factu, ‘feito com arte’; var. de artefacto.
Ferreira (1999) c) Qualquer objeto manufaturado; peça.
d) Observação ilusória durante uma medição ou experiência científi-
ca e que se deve a imperfeições no método ou na aparelhagem.
e) Observação ilusória durante uma
Merriam-Webster3 f) Something created by humans usually for a practical purpose;
espe-cially: an object remaining from a particular period <caves
containing prehistoric artifacts>;
g) Something characteristic of or resulting from a human institution
or activity <self-consciousness ... turns out to be an artifact of our
education system – Times Literary Supplement>;
h) A product of artificial character (as a scientific test) due usually to
extraneous (as human) agency - ar.ti..fac.tu.al adj.
Stanford Encyclopedia of i) An artifact may be defined as an object that has been intentionally
Philosophy4 made or produced for a certain purpose. Often the word ‘artifact’
is used in a more restricted sense to refer to simple, hand-made
objects (for example, tools) which represent a particular culture
(This might be termed the “archaeological sense” of the word). In
experimental science, the expression ‘artifact’ is sometimes used
to refer to experimental results which are not manifestations of
the natural phenomena under investigation, but are due to the par-
ticular experimental arrangement.
Houaiss (2001) j) Produto de trabalho mecânico; objeto, dispositivo, artigo manufa-
turado;
k) Aparelho, engenho, mecanismo construído para um fim determi-
nado [...].
Quadro 1 - Classificação de artefato.

Em geral, as interpretações apresenta- e à evolução da inteligência e Wilson (1975


das mostram algo em comum. Neste artigo, apud Burke, 2002: 179-180), resume bem to-
utilizam-se aquelas do Dicionário Houaiss da essa trajetória quando diz que:
(2001), que são consensuais com as demais.
Então se artefato é qualquer objeto feito à “Os homens mais primitivos, ou ho-
mão, então se deduz que artefato pode ser vá- mens-macacos, começaram a andar ere-
rias coisas. Com efeito, as explicações ora tos quando passaram a viver a maior
apresentadas são consideradas significa-tivas parte ou a totalidade do tempo no chão.
quando se associa artefato à robótica, além de Suas mãos ficaram livres, a manufatura
ajudar a esclarecer, inclusive, o título deste e manipulação de artefatos tornou-se
artigo. mais fácil e a inteligência cresceu à me-
À vista disso, recorre-se à história para dida que o hábito de utilização de fer-
tornar mais compreensível esta polêmica com ramentas foi aprimorado. Com a capa-
o seguinte questionamento: a partir de quando cidade mental e a tendência a usar arte-
o homem começou a construir artefatos? Uma fatos aumentando mutuamente, toda a
resposta imediata seria: a construção dos pri- cultura material expandiu-se. A espécie
meiros artefatos que se tem notícia remonta à dirigiu-se, então, para a trilha dupla de
história da origem do comportamento humano evolução: a evolução genética pela sele-

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ção natural ampliou a capacidade de de- uma bomba atômica. Refletindo sobre tudo
senvolvimento da cultura, e a cultura isso, destaca-se a questão do conhecimento
aumentou a aptidão genética daqueles como condição primordial para a construção
que dela faziam máximo uso. A coope- de artefatos de um modo geral.
ração durante a caça foi aperfeiçoada e Ampliando um pouco mais essa dis-
proporcionou um ímpeto novo à evolu- cussão, Dennett (1998: 151), comple-menta:
ção da inteligência, a qual, por sua vez,
permitiu sofisticação ainda maior no “[...] se isso estiver certo, então todas as
uso de ferramentas, e assim por ciclos realizações da cultura humana – lingua-
repetidos de causalidade. A distribuição gem, arte, religião, ética, a própria ciên-
das atividades de caça e de coleta de ou- cia – são artefatos (ou artefatos de arte-
tros alimentos contribuiu para aguçar as fatos...) do mesmo processo fundamen-
habilidades sociais.” tal que desenvolveu as bactérias, os
mamíferos e o Homo sapiens.”
Ilustrando esta citação, menciona-se
algumas cenas do filme de Kubrick (1968) - Pensamento que é corroborado por
“2001: Uma Odisséia no Espaço”, quando um Burke (2002). Em conformidade com o histo-
macaco faz uso de um pedaço de osso da car- riador Burns (1972), a história registra que os
caça de um animal e, ao bater com ele com primeiros artefatos criados pelo homem apa-
uma das mãos, descobre a partir daí, a ampli- recem no período Paleolítico Inferior, quando
ação do poder da sua força. A aptidão para o homem de Neanderthal já fazia uso de al-
manipular e criar outros instrumentos equiva- guns instrumentos como, armas e utensílios
lentes e utilizar para determinados fins de- que suprissem as deficiências da força muscu-
monstra já ter adquirido a capacidade de abs- lar. A princípio, eram simples galhos de árvo-
tração dando início à construção do edifício res utilizados como porretes. Depois, desco-
da civilização. O ato de manipular aquele ob- bre que lascando as pedras poderia dar-lhes
jeto e fazer uso dele, não vem sozinho. Ele gumes cortantes. A parte mais grossa da pedra
utiliza o seu cérebro, as suas mãos, para exe- (o que sobrava), era segurada na palma da
cutar aquela tarefa. Em outras palavras, o re- mão, dando origem ao machado manual de-
sultado da força daquele ancestral do homem, sempenhando as funções de: rachador, serra,
revela que ele já dispõe dos primeiros equi- faca e raspador. No final desse período, sur-
pamentos cognitivos para realizar algumas gem métodos mais aperfeiçoados de lascar a
atividades mentais com funções essenciais de pedra. Passa a utilizar as próprias lascas dan-
sobrevivência: do acaso à necessidade, a vida do início à manufatura de pontas de lanças,
fez emergir a consciência. São cenas inusita- facas, perfuradores e raspadores bem mais
das que resumem graficamente o texto antes eficientes.
citado. No Paleolítico Superior, o Homem de
De fato, ao longo do processo evolu- Cro-Magnon convive com instrumentos e u-
cionário, o homem desenvolveu: seu cérebro, tensílios mais aperfeiçoados e com mais vari-
sua inteligência, sua capacidade de raciocínio, edades. Utiliza além das lascas de pedra e
a linguagem e outras habilidades bem mais hastes de ossos, outros materiais como o chi-
poderosas e complexas do que qualquer outra fre de rena e o marfim. Exemplos de artefatos
espécie. Isso quer dizer que o homem atingiu mais complicados começam a surgir: a agulha
um nível de conhecimento que pode ser con- de osso, o anzol, o arpão e a flecha. O uso de
siderado como fundamental para a sua sobre- roupas (feitas de peles de animais costuradas
vivência. umas às outras) já aparece, visto o homem
O conhecimento permitiu ao homem a ca- desse período ter feito botões de ossos e de
pacidade de construir desde uma simples lan- chifres e por ter inventado a agulha.
ça para abater uma caça para o seu sustento e É provável que o homem de Cro-
de sua família, ao mais sofisticado projeto de Magnon utilizava adornos feitos de dentes de

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animais e conchas perfurados. Contudo, a su- Em resumo, segundo Burns (1972), as verda-
prema realização do Homem de Cro-Magnon, deiras pedras angulares da cultura neolítica
foi a sua arte – escultura, pintura, entalhe e foram, sem dúvida, a domesticação de ani-
gravação, acham-se bem representados em mais e o desenvolvimento da agricultura.
uma clara evidência de que está registrando os Um grande passo no desenvolvimento
seus construtos, o que já pode diferenciá-lo da espécie humana foi a possibilidade de usar
dos outros animais (Burns, 1972). uma linguagem. A invenção da escrita tornou
Pela arte o homem primitivo teria co- possível estocar informação e conhecimento
meçado a refletir, dando um enorme salto no fora do cérebro humano e tudo leva a crer
desenvolvimento cognitivo, desenvolvendo que, num certo sentido, a invenção da lingua-
um cérebro com um excesso de possibilidades gem escrita indica o nascimento da ciência.
criativas, usadas para a solução de problemas Entretanto, não se pretende aprofundar esta
mais complexos e para a arte. Com isso vão discussão porque tende a ultrapassar as fron-
aparecendo as várias subjetividades no ser teiras desta proposta, ou seja, trabalhar com o
humano. Os padrões rígidos coletivos sendo conceito de “artefato”, termo tão utilizado e
alterados em várias culturas, com valores e nem sempre bem compreendido, porém, não
modos de viver diversos (Pacheco e Silva Fi- no sentido lato, mas restrito à construção de
lho, 2003). objetos de uma maneira geral.
No período Neolítico, as armas e os Esse retrospecto histórico é importante
instrumentos de pedra passaram pelo método na medida em que favorece o reconhecimento
do polimento através do atrito, ao contrário que homem, ao longo do seu processo evolu-
dos períodos anteriores, quando utilizava o tivo, atingiu uma enorme capacidade intelec-
sistema de fratura e separação de lascas. O tual. Isto lhe permitiu desenvolver uma extra-
nível de progresso material é bem mais ex- ordinária cultura e a tendência, é avançar
pressivo, sobretudo no que diz respeito ao de- sempre porque a busca do conhecimento não
senvolvimento da agricultura e da domes- cessa e não pode ser interrompida; faz parte
ticação de animais. da natureza humana.
O homem neolítico era produtor de a- No princípio, os procedimentos eram
limentos. Tais circunstâncias demonstram que extremamente simples e rudimentares e, nem
o homem desse período começa a se sedenta- poderia ser diferente. Entretanto, quando o
rizar. O aumento mais rápido da população homem foi se tornando mais criativo e exi-
torna-se viável favorecendo o desenvol- gente, esses mesmos artefatos evoluem e ad-
vimento das instituições: a família, a religião quirem contornos mais sofisticados, com ou-
e o estado. É provável que uma das causas da tras utilidades e com mais aplicações até atin-
origem do estado – talvez a mais importante – gir o atual nível tecnológico. Afinal, eles fo-
remonta no desenvolvimento da agricultura. ram e devem continuar sendo criados para
Inventou os primeiros barcos e jangadas, o cumprir um objetivo. Como salienta Dennett
que contribuiu para a sua difusão para várias (1998: 24), “[...] a meta ou o propósito de um
partes do mundo. Destacam-se ainda as artes artefato é a função a que ele deve servir de-
de tecer e fiar pano. Foi o primeiro a fabricar signada pelo seu criador”.
cerâmica e descobriu o fogo através do atrito. Quando se trata de procurar os ante-
Observa-se que a faculdade inventiva do ho- passados de todo esse arsenal tecnológico tal
mem neolítico era bem mais aguçada do que a como hoje é visto, sentido e usufruído, não se
dos seus antepassados. Novos instrumentos e pode esquecer que todas essas descobertas
habilidades técnicas são acrescentados ao seu possuem efeitos multiplicadores, já que se
arsenal. Construiu casas de madeira e barro repercutem em muitas outras ações, bem dife-
secado ao sol e no final desse período, desco- rentes e mais aprimoradas.
briu a possibilidade do uso dos metais e já Depois de tudo que foi analisado, re-
apareciam alguns instrumentos de cobre e ou- toma-se à questão inicial, ou seja, quando se
ro entre os demais artefatos do seu cotidiano. associa artefato à robótica a partir das expli-

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cações dadas, torna-se mais fácil compreender O desejo veemente de construir robôs
que um robô é apenas um exemplo de artefa- não é de hoje. Alguns fatos remetidos à histó-
to, aliás, é o artefato mais moderno e mais em ria mostram que a idéia é muito antiga e se
voga hoje. O que foi apresentado é o ponto de levado às últimas conseqüências, ver-se-á que
partida para uma compreensão mais facilitada o conceito de robô acompanha a história do
da robótica, das suas aplicações e de suas in- homem, ou seja, desde quando os mitos fazi-
ter-relações com a sociedade. am alusão a certos mecanismos que passavam
Considerando que artefatos podem ser a ter vida. Desta feita, os primeiros registros
várias coisas, diz-se ainda que eles poderiam de seres artificiais com capacidades humanas,
ser ou não, inteligentes. A propósito, a ques- envolvem mitos e lendas. A história ilustra
tão da inteligência, hoje embutida no conceito com alguns fatos muito significativos.
de artefato, é fruto da época contemporânea e Segundo Pazos (2002), no Egito anti-
será esclarecido mais adiante, especialmente go sacerdotes construíram os primeiros braços
quando forem mencionados os robôs atuais. mecânicos que eram utilizados em estátuas de
Contudo, antes de falar sobre inteligência, deuses com a intenção de atuar sob a “inspi-
toma-se a dianteira com as manifestações de ração” daqueles, como meio de impressionar
Piaget (apud Calvin, 1998: 11): “[...] inteli- o povo. Na Grécia antiga, há registros de está-
gência é aquilo que você utiliza quando não tuas que operavam hidraulicamente. Na Idade
sabe o que fazer [...]”. Esta ênfase de Piaget, Média, havia relógios no cume das igrejas e
aparentemente simples, por si só pode ajudar exibiam uma figura humana de tamanho natu-
a compreender que inteligência não é sim- ral, às vezes em forma de anjo, ou mesmo de
plesmente uma aptidão inata defendida e a- demônio, fazia movimentos com um martelo
pregoada por muitos, isto é, somos ou não que batia num sino para marcar as horas. A
inteligentes. Ela envolve esperteza, criativi- lenda de Golém, por exemplo, é um dos fatos
dade, improvisação, intuição, capacidade crí- mais interessantes do passado mítico. Conta a
tica, tomada de decisão, capacidade de memo- lenda que:
rização e outros atributos mais. Como arrema-
ta Calvin (1998: 23): “a inteligência diz res- “Joseph Golém era um homem artificial
peito ao processo de improvisação e aprimo- que teria sido criado no fim do século
ramento na escala temporal do pensamento e XVI por um rabino de Praga, na Tche-
da razão”. coslováquia, que resolvera construir
Certamente é isso que se deseja das uma criatura inteligente, capaz de espi-
nossas máquinas inteligentes. As pesquisas onar os inimigos dos judeus – então
em Inteligência Artificial caminham nesta di- confinados no gueto de Praga. O Golém
reção. Sem dúvida é um desafio, porém, não é teria sido criado a partir de um boneco
de hoje que os cientistas defrontam-se com de areia esculpido pelo rabino, que lhe
grandes desafios em todo o campo científico concedeu também o dom de falar e ra-
que tendem a ressurgir com mais força, à me- ciocinar. A lenda diz que o Golém era
dida que a ciência avançar cada vez mais para de fato um ser inteligente, mas que um
tentar explicar os mistérios da mente humana. dia se revoltou contra seu criador, o
Essa introdução é o ponto de partida qual então lhe tirou a inteligência e o
para uma compreensão da robótica, para cla- devolveu ao mundo do inanimado.”
rear a idéia de robô, a grande variedade deles (Teixeira, 1990: 17)
e, sobretudo, para as finalidades para as quais
são projetados e suas implicações tecnológi- Nos séculos XVII e XVIII, prolifera-
cas. Na seqüência, será examinado o início ram muitos mitos e lendas a respeito de seres
desse processo. artificiais. O caso do flautista mecânico, do
célebre “pato de Vaucanson”, o leão animado
2. Histórico da robótica de Leonardo da Vinci e seus esforços para
fazer máquinas que reproduzissem o vôo das

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aves, são alguns exemplos. Porém eram arte- Mais tarde, Asimov, acrescentou uma
fatos muito limitados (para nós, hoje), pois quarta lei - a Lei Zero: “Um robô não pode
não podiam realizar mais do que uma tarefa, causar mal à humanidade nem permitir que
ou um número bem reduzido delas. Mas, tal- ela própria o faça6.”
vez resida aí o início desta inquietação huma- As leis propostas são vistas hoje atra-
na. vés de uma perspectiva puramente relaciona-
Houve muitas outras invenções mecâ- da à ficção, uma vez que na época em que fo-
nicas durante a revolução industrial sendo a ram escritas, não se poderia prever o avanço
grande maioria, direcionada aos interesses da vertiginoso nesta área.
produção têxtil. A máquina de fiar de Cromp- Entretanto, duas tecnologias desen-
tom de 1779 (Pazos, 2002: 7), é um exemplo volvidas mais recentemente e consideradas
entre tantas outras. como o antecedente imediato da robótica, me-
Em 1805, a boneca construída por recem destaque: o comando numérico (final
Henri Maillardet em Londres, escrevia e de- da década de 40 e início de 50) e o teleco-
senhava com precisão. “Levava uns cinco mi- mando. A primeira se baseia no trabalho ori-
nutos para executar uma tarefa e tinha vários ginal de John Parsons:
itens no seu repertório (armazenados numa
memória mecânica) que podiam ser selecio- “Essa tecnologia é utilizada para contro-
nados” (Pazos, 2002: 6). Hoje ela pode ser lar as ações de uma máquina operatriz,
vista no Franklin Institute de Pensilvânia – a qual é programada por meio de núme-
Estados Unidos. ros, que podem ser introduzidos através
O conceito de robótica há muito con- de um teclado ou pela leitura de um car-
vive conosco. Ele evoluiu do conceito de au- tão perfurado. Esses números podem
tomação. Derivada do grego, automação sig- especificar, por exemplo, as diferentes
nifica: “having motion within itself5 ” (Mor- posições das ferramentas da máquina
timer, 1987: 1). para efetuar uma usinagem adequada
O termo robótica aplica-se ao estudo, numa peça.” (apud Pazos, 2002: 7)
à construção e à utilização de robôs em geral.
Foi expresso pela primeira vez em 1942 pelo A segunda tecnologia, o telecomando,
cientista e escritor Isaac Asimov, numa histó- trata do uso de um manipulador remoto con-
ria chamada “Runaround” (História da Robó- trolado por um ser humano:
tica, 1998). Na verdade, Asimov começou a
escrever histórias sobre robôs em 1939, em- “O manipulador é um dispositivo, em
butidas de salvaguardas. Tais salvaguardas geral eletro-mecânico, que pode ser
foram formalizadas em três leis para a robóti- uma garra, um braço mecânico ou ainda
ca, “hoje tidas como código de ética dos pro- um carro explorador, que reproduz os
fissionais da área” (Alves, 1988: 1). São as movimentos indicados por um operador
seguintes: humano localizado num local remoto.
Esses movimentos podem ser indicados
1ª lei: Um robô não pode prejudicar um ser pelo operador através de um joystick ou
humano ou, por omissão, permitir que o algum outro tipo de dispositivo adequa-
ser humano sofra dano. do. O telecomando é especialmente útil
2ª lei: Um robô tem de obedecer às ordens no manuseio de substâncias perigosas,
recebidas dos seres humanos, a menos que tais como materiais radiativos, a altas
contradigam a Primeira Lei. temperaturas, tóxicos ou explosivos. O
3ª lei: Um robô tem de proteger sua própria operador pode ficar num lugar situado a
existência, desde que essa proteção não en- uma distância segura, e manipular o ma-
tre em conflito com a Primeira e a Segunda terial observando e guiando os movi-
Leis (Asimov, 1997, p. 9). mentos do manipulador através de uma

