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FREITAG, Bárbara. Itinerário de Antígona: a questão da moralidade.

SP: Papirus, 1992. (Introdução e parte I: cap. 1).

INTRODUÇÃO

A questão da moralidade pode ser estudada valendo-se de uma pergunta aparentemente simples:
"Como devo agir?".
Essa pergunta, todavia, desencadeia uma série de novas perguntas:
- Como posso julgar a minha ação ou a dos outros?
- Quais os critérios segundo os quais faço esse julgamento?
- Segundo que máximas, princípios ou valores deve orientar-se (minha ou) a ação (dos outros)?
- Como posso ter certeza de que os princípios (ou valores) pelos quais oriento a minha ação ou
julgo a ação dos outros sejam os princípios certos, justos e corretos?
- Qual a relação entre a moralidade individual e a normatividade social?

A resposta a todas essas perguntas não esgotaria a problemática da moralidade, já que cada pergunta
gera uma infinidade de outras, que por sua vez exigiriam respostas cada vez mais sofisticadas. Mas
formular perguntas pertinentes já é meio caminho andado para a solução de problema.

Antes de aventurar-me na busca de respostas pertinentes, arriscarei algumas observações gerais.


As perguntas acima relacionadas dão destaque ao sujeito que age; sua ação pode ser submetida a um
julgamento; esse julgamento orienta-se por certos critérios ou valores; esses critérios ou valores
podem ser transformados (ou não) em máximas ou princípios para orientar as ações - as próprias ou
as dos outros - no futuro próximo.

Isso significa que:

1. a moralidade tem que ver com a ação, mais especificamente, com a ação de um ego, self ou
sujeito que relaciona sua ação com a ação dos outros (interação); assim sendo, a moralidade
passa a ser um assunto de interesse da sociologia.
2. a moralidade pode ser lida com os critérios do julgamento segundo os quais a própria ação ou
a dos outros é analisada, criticada ou julgada; essa análise criteriosa da ação pressupõe um
sujeito consciente, uma consciência moral, capaz, de julgar o certo e o errado, o bem e o mal,
o justo e o injusto; assim sendo, a moralidade passa a ser um assunto de interesse da filosofia;
3. a moralidade pressupõe uma causa da ação, uma explicação para as razões que levaram o
sujeito a agir assim e não de outra forma; atribuímos razões, motivos, intencionalidade ao ator;

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no momento em que procuramos explicar uma ação, localizando sua origem na psique, na
alma, na vontade, na razão do sujeito, nesse momento a moralidade passa a ser um assunto de
interesse da psicologia.
Enquanto a sociologia pergunta pelas consequências objetivas de uma ação no contexto social, a
filosofia pergunta pelos critérios ou princípios (conscientes) que orientaram essa ação, e a psicologia
tenta desvendar as causas subjetivas (os impulsos, os motivos) que levaram o sujeito a agir consciente
ou inconscientemente desta e não de outra forma.

Os três enfoques admitem em geral uma vontade (livre) para agir, alternativas de ação (segundo
critérios e meios variáveis), o que necessariamente leva a consequências alternativas da ação. Em
outras palavras, a questão da moralidade implica uma concepção de (relativa) liberdade do ator. O
ator pode ser levado a agir por diferentes razões ou motivo; pode utilizar-se de diferentes critérios e
meios para justificar a sua ação, provocando (mais ou menos intencionalmente, conscientemente)
essas ou aquelas consequências de seus atos.

Mas se a moralidade é uma questão sociológica por estudar a ação de um ego em relação a um alter,
ela não pode ser tratada exaustivamente pela sociologia, porque esta concentra sua atenção nas ações
sociais regulares, padronizadas (em papéis, regras e prescrições socialmente sancionadas),
institucionalizadas (em instituições como a Igreja, o Estado etc.). Em outras palavras, a sociologia
negligencia o aspecto subjetivo da moralidade, a consciência moral. Por isso não surpreende que o
tema da moralidade (com exceção de Durkheim) não tenha recebido muita atenção dos sociólogos. A
sociologia, com sua ênfase nas ações objetivadas, institucionalizadas, não seria capaz de sozinha
responder às perguntas acima formuladas.

