1 . O Neolítico traz consigo diversas mudanças em vários âmbitos – econômico,
organizacional e ideológico, por exemplo. O processo fundamental que dá sentido a todas essas metamorfoses é a passagem da recolecção à produção. Tal processo está na base da diferença entre o neolítico e o paleolítico. Ademais, cabe ressaltar que não foram de repente e nem homogeneamente que as modificações ocorreram.
No paleolítico, em geral, lidava-se com material lítico de riqueza variável (de
acordo com o período e a região), caça, pesca e a recolecção. Os homo utilizavam-se do material dado pela natureza para sobreviver e, por conta disto, eram nômades - não tão nômades quanto já se imaginou, pois haviam certas regiões “fixas” em torno das quais os grupos gravitavam. A “revolução neolítica” modificou estruturalmente a relação dos seres humanos com a natureza circundante e entre si, uma vez que há a “invenção” da agricultura cerealífera, a progressiva domesticação animal e a organização aldeã sedentária. A fase inicial do neolítico, seguindo Liverani, se dá entre 10.000 e 15.000 a.C. Nesse período passa a existir a agricultura a partir das plantas silvestres (Gramíneas e leguminosas). Portanto, esse processo dito inicial só é possível naquelas regiões em que essas plantas estavam já disponíveis, nesse sentido, o ecossistema do AOP favoreceu o desenvolvimento da primeira fase neolítica. O período “incipiente” (10.000 – 7500) corresponde à introdução dos primeiros silos para o armazenamento. A partir do final do sétimo milênio ocorre o período caracterizado como “plenamente neolítico” por Liverani.
Em suma, as características essenciais do período neolítico são: As habitações
(casas quadrangulares com tijolos crus ou barro); A organização aldeã sedentária formada por núcleos familiares e uma estrutura patriarcal onde quem dominava eram os chefes de família; O culto aos antepassados e os ritos funerários; O desenvolvimento da cerâmica (tendo em mente que existe, também, um neolítico acerâmico) e, sobretudo, o cultivo das gramíneas e leguminosas juntamente com o avanço tecnológico. Algumas culturas do Antigo Oriente próximo são exemplares e demonstram tanto as características gerais quanto as particulares do neolítico. Umma Habaghiya (6900 – 6300) é a primeira cultura cerâmica da Alta mesopotâmia e seguem-se no período de 6300 a 5200 três importantes culturas – Hassuna, Samarra e Halaf. Essas culturas, com suas particularidades, vão levar a cabo a produção cerâmica, agricultura (irrigada e não irrigada) e a criação de animais (as vezes conjugada com a caça). Segue-se dessas culturas a de Eredu, que representa o ponto de partida para a cultura de Ubaid e liderará os avanços tecnológicos do calcolítico em direção a uma, cada vez maior, especialização e centralização.
Em conclusão, as características que marcam a revolução neolítica podem ser
resumidas da seguinte forma: As necessidades trazidas pelo aumento demográfico pressionaram as culturas a desenvolverem novas formas de conseguirem alimentos. Aquelas regiões com ecossistema favorável iniciaram-se na produção cerealífera partindo do cultivo e beneficiamento das plantas silvestres e da domesticação de animais. Daí surgem a economia de produção, sedentarização, formação de aldeias em torno de núcleos familiares e chefes de família e, enfim, a cerâmica. 2. Liverani lança mão do conceito “Revolução urbana” gestado por Vere Gordon Childe. Este termo, diz o italiano, supõe menos uma mudança abrupta e repentina do que uma modificação estrutural. Os traços que fundamentam essa noção de “revolução urbana” se assentam nas modificações tecnológicas, socioeconômicas e, sobremaneira, nas organizacionais. Estamos diante de uma revolução que gira em torno da constante especialização e centralização da produção, com isso, temos a diferenciação social e o controle, por parte de um grupo, dos recursos naturais e simbólicos.