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janela ou de um circuito fechado de te- de robôs mágicos da ficção científica que a


levisão.” (Pazos, 2002: 7) robótica trata, pelos menos, até agora. Na
verdade, os roboticistas concentram suas pes-
Uma aplicação do telecomando muito quisas na produção de artefatos e no desen-
utilizada hoje é na medicina, em cirurgias rea- volvimento de robôs como máquinas informá-
lizadas em órgãos pequenos, como por exem- ticas, com sistemas complexos com funções
plo, olhos e ouvidos, o que permite maior interligadas, com a finalidade de processar
precisão de movimentos. informações. Suas ações dependem da varie-
A base do robô moderno encontra-se dade de informações que elas consigam pro-
na combinação de telecomando e comando cessar. Neste contexto, de acordo com Mar-
numérico. Contudo, é tão somente no início tins (1993: 10): “robótica é a ciência dos sis-
do século XX, que a idéia de construção de temas que interagem com o mundo real com
robôs ganha corpo devido a necessidade de pouca ou mesmo nenhuma intervenção huma-
aumentar a produção e da melhora da quali- na”.
dade dos produtos. E é nesse período que o Para conceber os mais variados dispo-
robô industrial encontrou suas primeiras apli- sitivos robóticos, esta ciência é uma área
cações. transdisciplinar em grande expansão. Necessi-
Em 1950, Asimov publicou o livro “I, ta de conhecimentos de vários campos cientí-
Robot”, um verdadeiro clássico da ficção ci- ficos: da microeletrônica, da engenharia me-
entífica. Por muito tempo a robótica não pas- cânica, da engenharia elétrica, da matemática
sou disso. Os robôs eram vistos em história e de outras ciências e, como não se poderia
em quadrinhos, filmes, livros e até mesmo em deixar de mencionar, da Inteligência Artifici-
peças teatrais. A propósito, a palavra robô tem al. Busca o desenvolvimento e a integração de
origem numa das suas mais prestigiadas peças técnicas e algoritmos para a criação de artefa-
de teatro do autor tcheco Karel Capek, apre- tos inteligentes ou não, sendo o artefato de
sentada em Praga no início do século XX, in- maior popularidade hoje, o robô. É esta sinto-
titulada Rossum’s Universal Robots nia com várias áreas do conhecimento, reque-
7
(R.U.R.) . rida pela robótica, que tem possibilitado o a-
A palavra robô, de origem tcheca – vanço nesse campo.
robota - quer dizer trabalhador forçado, que Para uma melhor compreensão da ro-
na obra de Karel Capek, se refere ao robô bótica e seu relacionamento com a sociedade
Rossum (cientista) e seu filho, criados para é importante esclarecer, dentro do possível, o
prestar serviços à humanidade de forma obe- que significa um robô e porque estas criações
diente e servil vindo este termo posteriormen- de laboratórios de Inteligência Artificial se
te a generalizar-se na indústria por causa da distinguem de outras máquinas. Algumas de-
evolução introduzida pela automação. No de- finições são de origem mais abstratas e vêem
senrolar da tragédia tais “criaturas” se rebe- os robôs como sistemas que interagem com o
lam contra seus criadores assumindo o co- mundo real. Outras, mais técnicas, os conside-
mando. É a imaginação do autor utilizada pa- ram como verdadeiras máquinas animadas,
ra criticar o progresso tecnológico introduzido porém, outras ainda mais detalhadas ajudam a
na Europa pelos norte-americanos. sintetizar suas principais características não só
A exemplo desta tão famosa peça tea- dos já existentes, bem como dos que ainda
tral, a ficção científica ganha corpo e inúme- estão por vir.
ros filmes do gênero foram produzidos. Entre Na verdade, inúmeras definições têm
os mais famosos estão: “O dia em que a terra surgido como é o caso desta, por exemplo,
parou” de 1951, “2001: Uma odisséia no es- baseada na idéia francesa de robô, assim ex-
paço” de 1968, “Guerra nas estrelas” de 1977, pressa: “Robô é um dispositivo automático
entre tantos outros. E, bem recentemente, o adaptável a um meio complexo, substituindo
filme “AI” de Spielberg, que trata de um robô ou prolongando uma ou várias funções do
dotado de consciência. Mas, não é esse tipo homem e capaz de agir sobre seu meio” (Mar-

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tins, 1993: 13). Este conceito pode ser compa- b) capacidade de excluir por inspeção;
rado com a moderna interpretação do pesqui- c) capacidade de identificar peças;
sador canadense, Marshall McLuhan, ao afir- d) capacidade de posicionar peças.
mar que: “todo produto da tecnologia, de al-
guma forma, faz estender nossos sentidos e No entanto, existem controvérsias por
nervos” (apud Martins, 1993: 13). Neste con- parte da Japan Industrial Robot Association
texto, alguns exemplos como o automóvel e (JIRA), que defende que máquinas operadas
outros meios de transporte seriam extensões pelo homem podem ser consideradas robôs,
de nossos pés, assim como os meios de co- independentemente da complexidade delas.
municação, rádio, TV, etc., estendem as capa- Como se pode observar, as divergências entre
cidades do nosso sistema nervoso central: fa- os profissionais desta área são visíveis. Po-
la, audição e visão. rém, independente dos desacordos, seria pos-
Assim são os robôs quando substituem sível uma definição que possa ser adotada
ou prolongam uma ou mais funções humanas mundialmente? O que se pode adiantar, é que
ao agirem nos ambientes para os quais foram a robótica entre nós se mostra incipiente e o
projetados e tem impulsionado enormemente caminho a ser percorrido é longo e árduo.
o desenvolvimento da robótica. Entre outras A chegada dos robôs propriamente di-
aplicações, os robôs são utilizados para pintar tos é muito recente; deu-se nos inícios dos
automóveis a pistolas (a spray), para fundir anos 60, agindo no complexo mundo da pro-
metais ou plásticos, para misturar produtos dução industrial. Desde então, vem ganhando
químicos, para desativar bombas, na pesquisa espaço e desempenhando tarefas geralmente
científica e educacional, etc. difíceis de altíssimo risco para o homem, ou
Entre as definições de robô apresenta- extremamente cansativas.
das, salienta-se aquela que é oficializada pela
Associação das Indústrias de Robótica (antigo 3. Gerações de robôs
RIA – Robot Institute of América), que o de-
fine como: “a programmable, multifunction Aqui serão consideradas três gerações
manipulator designed to move material, de robôs9, a saber:
parts, tools, or specific devices through vari-
able programmed motions for the performan- • Primeira Geração: Robô Pick-and-Place;
ce of a variety of tasks8” (Roussel e Norvig, • Segunda Geração: Robô Play-Back; e,
1995: 773). • Terceira Geração: Robô Inteligente.
Este conceito, um pouco mais abran-
gente, coloca em evidência os termos ‘mani- Importante ressaltar que, dessas, as
pulador’ e ‘programável’, característicos do duas primeiras gerações continuam a ter apli-
robô propriamente dito excluindo, assim, cer- cações generalizadas. A terceira geração, os
tas máquinas que não são robôs como, os ele- chamados Robôs Inteligentes não apenas têm
trodomésticos de um modo geral, que para limitação em aplicações, como também care-
muitos se confundem com eles. Entretanto, ce de consenso sobre suas reais característi-
este conceito é válido para os robôs da segun- cas, uma vez que a própria palavra “inteligen-
da geração. te” ainda é objeto de debate em várias áreas
De acordo com Martins (1993: 15-16), do conhecimento, da psicologia à tecnologia.
esses conceitos parecem não satisfazer os No entanto, aqui será levado a cabo o fato de
pesquisadores da área da robótica, argumen- que essa terceira geração de robôs é necessá-
tando que são por demais simplificados e in- ria, como será visto na breve descrição de ca-
completos e por não se referirem às caracte- da uma delas, a seguir.
rísticas fundamentais dos robôs atuais, ou se-
ja: 3.1. Primeira geração: robô pick-and-place

a) sensitividade;

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A primeira geração de robôs é caracte- É comum ver-se nos pátios de monta-


rizada por movimentos simples de ida e volta, doras de veículos automotores os robôs de
com o efetuador (garra, etc.) abrindo-se e fe- segunda geração, com aplicações em pintura,
chando-se para a realização de tarefas como solda, montagem, etc. Se um robô de segunda
manipulação repetitiva de materiais. Nesta geração está executando uma tarefa de solda a
categoria encontram-se os alimentadores de ponto na linha de produção de um modelo de
papel em gráficas, manipuladores de materiais automóvel, por exemplo, a mudança de sua
incandescentes em metalúrgicas, etc. tarefa para um outro modelo se dá através da
O controle dos robôs de primeira ge- mudança do programa que fará o robô execu-
ração é feito por curso e parada mecânica, a- tá-la.
través de parafuso sem fim, o que equivale Importante salientar, no entanto, que
dizer que a programação de uma tarefa para os robôs de segunda geração não necessaria-
esses robôs é quase inflexível, e feita com mente possuem sensores externos, que o fari-
muito pouca liberdade de mudança. Em outras am capazes de monitorar mudanças em seu
palavras, os robôs de primeira geração não ambiente de trabalho. Nisso, os robôs de se-
possuem flexibilidade de programação de no- gunda geração se igualam aos de primeira ge-
vas tarefas, o que limita muito sua aplicação ração. Há casos, é verdade, em que alguma
em células flexíveis da manufatura. Ainda, forma de sensoriamento é agregada ao efetua-
pode-se afirmar que (os robôs de primeira ge- dor do robô, trazendo alguma facilidade na
ração) tem um número bastante reduzido de execução de tarefas. Mas isso representa uma
tarefas diferentes as quais pode executar. exceção, não a regra. Isto é, o robô de segun-
Além disso, os robôs de primeira ge- da geração não é capaz de descobrir, por si só,
ração não possuem sensores externos para se o modelo de automóvel não é mais o mes-
monitoração de seu ambiente de trabalho. mo e, sozinho, tomar a decisão de mudar o
Com isso, alguma mudança ocorrer em seu programa (tarefa) para atender a esta mudan-
ambiente, que por ventura vier a ocorrer, a ça. Evidentemente que, se o número de mode-
mesma não é detectada pelo robô. Por exem- los é pequeno, pode-se até prever algumas
plo, se a peça que o robô deveria pegar, para (poucas) situações em que tal mudança pu-
deslocá-la para outro lugar, não estiver no de- desse efetuar-se. Mas, ainda assim, isso teria
vido lugar, o robô se comporta como se a um custo elevado.
mesma lá estivesse. Isso pode ocasionar para- Também, isso seria exigir demais da
das obrigatórias em uma linha de produção, segunda geração de robôs, pois alguma coisa
por exemplo. parecida com inteligência (seja isso o que for)
estaria presente. Daí a necessidade de uma
3.2. Segunda geração: robô play-back nova geração de robôs, a terceira, os chama-
dos robôs inteligentes.
A segunda geração de robôs conseguiu
superar a limitação observada nos robôs de 3.3. Terceira geração: robô inteligente
primeira geração, ampliando significativa-
mente o número de tarefas diferentes as quais A necessidade de se dotar um robô de
pode executar. Tendo seu controle efetuado capacidade de tomar decisão em situações não
por computador digital, a programação de previstas leva, necessariamente, a uma nova
uma tarefa é armazenada em um programa de geração de robôs, a qual se convencionou
computador, escrito em uma linguagem dedi- chamar de robô inteligente. Note que, para a
cada ao robô alvo. Isso significa que mudança mudança da primeira para segunda geração de
de tarefa equivale a mudança do programa robôs, a área tecnológica foi auto-suficiente.
correspondente. Essa flexibilidade é a princi- Mas, da segunda para a terceira geração, isso
pal característica que diferencia a primeira da não é possível. Uma das razões para isso é o
segunda geração de robôs. fato da área tecnológica ser extremamente

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eficiente em “como fazer”, e não necessaria- inteligente terá que descobrir, sozinho "o que
mente em “o que fazer”. fazer" em certas situações. Isso já é suficiente
O nome, inteligente para a terceira ge- para ter-se uma idéia da complexidade envol-
ração de robôs, deve ser explicitado, o que é vida em projetos de robôs de terceira geração.
feito a seguir: do latim, intellegere, significa Não é a toa que a robótica, literalmente, parou
aprender, mas ela é muito mais que a capaci- na segunda geração. Não há nada de novo na
dade de aprender. Além da capacidade de a- área (Dyson, 1999), preocupando-se apenas a
prender, é preciso levar em conta uma série de desenvolver brinquedos para ricos.
outros atributos, tais como: raciocínio, memo- É imperativo, portanto, que trabalhos
rização, adaptação ao meio e, ainda, a moti- como este ganhem espaço no meio científico,
vação e o esforço. Verifica-se, então, como pois uma vez que novos modelos mentais são
John McCarthy (2007), conceitua inteligên- disponibilizados pela neurociência, podem ser
cia: “intelligence is the computational part of colocados em uma linguagem formal e, a par-
the ability to achieve goals in the world. tir daí, poderem ser tentados em robôs, agora
Varying kinds and degrees of intelligence oc- sim, de terceira geração.
cur in people, many animals and somemachi-
nes”. 4. Conclusões
A inteligência é um processo. Se fosse
possível chegar a um consenso sobre o con- As três gerações de robôs contemplam
ceito de inteligência, provavelmente facilitaria a totalidade dos robôs implementados hoje.
a árdua tarefa de caracterizar os assim chama- Sejam fixos ou móveis, antropomórficos ou
dos robôs inteligentes. Essa complexidade da não. Aliás, algumas pesquisas sobre robôs
inteligência dificulta não só a compreensão da antropomórficos, como os que auxiliam no
inteligência propriamente dita, como também estudo do equilíbrio de bípedes (que não pode
a ampliação dessa compreensão para os robôs. ser considerado um problema trivial, tam-
A evolução presenteou a nós, seres bém), podem ser de grande ajuda para pessoas
humanos, com capacidade de tomada de deci- com dificuldade de locomoção9.
são. E, também, aos animais e, até certo pon- É interessante, também, colocar o ro-
to, aos vegetais. Mas, principalmente, aos se- bô, independente de sua geração, como mais
res humanos. Aprender um pouco o que signi- um artefato de automação. Nada mais que is-
fica essa capacidade pode ser o "caminho das so. Ou seja, ele representa a tentativa da capa-
pedras" para a mudança da segunda para a cidade intelectual do ser humano de exercer
terceira geração de robôs. E essa é uma tarefa as funções superiores de sua mente em ação:
não trivial, uma vez que, a área tecnológica procurar facilitar a vida.
sozinha, não é capaz de tal façanha. Como diz
o poeta, "vamos precisar de todo mundo": 5. Referências bibliográficas
psicologia, pedagogia, evolução, etologia, en-
genharia, educação, etc., e, principalmente, a Alves, J.B.M. (1988). Controle de robô.
neurociência, pois ela é que tem nos presente- Campinas: Editora Cartgraf.
ado (neste inicio de milênio), com pesquisas Asimov, I. (1997). O homem bicentenário.
sobre novos modelos mentais. Tais modelos (Persson, M, Trad.). Porto Alegre: L&PM E-
podem ser de grande utilidade para dotar os ditores, (Original Publicado em 1976).
robôs de terceira geração de capacidade de Burke, T. J. (2002). Vida e morte na terra.
tomada de decisão em situações não previstas. Blumenau: Editora da FURB.
Em resumo, a principal característica Burns, E.M. (1972). História da civilização
da terceira geração de robôs (robô inteligente) ocidental: do homem das cavernas até a
é a sua capacidade de monitorar seu ambiente bomba atômica. 2. Ed. (Machado, L.G., Ma-
e, em função de mudanças ambientais, tomar chado, L.S. e Vallandro, L., Trads.). Porto
decisões que podem, inclusive, modificar este Alegre: Editora Globo. (Original Publicado
próprio ambiente. Em outras palavras, o robô em 1941).

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Calvin, W.H. (1998). Como o cérebro pensa: Kubrick, S. (1968). 2001: Uma Odisséia no
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Dennet, D.C. (1998). A perigosa idéia de ro: Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke. Mú-
Darwin: a evolução e os significados da vida. sica: Danúbio Azul. Local: Warner Home Ví-
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VCH Publishers. tificial. São Paulo: Editora Brasiliense.

Notas

(1) Importante: Este artigo é uma compilação de capítulo de mesmo título da tese de doutorado de Dulce Halfpap, de-
fendida em 2005, Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (EGC), Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
(2) Os dicionários não necessariamente contemplam definições técnicas, todavia se foi buscar de outras fontes para
ajudar a esclarecer temas como: artefato, mente, consciência e memória; que são tratados neste trabalho.
(3) a) Alguma coisa criada pelo homem, geralmente para uma finalidade prática; especialmente: um objeto remanes-
cente de um período específico (cavernas contendo artefatos pré-históricos); b) alguma coisa característica de, ou
resultante de uma atividade ou instituição humana – self-consciousness... resulta num artefato de nosso sistema de
educação – Times Literary Supplement; c) um produto de caráter artificial (assim como em um teste científico) ge-
ralmente devido a uma ação externa (humana). Tradução livre). Disponível no endereço eletrônico:
http://www.merriam-webster.com/dictionary/artifact
(4) Um artefato pode ser definido como um objeto que foi intencionalmente feito ou produzido para um determinado
propósito. Frequentemente a palavra ‘artefato’ é usada em um sentido mais restrito ao se referir a objetos feitos a
mão simples (ferramentas) que representam uma cultura em particular. (Este pode ser o sentido arqueologico da pa-
lavra). Em ciência experimental, a expressao artefato é usada para se referir a resultados experimentais os quais não
são manifestações do fenômeno natural estudado, mas são devidos a uma configuração em particular do experimen-
to. Tradução livre). Disponível no endereço eletrônico: http://plato.stanford.edu/entries/artifact/#Oth.
(5) Aquilo que se movimenta por si mesmo. Tradução livre.
(6) Isaac Asimov. Disponível no endereço eletrônico: http://en.wikiquote.org/wiki/Isaac_Asimov#Three_Laws
_of_Robotics
(7) Os Robôs Universais de Rossum.
(8) Um robô é um manipulador programável, multifuncional projetado para manipular materiais, peças, instrumentos,
ou dispositivos específicos através de vários movimentos programados para desempenhar uma variedade de tarefas.
(Tradução livre).
(9) Obtida em palestra sobre Robótica, proferida pelo Prof. João Bosco da Mota Alves, no RExLab/UFSC, no dia 14
de outubro de 2005.

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Submetido em 13/10/2007 | Revisado em 27/11/2007 | Aceito em 28/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007

Ensaio

Cognição e texto: a coesão e a coerência textuais


Cognition and text: the literal cohesion and coherence

Carmen Elena das Chagas

Estudos de Linguagem, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil

Resumo

Este trabalho objetiva apresentar um estudo sobre a importância da coesão e da coerência na constru-
ção da progressividade do texto, mas tomando como modelo, o processo cognitivo que ambas necessi-
tam para exercer o fundamental papel de elementos lingüísticos presentes na superfície textual, pois se
interligam e se interconectam, por meio de recursos também lingüísticos, de modo a formar um “teci-
do” no contexto em que estão inseridas. Utilizando os pressupostos teóricos da Lingüística Textual e
os fundamentos dos autores cognitivistas, observarei o desenvolvimento dos modelos cognitivos que
as justificam, proporcionando a continuidade de sentido. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 214-
218.

Palavras-chave: sentido; modelos cognitivos; coesão; coerência; progressão textual.