Algo semelhante ocorre com a filosofia moral. Herdeira da teologia, ela assume a reflexão sobre os
valores e critérios (ancorados no sujeito) que orientam sua ação e controlam o seu julgamento. Ela,
contudo, não conseguiu por si só resolver a questão da moralidade, justamente por ter concentrado
sua atenção na consciência moral, negligenciando tanto as consequências objetivas da ação de um
sujeito em um dado contexto social quanto os aspectos irracionais, inconscientes da ação. Por isso
mesmo, a filosofia também não seria capaz de esgotar, com sua reflexão, a problemática da
moralidade.

Coube à psicologia sublinhar ao lado dos motivos conscientes intencionais de qualquer ação, já
ressaltados pela filosofia, os motivos (impulsos não-intencionados) inconscientes que levam um sujeito
a agir, muitas vezes contra sua vontade ou seus interesses. Mas, se a moralidade fosse reduzida à
questão do mero comportamento pulsional de um organismo, estamos reduzindo a questão da

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moralidade a unia questão biológica; se a víssemos exclusivamente com o olho do psicanalista, tudo
teria sua razão de ser em estruturas (inconscientes) que não obedecem à vontade do ego. Assim
sendo, o sujeito não pode ser responsabilizado pelos seus atos, já que suas pulsões escapam ao seu
controle consciente. Nesse caso, não faz sentido perguntar "Como devo agir? pois não há liberdade
(subjetiva) de ação. Se admitirmos a versão da psicogênese das categorias morais da criança, a
exemplo do estruturalismo genético, fica excluída a reflexão sobre a objetivação das ações e suas
consequências materiais e sociais (objetivações). Por estas (e outras razões) tampouco a psicologia
conseguiria responder, sem recurso às outras disciplinas, às questões vinculadas à moralidade.

A ação moral pressupõe, um sujeito da ação, livre, dotado de vontade e razão, capaz de controlar e
orientar os seus atos segundo certos critérios e princípios, disposto a assumir conscientemente as
consequências desses atos, responsabilizando-se por eles. Por isso a questão da moralidade exige um
tratamento multidisciplinar; ela não pode ser estudada de forma compartimentalizada e isolada, seja
pela sociologia, seja pela filosofia, seja pela psicologia. Ela pressupõe um tratamento capaz de integrar
várias óticas. Entre essas, a filosofia, a sociologia e a psicologia certamente assumem um lugar
privilegiado.

Acredito que um tratamento interdisciplinar que busque na herança filosófica da Ilustração, na teoria
sociológica crítica e na psicologia genética os elementos para delimitar as condições da possibilidade
de nossa ação em dados contextos sociais possa responder melhor às muitas perguntas levantadas no
início deste capitulo, ajudando a definir o espaço de liberdade de cada ator em contextos sociais e
políticos pré-estruturados. Este tipo de tratamento permite reformular as perguntas iniciais e buscar
respostas capazes de abranger as dimensões centrais da questão da moralidade.

Qual a liberdade de ação de um sujeito em uma dada sociedade? Mais especificamente: Como um
alemão dos anos 30 poderia ter agido no contexto do nacional-socialismo? ou: Como um cidadão
brasileiro pode agir no contexto da sociedade de classes brasileira, marcada pelas extremas
desigualdades sociais, econômicas e políticas que a caracterizam nesse final do século XX?