As aldeias do calcolítico contam com uma estrutura já proto-urbana. Há aí uma
produção sofisticada da cerâmica que nos faz inferir que exista já uma certa coordenação e especialização da atividade produtiva. Mas é no fim do quarto milênio que podemos começar a enxergar uma organização urbana em Uruk. A organização propriamente citadina consiste em um grau de centralização e especialização que faz girar em torno da cidade as aldeias produtoras. Há, portanto, a concentração e distribuição de excedentes a partir de um centro composto por especialistas. Esse tipo de organização só foi possível porque a baixa mesopotâmia contava com um excepcional desenvolvimento agrícola, nichos ecológicos significativos, o apoio das vias fluviais e a existência de um excedente que pôde suportar os encargos de um “setor público”. A relação, portanto, é a seguinte: A alta demográfica gera demanda por maior produção, esta só é possível através de tecnologias mais eficientes; Tendo alcançado a melhoria produtiva a população tende a aumentar, gerando a partir daí a necessidade da redistribuição organizada dos alimentos e produtos. Foi assim que questões organizacionais, tecnológicas, demográficas e produtivas tenderam a se relacionar e tal relação se desenvolveu por um vasto período de tempo, sendo assim, podemos captar o que Liverani quis dizer quando relacionou esses aspectos e apontou o seu caráter longínquo, sem se esquecer das características ambientais próprias à Baixa mesopotâmia que influíram no processo, bem como, o caráter estrutural das mudanças ocorridas. A revolução urbana caracteriza-se por uma crescente especialização do trabalho e a consequente organização centralizadora. Entram em jogo o palácio e o templo. Estas estruturas agem no intuito de dar unidade política e, com isso, necessitam de pessoas capazes de levar a termo tal integração. É aí que surge o aspecto fundamentalmente diferenciador desse tipo de organização. A cidade-centro desenvolve um setor público que redistribui, distribui e detêm terras, cargos, excedentes, produtos especializados, etc. Sendo assim, há o desenvolvimento dos especialistas, aqueles dedicados ao serviço “público”. Entre estes podemos destacar os artesãos, escribas, sacerdotes e administradores. Mas, o que era, de início, uma distinção entre especialistas citadinos e produtores das aldeias passa a ser uma distinção hierárquica que dá sustentação a uma diferença entre classes. Além dessa diferença em relação aos especialistas e produtores passa a existir uma hierarquização da relação entre cidade-centro e a aldeia-periferia. As cidades, a partir do seu controle centralizado, coletam o que fora produzido nas aldeias e redistribui aos aldeãos, fazendo assim com que a produção da aldeia fique disponível aos especialistas da cidade. Os aldeãos não aceitaram resignadamente essa relação e ela não foi tão homogênea quanto pode parecer nessa descrição, no entanto, o que caracteriza propriamente a consequência daquilo que damos o nome de "revolução urbana” é a relação da cidade-aldeia nos temos da relação centro-periferia, onde uma oferece a matéria-prima e o trabalho e a outra os produtos especializados e a coesão política. Estes aspectos relativos a integração política e diferenciação social são claramente ressaltados por Norman Yoffe.
É importante salientar mudanças importantes no âmbito das “ideias”, que
surgem da necessidade de um núcleo diretor em organizar um conjunto populacional mais vasto. As variantes individuais são tornadas gerais; o processo de abstrair, isto é, retirar características gerais de objetos particulares e únicos, é consequência dessa nova forma de organização sociopolítica. Ocorre algo semelhante com aqueles símbolos dos quais tiramos proveito até os dias de hoje e que chamamos, em seu conjunto, linguagem escrita. A necessidade de registro para o controle central eficaz faz surgir símbolos que a semiótica chamaria “icônicos”, ou seja, símbolos que representam algo a partir da semelhança entre representante e representado. Esse processo culmina em um tipo de código em que seus caracteres não correspondem a algo que exista externamente a eles; fato que pode ser encaixado no procedimento mais abrangente de tornar geral o que é particular. Portanto vemos o surgimento de características intelectuais surgirem de necessidades, digamos, concretas. Além disso, a justificação ideológica de todo esse processo é desenvolvido pelo cidade. Templários e palacianos legitimam a submissão aldeã a partir de um novo tipo de religiosidade, baseada nas “oferendas” e na existência de um grupo especializado na relação entre os humanos e o divino ( Os sacerdotes), e da figura divina e unificadora do rei.