Abstract

This paper objectives to present a study on the importance of the cohesion and the
coherence in the construction of the progressive of the text, taking as model the cognitve process that
both need to exert the basic paper of linguistic present elements in the literal surface, that if they es-
tabilish connection and if they interconnect, by means of also linguistic resources, in order to form
one text in the context where they are inserted. Using the estimated theoreticians of the Linguistic and
the bedding of the cognitivistes authors, I will observe the development of the cognitives models that
justify them, providing the direction continuity. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 214-218.

Key Words: signification; cognitive models; cohesion; coherence; progression.

1. Introdução
um usuário da linguagem entendeu o discurso.
A interpretação real é um ato mental, Beaugrande e Dressler (1981: 37) pos-
precisamente, um processo cognitivo de usuá- tulam que o texto é originado por uma multi-
rios da linguagem. O resultado deste processo plicidade de operações cognitivistas interliga-
é uma representação conceitual do discurso na das, “um documento de procedimentos de de-
memória. Se esta representação é satisfatória cisão, seleção e combinação”, de maneira que
para um número de propriedades, diz-se que caberia à Lingüística Textual desenvolver

 - C.E. das Chagas é Mestranda na Área de Linguagem, Sub-área Língua Portuguesa (UFF). Atualmente, é Profes-
sora de Língua Portuguesa dos Ensinos Fundamental e Médio. Apresenta interesse por pesquisa nas áreas de Língua
Portuguesa, especificamente Lingüística Textual, Análise do Discurso e Sociolingüística. E-mail para correspondência:
carmenelena@bol.com.br.

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modelos procedurais de descrição textual ca- tanto, estruturas de expectativa são mecanis-
pazes de dar conta dos processos cognitivos mos poderosos que nos possibilitam a chegar
que permitem a integração dos diversos sis- a uma representação mental e manter o inte-
temas de conhecimentos dos usuários da co- resse pelo texto.
municação, na descrição e na descoberta de
procedimentos para a sua atualização e para o 2. Coesão e coerência
tratamento no quadro das motivações e estra-
tégias da produção e compreensão dos textos. A coesão e a coerência no texto falado
A mente humana é um processador de infor- mostram que o estudo destes dois fatores que
mação, ou seja, ela recebe, armazena, recupe- constituem o texto deve ser feito de forma
ra, transforma e transmite informação, bem diferenciada dos textos escritos, pois a con-
como os processos correspondentes que po- versação se produz de maneira dialógica, já
dem ser estudados como padrões. que se refere a uma criação coletiva.
Van Dijk (1977) defende que o pro- A coerência apresenta-se como um
cessamento cognitivo de um texto consiste de princípio de interpretabilidade do texto, en-
diferentes estratégias processuais, entenden- volvendo fatores de ordem cognitiva, intera-
do-se estratégia como “uma instrução global cional e lingüística. Este princípio se relacio-
para cada escolha a ser feita no curso da a- na à boa estrutura do texto, estabelecendo a
ção”. Tais estratégias são hipóteses operacio- partir de uma unidade de sentido o que a ca-
nais eficazes sobre a estrutura e o significado racteriza como ato global, ou seja, refere-se
de um fragmento de texto ou de um texto in- ao texto como um todo. “É algo que se articu-
teiro. Falar em processamento estratégico sig- la pela interação, num processo de construção
nifica dizer que os usuários da língua reali- mútua, pelas relações estabelecidas e percebi-
zam, simultaneamente, em vários níveis pas- das pelos falantes” (Aquino, 1991: 85).
sos interpretativos finalisticamente orienta- O falante utilizará certos sinais lin-
dos, efetivos, flexíveis, e eficientes . güísticos no texto com o objetivo de dar pistas
O cognitivo apresenta-se sob a forma para ajudar os interlocutores a chegar a uma
de representações e tratamento ou formas de representação mental adequada. Este uso de
processamento da informação. Pode-se, as- meios lingüísticos para facilitar a coerência
sim, dizer que a memória opera em três mo- pode ser definido como coesão textual. As-
mentos ou fases. Estocagem, quando as in- sim, um sinal de coesão indica como a parte
formações perceptivas são transformadas em do texto na qual ele aparece se liga conceitu-
representações mentais associadas a outras; almente a outra parte do texto. Este sinal,
retenção, quando se dá o armazenamento das normalmente, é designado como elo coesivo.
representações; e reativação, quando se opera, A coesão é bem comum no discurso, isto nos
entre outras coisas, o reconhecimento, a re- leva a acreditar que ela tem uma função co-
produção, o processamento textual. municativa grande: possibilitar a coerência
Existem duas maneiras gerais para se em alguns casos.
construir representações mentais. No proces- Um sinal de coesão indica como a par-
samento “de-baixo-para-cima” o falante co- te se liga, conceitualmente, com uma outra
meça com eventos perceptuais individuais que parte do texto. É normal referir-se a estes si-
ocuparão os mais baixos níveis da representa- nais como ligações ou elos coesivos. Cada
ção e se constrói generalizações sucessivas língua possui seus próprios meios de utilizar a
para dar sentido a esses dados. No processa- coesão. Ela pode ocorrer através de: expres-
mento “de-cima-para-baixo” revela um con- sões descritivas que, na representação mental,
fronto com um número de fatos bem limitado. o conceito se liga a um anterior, contribuindo,
O falante importa um esquema mental inteiro, assim, para a coerência; identidade que faz
com toda sua estrutura já feita e todos os seus ligação com formas idênticas ou com referên-
compartimentos disponíveis, mesmo que va- cia ou denotações idênticas; relações lexicais
gos. Assim, qualquer que seja a fonte, entre-

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que ocorrem através de hiponímia e meroní- do e, conseqüentemente, a coerência estão


mia e outros meios afins. armazenados na memória em forma de estru-
Um texto é coerente se descreve fatos turas cognitivas como conceitos, modelos
conhecidos ou que sejam relacionados entre cognitivos globais e superestruturas.
si. Em termos mais cognitivos, portanto, um Os conceitos são um conjunto de co-
texto é coerente se puder ser interpretado em nhecimentos guardados nas memórias semân-
um modelo mental ou formal. tica e episódica, em unidades consistentes,
mas não estanques.
“Os temas “coesão” e “coerência” estão Os modelos cognitivos globais são
longe de uma definição clara. Na con- blocos de conhecimentos utilizados, intensa-
versação, a coesão não pode ser defini- mente, no processo de comunicação e que re-
da em termos estritamente formais, pois presentam de forma organizada nosso conhe-
o texto se produz dialogicamente, con- cimento armazenado na memória. Dividem-se
corrência de dois ou mais agentes. A em:
coerência não é uma unidade de sentido
e sim uma dada possibilidade interpreta- 1- Frames são situações estereotipadas e sem
tiva resultante localmente. Dois interlo- ordenação em nossa memória como, por
cutores se entendem não só são coeren- exemplo, elementos que se referem ao
tes no que dizem, mas principalmente, carnaval (serpentina, mascarado e samba)
porque sabem do que se trata em cada ou ao Natal (chaminé, presentes, ceia).
caso. E quando não sabem, manifestam 2- Esquemas são seqüências ordenadas previ-
seu desentendimento de modo a integrá- síveis e fixas como, por exemplo, a situa-
lo como parte efetiva no próprio texto.” ção de um casamento, um acidente ou a-
(Marcuschi, 1986: 02) niversário.
3- Planos são possibilidades onde se pode
O texto conversacional é coerente, perceber a intenção do escritor ou do fa-
mas acontece é que o mesmo obedece a pro- lante como procedimentos para conseguir
cessos de ordem cognitiva e, muitas vezes, um emprego ou uma promoção.
torna-se difícil detectar as marcas lingüísticas 4- Scripts é quando se pode especificar os pa-
e discursivas dessa ocorrência, pois ela nem péis dos participantes de forma determi-
sempre se dá com base nessas marcas, mas na nada como, por exemplo, características
relação entre os referentes. Desta forma, um de crianças ou de adolescentes.
texto conversacional pode ser considerado 5- Cenário são situações que se estendem ao
coerente se os referentes apresentados pude- domínio da referência como a idéia de a-
rem ser organizados como pertencentes ao tos que acontecem num clube, numa esco-
mesmo quadro. Além disso, estes referentes la ou num tribunal.
precisam fazer parte de um conjunto, isto é,
os elementos presentes no co (n) texto devem Já as superestruturas compõem a for-
ser pertinentes. ma global de um texto e definem a organiza-
Breaugrande e Dressler (1981) consi- ção e as relações hierárquicas entre seus
deram constituírem a coesão e a coerência fragmentos.
níveis de análise. A coerência apresentada Os estudiosos do texto afirmam que a
muitas vezes, macrotextualmente, refere-se à coerência depende, acima de tudo, de nosso
maneira como os elementos do universo tex- conhecimento prévio e não só dos modelos
tual (Levinson et al., 2004) se unem numa cognitivos globais citados acima, mas sim do
configuração de modo acessível e relevante. elemento base, situado em nosso conhecimen-
Isto é, a coerência é o resultado de processos to de mundo que sustenta todos os outros, já a
cognitivos operantes entre os usuários e não coesão é bem constante no discurso, pois in-
uma simples parte dos textos. Esses conheci- dica que ela possui uma carga de comunica-
mentos que determinam a produção de senti- ção expressiva. A coesão está para a coerên-

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cia como a forma lingüística que se usa está elaboração de informações, mas na (re) cons-
para aquilo o que se quer expressar. trução do próprio real. Os objetos-de-
discurso não se confundem com a realidade
3. Progressão referencial externa ao ato lingüístico, mas (re) constro-
em-na no próprio desenvolvimento da intera-
A progressão referencial de um texto ção. Assim, a realidade é construída, mantida
refere-se às estratégias lingüísticas por meio e alterada não apenas pela forma como se
dos quais se firmam (estabelecem) entre seg- nomeia o mundo e sim pela forma como, só-
mentos do texto diversos tipos de relações ciocognitivamente, interage-se com ele. Os
semânticas ou pragmático-discursivas, contri- sujeitos interpretam e constroem o mundo na
buindo para a progressão do texto. interação com os espaços físico, social e cul-
Weinrich (1964) postula uma “estru- tural.
tura determinativa” cujas partes são interde- Marcuschi e Koch (apud Abaurre,
pendentes, sendo todas necessárias à inter- 2002) examinam alguns aspectos de dois con-
pretação. Esta interdependência é permitida, juntos de estratégias de progressão referencial
às vezes, pelo uso de diversos mecanismos de na língua falada: primeiro, a referenciação por
seqüenciação encontrados na língua. meio de expressões nominais definidas e, se-
Koch (2006: 7) mostra que a referen- gundo, a referenciação anafórica sem antece-
ciação constitui uma atividade discursiva, dente explícito. Ambas desempenham papel
pressuposto este que implica uma visão de importante na organização do texto e, por de-
não-referenciação da língua e da linguagem. corrência, na construção do sentido. Ambas
Na mesma linha de pensamento Mondada e dizem respeito à sucessão de referentes, um
Dubois (apud Cavalcante et al., 2003) subli- aspecto central no processo de textualização e
nham que no lugar de pressupor uma estabili- fator relevante da coesão e da coerência.
dade a “priori” das entidades no mundo e na
língua, é possível reconsiderar a questão de 4. Conclusão
estabilização, pois os objetos-de-discurso pe-
los quais os indivíduos entendem o mundo Desta forma, conclui-se que a progres-
não são preexistentes, nem dados, porém são são textual precisa garantir a continuidade de
elaborados no desenrolar de suas atividades, sentidos e o permanente ir e vir responsável
transformando-se a partir dos contextos. pela tessitura do discurso. Assim, para propi-
A referenciação privilegia a relação ciar o constante movimento de progressão e
intersubjetiva e social, na qual as referências de retroação, o produtor dispõe de uma série
do mundo são elaboradas e avaliadas de acor- de estratégias ou procedimentos que desen-
do com a adequação dos objetivos das ações volvem um papel relevante que, também, são
que estão em desenvolvimento nos enuncia- destinados a assegurar uma continuidade de
dores. Segundo Castilho (2004), durante a referentes, ou melhor, de objetos de discurso,
interação, tomam-se decisões sobre como adquirida pela cadeia referencial que não
administrar o pensamento, que palavras esco- permite que estes objetos sejam arquivados,
lher, que propriedades ativar. Essa adminis- permanecendo em estado de ativação na me-
tração configura um conjunto de momentos mória de trabalho durante o processamento
mentais, no sentido etimológico de “movi- textual.
mentos”. Três conjuntos simultâneos de ins- Representações mentais não ficam li-
truções, três movimentos ou processos discur- mitadas à compreensão de discurso, mas são
sivo-computacionais podem ser aí identifica- ferramentas mais gerais, fundamentais para a
dos: a ativação, a reativação e a desativação. cognição humana. A organização que os ou-
Ainda Koch e Marcuschi (apud Koch vintes associam a um determinado discurso é
et al., 2005) defendem que a discursivização um reflexo da maneira como o conteúdo é
ou textualização do mundo por meio da lin- visto como coeso pelo ouvinte e assim fica
guagem não consiste em um mero processo de armazenado na sua mente. Outros fatores que

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 214-218 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

contribuem para a representação mental que Aquino, Z.G.O. (1991). A mudança de tópico
os ouvintes têm do discurso são os seus co- no discurso oral dialogado. Dissertação de
nhecimentos prévios de como as coisas acon- mestrado. São Paulo: PUC- SP.
tecem no mundo real, junto com as suas ex- Beaugrande, R. e Dressler, W.N. (1981).
pectativas sobre o que o falante pretende di- Einfhrung in die Textlinguistik. Tübingen:
zer, pois os discursos nos forçam a utilizar Niemeyer.
tudo o que sabemos sobre a nossa cultura, Castilho, A. (2004). A língua falada no ensino
língua e o mundo. de português. 6ª ed. São Paulo: Editora Con-
O produtor de um texto cumpre regras texto.
gerais de coesão e coerência e usa um núme- Cavalcante, M.M.; Rodrigues, B.B. e Ciulla,
ro elevado destas estratégias ou destes proce- A A. (2003). Referenciação. São Paulo: Edi-
dimentos eficientes para conseguir alcançar a tora Contexto.
unidade do texto. Estas articulações cogniti- Koch, I.G.V. (2006). Introdução à lingüística
vas e sociais podem desenvolver pequenos textual. São Paulo: Editora Martins Fontes.
cortes interpretativos quando o interlocutor Koch, I.G.V.; Morato, E.M. e Bentes, A.C.
fala fora do tópico ou quando algum turno (2005). Referenciação e Discurso. São Paulo:
parece incoerente com o turno anterior. O fa- Editora Contexto.
lante pode reagir quando uma tomada de tur- Levinsohn, S.H. e Dooley, R.A. (2004) Análi-
no anterior for brusca, pode acrescentar algum se do Discurso – conceitos básicos em lin-
detalhe explicativo sobre determinado assunto güística. 2ª Edição. Petrópolis: Editora Vozes.
ou usar uma troca de turno para uma ratifica- Marcuschi, L.A. (1986). Análise da Conver-
ção, retomando o que fora afirmado antes. sação. São Paulo: Editora Ática.
Tais estratégias semânticas fazem parte de um Negri, L.; Foltran, M.J. e Oliveira, R.P.
conjunto de elos comunicativos e interacio- (2004). Sentido e significação: em torno da
nais usados para estabelecer certos objetivos obra de Rodolfo Ilari. São Paulo: Editora
como, por exemplo, compreender o mundo. Contexto.
van Dijk, T.A. (1977). Text and context.
5. Referências bibliográficas Londres: Longman.
Weinrich, H. (1964). Tempus: besprochene
Abaurre, M.B.M. (Org.) (2002). Gramática and erzählte welt. Stuttgard: Kokthammer.
do Português Falado – Novos estudos descri-
tivos. Vol. VIII. São Paulo: UNICAMP.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
S u b me t i d o e m 1 6 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Ensaio

O uso de narrativas autobiográficas no desenvolvimento profissional


de professores
The use of autobiographical narratives in the professional development of teachers

Denise de Freitas, a e Cecília Galvãob


a
Departamento de Metodologia de Ensino, Centro de Educação e Ciências Humanas, Universi-
dade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, São Paulo, Brasil; bCentro de Investigação
em Educação, Departamento de Educação, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, Lis-
boa, Portugal

Resumo

Utilizar o recurso da narrativa autobiográfica levou-nos a inscrever nossos episódios de vida pessoal e
profissional e encontrar lugar para os significados das trajetórias e das práticas de formadoras de pro-
fessores. A narrativa pessoal nos ajudou a perceber como nos fomos construindo profissionalmente.
Duas questões constituíram-se como fios da investigação: 1) Que momentos marcantes identificamos
na nossa vida profissional? 2) Como descrevemos esses momentos e como explicamos teoricamente a
sua influência no nosso desenvolvimento profissional? A própria construção da metodologia de inves-
tigação se constitui em uma narrativa na medida em que a recolha de dados são as escritas autobiográ-
ficas sobre os percursos singulares que foram sendo construídas por nós, investigadoras, no entrecru-
zamento de nossas histórias de professoras e formadoras de professores e pesquisadores. A análise
ressignifica e reinterpreta os olhares que temos de nós mesmas, pondo em evidência outras emoções e
razões das quais antes não nos tínhamos apercebido. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 219-233.

Palavras-chave: narrativas de professores; desenvolvimento profissional; pesquisa


autobiográfica.

Abstract

 - D. Freitas é Doutora em Educação (FEUSP) com Pós-doutoramento (Universidade de Lisboa). Atua como Pro-
fessora Associada do Departamento de Metodologia de Ensino (UFSCar) e como Pesquisadora no Programa de Pós-
Graduação em Educação (UFSCar) no campo da Educação (sub-áreas: i) formação de professores de Ciências; ii) e-
ducação científica; iii) inovação curricular; iv) educação ambiental). Endereço para correspondência: Departamento de
Metodologia de Ensino (UFSCar). Rodovia Washington Luis, Km. 235, SP 13565-905. Telefone: (16) 3351-8662. E-
mail para correspondência: dfreitas@power.ufscar.br. C. Galvão é Graduada em Ciências Biológicas, Mestre em E-
ducação na área de Metodologia do Ensino das Ciências e Doutora em Educação (FCUL). Atua como Professora no
Departamento de Educação, Faculdade de Ciências (Universidade de Lisboa). Leciona e Investiga nas áreas de De-
senvolvimento Curricular, Educação em Ciências, Desenvolvimento Profissional de Professores, Narrativa em Educa-
ção, Educação para a Saúde e Educação Ambiental. Participa do Grupo de Coordenação do Centro de Investigação em
Educação e a Comissão Executiva do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lis-
boa. Endereço para correspondência: Departamento de Educação da Faculdade de Ciências (Universidade de Lisboa),
Campo Grande, Edifício C6, Piso 1, 1749-016, Lisboa, Portugal. Telefone: (351) 21 75 000 49, E-mail para corres-
pondência: cgalvao@fc.ul.pt.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Making use of such means as the autobiographical narrative has led us to put into words our personal
and professional life stories and to find a place to the meaning of those paths and our practices as
teacher educators. The personal narrative has helped us to notice how we’ve been developing as pro-
fessionals. Two questions have become the thread of investigation: 1) What meaningful moments do
we identify in our professional life? 2) How do we describe such moments and how do we explain
theoretically their influence on our professional development? The construction of the investigation
methodology becomes a narrative itself, considering that the data collecting refers to the autobio-
graphical writings about the remarkable paths which have been built by us, researchers, in the inter-
section of our stories as teachers and teacher/researcher educators, and researches. This analysis
brings a new meaning and a new reading on the way we see ourselves, also setting in evidence other
emotions and reasons which we hadn’t been aware of. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 219-
233.