Este livro pretende ser uma reflexão crítica sobre os limites e as possibilidades da ação social do
indivíduo em contextos estruturais pré-configurados. Ao fazer a crítica do pensamento sociológico
clássico e contemporâneo, o livro procura delimitar o espaço de liberdade possível ao sujeito que vive
em sociedade. Ao revisar os pontos de vista filosóficos, procura evitar a idealização do sujeito como
ser racional onipotente e onisciente, um verdadeiro Ubermensch (super-homem) na versão
nietzscheana. Ao recorrer à psicologia genética, pretendo não cair num reducionismo psicológico mas
apontar para uma concepção dinâmica de um sujeito em formação. Esse sujeito não é, a priori, livre,

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dotado de vontade e razão, capaz de orientar sua ação em princípios auto-elaborados. O sujeito
epistêmico da filosofia crítica de Kant é substituído pelo sujeito em formação e transformação
permanente, à luz da experiência. Trata-se de um sujeito que pretende a liberdade, a autonomia, a
justiça e a igualdade e reconhece os seus limites internos e externos, agindo adequadamente
(racionalmente) nos dados contextos sociais, transformando-os, para aumentar o espaço de liberdade
individual e coletiva.

Assim, a mobilização interdisciplinar das ciências humanas é necessária para compreender a questão
moral. Mas a recíproca também é verdadeira. As ciências humanas só podem justificar-se hoje em dia
se contribuírem para uma resposta aos desafios do presente, e esses desafios são todos de natureza
ética: a batalha pela paz, pelo desenvolvimento e pela preservação da natureza. As ciências humanas
ajudam a elucidar a moralidade; esta dá sua justificativa contemporânea às ciências humanas
Este livro tenta situar-se no centro dessa dialética.

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PARTE 1

A FILOSOFIA DA MORALIDADE

"O mundo trágico exclui a hierarquia dos saberes e a união do saber e do poder que a filosofia crê
realizar. Poderes e saberes enfrentam-se nessa opacidade que separa o mundo dos deuses daquele dos
homens, e na qual é necessário, a todo instante, escolher." (Vidal-Naquet)

Capitulo 1

A MORALIDADE ENTRE OS
GREGOS: DA TRAGÉDIA A FILOSOFIA

Quem triunfa então aqui?


Claramente, é o Desejo,
O Desejo nascido dos olhares da virgem
prometida ao leito de seu esposo,
O Desejo, cujo lugar é ao lado
das grandes leis, entre os senhores deste mundo.
Antígona (Sófocles)

Há muitos argumentos que podem ser usados em favor da inclusão de um capítulo especial sobre a
moralidade entre os gregos da Antiguidade clássica. A Grécia de Homero a Péricles lançou os
fundamentos da civilização ocidental. A filosofia contemporânea seria literalmente impensável sem o
trabalho pioneiro dos filósofos gregos: Sócrates, Platão, Aristóteles e tantos outros. Em suas obras
encontramos a sistematização e a delimitação dos grandes temas filosóficos, a definição de seu objeto,
a elaboração dos seus conceitos, que até hoje mobilizam a reflexão filosófica, inclusive sobre a
moralidade e a ética. Aliás, foram justamente os gregos da Antiguidade clássica que deram um
tratamento filosófico (e não teológico) à questão da moralidade, inaugurando uma tradição que seria
levada adiante, em toda a radicalidade, pela filosofia da Ilustração. Todas as grandes escolas, correntes
e autoridades da filosofia moral que sucederam aos gregos citam, criticam, retomam, idolatram ou
diabolizam o pensamento filosófico grego, ponto de partida e de chegada de quase todos os modelos
ou sistemas do pensamento subsequente.

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Mas também existem muitos argumentos contra a inclusão de um capítulo sobre a moralidade entre
os gregos em nosso debate. À vista do peso e da complexidade da contribuição do pensamento
grego para a questão da moralidade, impõe-se o seu tratamento em profundidade e extensão. Para
fugir da acusação da superficialidade, o tema teria de ser desdobrado em vários capítulos. Isso, por
sua vez, poria em risco o programa inter e multidisciplinar esboçado na introdução. Para escapar à
visão unidimensional (filosófica) do problema, propus justamente a inclusão da dimensão psicológica e
sociológica, focalizando, entre outras, as contribuições modernas ao tema. Para escapar ao dilema, a
solução mais fácil seria a omissão do capítulo. Uma vez que o pensamento grego é retomado, refletido
e debatido por quase todas as correntes subsequentes da filosofia moral, poder-se-ia evitar a
repetição, o eterno retomo dos mesmos argumentos, pela omissão do capítulo.