Concluindo, A “revolução urbana” é considerado por Liverani um processo
revolucionário pela capacidade que teve de mudar todo o quadro civilizacional em um curto espaço de tempo, tendo em vista, evidentemente, a longa duração dos “eventos” dessa história longínqua para nós modernos. Esta mudança caracteriza-se por uma complexa imbricação de fatores demográficos, ambientais, políticos e socioeconômicos que deram as caras pela primeira vez na baixa mesopotâmia em fins do quarto milênio e prosseguiram, pelo seu resultado, como a base organizacional das sociedades do período do Bronze. Pode-se falar de uma condição ambiental favorável que pôde dar margem a um desenvolvimento demográfico, tecnológico e sociopolítico que deu o suporte para a produção de excedentes, a centralização, a especialização e suas diversas consequências civilizacionais; afinal de contas, passa a ser possível redistribuir alimentos para pessoas que vivem num território considerável em sua vastidão. Nesse processo organizativo Yoffe chama a atenção para o aspecto agregador e diferenciador que ele implica. Nota- se a integração de regiões mais vastas ao mesmo tempo em que cria-se classes hierarquicamente superiores e regiões dominantes, aumentando, assim, a diferenciação social. 3 – O período de Uruk pode ser caracterizado como sendo responsável por um modelo de integração comercial de dimensões inéditas que mudou tanto a estrutura administrativa da cidade-centro quanto do seu entorno e que, afinal de contas, acaba, na crise desse modelo, culminando em uma regionalização, isto é, em seu contrário. Cabe analisar qual a natureza do período de Uruk e sua decadência, em outras palavra, a difusão e crise da primeira urbanização. Uruk experimenta um nível avançado em relação à sua organização, tecnologia e produção cerealífera; isto, somado a necessidade de matérias-primas, proporciona a ocasião adequada à sofisticação das trocas comerciais à longa distância. As trocas se davam a partir de um intermediário que servia o núcleo palatino. Este comerciante transportava, pelas águas ou por terra, produtos manufaturados e os trocavam por matérias-primas, como metal e madeira, em resumo, todos aqueles materiais necessários que não estavam disponíveis para os administradores da cidade-centro. No retorno ele prestava contas à administração, trazendo produtos de valor equivalente àqueles que ele transportou. Embora estivesse, o intermediário, às sombras da administração palaciana havia liberdade para que o comerciante retirasse desse comércio vantagens para si. As trocas que assim se operavam eram desiguais; as manufaturas eram oferecidas em menor quantidade em relação à matéria-prima com a qual ela era trocada. O aspecto central dessa relação comercial são as consequências que ela traz para a dinâmica entre centro e periferia. O maior sítio é o de Uruk mas existem outros que são quantitativamente menores. Tal relação centro-periferia se dava sobretudo no nível econômico e existia uma relação hierárquica entre esses polos; As periferias passam a ser dependentes da relação comercial com as cidades-centro, como Uruk. Entretanto é notável o “efeito reflexo” que as relações de troca proporcionaram, pois tendo contato comercial constante com a cidade as periferias se desenvolveram e ganharam novas características locais, nesse sentido, os contatos inter-regionais proporcionados pelo comércio foram responsáveis por desenvolver e modificar tanto centros quanto periferias. Podemos ver, portanto, centros periféricos autóctones que desenvolvem-se de modo semelhante a Uruk – criação de um centro organizativo, templo, cerâmica própria, etc. A influência e difusão comercial de Uruk, como tudo em História, tem seu fim. Não são bem conhecidas as causas dessa crise, mas, desaparecem os postos avançados em locais externos e o período de Uruk tardio é caracterizado pelo fechamento dessa cultura. Desdobra-se daí um profundo processo de regionalização. Portanto, há a sobreposição das particularidades regionais e contatos mais restritos e efêmeros, ao invés do processo característico do período Uruk, o de inter-regionalização. Oberva-se tal desenrolar dos acontecimentos a partir da multiplicação de cerâmicas com características diferentes, o que leva a crer no encurtamento da difusão da cultura material e dos contatos entre as regiões. Sendo assim, a forte colonização urukiana chega ao fim; Não sem, no entanto, deixar de contribuir com uma importante herança técnica e administrativa, já que uma vez tendo se difundido certos traços culturais proporcionados pelo contato com Uruk permanecem à posteridade de seu domínio econômico. É claro! Depois que se escreve em um papel, por mais que o lápis suma, a palavra fica – embora a borracha do tempo possa apagá-la depois. Enfim, o período de Uruk é, inicialmente, caracterizado por um maior contato inter-regional graças à sua opulência que abre as portas ao comércio à longa distância e à criação de centros comerciais que se relacionam com suas periferias. Este contato proporciona o desenvolvimento técnico-administrativo das regiões periféricas e deixa marcas culturais duradouras. Finalmente, há a crise da primeira urbanização e um crescente processo de regionalização, onde as relações mais gerais se submetem às mais particulares.