Key Words: teachers´ narratives; professional development; autobiographical re-


search.

Introdução

“Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa,


de algum modo, escrito em mim. Tenho é que me copiar...”
Clarice Lispector

Olhar para o passado pode ajudar-nos são dessa consciência individual, o recurso à
a encontrar explicação para significados nas narrativa, trazendo à luz o que está escondido,
ações que temos hoje como pessoas que fo- configura-se como um método que estabelece
ram construindo um percurso pessoal e pro- ligação entre o processo mental e o discurso
fissional rico de cruzamentos com os outros e que o exprime (Bruner, 1991: 6), isto é, “a
a dar sentido ao nosso posicionamento como narrativa opera como instrumento do pensa-
professoras e formadoras de professores. As mento ao construir a realidade”. Como diz
nossas intenções são acadêmicas, mais do que Hannah Arendt, é no espaço para palavras que
pessoais, embora saibamos que a pessoa e o se podem produzir verdades de si. E por meio
profissional se interligam e se expressam de do autoconhecimento e da experiência de si,
um modo completo e integrado (Moita, 1995). Michel Foucault considera que se dá o pro-
O recurso à narrativa autobiográfica inscreve- cesso de subjetivação, experiência entendida
se na idéia de que, ao narrarmos episódios como “o que nos passa, o que nos acontece, o
com significado, os analisaremos de uma que nos toca. Não o que se passa, o que acon-
forma contextualizada, tentando que essa aná- tece, ou o que toca” (Larrosa, 2002: 21).
lise ponha em evidência emoções, experiên- Com esta investigação, procuramos
cias ou pequenos fatos marcantes, dos quais saber quem somos ou, citando Heikinen
antes não nos tínhamos apercebido. (1998), como me tornei quem sou?
Para Bakhtin (1981: 345), há uma Florbela Espanca, a esse respeito, diz
“decisiva significância na evolução da consci- magistralmente no poema “Eu” o seguinte:
ência individual, à medida que a pessoa dis-
tingue o seu próprio discurso do de outros, “Até agora eu não me conhecia.
entre o seu próprio pensamento e o de outras Julgava que era Eu e eu não era
pessoas”. O discurso internamente persuasivo, Aquela que em meus versos descrevera
para Bakhtin, está fortemente interligado com Tão clara como a fonte e como o dia.”
a “própria palavra”; mesmo no “pensamento
próprio” e na compreensão dialógica da lin- “Mas que eu não era Eu não o sabia
guagem, esse discurso é metade nosso e me- E, mesmo que o soubesse, o não dissera…
tade do outro, construindo-se sobre elementos Olhos fitos em rútila quimera
de discursos de autoridade. Para a compreen- Andava atrás de mim e não me via!”

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Quantas vezes nos descrevemos a par- Do mesmo modo, desejamos curvar o


tir de imagens que fomos criando, longe do espaço guiando reflexões que poderão dar no-
nosso verdadeiro eu, tentando que os outros vas direções aos conhecimentos no campo da
nos devolvam a imagem que pensamos que formação de professores e de pesquisadores
estamos a transmitir-lhes, mas apenas nos en- na educação científica.
ganamos a nós próprios. Tentaremos, a partir dos momentos
Vamos neste artigo procurar que a nar- que identificamos como marcantes e que nos
rativa de nós nos ajude a perceber como nos permitem fazer um balanço retrospectivo, isto
fomos construindo profissionalmente, através é, olhar para o caminho percorrido, para os
de um olhar mais personalizado, tentando que acontecimentos, as situações, as atividades, as
o eu e o Eu do poema se tornem coincidentes pessoas com significado, perceber:
e consistentes.
Optamos por partir de um problema “os recursos, os projetos, os desejos que
central: como construímos, narrativamente, o são portadores de futuro. No passado
nosso processo de desenvolvimento profissio- não há somente as coisas que ocorre-
nal? E desenhamos, com base nele, duas ques- ram, há também todo o potencial que
tões de investigação: cada indivíduo tem para prosseguir a
sua existência de futuro.” (Josso, 2004a:
1) Que momentos marcantes identificamos na 16)
nossa vida profissional?
2) Como descrevemos esses momentos e co- O querer da caminhada é guia pela grafia
mo explicamos teoricamente a sua influência da memória
no nosso desenvolvimento profissional?
A própria construção da metodologia
Na idéia da curvatura de espaço- de investigação se constitui em uma narrativa,
tempo, em “que o espaço e o tempo interagem na medida em que não se pode dissociar a fa-
e são relativos um ao outro e que o espaço é se de recolha de dados dos percursos singula-
curvo” (Elbaz-Luwisch, 2002: 25), se harmo- res que foram sendo construídos por nós, in-
niza nosso “desejo narrativo” neste trabalho. vestigadoras, no entrecruzamento de nossas
Queremos poder revisitar um tempo passado histórias de professoras e formadoras de pro-
de nossas vidas e, ao recontá-lo, potencializar fessores e pesquisadores. Ou seja, são duas
novos significados do nosso presente e pers- histórias com começo, meio e fim, que dialo-
pectivar a construção do devir, em consonân- garam para a sua construção.
cia com a forma como Cavaco (1991: 157)
vislumbra esse movimento no meio físico e O início: reconhecimento da empatia para
social. desnudar

“Num universo saturado de informação Como é natural da vida social dos se-
tecem-se as palavras e os factos, as re- res humanos, procuram-se permanentemente
gras e os usos, os implícitos e os explí- situações de estabilidade para manutenção do
citos, em processos de fluidez movedi- eu. Dependendo da posição que se ocupa na
ça, reveladora do jogo das forças con- profissão, impõem-se níveis de exigências
trastantes. O sentido das coisas torna-se mais ou menos elevados em relação à preser-
difuso e, todavia, em cada um de nós vação de identidade profissional. Via de re-
coexistem, em cada momento, memó- gra, na academia a exigência e a inflexibilida-
rias do passado e expectativas de futuro de estão colocadas em patamares muito ele-
que se combinam na forma como vive- vados. Dessa forma, a entrega para elaborar
mos o presente e contribuímos para o nossas próprias narrativas, neste trabalho, não
modelar, projetando-o no devir.” esteve alheia a esse tipo de resistência devido
à personalidade, como caracteriza Huberman

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(1973), uma vez que as nossas imagens pes- detalhados pelo prazer de reviver cada espaço,
soais e profissionais poderiam estar em jogo. cada canto, cada cheiro, cada sabor; é a delí-
Acreditamos que esta perspectiva foi cia de ser a si reinventada numa escrita livre e
se despontando depois que farejamos e reco- marota trazendo para fora o seu lado mais a-
nhecemos pontos de confluência em nossas legre da infância.
maneiras de ser e estar na vida e em nossas Apesar das diferenças culturais, o re-
trajetórias pessoais. Apesar das diferenças, sultado dessas narrativas foi o mesmo obser-
inclusive de pátrias (Brasil e Portugal), a i- vado por Sousa (2005: 105):
dentificação de inúmeras similaridades permi-
tiu a aproximação por indicar possibilidades “[...] quando homens e mulheres profes-
de compreensão. sores narram suas histórias de vida e de
De forma natural, o projeto deste arti- formação observa-se que, em maior ou
go nasce ao mesmo tempo em que incorría- menor grau, elas estão articuladas à fa-
mos na etapa do discurso. Era o início de um mília, à escola, aos grupos de convívio,
percurso metodológico para a construção das que funcionam como espaços de cons-
narrativas em que “a forma oral é importante, trução e de reprodução de padrões soci-
pois a memória não funciona num ápice, é almente aceitos de feminilidade e mas-
necessário criar condições que facilitem a re- culinidade.”
memorização da sua história” (Josso, 2004b).
O “desejo narrativo” foi ativado de forma in- Ao evocarem as memórias nos territó-
tensa e logo seus primeiros traços figuravam rios escolar e familiar, os acontecimentos e-
no papel. mergiram e fizeram novamente história. E a
força e o poder das palavras escritas fizeram
Cartografias das narrativas: os primeiros “coisas conosco” e nos colocaram novamente
esboços “diante de nós mesmos, diante dos outros e
diante do mundo em que vivemos” (Larrosa,
Traçando suas escritas... 2002: 21).

Uma de nós sentiu necessidade de rea- Elaborando suas leituras...


lizar a narrativa sem interrupção, sem parada,
e nessa retrospectiva a narrativa surge como Nós, interlocutoras primárias dessas
uma catarse constantemente “interrompida” narrativas, trocamos os olhares, os pedaços de
para dar lugar à objetivação. Os fatos da sua vida não revelados. Ao mesmo tempo em que
história de vida foram ordenados temporal- a leitura e releitura evocavam em cada uma
mente e dispostos numa seqüência classifica- nova profusão de acontecimentos, aqueles que
tória de acordo com a expressão máxima de foram colocados de lado não por serem menos
sua relação com os momentos considerados marcantes, mas por ficarem algures sem sa-
por si como charneiras. Assim, foram dispos- bermos, por ora, os porquês, os significados e
tos em fila seus antecedentes e suas conse- os significantes do conteúdo foram intensa-
qüências, colocados ali de forma apressada e mente compartilhados. Os focos foram para as
apertada, quase “pisando os calcanhares uns diferenças, mas, principalmente, para as simi-
dos outros”. laridades que ajudaram a consolidar a confi-
Para outra de nós, ao começar, a escri- ança.
ta desperta o sabor que a ela lhe é peculiar. Para nós, esta fase funcionou como
Pouco a pouco, lentamente, aquecendo a me- uma transferência simbólica do processo psi-
mória, as reminiscências vão tomando conta canalítico (Villani, 1999). Uma espécie de
de si e ganhando dimensão própria, impassí- ajuste inicial em que aspectos simultaneamen-
veis ao controlo. Os acontecimentos, ainda te cognitivos e subjetivos entram em jogo.
com lugar no tempo, andam errantes. E como Acreditar que o Outro tem escopo e saber pa-
que suspensos no ar, sem lacunas, os fatos são ra ajudar e orientar-nos no encontro de nós

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mesmas foi fundamental para a entrada e a tido ao controle público e do estado e era ava-
manutenção neste processo quase analítico, liado publicamente. Não havia diferença entre
mesmo que sustentadas por esta passageira, o ponto de vista biográfico e autobiográfico.
mas necessária, ilusão. Na era Helênica e Romana, alguns re-
Desse encontro das leituras, surgem tóricos puseram a questão: é permitido um
movimentos para inclusões dos acontecimen- relato do próprio eu? A resposta positiva diri-
tos. Devemos continuar ou paramos onde es- giu-se para a imagem que os gregos clássicos
tamos? Quais as implicações num e noutro tinham da existência humana e das coisas e
caso? O que interessa para uma pesquisa cien- nesta não havia o conhecimento de uma reali-
tífica? Interromper o desejo e a necessidade dade invisível, portanto, “a unidade da totali-
de falar sobre si é lícito na perspectiva adota- dade externalizada do homem era de natureza
da da indissociabilidade entre a pessoa e o pública” (Bakhtin, 1981: 135). Nas épocas
professor? seguintes, a imagem do homem foi distorcida
Com o apoio advindo do discurso de pelo aumento de participação nas esferas mu-
autoridade, especificamente em Bakhtin das e invisíveis da existência. E com elas veio
(1981), verificamos que as autobiografias ao a solidão. O pessoal e dividido ser humano
longo da história da civilização traçam uma perdeu a unidade e totalidade que tinha sido
tipologia e esta se relaciona com o conceito um produto de origem pública, tornou-se abs-
de público e privado, realidade interior e exte- trato e idealista. Um vasto número de novas
rior versus indissociação do campo visível e esferas de consciência e de objetos apareceu
invisível, esferas do silêncio e da exposição na vida privada do indivíduo, esferas essas
do discurso. que, em geral, não eram tornadas públicas (a
As autobiografias platônicas envolvem sexual e outras).
uma autoconsciência individual relacionada Nos dias atuais, portanto, num contex-
com as formas estritas de metamorfose. No to novo, as escritas personalizadas que refle-
seu íntimo, está o “curso da vida à procura do tem a influência do esquema platônico incor-
verdadeiro conhecimento” (Bakhtin, 1981: poram um novo objetivo. Recentemente, o
130). Nelas, a vida aparece partida em épocas que obtemos no inventário de uma pessoa é a
ou degraus bem demarcados. Vai da ignorân- exposição dos seus acontecimentos, o registro
cia autoconvencida, passa pelo cepticismo dos seus sucessos, com um comentário auto-
autocrítico, por autoconhecimento e, final- biográfico público. É a seqüência da obra
mente, por conhecimento autêntico. No es- própria pelo próprio que fornece o sólido su-
quema platônico, há um momento de crise e porte para se compreender a passagem do
de renascimento como um ponto de viragem tempo numa vida. A objetivação da narrativa
no curso da vida. autobiográfica dá-se a partir da seqüência crí-
As autobiografias retóricas, desde os tica marcante na continuidade da vida relata-
primórdios da escrita nos gregos clássicos, da. A consciência do eu nesse contexto é re-
são determinadas por acontecimentos; relatos velada apenas para um círculo restrito de lei-
de atos de natureza cívica ou política ou tores (no nosso caso, a academia), a biografia
mesmo relatos de seres humanos quando estes é construída para eles, havendo aqui a noção
dão visibilidade a acontecimentos vividos. de público, embora numa dimensão menor
Diferentemente, “o mais importante não é o (Bakhtin, 1981: 139).
tempo e o espaço da vida representada, mas é Desse diálogo, algumas respostas pro-
o exterior real no qual a representação de al- visórias foram construídas para definir esta
guém ou da vida de alguém é realizada atra- etapa da pesquisa. Entendemos que, na narra-
vés da narrativa verbal de um ato cívico ou tiva, a catarse pessoal é um fenômeno natu-
político ou através do relato do self” (Bakhtin, ralmente humano, ou seja, dependendo da
1981: 131). Este tipo de autobiografia é de pessoa e do contexto, ele ocorre com maior ou
uma época em que o privado não existia, tudo menor exposição do eu. Esta não deve ser evi-
era público, nada era secreto, tudo era subme- tada, mas orientada definindo os seus contor-

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nos dentro do campo científico. Não significa mutuamente. “Sabemos quem somos através
sua castração, muito pelo contrário, abre e do que é familiar, compreensível, usável e
aponta perspectivas de construção de outros negociável; sabemos quem não somos pelo
espaços para sua vazão (social, psicanalítico, que é estranho, opaco, inutilizável e improdu-
autoconhecimento, entre outros). Dessa for- tivo” (Wenger, 1998: 153).
ma, nossa resposta sobre a continuidade ou Numa primeira interpretação, a dialo-
não da narrativa caminhou na direção do que gicidade dos textos indica, de maneira global,
consideramos necessário para a explicitação que as histórias apresentam momentos por
do pensamento dos professores sobre a cons- vezes relacionados aos espaços da historiogra-
trução do processo de identidade de modo a fia, do entrecruzamento cultural, quiçá da e-
fornecer pistas significativas para a compre- volução das civilizações. Encontramos tem-
ensão da cognição situada (Roth, 2004). Im- pos marcados pelas idéias, filosofias, políticas
bricando o processo de construção das narra- locais e globais.
tivas pessoais com os movimentos iniciais de Numa classificação tipológica, as nar-
(de)formação de olhares na investigação, de rativas neste trabalho aproximam-se do esbo-
modo a construir um outro campo de signifi- ço platônico, em que a exposição dos aconte-
cações, o científico, orientamos a memória cimentos da vida aparece partida em épocas
das narrativas para preencher os espaços la- bem demarcadas por pontos de mudanças i-
cunares necessários a esse campo. dentificadas por uma análise autobiográfica
pública. Ou seja, não só encontramos episó-
Dar significado ao conteúdo discursivo no dios que indicam o que pensamos que somos
campo da ciência ou dizemos acerca de nós, como também o
que os outros pensam ou dizem que somos.
Na perspectiva de Wenger (1998) de Percebemos as esferas mudas e invisíveis da
que as comunidades de prática são caracteri- vida privada que, em geral, não são tornadas
zadas como histórias partilhadas de aprendi- públicas, ao mesmo tempo em que observa-
zagem em que construir uma identidade signi- mos uma tentativa de recriar a totalidade e
fica negociar os significados da nossa experi- exterioridade da existência.
ência como membros de comunidades sociais, Para Wenger, à medida que crescemos
entendemos que falar de identidade em ter- através de uma sucessão de formas de partici-
mos sociais não é negar a individualidade, pação na sociedade, as nossas identidades
mas ver a individualidade como fazendo parte formam trajetórias. Trajetória é um movimen-
de práticas de comunidades específicas. Na to contínuo em que se interpõem os aconteci-
vida do dia-a-dia, é difícil dizer com exatidão mentos próprios e os de conjunto, produzidos
onde acaba a esfera individual e começa a co- num campo de influências, o qual se delineia
letiva. As nossas práticas, linguagens, artefa- numa linha de coerência que liga o passado, o
tos e pontos de vista refletem as nossas rela- presente e o futuro. Para sua definição, esse
ções sociais. Até os pensamentos mais priva- autor parte da idéia de que a construção da
dos fazem usos de conceitos, imagens e pers- identidade é um processo que se dá em con-
pectivas que compreendemos através da nossa textos sociais nos quais ela vai sendo definida
participação em comunidades sociais. A iden- pelas interações de múltiplas trajetórias con-
tidade na prática é definida socialmente, não vergentes e divergentes e nesse percurso a
só porque está reificada num discurso social temporalidade é fundamental e muito mais
do eu e num discurso de categorias sociais, complexa do que a simples noção linear de
mas também porque é produzida como uma tempo. Para Wenger (1998: 155), as trajetó-
experiência vivida de participação em comu- rias podem ser classificadas em:
nidades específicas. Uma identidade é uma
classe de acontecimentos de participação e de i) periféricas – caminhos que não levam à
reificação através dos quais a nossa experiên- participação total;
cia e a sua interpretação social se constroem ii) de entrada – início a novos percursos;