Os prós e contras poderiam ser multiplicados, buscando-se sempre novas formas de equilíbrio. Não é
essa a minha intenção.

Este capítulo sobre a moralidade entre os gregos não pretende ser una reconstrução exaustiva do
pensamento grego sobre o assunto, assim como o livro não pretende ser uma história da filosofia
moral de Homero até os nossos dias (cf. MacIntyre, 1987).

A referência à moralidade da Grécia serve como um fio condutor através do livro. Assim como Teseu
serviu-se do fio de Ariadne para escapar do labirinto do Minotauro de Creta, assim a citação da
moralidade grega fornece o fio vermelho que permite escapar do emaranhado da questão moral. O
mito, a tragédia e a filosofia grega fazem menção dos aspectos fundamentais e centrais da questão,
dando-lhe coerência e unidade.

No tratamento da questão, de Homero aos nossos dias, a moralidade foi sendo fracionada e
desmembrada. Passou a ser submetida a uma divisão do trabalho segundo a qual teóricos e críticos
literários, filósofos, historiadores, psicólogos, sociólogos, cientistas políticos e outros escolhiam um ou
outro aspecto do seu interesse, desenvolvendo-o em todos os detalhes, sem ocupar-se dos demais,
deixados ao encargo de outros especialistas igualmente unilaterais, interessados em outros aspectos
igualmente parciais.

A referência à moralidade entre os gregos da Antigüidade clássica tem por isso mesmo uma função
metafórica: ela faz alusão à possibilidade de apresentar o tema da moralidade em sua complexidade,
em suas múltiplas dimensões e estratificações, sem apagar os conflitos e as contradições, sem reduzir
as dimensões, sem simplificar o drama e o enredo, sem perder de vista a unidade e a coerência da
questão.

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Ao discutirmos a questão valendo-nos dos enfoques filosófico, sociológico e psicológico, voltaremos
ao palco grego, iluminando os personagens e as relações que o respectivo autor ou corrente passaram
a sublinhar, deixando as demais no escuro. A escolha dos paradigmas (e, no interior de um paradigma,
a escolha dos autores) foi feita de modo que se desse voz a cada protagonista (mesmo aos não
previstos pelos gregos).

O presente capítulo tem, por isso mesmo, dupla função: de critério de seleção e ao mesmo tempo de
Wegweiser (marco de estrada).

O discurso dramático

A tragédia grega tinha (cf. Vidal-Naquet, 1973) pelo menos três funções básicas: a expressão artística, a
educação do público e a função catártica.
1. A expressão artística do dramaturgo revela-se no domínio perfeito da linguagem, comunicando, na
tragédia em questão, emoções, problemas ou conflitos emocionais e morais de um grupo ou uma
coletividade a um público mais amplo.

2. A educação do público ocorre quando a tragédia encena os vários pontos de vista de um problema
ou conflito, sob a forma de diálogos, permitindo ao público formar sua própria opinião, ouvidos os
argumentos de todas as partes.

3. A função catártica é preenchida quando uma peça permite reduzir, no público, a tensão pulsional,
provocada pelos conflitos individuais e sociais encenados, por meio da identificação das pessoas do
público com um ou outro personagem da peça.