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iii) interiores – a evolução da prática continua cola era angustiante.” (Formadora B –


através de novos acontecimentos, pedidos, grifo dela)
invenções, novas gerações, criando ocasi-
ões para renegociar a sua identidade e a Percebemos nas narrativas que as tra-
dos outros; jetórias de entrada no universo da escola pe-
iv) de fronteira – algumas trajetórias encon- lo papel de alunas deram-se tanto pela trans-
tram o seu valor tecendo fronteiras em formação da inclinação natural da infância de
seus próprios percursos e ligando comu- experimentar as coisas da vida contemplando
nidades de prática; a natureza de forma solitária como pela per-
v) de saída – conduzem para fora da comu- cepção de ruptura com os laços afetivos do
nidade; convívio familiar.
vi) paradigmáticas – fornecidas aos novatos Entretanto, ainda nessa trajetória, o
pelos pares mais experientes; a sua papel da escola ganha contornos significati-
comunidade, a sua história e a sua vos. Na linha do pensamento de Dewey e Pi-
evolução configuram as trajetórias que aget sobre a importância que assume a escola
constroem. São testemunhas vivas do que na construção de um espaço em que as crian-
é possível, do que é esperado e desejável. ças possam desenvolver, ao seu ritmo, a sua
aprendizagem, tem-se uma significação de-
Numa análise mais focada nos mo- senvolvida a partir das correlações entre o
mentos de crise e de renascimento, nos pontos papel da família e o da escola.
de viragem no curso da vida encontramos al-
gumas trajetórias que, tendo em vista seu con- “Quando busco rememorar esta fase,
teúdo, poderiam significar momentos de risco duas imagens são fortes: a imagem da
para a evolução de uma identidade profissio- pessoa terna e maternal da minha pri-
nal. meira professora e de sua relação de
Em ambas as narrativas, a visão da presença com os seus alunos e a ima-
passagem de uma fronteira para outra parece gem do meu jogo de aluna-filha que
corroborar a tese rousseauniana de que a in- impunha tacitamente regalias concedi-
fância é para ser passada no seio familiar e das pela professora para desempenhar
que a escola constituir-se-ia num perigo para o seu papel em algumas ocasiões, privi-
a libertação das crianças face às restrições das legiadamente naquelas em que exercia
normas e das regras. controle, como, por exemplo, verificar
as tarefas feitas pelos alunos (colegas da
“Antes da obrigação da escola, sem sala) passando visto em seus cadernos.
pressas, num tempo de férias contínuas, Hoje, penso que essa explicação que
assim se iam tecendo os dias nessa ou- construí muito mais tarde pode acober-
tra escola de avós e de velhos, de mui- tar outras razões de busca. Da família
tas crianças e animais. A natureza ple- queria o limite e da escola, a liberda-
na onde, de pés nus sujos de terra e er- de.” (Formadora B – grifo dela)
va, corria horta fora, abraçando árvores
e sonhos, inventando vidas.” (Formado- Em outra narrativa, o fato de a família
ra A – grifo dela) já ter significação sobre a aprendizagem faz
com que a ressignificação se dê pela clarifi-
“…ir para a escola significou, no pri- cação da distinção dos objetivos entre a pri-
meiro momento, uma “intervenção pe- meira escola (família) e a segunda escola
rigosa”, que punha em risco a relação (instituição escolar).
familiar. Uma relação marcada por um
sentimento de medo pelo afastamento “Quando entrei para a escola na cidade,
das pessoas queridas. A imagem da es- a aldeia ficou intermitente na minha vi-
da, em que as férias recriavam todas as

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vivências anteriores. Passei a olhar à evocar, uma me ocorre sempre, que é a


volta de outra maneira, a compreender de uma professora gordinha, com cara
um pouco mais os acontecimentos e a de brava e com expressão tensa de
espantar-me por nunca ter notado antes quem está com medo. Lembro-me do
certas ocorrências. Notei como as pes- dia em que ela bateu com a régua na
soas pareciam precocemente envelheci- minha carteira. Era costume fazer em si-
das, como as crianças estavam persis- tuações de desagrado, batendo, por ve-
tentemente com feridas nas pernas e nos zes, na mão ou cabeça dos alunos. Não
braços, fruto de picadas de insetos, co- me recordo de sentir medo, muito pelo
çadas e não desinfectadas. Incomodava- contrário, encontro, na escola, o senti-
me o facto de as pessoas não dizerem mento de indiferença na relação inter-
bem as palavras, “mãos” eram trans- pessoal, e este não me afetou, nem para
formadas em “mãs”, algumas termina- calar, nem para bradar.” (Formadora B
ções das palavras não existiam e havia – grifo dela)
frases e palavras que, por vezes, não en-
tendia por estarem tão deturpadas como Para essas formadoras, a imagem de
a pergunta “aonde vandas?” corruptela uma escola fria e de uma professora hostil não
de “onde é que vocês vão?” Foi a cons- teve força para configurar o que Wenger defi-
tatação de que afinal eu não aprendia ne como trajetórias de saídas. Ou seja, para
tudo ali, havia a escola que me ensina- conduzi-las para fora da comunidade escolar.
va melhor algumas coisas como a fala e Contrariamente, como vemos abaixo na narra-
a escrita.” (Formadora A – grifo dela) tiva da Formadora B, a sua ligação com a fi-
gura materna e as práticas de representação de
Alguns acontecimentos das narrativas papéis sociais vivenciadas por ela na infância
apontam para a constituição da memória co- e apoiadas pelos familiares constituíram-se
letiva e nesta evidenciam-se alguns aconte- como trajetórias de fronteiras que acalenta-
cimentos que marcam épocas históricas da ram um desejo crescente pela participação na
educação em vários contextos políticos, eco- comunidade escolar, não no papel de aluna,
nômicos e culturais, trazendo à tona o que mas sim no de professora.
Charlot (2005) chama de os universais das
situações de ensino. Nos dois contextos, te- “[...] elegi como brincadeiras preferi-
mos: das as de mãe e de professora [...] Ti-
nha o maior prazer em cuidar da minha
“A imagem é de escola “cinzenta” e imagem pessoal ao encarnar a perso-
castigadora, formadora de espíritos o- nagem de professora e talvez essa in-
bedientes e sem opinião, modelo de fluência tenha vindo da minha mãe, que
uma época fascizante para quem a edu- era uma mulher vaidosa e elegante (...)
cação era uma ameaça. Associo sempre Por volta dos 10 anos, quando já me
medo ao dia-a-dia, da professora que sentia envergonhada com os olhares dos
podia bater, do teste que viria negativo, outros e quando já não queria mais ser
da matéria que não tinha compreendido, alvo das atenções, é que percebi que o
do exame que não me deixaria passar, que era no início uma representação,
do que dizer aos meus pais para não os uma brincadeira, tinha se tornado um
magoar ou defraudar nas suas expecta- método de estudo, ou seja, já não con-
tivas.” (Formadora A – grifo dela) seguia estudar se não fosse dessa for-
ma, ensinando [...] Mais tarde, com 13
“Uma professora temida por todos pela anos, essa forma foi transferida para o
sua relação distante e extremamente ri- estudo em grupo. Assim, sempre que
gorosa com os alunos. Desta fase tenho possível, eu estudava com os colegas
poucas lembranças, mas quando busco

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dissertando sobre o que tínhamos a- para depois reagir. Estava no último


prendido.” (Formadora B – grifo dela) ano do curso [secundário], conseguira ir
a exame a todas as disciplinas com boas
No caso da Formadora B, em que a notas excepto a Físico-Química, porque
família e a escola constituem trajetórias de as aulas eram de molde a que não con-
fronteira para a sua inclusão e pertencimento seguíssemos acompanhar a matéria. [...]
ao mundo intelectual e educacional, vemos No dia da oral, lá estava ela, presidente
que alguns acontecimentos promovidos pelos de júri, imponente e de cara fechada.
pais são potencializados pelas ações de alguns Senti um vómito a acompanhar o medo
dos professores. Conforme excertos de sua e olhei para as caras pálidas das outras
narrativa, podemos dizer que essa amplifica- alunas e sabia que eram o espelho da
ção de ações tenha, inclusive, definido mais minha. A oral correu bem [...] No fim
tarde a sua opção pela área Ciências Naturais. todos os que assistiam me deram os pa-
rabéns, incluindo a minha professora de
“[...] professor de Ciências que conside- física do ano anterior. [...] Quando a
ro uma referência importante, por ter pauta da oral saiu, à frente do meu no-
contribuído com a minha mudança na me havia uma palavra escrita a verme-
forma de conceber a metodologia de lho que eu não conseguia ler pela im-
ensino. [...] uma professora de Biologia possibilidade que o meu cérebro estabe-
que [...] todos nós gostamos do seu mé- lecia [...] eu tinha reprovado no exame.
todo de aula. Além disso, admirávamos Olhei para a cara triste dos meus pais e
a sua competência intelectual. [...] pro- a rapariga tímida que corava quando os
fessor de Química fantástico [...] muito professores se lhe dirigiam acabou ali.
respeitado pela comunidade escolar por Corri em direcção à sala dos professo-
sua competência. De suas característi- res, e com o magote de colegas e fami-
cas abstraí sua paixão pela Química (á- liares atrás, abri a porta, enfrentei a pro-
rea de conhecimento) e respeito e valo- fessora e perguntei aos gritos “Por que é
rização pela profissão professor. [...] que reprovei?” “Quais as questões a que
Foi a partir daí que comecei a traçar não respondi?” “Exijo uma resposta!”
uma meta profissional: queria ser cien- [...] Talvez de todo o episódio o que
tista. Nesse ponto, fui bastante estimu- mais me marcou foi a solidariedade de
lada pelo meu pai, que comprava para todas as pessoas presentes, a maior par-
mim os Kits “Pequenos Cientistas” te eu desconhecia por serem familiares
[...].” (Formadora B – grifo dela) de alunas, oferecendo-se para testemu-
nhas de um processo em tribunal. Está-
As narrativas autobiográficas trazem vamos em 1973, vivíamos tempos de
em sua elaboração pessoal o sentido idiossin- grande repressão, o meu pai era militar
crático das experiências de vida e fazem e- e desaconselhou a queixa. O sentimento
mergir os processos identitários da inserção de injustiça foi tão forte que a certeza
dos sujeitos nos grupos sociais. As memórias- da minha razão fez-me crescer e não me
denúncias apontam a existência de tempos em incomodar com a reprovação. [...] É
que a escola se alinha aos preceitos de uma provável que este acontecimento tivesse
política ditatorial e reclamam por resistências. mudado o meu futuro, se, por acaso, se
pode falar assim. [...] Foi um ano em
“Houve, no entanto, um episódio que que comecei a dar explicações de todas
foi, talvez, o que mais contribuiu para as matérias aos vizinhos, a preços bara-
uma viragem no modo como passei a tíssimos, mas que me permitiram perce-
encarar a minha relação com a vida, is- ber o valor de ganhar o meu próprio
to é, intervindo mais nos acontecimen- dinheiro e constatar que gostava de ex-
tos do que esperando que acontecessem plicar os assuntos e de ver como aque-

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las crianças ultrapassavam as dificulda- mais em risco de extinção. Lutava-se


des.” (Formadora A – grifo dela) muito, reivindicava-se ainda mais e a-
prendia-se a argumentar nas múltiplas
Esse trecho da narrativa, como diz reuniões, organizadas como assembleias
Larrosa (1999:15), indica que muitas vezes a de debates organizados.” (Formadora A
educação é o lugar de realização do projeto – grifo dela)
que o educador tem sobre o educando, mas
também é o lugar em que o educando resiste Concordamos com Chaves (2006:
a este projeto, afirmando sua alteridade, a- 166) que, como professoras:
firmando-se como alguém que não se deixa
reduzir aos modos como ele o vê, como al- “somos definitivamente marcadas pela
guém que não aceita a medida do seu saber, instituição escola. Nela forjamos parte
do seu poder. importante de nossa subjetividade e ali
Outros momentos das narrativas a- entramos em contato com modelos com
pontam para as trajetórias paradigmáticas base nos quais vamos instituir, criar,
(Wenger, 1998), nas quais elementos consti- fundar nossa identidade profissional.”
tutivos da identidade profissional vão ga-
nhando força e significado no contato com os Numa pesquisa comparativa sobre nar-
membros mais experientes da comunidade. rativas autobiográficas de professores univer-
No caso da Formadora A, vemos que a sitários, Sousa (2006) verifica que quando os
sua interação com o pensamento de autores, docentes narram suas histórias de formação,
pelo ato da leitura, é o mote para a construção tal como essas nossas narrativas, elas estão
da sua identidade com o campo intelectual: articuladas à família, à escola, aos grupos de
“descobrir que os livros continuavam o meu convívios e suas sínteses apresentam seleções,
mundo com o qual me relacionava imediata- omissões, preferências de determinados as-
mente foi outra conquista, abrindo-me novas pectos e que delas resultam uma série de
perspectivas de viver, como se eu me desdo- questionamentos que vão fazendo ao longo de
brasse noutras pessoas”; e a envolve profun- suas vidas.
da e empaticamente nessa esfera coletiva, Igualmente em nossas narrativas, para
dando-lhe o sentido de pertencimento a essa a fase de formação na Universidade foram
comunidade. Mais tarde, na entrada à Facul- deixadas poucas palavras, apenas para pontu-
dade, a evolução dessa prática (trajetórias ar brevemente um período marcado por revo-
interiores) se dá com o advento de novos a- luções pessoais, novas aprendizagens, opções
contecimentos. temporárias e instáveis e perguntas que ainda
permanecem, já que para elas não bastam ex-
“A faculdade constituiu uma mudança plicações do presente.
total na minha vida. A autonomia, que
já iniciara no serviço cívico, expandiu- “Da época da Universidade a verdadei-
se ao longo desses anos, [...]. A consci- ra revolução foi sair de casa, mudar de
ência social desenvolveu-se com as lei- cidade e viver entre grupos bastante he-
turas de livros revolucionários, proibi- terogêneos. Esse foi o maior desafio.
dos anteriormente (encontrei-me, por Das disciplinas lembro que a cada se-
vezes, em círculos de amigos a discutir mestre fazia escolhas temporárias em
o materialismo dialéctico), com a parti- busca de novas descobertas: Botânica,
cipação em reuniões de alunos para se pelas aulas de laboratório; Zoologia, pe-
organizar a defesa de posições que se los estudos de campo, especialmente as
apresentariam nos órgãos de gestão da aulas de Biologia Marinha; Imunologia,
faculdade, com a identificação com pela perfeição metabólica; Ecologia, pe-
movimentos, fosse de libertação de po- las interações e conexões complexas…
vos ou de defesa ambiental ou de ani- Das disciplinas da licenciatura não me

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lembro de nenhuma.” (Formadora B – mo, completo com 5 turmas de 8º ano e


grifo dela) 4 turmas de 9º.” (Formadora A – grifo
dela)
“As disciplinas consideradas pela maio-
ria dos alunos como difíceis, como as A Formadora B começou sua carreira
matemáticas e as múltiplas Físicas e depois de licenciada, mas o fez dividindo es-
Químicas, constituíram desafios que ul- paço com um estágio científico no laboratório
trapassei com gosto e boas notas. Isso de Liminologia na universidade. Para ela, que
levanta-me uma questão a que não con- durante a infância brincou de ser professora e
sigo dar resposta: seriam os conheci- que idealizou ser cientista quando adulta, os
mentos base que já tinha adquirido an- dois mundos seguiam, nesse momento inicial,
tes, mesmo que não tivessem sido valo- sem se constituírem em trajetórias de frontei-
rizados pelo sistema de avaliação do se- ra, ou seja, sem ligações entre as comunida-
cundário, os responsáveis por esse su- des de práticas. Assim, enquanto “o estágio
cesso? Ou seria antes o sentir que aque- não era muito atraente, pois tratava de taxo-
le era o curso com o qual me identifica- nomia do zooplâncton. Era um trabalho can-
va, em que a natureza assumia um papel sativo e muito isolado [...] as aulas… estas
preponderante, trazida nas disciplinas sim eram emocionantes. Cada dia uma des-
de Zoologia, Botânica, Fisiologias, Eco- coberta nova. Ao mesmo tempo em que des-
logia ou Antropologia, por exemplo, e, cobria sobre os alunos, o funcionamento da
por isso, tudo era estudado com deter- escola, desvendava as minhas reações, minha
minação e vontade de saber?” (Forma- maneira de ser... e também passei a ver o
dora A – grifo dela) conteúdo de Ciências de um outro ângulo”.
No entanto, um episódio de aula constituiu-se
No entanto, para uma de nós “um a- num evento marcante que a colocou para den-
contecimento trágico, que constituiu também tro da profissão de forma definitiva.
um momento de viragem no (...) seu percurso,
aparentemente, linear” colocou-a em contato “Com aquela turma da 7ª série sentia-
com a sala de aula ainda durante sua forma- me muito insegura e a cada dia testava
ção. diferentes manejos em sala de aula.
Como é de praxe numa escola particu-
“Em Março, estávamos em 1978, houve lar, as regras são criadas pela direção e
um enorme incêndio e a faculdade ar- a nós só resta cumpri-las. Estávamos
deu em parte. Foi um desnorte total para numa época em que a “chamada” (con-
alunos e professores e foi urgente en- trole de presença dos alunos) não deve-
contrar um espaço onde se pudesse ter- ria ser feita no início da aula. Um belo
minar o ano lectivo. Fomos colocados dia, quando entrei na sala da 7ª série, os
em instalações do ministério da educa- alunos estavam extremamente agitados,
ção [...], edifício de escritórios, conver- então, resolvi começar pela chamada
tido à pressa para albergar estudantes e com o intuito de dar-lhes um tempo pa-
professores, habituados a anfiteatros ra se acomodarem. O coordenador, que
amplos, laboratórios e espaço ao ar li- costumava fazer a ronda pelo corredor
vre. Não me adaptei e a faculdade per- olhando através das janelas, me viu de-
deu o encanto. Ao mesmo tempo, conti- sobedecendo a uma ordem sua. Entrou
nuava a dar explicações à vizinhança e abrupta e furiosamente na sala e me re-
soube através de um aluno que a escola preendeu na frente de todos. Não esque-
estava a pedir um substituto de uma ço o olhar dos meus alunos assistindo
professora em licença de parto. E se eu publicamente à minha derrota como
tentasse? Tentei, fiquei não como subs- professora. A situação naquele exato
tituta, mas ocupando um horário legíti- momento se constituiu como vida ou

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morte naquela profissão... Desafiei o para que um antigo funcionário não os


coordenador: olhei para ele, olhei para fizesse desaparecer para uso próprio.
os alunos, empinei o tronco e continuei Estas decisões foram tomadas sempre
a chamada em voz bem alta. Esta foi a em equipa de gestão, mas como o presi-
virada! A partir desse dia, os alunos dente era da terra, um dos elementos era
passaram a me ver de outra forma. Me- provisório e eu era a efectiva e, portan-
lhor: começaram a prestar atenção em to, com responsabilidade profissional e,
mim. A partir desse momento, senti que ainda por cima, de Lisboa, era o alvo da
tinha entrado efetivamente na profissão inimizade. Mas, genericamente, fizemos
pela porta da escola.” (Formadora B – uma boa gestão e eu aprendi imenso so-
grifo dela) bre esse outro lado da profissão de pro-
fessor.” (Formadora A – grifo dela)
Muitos foram os momentos charnei-
ras, descritos nas duas narrativas, mas os a- Os primeiros estudos sobre o ciclo de
pontados acima se constituem em divisor de vida ou desenvolvimento profissional dos
águas para quem faz uma formação híbrida. professores juntamente com o interesse pelo
Ou seja, o percurso da formação de professo- estudo biográfico avançam a partir da década
res na área de Ciências Naturais, em geral, é de oitenta, indicando que a vida profissional
marcado pela sedução inicial dos futuros pro- dos professores é marcada por fases e ciclos.
fessores com os discursos e as práticas profis- Huberman (1995) delimitou uma série de “se-
sionais das culturas científicas específicas em qüências ou de maxiciclos” que atravessam as
detrimento dos das ciências humanas. carreiras das pessoas dentro de uma mesma
Só muito mais tarde, quase ao final do profissão. No início da carreira docente, por
curso, ou mesmo no início da carreira, se de- exemplo, tal como em nossas narrativas, veri-
frontam com a necessidade de se posiciona- ficamos a fase de “exploração”, marcada por
rem em relação aos saberes da docência e op- escolhas provisórias e pela experimentação de
tarem pelo seu exercício. A partir desse mo- papéis, e a fase de “estabilização”, assinalada
mento, suas narrativas são marcadas por acon- pelo compromisso e pela aquisição de papéis
tecimentos que levam a trajetórias interiores, e responsabilidades de maior importância ou
determinando suas escolhas ao longo do ca- prestígio. A evolução de uma fase a outra só
minho para o desenvolvimento profissional. foi possível pelo fato de a fase de exploração
ter sido bem sucedida, tal como nos ocorreu.
“Este foi outro salto na minha autono-
mia, agora com plena independência fi- “Foi um deslumbramento, foi o encon-
nanceira, diploma académico e estatuto trar do meu palco, uma sala de aula
profissional completo. A novidade foi funcionou como a oportunidade de ge-
integrar o conselho directivo da escola e rir as matérias com as quais me identi-
passar a analisá-la do lado de quem ficava bem, de poder explicar os assun-
manda, de quem se preocupa com as tos que tinha mesmo acabado de estu-
regras e que tem de, além de dar o e- dar, de partilhar ideias e experiências,
xemplo, castigar quem as não cumpre. de cativar, de seduzir! Não sei de que
Missão pouco compatível com os meus gostava mais, se dos alunos que mostra-
25 anos, de aparência de muito menos, vam que gostavam de mim, se de expli-
para ter credibilidade. Mas foi um ano car os assuntos, se de preparar as aulas e
bem sucedido, cheio de peripécias e al- estudar as matérias, se falar da escola
gumas incompatibilidades com interes- em casa.” (Formadora A – grifo dela)
ses instalados, como o de ter de proibir
antigos professores de continuarem a ir “Essa forma de entrar na profissão acei-
à escola tirar fotocópias sem pagar, ou tando o desafio e saboreando resultados
de fechar material de limpeza à chave conquistados foi extremamente impor-

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tante para delinear minha forma de estar “O que eu buscava era o encontro de
na profissão [...]. Pouco a pouco o re- novidades para atuar no ensino [...]. O
torno do aluno acarinhava a auto- mestrado foi uma fase de identificação
estima, o autocontrole e autoconceito com o discurso na área de educação.”
pessoal/profissional. [...] Os alunos, em (Formadora A – grifo dela)
sua maioria, me consideravam como
uma professora competente, uma pessoa Um patamar da consolidação profis-
compreensiva e envolvente que os esti- sional se deu nas primeiras experiências como
mulava para o estudo…” (Formadora B formadoras de professores. Nas narrativas,
– grifo dela) evidencia-se que a partir desse momento em
suas carreiras a identificação social com a
Para Huberman (1995: 40) a fase de profissão de professor assume sínteses pesso-
“estabilização” na profissão é marcada pelas ais. Parafraseando-as, tem-se para a Forma-
escolhas subjetivas e pela admissão oficial ao dora A que entrar como professora para a fa-
sistema de ensino. “Num dado momento, as culdade a fez ver a escola e o seu próprio de-
pessoas passam a ser professor, quer aos seus senvolvimento profissional de uma nova ma-
olhos, quer aos olhos dos outros (...)”. E a op- neira. Dos anos como docente universitária
ção por permanecer na profissão requer esco- não encontrou um só ano que não tenha sido
lha por uma identidade profissional e, ao rico em termos de experiências profissionais.
mesmo tempo, renúncia ao apelo constante de Desde os primeiros anos, a intensidade das
outras orientações. Os estudos indicam que trocas intelectuais e a azáfama que a relação
essa fase é acompanhada por um “sentimento professor-aprendizagem-aluno implica man-
de competência pedagógica crescente”, como têm-se. Nesse percurso, ganhou a serenidade
também observamos em nossas narrativas. e os conhecimentos para tirar partido de todas
Para esse autor, os percursos individu- as situações, mesmo as mais adversas. Do
ais do desenvolvimento profissional na sua mesmo modo, o desempenho de tarefas varia-
fase subseqüente (fase de “diversificação”) das ligadas à vida acadêmica, como a partici-
parecem divergir. No entanto, em nossas nar- pação em diversos órgãos de gestão, a tem
rativas, a entrada na pós-graduação direciona ajudado a criar uma vinculação indissociável
para a consolidação pedagógica e inclusão da com a profissão. Ao longo do tempo, nas múl-
dimensão da pesquisa para ajudar nos questi- tiplas entradas que foi fazendo, como aluna,
onamentos sobre seus saberes e suas práticas como professora, como investigadora e como
na docência. formadora de professores, foi criando laços
com a escola. Sempre lá esteve. Aprendeu a
“O meu melhor ganho com o mestrado olhá-la de diferentes maneiras e o que procu-
foi ter tempo para estudar e pensar [...]. rava sem perder nenhuma perspectiva de vis-
Os grandes pedagogos, as reflexões so- ta, pois acredita que só assim se cria a verda-
bre o significado das estratégias de en- deira empatia com os outros, com as situações
sino, múltiplas experiências pedagógi- e os problemas. E que, nos momentos de des-
cas descritas e analisadas, em que a Psi- crédito, é preciso encontrar a motivação e as
cologia e a Sociologia assumiam um ca- razões para se continuar. E recomeçar sempre,
rácter preponderante, estava tudo lá. As mesmo que seja noutro lugar.
aulas, nem sempre interessantes, pontu- Para a Formadora B a experiência na
almente desafiadoras, iam abrindo al- disciplina de Prática de Ensino em Biologia e
gumas perspectivas. Mas paralelamente Prática de Ensino em Ciências revelou-se
com o tempo, outra dimensão que so- marcante para o seu desenvolvimento profis-
bressai é a investigação sobre a esco- sional. Acompanhar as aulas dos seus alunos
la.” (Formadora A – grifo dela) no estágio lhe permitiu balizar suas compe-
tências e habilidades no ensino. A entrada no
mundo da pesquisa por meio de ações de in-

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tervenção na própria prática docente ajudou-a Apoio parcial do Conselho Nacional de De-
a refletir sobre o próprio processo de aprendi- senvolvimento Científico e Tecnológico
zagem e, ao mesmo tempo, a utilizar melhor (CNPq).
as ferramentas teórico-metodológicas para
analisar e compreender a nuances dos proces- Referências bibliográficas
sos de ensino e de aprendizagem. Esses pro-
cessos possibilitaram, ao longo do seu desen- Bakhtin, M. (1981). The dialogical imagina-
volvimento profissional, tornar consciente sua tion. Austin: University of Texas Press.
ação de ensino, ajustando aos aspectos cogni- Bruner, J. (1991). Actual minds, possible
tivos do processo os elementos subjetivos worlds. Cambridge, MA: Harvard University
considerados preciosos, como por exemplo, a Press.
dose de intuição que orienta a sua prática pe- Cavaco, M.H. (1991). Ofício do professor: O
dagógica. tempo e as mudanças. Em: A. Nóvoa (Org.)
Profissão professor. (pp. 155-191). Porto:
Uma síntese Porto Editora.
Charlot, B. (2005). Relação com o saber,
Contrariamente a Clarice Lispector, o formação de professores e globalização.
processo de construção de nossas narrativas e Questões para educação hoje. Porto Alegre:
sua posterior análise nos permitiu ressignifi- Artmed. 159p.
car e reinterpretar os olhares que temos de nós Chaves, S.N. (2006). Memória e auto-
mesmas e de nossa identidade como professo- biografia: nos subterrâneos da formação do-
ras, pondo em evidência outras emoções e cente. Em: Souza, E.C. (Org.) Autobiografias,
razões as quais antes não tínhamos percebido. histórias de vida e formação: pesquisa e en-
Neste percurso estivemos refazendo a sino. (pp. 161 – 176). Porto Alegre:
nossa existência, pois como diz Paulo Freire EDIPUCRS.
(1987: 78): “Existir humanamente é pronun- Elbaz-Luwisch, F. (2002). O ensino e a iden-
ciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pro- tidade narrativa. Rev. Ed., XI (2), 21-33.
nunciado, por sua vez, volta problematizado Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido.
aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo Rio de Janeiro: Paz e Terra.
pronunciar”. Nos diferentes patamares da in- Heikinen, H. (1998). Becoming yourself
terpretação narrativa, as vidas vão-se recons- through narrative: Autobiographical approach
truindo em círculos cada vez mais complexos, in teacher education. Em: Erkkila, R.; Will-
fechando tempos e abrindo novas perspecti- man, A. e Syrjala, L. (Eds.). Promoting
vas. Onde ficam as pessoas e as suas identi- teachers’ personal and professional growth.
dades, despidas e revestidas de novas cama- Oulu: U.P.
das? Onde ficamos nós, narradoras e ouvin- Huberman, A.M. (1973). Como se realizam
tes? Nos olhares externos, públicos, ou no cir- as mudanças em educação: subsídios para o
cuito interno, privado, que criamos para nós estudo da inovação, (Martins J. Trad.). São
próprias, pronunciando-nos sucessivamente? Paulo: Cultrix. 121p.
Talvez este duplo olhar permita uma melhor Huberman, M. (1995). O ciclo de vida profis-
compreensão do significado do que realiza- sional dos professores. Em: Nóvoa, A.. Vidas
mos, constituindo-se a narrativa, a que aqui de Professores.( pp. 31-62) 2ª ed. Porto: Porto
deixamos, como a mediação de um e de outro Editora.
percurso, abrindo caminho para uma identi- Josso, M-C.(2004a) Experiência de vida e
dade profissional reconhecida e assumida. formação. São Paulo: Cortez.
Josso, M-C. (2004b). As histórias de vida a-
brem novas potencialidades às pessoas. En-
Agradecimento trevista com Marie-Christine Josso. Aprender,
(2), 16-23.

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S u b me t i d o e m 1 5 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 0 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Divulgação Científica

Membro-fantasma: o que os olhos não vêem, o cérebro sente


Phantom-limb: what the eyes don’t see, the brain feels

Alessandra de Oliveira Demidoff, a, Fernanda Gallindo Pachecoa e Alfred Sholl-Franco, b


a
Faculdade de Medicina, Centro de Ciências da Saúde (CCS), Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; bPrograma de Neurobiologia, Instituto de Bio-
física Carlos Chagas Filho (IBCCF), Centro de Ciências da Saúde, UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brasil

Resumo

Os estudos sobre membro-fantasma se iniciaram a partir de relatos de pessoas que sofreram amputa-
ção de algum membro, lesão de plexo braquial ou até mesmo em pacientes tetraplégicos que diziam
sentir sensações da presença do membro perdido ou inativo, as quais muitas vezes eram dolorosas.
Durante muito tempo, acreditava-se que a origem da sensação fantasma era psíquica, no entanto, sabe-
se hoje que tal fenômeno está relacionado também com o fisiológico, a partir da reorganização corti-
cal, que consiste em alterações estruturais na representação topográfica dos mapas corticais. O objeti-
vo deste trabalho é abordar os diversos fatores que ocasionam a sensação de membro fantasma, assim
como seus principais sintomas além de apresentar experiências já realizadas em indivíduos portadores
deste fenômeno. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 234-239.

Palavras-chave: membro-fantasma; dor fantasma; imagem corporal; homúnculo de


Penfield; reorganização funcional cortical.

Abstract

The researches about phantom limb begun with relates of people that suffered limb amputation or
brachial plexus avulsion, and even in tetraplegic subjects that related the feeling of the lost or inactive
limb, and many times these feelings were painful. During many time, we believed that the cause of the
phantom limb feeling was psychic, but nowadays we know that this phenomenon is related to a
physiological cause as well, whit the cortical reorganization, that consist in structural modifications
in topographic representation of the cortical maps. The aim of this work is to point the different fac-
tors that cause the phantom limb feeling and the principal symptoms of this phenomenon, as well as
show experiences already develop in subjects that present this phenomenon. © Ciências & Cognição
2007; Vol. 12: 234-239.

 – A.O. Demidoff é Monitoras de Neurofisiologia, Programa de Neurobiologia (IBCCF, UFRJ) e Graduanda do


Curso de Fisioterapia, Faculdade de Medicina (UFRJ). E-mail para correspondência: alessandrademidoff
@gmail.com; F.G. Pacheco é Monitora de Neurofisiologia, Programa de Neurobiologia (IBCCF, UFRJ) e Graduanda
do Curso de Fisioterapia, Faculdade de Medicina (UFRJ). E-mail para correspondência: nandagp_fisio@hotmail.com;
A. Sholl-Franco é Biólogo (FAMATh), Especialista em Neurobiologia (UFF), Mestre e Doutor em Ciências (UFRJ).
Atua como Professor (IBCCF, UFRJ), Membro Efetivo do Programa Avançado de Neurociência (PAN; UFRJ) e Ori-
entou este trabalho. Endereço para correspondência: Sala G2-032, Bloco G, CCS, Programa de Neurobiologia,
IBCCF, UFRJ. Av. Brigadeiro Trompowiski S/N, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ 21.941-
590, Brasil. Telefone: +55 (21) 2562-6562. E-mail para correspondência: asholl@biof.ufrj.br.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 234-239 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Key Words: phantom limb; phantom pain; corporal image; Penfield’s homunculus;
cortical functional reorganization.

Introdução algum membro, em casos de aferição de plexo


braquial, e, até mesmo em situações de tetra-
Pode-se definir como membro fantas- plegia (Conceição e Gimenes, 2004). Segun-
ma a experiência de possuir um membro au- do Ramachadran e Blakeslee (2002) não são
sente que se comporta similarmente ao mem- apenas pernas e braços fantasmas, há muitos
bro real, assim como sensações de membro casos de seios fantasmas em muitas pacientes
fantasma a vários tipos de sensações referidas que sofreram uma mastectomia radical (reti-
ao membro ausente (Rohlfs e Zazá, 2000). A rada da mama). Um outro registro foi um caso
sensação da presença do membro ou do órgão de apêndice fantasma onde o paciente se recu-
após a sua extirpação é descrita por quase to- sava a acreditar que o cirurgião o tinha retira-
dos os doentes que sofreram amputação e do devido às dores que persistiam.
muitas vezes vem associada a dor que varia Sabendo-se que o fenômeno da sensa-
em intensidade e duração de caso para caso. ção fantasma pode se manifestar em variadas
Muitos indivíduos afirmam que o fan- circunstâncias, as situações mais comuns se-
tasma se manifesta de forma rígida e que, em rão descritas mais detalhadamente, juntamen-
muitos casos, estão na posição em que perde- te com algumas pesquisas realizadas em paci-
ram o membro. Além disso, relatam que entes que possuem a sensação fantasma.
quando o membro se movimenta em direção a
um objeto, o fantasma penetra neste objeto, Sintomas
podendo também atravessar o próprio corpo
do paciente. Um outro relato consiste no fato A sensação de ter um membro-
de que, muitas vezes, uma parte do membro fantasma é muito real. Muitos indivíduos rela-
amputado desaparece, permanecendo apenas, tam que, logo que perderam a perna, sentiram
a extremidade distal do mesmo (Schilder, o impulso de sair da cama e andar, e acaba-
1989). ram caindo, outras pessoas com mãos fantas-
A sensação de ter um membro fantas- mas já tentaram, até mesmo, atender o telefo-
ma durante muito tempo despertou em muitos ne. Esses fatos são conseqüências da vívida
o medo da loucura, sendo motivo de segredo e sensação de um membro fantasma.
até mesmo vergonha. Muitos indivíduos omi- Dentre os sintomas descritos por paci-
tiam dos médicos a sensação de ter um mem- entes com sensação de membro fantasma, os
bro fantasma, devido ao receio de serem con- que se apresentam com maior freqüência são:
siderados insanos, entretanto, com o passar do a dor “fantasma”; dormência; queimação;
tempo, as hipóteses psicológicas foram ce- câimbra; pontadas; ilusão vívida do movimen-
dendo lugar para as hipóteses fisiológicas. to do membro fantasma, ou até mesmo, ape-
A sensação fantasma pode ser com- nas a sensação de sua existência. Em casos de
preendida como uma superposição cortical de lesão do plexo braquial, são relatados tam-
áreas vizinhas, que pode ocorrer, por exem- bém; estiramento da mão inteira que irradia
plo, pela invasão do território representativo para o cotovelo; constrição do pulso; espas-
da face sobre o território da mão, ou até mes- mos da mão e descargas elétricas na mão e
mo pelo desmascarar de sinapses silenciosas. cotovelo (Giraux e Sirigu, 2003).
Uma outra sensação de membro fan-
Variações de membro-fantasma tasma já observada consiste no desapare-
cimento de partes do membro, permanecendo
A sensação de membro fantasma pode apenas, a extremidade distal do membro, o
se manifestar nos indivíduos em diferentes que pode ser explicado com base no fato de
situações, como por exemplo: amputação de que o modelo postural do corpo se desenvolve

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 234-239 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

especialmente em contato com o mundo ex- Quando ocorre a desaferenciação


terno. Sendo assim, as extremidades corporais (perda da inervação sensorial de uma região)
que mantêm um contato mais estreito e varia- ou a amputação de um membro as informa-
do com a realidade tendem a ser mais presen- ções sensoriais periféricas se tornam inteira-
te que as demais (Schilder, 1989). Além dis- mente ausentes, fazendo com que neurônios
so, pode ser observado o fenômeno de dupli- no sistema nervoso central que até então rece-
cação de membros, caso dificilmente encon- biam informações daquela parte do corpo se
trado, no qual pacientes relatam ter a vivida tornem anormalmente hiperativos. Na dor do
sensação da presença de outros dois membros, membro fantasma, a ausência dessas informa-
paralelamente com seus membros reais ções sensoriais faz com que neurônios nas
(Conceição e Gimenes, 2004) vias nociceptivas se tornem excessivamente
ativos. A superposição extensa de representa-
O que é a dor fantasma? ções corticais que, normalmente estão separa-
das se relacionam com a intensidade da dor
A dor fantasma é uma sensação dolo- do membro, ou seja, a reorganização cortical
rosa referente ao membro (ou parte dele) per- maciça pode aumentar esse fator. Brugger e
dido que pode se apresentar de diversas for- colaboradores (2000) apresentaram importan-
mas tais como ardor, aperto, compressão ou tes evidências de que o crescimento pós-lesão
até mesmo uma dor intensa e freqüente. A e o novo padrão de conexões estabelecidas
proporção relativa dos amputados em grupos por neurônios no cérebro de amputados po-
“com dores crônicas” e “sem dores crônicas” dem ser possível causa do problema.
varia de um estudo para o outro, dependendo
da definição que se dá às palavras “crônicas” Psíquico versus fisiológico
e “queixa”, sendo então esta dor relatada por
2 % dos pacientes, número que em outras po- Durante milênios acreditava-se que as
de variar em até 97 %. A dor normalmente sensações em partes ausentes do corpo eram
está presente na primeira semana após ampu- de origem psíquica, entretanto, a partir deste
tação, mas ela pode aparecer após meses ou século, as explicações psíquicas foram ceden-
até vários anos, estando localizada principal- do lugar às explicações fisiológicas.
mente na parte distal do membro fantasma. A Grande parte de nossas informações
duração da dor fantasma varia de acordo com sensoriais está relacionada com áreas especí-
cada indivíduo, entretanto a dor severa persis- ficas do córtex pós-central, de modo que per-
te em apenas uma pequena fração dos ampu- mitem a construção de mapas sensorial, des-
tados, na ordem de 5-10 % (Rohlfs e Zazá, tacando-se aqui o mapa somato-sensorial pre-
2000). sente no giro pós-central (Schilder, 1989).
Muitos estímulos internos e externos Como resultado, cada indivíduo tem uma i-
modulam a dor fantasma, dentre os fatores magem interna que é representativa do pró-
relatados pelos amputados que modificam a prio ser físico, sendo esta conhecida como
experiência dolorosa estão os fatores agravan- “imagem corporal”.
tes da dor, os quais são a atenção, emoção, A imagem corporal é construída de
toque no coto ou pressão, mudança de tempe- acordo com as percepções, idéias e emoções
ratura, reflexos autônomos, dor de outra ori- sobre o corpo e suas experiências, podendo
gem, colocação de uma prótese. E ainda, os ser, constantemente, mudada. Sendo assim, o
fatores que aliviam a dor, que são o descanso, fantasma de uma pessoa amputada seria a rea-
distração, movimentos do coto, uso de uma tivação de um padrão perceptivo dado pelas
prótese, elevação do coto, percussão ou mas- forças emocionais. Está claro que o quadro
sagem no coto. Isto prova que a experiência final de um fantasma depende grandemente
de dor fantasma é um resultado não de um de fatores emocionais e da situação de vida do
único evento, mas da interação de vários efei- indivíduo. Depois da amputação, o indivíduo
tos neuronais (Rohlfs e Zazá, 2000). sofre um grande impacto psicológico e vários