A tragédia grega alimenta-se da mitologia. O mito, forma original de representação das emoções, dos
conflitos, das ações humanas projetadas em personagens mitológicos, fornece a matéria-prima para a
trama dos protagonistas da tragédia. Aqui são encenados emoções e conflitos universais, vinculados
inevitavelmente à condição humana, com fim trágico (a morte) de quase todos os personagens. Os
atores e suas ações assumem feições típico-ideais, quase caricaturais. Dessa forma, a tragédia grega
exprime, nos planos dramático e literário, os traços essenciais da questão moral. Mostra com toda a
nitidez os dilemas e as contradições nas quais envolvem-se os seres humanos, inseridos em situações
conflitantes que os impelem para a ação. Agir é perigoso. Mas é preciso agir, pois a ação exprime, em
sua essência, a vida.

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Se a questão da moralidade encontrou na tragédia grega sua expressão dramática mais refinada e
elucidativa, a Antígona de Sófocles é, sem dúvida, um dos seus mais belos exemplos. Nessa peça, o
conflito sobe ao palco, encarnado em vários personagens, entre os quais Antígona e Creonte
assumem os pontos extremos de uma polaridade. Vale a pena recapitular o contexto geral da peça.

Antígona é filha de Édipo, rei de Tebas. Em outra tragédia, Sófocles havia relatado o triste destino
desse personagem, que, por desvendar o enigma da esfinge e virar rei de Tebas, tornara-se - sem
saber - duplamente culpado. Édipo comete parricídio e pratica o incesto, atraindo a ira dos deuses
sobre si e sobre Tebas. Para apaziguar os deuses e fazer penitência, ele abandona o trono de Tebas,
errando cego pelo mundo. Do casamento incestuoso de Édipo com sua mãe, Jocasta, haviam nascido
quatro filhos: Polinice, Etéocles, Ismena e Antígona. Creonte, irmão de Jocasta, e portanto tio de
Antígona, havia usurpado o trono de Tebas.

Polinice contesta pelas armas a legitimidade do novo tirano de Tebas, que é apoiado por Etéocles.
No combate às portas de Tebas, os irmãos caem no campo de batalha, um ferido pela mão do outro.
Creonte decide distinguir Etéocles como herói da cidade, homenageando-o com, os funerais de um
guerreiro que morrera defendendo Tebas, e castigar Polinice corno traidor, negando-lhe os funerais
tradicionais. Decreta ainda a pena de morte contra aquele que ousasse enterrar Polinice, para
assegurar-lhe a vida eterna nos Campos Elíseos.

Desta forma, Creonte cria um conflito existencial para as irmãs de Polinice - Antígona e Ismena -, que
segundo a tradição grega devem enterrar os seus mortos segundo um certo ritual. Ambas enfrentam
de diferentes maneiras o conflito entre a lei do oikós, ou dos deuses, e a lei da polis, ou dos homens:
Antígona obedece à primeira lei; Ismena, à segunda.

Seguindo a voz de sua consciência e fazendo valer a lei da família ( oikós), Antígona decide enterrar
Polinice, contrariando as ordens do tirano. Creonte castiga-a de morte, mandando enterrá-la viva, em
nome da lei da polis ou dos homens. Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona, decide suicidar-se
diante do mundo da noiva, o que por sua vez leva Eurídice, mãe do rapaz e esposa de Creonte, a
suicidar-se. Sobrevivem Creonte e Ismena. Esta não tivera coragem de ajudar Antígona a enterrar o
irmão Polinice, mas defende Antígona diante de Creonte, depois do ato consumado. Corre, assim, o
risco de sofrer o mesmo destino de sua irmã. Creonte, interpelado pelo coro (os anciãos; de Tebas),
pelo corifeu (seu porta-voz) e por Tirésias (o filósofo sábio e cego, chamado "o Divino"), tenta revogar
sua decisão, perdoando a pena. Tarde demais, contudo; as três mortes já estavam consumadas.

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A questão moral aqui encenada pode ser tratada de vários pontos de vista (cf. Freitag, 1989a). Na
análise que segue, procurarei concentrar-me no conflito moral vivido por Antígona e Creonte,
segundo as intenções dramatúrgicas de Sófocles.