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 234-239 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

distúrbios emocionais surgem na adaptação áreas não alteradas cujas representações te-
física e social, o que lhe faz enfrentar uma nham localizações próximas no córtex. Na
nova situação, mas como reluta em aceitá-la, amputação de mãos a área da face “invade” a
acaba tentando, inconscientemente, manter a área da mão, consistente com os relatos de
integridade de seu corpo (Schilder, 1989). estimulação tátil da face induzindo sensações
Desse modo, o membro-fantasma po- de mão fantasma em amputados. O sistema
de ser entendido como a interação entre o que motor mostra, portanto uma capacidade subs-
se detecta ao nível periférico (corpo) e o que tancial de plasticidade (Farnè et al., 2002).
se integra ao nível central (mente), sendo cri- Pacientes que tiveram seus membros
ada então, a aparência final do corpo no sis- superiores transplantados após uma amputa-
tema nervoso. Como o ser humano está acos- ção possibilitaram o estudo de reversibilidade
tumado a ter um corpo por completo, o fan- da organização cerebral após lesão periférica,
tasma acaba sendo a expressão de uma difi- utilizando-se de análises de ativações de M1
culdade de adaptação a um defeito súbito de antes e após o transplante, observando suas
uma parte periférica importante do corpo. A- evoluções ao longo do tempo. Em um estudo
lém desse fator, o córtex cerebral, que possui (Giraux et al., 2001) os resultados mostram
um mapa sensorial das partes do corpo, ainda que as mãos transplantadas são ativadas e re-
possui uma área de representação da região conhecidas pelo córtex sensório-motor, sendo
amputada, o que dificulta o cessar das sensa- que as novas entradas periféricas permitiram
ções corporais. Assim, as sensações de mem- uma remodelagem global do mapa cortical
bro fantasma são caracterizadas por fatores das extremidades e reverteram à reorganiza-
psíquicos e fisiológicos, que agem, conjunta- ção induzida pela amputação. As representa-
mente para expressar tal fator. ções de mão e braço tendem a retornar a seus
locais originais; este estudo tenta explicar es-
Arrumando a bagunça: o fenômeno de re- sa reversibilidade cortical dizendo que em
organização funcional do córtex cerebral macacos com segmentos amputados, moto-
neurônios eferentes rompidos preservam sua
As áreas de representação cortical, de- eficácia funcional direcionando-se para novos
nominadas mapas corticais (e.g. homúnculo músculos (Farnè et al., 2002). Como os neu-
de Penfield) podem ser modificadas através rônios eferentes e aferentes da via central so-
da plasticidade neural a partir de alterações brevivem após serem cortados, o circuito sen-
estruturais (adaptativas) por estímulos senso- sório motor pode estar funcionalmente pronto
riais, experiência, aprendizado, e após lesões após o transplante, podendo explicar as mu-
cerebrais (Lundy-Ekman, 2004). Assim, em danças na atividade cortical poucos meses
indivíduos que sofreram amputação ou lesão após o transplante de membro.
do plexo braquial é que podemos observar Em um outro caso, descrito por Con-
alterações sinápticas que podem explicar o ceição e Gimenes (2004), um paciente tetra-
proceso de fortalecimento (desinibição) de plégico referia ter uma vívida sensação de du-
sinapses anteriormente silenciosas. No siste- plicação de membros. Dizia possuir um par de
ma nervoso normal, muitas sinapses parecem mãos que se situavam paralelamente ás mãos
não ser usadas, a não ser que a lesão de vias normais e duas pernas igualmente situadas
acarrete um maior uso das sinapses até então paralelamente ás pernas reais. O paciente
silenciosas (Farnè et al., 2002). também referia que o par de braços cruzava
em cima do peito e lhe causavam dificuldades
Estudo de casos respiratórias. A pesquisa realizada, neste caso,
utilizou a técnica de biofeedback, que é usada
A organização cortical é alterada após na aprendizagem de controle voluntário de
alguma perda sensorial, sendo assim, áreas respostas fisiológicas específicas. No fim do
que antes eram ativadas pelo membro ampu- tratamento o paciente apresentou como resul-
tado passam a ser invadidas por neurônios de tado a eliminação total da queixa, resultando

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 234-239 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

na recuperação da capacidade motora funcio- todos os meus sonhos à noite, eu tenho


nal. a perna. O cérebro, o inconsciente ainda
Uma outra maneira de encontrarmos o mantém a memória anterior. Hoje eu
membro fantasma é através da lesão de plexo sou um grande jogador de tênis nos
braquial, onde o paciente parece sofrer com a meus sonhos, coisa que eu não era an-
sensação do membro perdido assim como a tes. É muito comum eu sonhar com uma
dor a ele relacionada, mesmo não havendo a partida inteira, desde o primeiro ponto
perda física do membro (amputação). Giraux até o final, ganhando ou perdendo. A-
e Sirigu (2003) mostraram que em pacientes cordo suado e feliz por ter jogado uma
com lesão de plexo braquial onde eram apli- partida de tênis, com a perna que eu não
cados testes com exposição a movimentos tenho.” (Disponível no endereço eletrô-
virtuais do membro verificou-se que há indu- nico: http://www.amputadosvencedores.
ção de mudanças plásticas na representação com.br/fenomeno_membro_fantasma.ht
cortical do membro danificado e que esta m).
plasticidade estava relacionada a mudanças na
sensação de dor fantasma. A gravação dos Sendo assim, este trabalho propôs-se a
movimentos da mão normal que eram refleti- realizar uma breve revisão da literatura, de
dos por um espelho dava ao paciente a ilusão forma a identificar as informações mais obje-
de que quando ele realizava determinado tipo tivas e acuradas a respeito da sensação do
de movimento era o seu membro afetado que membro fantasma, tema de extrema impor-
estava realizando, sendo ele instruído a mexer tância e ainda pouco explorado nos ambientes
com o membro fantasma ao olhar para o espe- acadêmicos e clínicos de nosso país.
lho. Foi observada uma melhora significante
na avaliação da atividade do córtex entre o Referências bibliográficas
pré e pós-treinamento assim com a diminui-
ção da dor para esses pacientes sendo que dos Brugger, P.; Kollias, S.S.; Müri, R.M.; Creli-
3 avaliados 2 reduziram sua medicações no er, G.; Hepp-Reymond, M.C. e Regard, M.
final da pesquisa graças à diminuição da dor. (2000). Beyond re-membering: phantom sen-
sations of congenitally absent limbs. Proc.
Considerações finais Natl. Acad. Sci. U.S.A.. 23, 6167-6172.
Conceição, M.I.G. e Gimenes, L.S. (2004).
Apesar de não se saber ao certo a ori- Uso de biofeedback em paciente tetraplégica
gem da sensação do membro fantasma, sabe- com sensação de membro fantasma. Interação
se que esta é baseada tanto em fatores psíqui- em Psicologia, 8 (1), 123-128. Disponível no
cos como em fatores fisiológicos. Sabe-se endereço eletrônico: http://calvados.c3sl.ufpr.
também que ainda não existe um tratamento br/ojs2/index.php/psicologia/article/viewFile/
específico para tal fenômeno. Entretanto, e- 3246/2606.
xistem terapias e medicamentos que são utili- Farne, A.; Giraux, P.; Roy AC.; Dubernard
zados para a redução da dor, sem contudo te- JM e Sirigu A. (2002). Face or hand, not both:
rem se mostrado eficazes para a cura da dor perceptual correlates of correlates of reaffer-
fantasma e de suas sensações. Desse modo, entation in a former amputee. Cur. Biol., 12,
como não existe, ainda, uma cura para o fas- 1342-1346.
cinante fenômeno das sensações fantasmas, Giraux, P.; Sirigu, A.; Schneider F. e Duber-
muitos indivíduos precisam se adaptar com nard JM (2001). Cortical reornization in mo-
essa situação, como descrito no relato: tor córtex after graft of both hands. Nat. Neu-
rosci., 4(7), 691-692.
“Hoje sou altamente conformista de que Giraux, P. e Sirigu, A. (2003). Ilusory move-
sou amputado e vivo bem como estou. ments of the paralyzed limb restore motor
Porém, como vivi 34 anos com a perna córtex activity. Lyon: Institut des Sciences
e há cinco anos e meio sem a perna, em Cognitives, CNRS.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 234-239 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

Lundy-Ekman, L. (2004). Neurociência: Fun- www.icb.ufmg.br/neurofib/NeuroMed/Semin


damentos para reabilitação. 2 ª edição. (pp. ario/DorFantasma/f6.htm.
125-137). Rio de janeiro: Editora Elsevier. Schilder, P. (1989). A imagem do corpo: As
Ramachadran, V.S. e Blakeslee, S. (2002). energias construtivas da psique. São Paulo:
Fantasmas no Cérebro - uma investigação Editora Martins Fontes.
dos mistérios da mente humana. (Machado, Teixeira, M.J.; Imamura, M. e Peña Calvi-
A., Trad.). Rio de Janeiro: Editora Record. montes R.C. (1999). Phantom pain and limb
Rohlfs, A e Zazá, L . (2000). Dor fantasma . amputation stump pain. Rev. Med., 78, 192-
Universidade federal de Minas Gerais (MG). 196.
Disponível no endereço eletrônico: http://

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 240-241 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
S u b me t i d o e m 3 0 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 0 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Resenha

Repensando a função do manicômio na sociedade


Reflexions about the role of lunatic asylum in the society

Maurício Aranha

Núcleo de Psicologia e Comportamento, ICC, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

Clínica em movimento: por uma sociedade sem manicômio (2003). Ana Maria Lobos-
que. Editora Garamond, ISBN 85-86435-92-9, 200 págs.

Palavras-chave: filosofia da ciência; saúde mental, psiquiatria.

Este é um livro que desde o título pel da psicanálise no contexto da loucura ten-
mostra seu compromisso abrangente com a do em vista que nem mesmo ela, que tanto
análise da alma na luta revolucionária dos prometera reconhece no delírio uma tentativa
profissionais que a praticam pelo viés do ideal de cura e re-organização do equilíbrio psíqui-
antimanicomial. co. Mesmo a psicanálise se voltou para a
O livro propõe novos modelos para o normatização da loucura oferecendo como
exercício da clínica psiquiátrica e, ao mesmo modelo estruturante a mítica edipiana. Na edi-
tempo, instrumentaliza idéias para um projeto ficação do Instituto da Lei normativa à loucu-
de sociedade mais humana. Esta mudança de ra, a família passa a representar a moral que
paradigma alavanca a crença num projeto te- deve ser imposta às manifestações psicóticas,
rapêutico para a loucura, mostrando a impos- como se a cura aí se encontrasse. Portanto, o
sibilidade de reconhecimento desta em sua grande destaque do texto é que sua aborda-
singularidade e diferença. A obra evidencia a gem parte do sofrimento humano para a ele
vocação originariamente totali-tária dos hos- retomar como compreensão que não se furta
pitais psiquiátricos, o que demonstra ser o tra- ao embate diário com a miséria humana. Um
tamento da loucura permeado de uma coletiva “movimento” que é também comprometimen-
vontade de poder que captura e exclui a lou- to.
cura do espaço político da cidadania. A abor- Este livro se debruça sobre a filosofia
dagem, tão bem encadeada tem por fim o de- de Nietzsche para propor uma transvalori-
sencadeamento de um movimento que impul- zação da ética e da política, com a finalidade
siona a abordagem clínica a um exercício de de reconhecer não apenas a positividade da
autonomia e liberdade das pessoas. loucura como experiência, mas também de
A obra leva ao questionamento do pa- que maneira ela pode ser um remodelador de

 – M. Aranha é Médico (UFJF), Especialista em Neurociência e Saúde Mental (Barcelona), Neurolingüística


(IBMR), Psicologia Analítica, Psicopedagogia Institucional e Clínica, Terapia Holística e Metodologia dos Processos
de Aprendizagem. Atua como Coordenador do Núcleo de Psicologia e Comportamento do Instituto de Ciências Cog-
nitivas (ICC). E-mail para correspondência: coazar@gmail.com.

240
nossa cultura. O sentido político que advém que tem por fim acolher o suposto saber indi-
da desospitalização tem por missão o enfren- vidualista. Negando a interdisciplinaridade, a
tamento de modelos lucrativo economicamen- singularidade, a autonomia e a cidadania do
te. portador de sofrimento mental. Incita a novas
A obra de Ana Marta Lobosque lança prática que contemple uma forma de supera-
mão de outros autores contemporâneos como ção não só autocrítica, mas também implicada
Foucault, Deleuze e Guattari, para esboçar a nas questões de políticas públicas. A autora
desconstrução dos conceitos de lei, desejo e convida à uma reflexão sobre a respeitabili-
culpa dominantes no Ocidente. Preocupa-se dade às diferenças que deve permear o conví-
em revisar as estruturas que sustentam o mo- vio entre os operadores da saúde mental e sua
delo especulativo-científico, confessional- clientela. Na busca de uma vivência conjunta,
analítico, singular-coletivo, autonômico- uma aposta no encontro de um espaço coleti-
normatizado para se dar a devida dimensão ao vizado, respeitador e acolhedor ao “diferente”
texto da autora e a sua proposta de novas prá- e suas necessidades.
ticas de convívio com a loucura. Assim, busca Na parte II, a autora fala da influência
romper definitivamente com as Instituições sofrida no contato com os textos de Freud, da
manicomiais como forma de resgate a digni- sua relação com a psicanálise, com a saúde
dade humana prolatada, até mesmo, pela mental e suas práticas. Expõe as contribuições
Constituição. dos textos de Foucault, Delueze e Guatari e o
Na parte I do livro, "Clínica em Mo- retorno a Freud proposto por Lacan. Os textos
vimento: o cotidiano de um serviço substituti- confrontam a autora com elementos constitu-
vo de saúde mental", a autora expõe sua posi- tivos do universo “psi” tais como aspectos
ção ao abordar o modelo asilar e o racional no políticos, modelos científicos, o Instituto do
contexto de uma sociedade global. Demonstra poder que permeia as relações, objetos e su-
a desigualdade e preconceito que permeiam o jeito.
tratamento do portador de transtorno mental. Finalizando, na parte III, defende-se a
Isso significa que para que haja uma nova igualdade, a partir da reflexão sobre o presen-
contextualização do tratamento, haverá a ne- te e se afirmando que em toda sociedade or-
cessidade de uma mudança estrutural em to- ganizada o direito é uma conquista edificada
dos os setores que se voltam para a aborda- pela própria sociedade, pois que a sociedade
gem da saúde mental. Indo desde a capacita- não serve ao direito, mas sim o direito, ao
ção técnica até revisões conceituais de grande normatizar, o faz em prol da sociedade a qual
complexidade. Mas o foco da autora é a clíni- deve existência.
ca da saúde mental e é nela que centra suas Desta forma, observa-se que o “mo-
reflexões. Por assim ser, questiona a noção vimento” proposto por Lobosque soa como
habitual de clínica, que tem servido mais aos um caminhar refletido e transformador em
profissionais que aos pacientes. prol de uma prática clínica que se alia a justi-
Ana Maria Lobosque critica os profis- ça social, lembrando que o portador de trans-
sionais da saúde mental por transformarem torno mental é, antes de mais nada, um sujeito
suas abordagens e set terapêuticos em lugares de direito, portanto, um cidadão.

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12 <http://www.cienciasecognicao.org> ISSN 1806-5821 © Ciências & Cognição
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dêmico por meio de uma abordagem transdisciplinar de tro veículo, inclusive anais de eventos, revistas e pe-
questões que digam respeito ao estudo da mente e do riódicos.
comportamento humano, da capacidade de produzir, as- • Comentários a Artigos: trata-se de material que
similar e distribuir conhecimento, bem como do funcio- tenha por objeto outro artigo publicado, estabelecen-
namento do cérebro em si. A política editorial da revista do uma complementação acadêmica útil e uma críti-
privilegia a abordagem de tais temas através do mapea- ca embasada, podendo ser ainda uma segunda visão
mento do tema, incentivando o diálogo entre diversos sobre o tema. Estes textos serão relacionados por
campos de conhecimento. Outro ponto essencial diz res- links ao artigo comentado, formando uma rede de
peito ao caráter de divulgação científica, devendo ser temas relacionados.
observada a clareza da abordagem para o nível de gradu- • Resenhas: análise (informativa ou crítica) de livros
ação, obviamente sem abrir mão da qualidade técnica e cujo tema esteja circunscrito na área de interesse da
do rigor científico. revista.
A publicação aceita colaborações, reservan- • Informações e Divulgações: divulgação de jorna-
do-se o direito de publicar ou não, após avaliação, o ma- das, workshops, feiras, seminários, colóquios, sim-
terial submetido espontaneamente. Profissionais que atu- pósios, congressos e outros eventos de cunho aca-
em com pesquisa acadêmica podem propor a abertura de dêmico.
novos núcleos temáticos, devendo para tanto pertencer ao • Cartas: espaço de interação com o leitor, através do
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(ICC). O sistema de associação está informado no site do publicado ou sobre a própria publicação, as quais se-
ICC, uma comunidade virtual de pesquisadores de âmbi- rão encaminhadas ao(s) Autor(es) ou ao Editor-
to nacional. As colaborações de associados titulares ou chefe, no caso das dúvidas que não sejam de interes-
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rão seguir igualmente as normas e diretrizes de publica- blicar, embora seja encaminhada à pessoa responsá-
ção que se seguem. vel para eventual resposta privada.

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ência & Cognição deve possuir afinidade com alguma tempo. Entretanto, caso sejam encaminhados até as datas
das seções que a compõem, a saber: que se seguem podem ser indicados como prioritários
para a publicação nos prazos indicados. Toda e qualquer
• Editorial: restrito ao Conselho Editorial. submissão inicial de material deverá ser realizada somen-
• Artigos de Divulgação Científica: material destina- te por correio eletrônico para:
do à divulgação de trabalhos realizados como conse- submissao@cienciaseconicao.org
qüência de uma investigação ou aplicação de técnica
ou tecnologia calcada em teoria existente. Estes arti- - 15 de fevereiro para o volume de Março.
gos incluem trabalhos de Iniciação Científica (IC) e - 15 de junho para o volume de Julho.
partes de monografias de conclusão de curso, desde - 15 de outubro para o volume de Novembro.
que co-assinados por um orientador capacitado. Ain-
da aqui é cabível a publicação de revisões críticas da O texto original, rigorosamente sob a forma es-
literatura ou conclusões parciais de pesquisas, disser- tabelecida abaixo, deve ser apresentado como arquivo
tações ou teses. gravado em *.doc; Office 97 ou superior; fonte Times
• Artigos Científicos: material produzido como con- New Roman, tamanho 12; espaço entre linhas simples;
seqüência de investigação científica, quer ao nível de sem espaço de parágrafos; alinhamento com as margens
pesquisa independente por pesquisador capacitado, esquerda e direita (justificado) e identação de 1,25cm no
quer como resultado originado de projetos com enti- início de cada parágrafo.
dades de fomento à pesquisa, de trabalhos de diplo-
mação ao nível de graduação, especialização, mes-

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Ao enviar um texto para submissão, redija no mendam com sugestões de modificações ou indicam sua
corpo da mensagem, uma carta de encaminhamento diri- publicação. Os Autores recebem cópias dos pareceres dos
gida aos Editores contendo: Consultores.
Caso o texto venha a ser rejeitado, os Autores
• Autorização para o processo editorial de seu texto. podem submetê-lo novamente depois de cuidadosa revi-
• Garantia de que todos os procedimentos éticos refe- são, considerando os pareceres recebidos. Em geral, é
rentes a um trabalho científico foram atendidos. encaminhado aos mesmos Revisores/Consultores ad hoc.
• Concessão dos direitos autorais de seu texto à revista A recomendação para publicação associada a sugestões
Ciências & Cognição. de modificação do trabalho visa melhorar a clareza ou
• Endereço completo de um dos Autores para corres- precisão do texto, segundo os padrões de qualidade da
pondência com os Editores (incluir CEP, fone, fax e revista científica. Uma versão reformulada do texto deve
e-mail). ser apresentada para apreciação, tendo em vista obter a
aceitação; versão esta acompanhada de carta dos Autores
Envie também, por correio postal, carta dirigida aos Editores quando estes não concordarem com algumas
aos Editores com o mesmo conteúdo daquela mensagem, das sugestões dos Revisores/Consultores, informando as
assinada por todos os Autores do estudo ou pelo Autor modificações efetuadas e justificando as não realizadas.
responsável (modelo disponível no site Esta carta e o texto reformulado são encaminhados a
www.cienciasecognicao.org). um dos Conselheiros da revista, juntamente com a versão
original e os pareceres dos Revisores/Consultores, para
Remeter para: análise. O Conselheiro pode rejeitar, sugerir modifica-
ções (quantas vezes considerar necessário) ou indicar o
A/C Prof. Dr. Alfred Sholl Franco texto reformulado para publicação. Nesta fase, o Conse-
Sala G2-032, Bloco G - Centro de Ciências da Saúde. lheiro terá conhecimento da identidade de Autores e Re-
Programa de Neurobiologia - Instituto de Biofísica Car- visores/Consultores envolvidos.
los Chagas Filho. Universidade Federal do Rio de Janei- O texto aceito será convertido em formato *.pdf
ro. e enviado ao(s) Autor(es) na forma final em que será
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almente publicável na revista eletrônica Ciências & prevista para a publicação do artigo.
Cognição, os Autores serão comunicados por e-mail so-
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dinários. Os Revisores são escolhidos pelos Editores, A reprodução total de qualquer artigo desta Revista em
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parecer, os revisores têm um prazo para realização da cias & Cognição, com exclusividade, todos os direitos de
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car, imediatamente, aos Editores. Os Revisores e/ou Con- por outro periódico e que, no caso de estudo, foi condu-
sultores ad hoc, após análise do texto, rejeitam, reco- zido conforme os princípios da Declaração de Helsinki e

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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 242-246 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

de suas emendas, com o consentimento informado apro- esquerda). No caso de relatos ou comunicações bre-
vado por comitê de ética devidamente credenciado.” (In- ves de pesquisas, o resumo deve apresentar breve-
cluir nome completo, endereço postal, telefone, fax, e- mente os objetivos, método, resultados e discussão
mail e assinatura de todos os autores.) do estudo. O resumo não precisa incluir informações
sobre a literatura da área, nem referências bibliográ-
* Segundo a Resolução n. 1.595, do Conselho Federal de ficas. O objetivo deve ser claro, informando, caso for
Medicina de 18-5- 2000, é obrigatório que os autores de apropriado, qual o problema e as hipóteses do estu-
“artigos divulgando ou promovendo produtos farmacêu- do. Para os relatos de pesquisa, o método deve ofe-
ticos ou equipamentos para uso em Medicina declarem os recer informações breves sobre os participantes, ins-
agentes financiadores que patrocinaram suas pesquisas”. trumentos e procedimentos especiais utilizados. A-
penas os resultados mais importantes, que respon-
Reprodução de Outras Publicações dem aos objetivos da pesquisa devem ser menciona-
dos no resumo. É vetada a utilização de abreviaturas
Citações (com mais de 500 palavras), reprodu- não convencionais ou sem prévia colocação por ex-
ção de uma ou mais figuras, tabelas ou outras ilustrações, tenso do termo a ser abreviado.
bem como de arquivos sonoros, devem ter permissão • Palavras-chave em português (fonte Times New
escrita do detentor dos direitos autorais do trabalho origi- Roman, tamanho 12, alinhamento e recuo de
nal para a reprodução especificada em Ciências & Cog- 1,25cm nas margens direita e esquerda). No mínimo
nição. 3 e no máximo 6, em letras minúsculas e separadas
A permissão deve ser obtida pelos Autores do com ponto e vírgula.
trabalho submetido. Os direitos obtidos secundariamente • Abstract (resumo traduzido para o inglês). Deve ser
não serão repassados em nenhuma circunstância. escrito de modo fluente e corresponder o máximo
Desenhos e esquemas mesmo que modificados possível ao conteúdo explicitado no Resumo, se-
apenas serão admitidos com autorização. Entretanto, o guindo a mesma forma (fonte Times New Roman,
Conselho Editorial coloca a disposição dos Autores, tamanho 12, em itálico, alinhamento e recuo de
quando da diagramação da prova do artigo, de pessoal 1,25cm nas margens direita e esquerda).
habilitado a formular esquemas e montagens adequadas • Key Words (fonte Times New Roman, tamanho 12,
ao padrão estilístico da publicação. em itálico, alinhamento e recuo de 1,25cm nas mar-
gens direita e esquerda), palavras-chave traduzidas
Apresentação do Texto para o inglês, ou termos correspondentes.
• Autor para Correspondência (indicado com um
Partes do Texto Original e Roteiro para Apresentação asterisco). Deve incluir uma breve descrição sobre as
do Texto Original: atividades atuais do Autor, sua formação, vínculo a-
tual e, se desejar, endereço completo para contato,
O texto original deve ser apresentado como ar- incluindo e-mail e homepage, caso haja.
quivo gravado em *.doc; Office 97 ou superior. Corpo de • Corpo do Texto: Os Subtítulos devem aparecer em
texto em fonte Times New Roman, tamanho 12; espaço negrito, alinhados à margem esquerda, precedidos e
entre linhas simples; sem linha adicional entre os pará- seguidos de uma linha em branco. Quando o texto
grafos e com deslocamento de 1,25cm na primeira linha for um relato de pesquisa deverá apresentar Intro-
de cada parágrafo; alinhamento nas margens esquerda e dução, Materiais e Método (quando for o caso, ou
direita (justificado). Metodologia), Resultados, Discussão e Referências
Use itálico em palavras ou expressões a serem Bibliográficas, numerados em arábico, assim como
enfatizadas e também no caso de palavras estrangeiras à possíveis subtítulos. Em revisões pode-se utilizar o
língua empregada. Use negrito apenas nos título, subtítu- recurso de um Índice (sem paginação) que apresente
los e nomes dos Autores. Não use palavras sublinhadas a listagem dos tópicos e dos subtópicos. Caso o Au-
ao longo do texto, nem marcas d’água. tor ache interessante e relevante, poderá acrescentar
um subtítulo sobre “Hiperlinks de Temas Relaciona-
• Título na língua empregada no artigo (fonte Times dos”.
New Roman, tamanho 16, negrito, centralizado) e • Figuras, Fotos, Tabelas e audios. As fotos ou figu-
em inglês (fonte Times New Roman, tamanho 12, i- ras devem ser enviadas separadamente, em arquivo
tálico, centralizado; deve informar o leitor sobre o anexo, no formato *.jpg (resolução máxima de
objetivo do artigo). 72dpi, não ultrapassando o limite de 1,4 MB cada
• Nome dos Autores (fonte Times New Roman, ta- um). Indicar no texto o lugar onde serão incluídas,
manho 12, negrito, centralizado) com referências do tipo: figura01, tabela02 ou gráfi-
• Afiliação institucional e o país (fonte Times New co01 etc., salvando os arquivos com nomes corres-
Roman 12, centralizado). Incluir nome da universi- pondentes: figura01.jpg, tabela02.jpg ou grafi-
dade, Institutos, Centros de Pesquisa etc e o país. co01.jpg. Os arquivos de áudio, também enviados
• Resumo, em português, contendo entre 100 e 150 separadamente, em anexo, no formato *.mp3, devem
palavras (fonte Times New Roman, tamanho 12, ali- ser apresentados já editados (cortes, formato, defini-
nhamento e recuo de 1,25cm nas margens direita e ção de mono ou estéreo, não podendo ultrapassar o

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Ciências & Cognição 2007; Vol 11: 242-246 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

limite de 1,4 MB cada um). Os arquivos serão inclu- dos. A citação, no corpo do texto, também pode-
ídos exatamente como nos forem enviados. Indicar rá ser feita apenas entre parêntesis, onde o so-
no texto o lugar em que o arquivo de áudio deverá brenome do primeiro autor deverá ser seguido
ser incluído. Citar autoria, data e local de gravação. pela expressão et al. – em itálico – seguido por
Não nos responsabilizamos pelo uso indevido das uma vírgula e o ano de publicação (Exemplo:
gravações por terceiros. Santos e colaboradores (2003) ou (Santos et al.,
Importante: para nomear as imagens ou áu- 2003)).
dios não use letras maiúsculas, acentuação, espaços • A citação de obras antigas e reeditadas devem
ou caracteres especiais (o "ç" é entendido como ca- ser feitas da seguinte forma: autor (data de pu-
ractere especial). Ao preparar arquivos de imagens blicação original/data de publicação consultada).
teste a resolução final: opte sempre por manter legí- Evite citações secundárias, quando o original
veis as linhas e dados dos gráficos e/ou tabelas. Para pode ser recuperado com facilidade. Quando ne-
tanto, ao "reamostrar" as imagens a fim de adequá-la cessário, informar no corpo do texto o nome do
à resolução pedida (em algum programa de edição de autor que faz a citação original e a data de pu-
imagem), selecione a opção "manter proporções da blicação do estudo, e, em nota, a referência bi-
imagem", tomando o cuidado de obedecer ao limite bliográfica original. Somente a obra efetivamen-
de 1,4 MB. Acrescente sempre na margem esquerda te consultada deve ser listada nas referências bi-
da fotografia, tabela ou gráfico uma marca de autori- bliográficas. Usar, nos casos de citação secundá-
a. ria, os termos apud, op. cit., id. ibidem etc.
• Notas (quando houver) devem ser indicadas por al- • A citação literal de um texto deve ser indicada
garismos arábicos no corpo do texto, as notas deve- colocando o trecho entre aspas e deve incluir a
rão ser listadas após as referências bibliográficas, referência ao número da página da publicação
sob o título Notas (não usar o recurso “Inserir No- do qual foi copiado (Santos, 2000: 16). Citações
tas...” do Word). de mais de três linhas devem ser apresentadas
• Agradecimentos e créditos a instituições de finan- como novo parágrafo, recuado de 0,5 cm da
ciamento deverão aparecer no final do texto e antes margem esquerda e 0,5 cm da margem direita e
do item Referências Bibliográficas. entre aspas.
• Anexos (quando houver) devem ser indicados no • Lista de Referências Bibliográficas. Deixar uma
corpo do texto e apresentá-los no final, após as Refe- linha em branco entre cada referência bibliográfica.
rências Bibliográficas, identificados por letras mai- Apresentar as referências em ordem alfabética, pelo
úsculas (A, B, C, e assim por diante) e por títulos a- sobrenome dos autores, apenas com as inicias em
dequados. Utilizar anexos somente quando for im- maiúsculo. Referências a vários estudos do mesmo
prescindível: dar preferência à informação que facili- autor são apresentadas em ordem cronológica, do
te o acesso a materiais e instrumentos, por meio de mais antigo ao mais recente. Quando coincidirem au-
notas e/ou links. tores e datas, utilizar letra minúscula como diferen-
• Normas para fazer Citações. Observe rigorosamen- ciador após a data: Santos (2000a), Santos (2000b)
te as normas de citação. Todos os estudos referidos como critério para listar as referências em ordem al-
devem ser acompanhados dos créditos aos autores e fabética. Ao repetir nomes de autores não substituir
das datas de publicação. por travessões ou traços. Não usar os comandos
• No caso de trabalho de única autoria, o nome do “sublinhado” ou “negrito” nesta seção. Os grifos,
autor deve ser seguido da data de publicação, na quando necessários, devem estar presentes como
primeira vez em que for citado, em cada pará- nos exemplos abaixo.
grafo. Exemplos: (Santos, 2000) ou Santos
(2000). Trabalhos com dois autores, citar no tex- Exemplos de Citação na Lista de Referências:
to os dois sobrenomes dos autores (usando o se-
parador e) sempre que o artigo for referido, a- Artigo de Revista Científica
companhado da data do estudo entre parênteses. Bloch, M. (1999). As transformações das técnicas como
A citação também poderá ser feita com os so- problema de psicologia coletiva. Signum, 1, 169-181.
brenomes entre parêntesis separados por uma
vírgula do ano de publicação. Exemplo: “Santos Artigo de Revista Científica Ordenada por Fascículo
e Silva (1999) demonstraram que...” ou ... foi - Citar como no caso anterior, e acrescentando o número
demonstrado na literatura (Santos e Silva, do fascículo, entre parênteses, sem sublinhar, imediata-
1999). Para trabalhos com três ou mais autores: mente após o número do volume:
Quando a citação for inserida como parte do Dunaway, D.K. (1991). The oral biography. Biography,
texto, citar apenas o sobrenome do primeiro au- 14 (3), 256-266.
tor, seguido de "e colaboradores" e da data de
publicação entre parênteses (exemplo: Santos e Artigo de Revista Científica no Prelo
colaboradores (2000) demonstraram que ...). Po- - No lugar da data, indicar que o artigo está no prelo. Não
rém, na seção de Referências Bibliográficas to- referir data, volume, fascículo ou páginas até que o artigo
dos os nomes dos autores deverão ser relaciona-

245
Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 242-246 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição

seja publicado. No texto, citar o artigo indicando, entre Trabalho Apresentado em Congresso e Publicado em
parênteses, que está no prelo. Anais
Campos, R.H.F. e Lourenço, E. (1998). Psicologia da
Texto Publicado em Revista de Divulgação Comercial criança e direitos humanos no pensamento do Instituto
- Havendo indicação do autor, iniciar a citação pelo so- Jean-Jacques Rousseau – Genebra – 1912-1940. Em:
brenome e inicial do nome, seguido do ano, dia e mês Faculdade de Educação da UFMG (Org.), Anais, V En-
entre parênteses, nome do artigo, nome da revista em contro de Pesquisa da FAE (pp. 154-166). Belo Horizon-
itálico, volume e páginas: te: Faculdade de Educação da UFMG.
Toledo, R.P. (2001, 23 de maio). O santo de Assis – Jac-
ques Le Goff. Veja, 20, 160. Teses ou Dissertações Não-publicadas
- Quando o texto não indicar o autor, iniciar com o título, Xavier, C.R. (2001). Encontros e permutas entre dois
seguido do ano, dia e mês, nome da revista em itálico, pensadores: um estudo sobre as correspondências entre
volume e páginas. Como no exemplo a seguir: Wolfang Pauli e Carl Gustav Jung. Dissertação de Mes-
As armas do barão assinalado (1998, maio). Bravo!, 8, trado, Programa de Estudos Pós-Graduados em História
58-63. da Ciência, Pontifícia Universidade Católica de São Pau-
lo, São Paulo, SP.
Livro com Autoria Única
Halbwachs, M. (1925). Les cadres sociaux de la Obra Antiga e Reeditada em Data Posterior
mémoire. Paris: Presses Universitaires de France. Descartes, R. (1989). Les passions de l'âme. Em: Alquié,
F. (Ed.), OEuvres philosophiques de Descartes. Tome III
Livro Organizado por um Editor (pp. 939-1103). Paris: Bordas. (Original publicado em
Neisser, U. (Ed.). (1982). Memory observed: remember- 1649).
ing in natural contexts. San Francisco: Freeman.
Capítulo de Livro Autoria Institucional
Benjamin, B.S. (1967). Remembering. Em: Donal, F. G. American Psychological Association (1994). Publication
(Ed.). Essays in philosophical psychology (pp. 171-194). manual (4ª ed.). Washington, DC: Autor.
London: Macmillan.
Comunicação Pessoal
Capítulo ou Artigo Traduzido para o Português de Carta, mensagem eletrônica, conversa telefônica ou pes-
uma Série de Múltiplos Volumes soal podem ser citadas, mas apenas no texto, apresentan-
Bausola, A. (1999). O Pragmatismo (Capovilla, A.P., do as iniciais e o sobrenome do emissor e a data comple-
Trad.). Em: Rovighi, S.V. (Ed.). História da Filosofia ta. Não inclua nas referências.
Contemporânea. Do século XIX à Neoescolástica (Vol.
8, pp. 459-471). São Paulo: Edições Loyola. (Original Web Site ou Homepage
publicado em 1980). Para citar um Web Site ou Homepage na íntegra, incluir o
endereço no texto. Não é necessário listá-lo nas Referên-
Livro Traduzido para o Português cias.
Foucault, M. (1992). As palavras e as coisas (Muchail,
S.T., Trad.). São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora. Artigos Consultados em Indexadores Eletrônicos
(Original publicado em 1966). Mello Neto, G. A. R. (2000). A psicologia social nos
tempos de S. Freud. Psicologia: Teoria e Pesquisa, A-
Texto Publicado em Enciclopédia gosto 2000, 16(2), 145-152. Retirado em 28/06/2001, no
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Massimi, M. (2000, outubro). Identidade, tempo e profe- http://psi.fafich.ufmg.br/cadernos/volume9.htm
cia na visão de Padre Antônio Vieira. Trabalho apresen-
tado na XXX Reunião Anual da Sociedade Brasileira de
Psicologia, Brasília, Brasil.

Trabalho Apresentado em Congresso com Resumo


Publicado em Anais
Pantano, D.M. (1997). Epistemología, Historia y Psico-
logía [Resumo]. Em: Sociedade Interamericana de Psico-
logia (Org.), Resumos/Abstracts, XXVI Congresso Inte-
ramericano de Psicologia (p. 85). São Paulo: SIP.

246
Ciências
C(3) i ê-–--Adotamos
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Categoria


Categoria
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