Nessa peça, Sófocles preenche magistralmente as três funções básicas da tragédia. A análise da
primeira função (a expressão artística) fica reservada aos meus colegas de teoria e crítica literária. Cabe
apenas lembrar que Sófocles transforma literariamente o mito grego em um drama universal vivido, de
uma forma ou outra, por cada um de nós.

Quais seriam as intenções pedagógicas (segunda função da tragédia) da peça Antígona? Sem dúvida,
Sófocles quer mostrar ao seu público que toda ação humana é suscetível de erro, que cada ponto de
vista defendido tem sua razão de ser, remetendo contudo ao ponto de vista radicalmente contrário,
cujas validade e legitimidade vão se tornando evidentes no desdobramento da trama de cada
personagem. Sófocles empreende uma verdadeira conscientização do seu público. Antígona
representa a lei divina (do oikós, ou seja, da família grega), em nome da qual enterra o irmão e
contraria o tirano de Tebas. Creonte representa a lei dos homens (da polis, isto é, do Estado grego),
em nome da qual condena Antígona à morte, ferindo a lei do oikós (as relações de parentesco entre
tio e sobrinha).
Se no início da peça esses princípios de ação parecem ser inconciliáveis, representando alternativas de
ação excludentes que não permitem nenhuma mediação, muito menos uma conciliação, o espectador
(o leitor) é, no final da peça, convencido do contrário. Ele aprende a ver as mediações e a hierarquia
existentes entre lei divina e lei dos homens. Age mal todo aquele que não compreender essa
mediação e essa hierarquia. Antígona, desconhecendo e desrespeitando a lei dos homens, paga a sua
ação com a morte. Ela sabia da punição prevista para a sua transgressão da lei dos homens e estava
disposta a sofrer essa conseqüência. O que ela não sabia é que ela estava arrastando para a morte
Hêmon e Eurídice, ambos inocentes, ferindo assim, despropositadamente, a lei divina. Também não
lhe ocorreu que poderia estar provocando a ira dos deuses, visto que assumia o ponto de vista da
justiça divina, infalível e absoluta. Tarde demais ela se dá conta de que sofrerá, ela própria, o destino
do qual quis preservar o irmão Polinice: não terá os funerais tradicionais que lhe assegurariam a vida
eterna nos Campos Elíseos. Finalmente, lamenta-se por ter abdicado a vida, antes de vivê-la e
degustá-la. Os deuses não retribuem sua ação com reconhecimento ou compaixão.

A razão e a vontade divina permanecem impenetráveis ao humano. Somente restam os homens (o


coro dos anciãos, o corifeu e Tirésias) para reconhecer o gesto magnânimo e o sacrifício absurdo da
jovem virgem.

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Creonte, o tirano, está absolutamente convicto da legalidade e legitimidade de sua decisão de proibir
os funerais de Polinice e condenar Antígona à morte. Mas, quando é alertado pelo coro, pelo corifeu e
por Tirésias, corrige a sua intransigência, procurando reverter a decisão inicial. Mas os deuses não lhe
perdoam a precipitação e lhe impõem o sacrifício do filho e da mulher amada. Creonte é forçado a
admitir a vigência simultânea. das duas leis, a dos deuses e a dos homens. E mais, que a primeira,
representando o princípio da vida, é hierarquicamente superior à lei elaborada pelos mortais. Também
ele desespera diante do destino implacável e não transparente à razão humana, traçado
arbitrariamente pelos deuses para os mortais.

O espectador aprendeu, no final da peça, que é preciso reconhecer os princípios de ação em conflito,
ponderá-los adequadamente e reconhecer a sua hierarquia implícita. O espectador aprende com os
erros e a intolerância de Antígona e Creonte. Ambos tiveram de aprender, a duras penas, que é,
exatamente tal qual era, como acontece com o divino, mas deixando sempre em lugar do indivíduo
que se vai e envelhece um jovem que se assemelha a ele.

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