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O Imperio Do Sabonete
O Imperio Do Sabonete
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cÁnne uVlcClintock
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Couro imperial
RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADE
NO EMBATE COLON IAL
TRADUÇÃO
Plinio Dentzien
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FICHA
1. Comportimenioscxu.t - Grl·Breunha - Colônias - Hinóri.L 1. Rclaçoo homem mulher - Grl,Br<canha - Hinória - Séc.
xrx. J. Plj>CI scxu.t - Gr.i-Bre11nlu - Colô, nias - História_ 4. Gr.i-Breunha - Colônias - Rclaçôcs u,i,is. I.Titulo.
CDD J0l.41
ISBN 978-Ss-168-0893-s 301.4s1
Título Origin.t: /wtp,ru/ le,uJ,,r: ,.,,,, xrnJrr aná ICCU4Íiry ,n the colorrwl torrrw Copyrigh1 Q 1991 by Routlcdgc,
Jnc.
Todos os diccitos ccscrvad01-
Tnduçio autoriuda da ediçio cm lingu1 inglcs1 publicad1 por Routlcdgc. P'!:' _do Taylor & FnnciJ Group LLC
Ediron da Unicimp
Ru1 Caio Gnco Pndo. so - Campus Unicamp
CEP 11083-891 -Campirw- SP - Brasil
Tcl./Fu: ( 19) 31'1•7718/77.S
www.cdicc,n_unicainp.br - vcndas@cditora.unicamp.br
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Sumário
Introdução
Pós-colonialismo e o anjo do progresso ................................................... 15
PARTE r
O IMPÉRIO DO LAR
PARTE l
ENGANOS MÚTUOS
PARTE J
9. "Azikwelwa"
(não vamos
embarcar) -
Resistência cultural
nas
décadas desesperadas ............................................................................ 479
10. Adeus ao paraíso futuro - Nacionalismo, gênero e raça ...................... 517
Pós-escrito
O anjo do progresso .............................................................................. 569
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O império do
sabonete
Racismo mercantil e propaganda imperial
Sabão é civilização.
Slogan da Unilever
SABÃO E CIVILIZAÇÃO
3o7
Couro imptrial
No século XVIII, a mercadoria era pouco 2. Ver a excelente análise de Thomas Richards, 1ht
Commodity Culturt of Victorian Britain: ,1dvtrtising
mais que um objeto mun dano a ser and Spmadt, 1851-1914 (Londres: Verso, 1990),
comprado e usado - nas palavras de Marx, especialmente a Introdução e o capírulo 1.
"uma coisa tri vial"'. Ao final do século 3. Ver a análise de David Simpson sobre o fetichismo nos
XIX, porém, a mercadoria tinha assumido romances cm Fttishism and Ima gination: Did:em,
Nfdvilfe, Conrad (Baltimore: Johns Hopkins University
seu lugar privilegiado não só como forma
Press, 1982). 4. R.ich~rds, 1he Commt>dity Cullure ... , p,
fundamental da nova economia industrial, 72.
mas também como forma fundamental de
um novo sistem?. cultural de representação
do valor social'. Surgiram bancos e bolsas 308
de valores para administrar as benesses do
capital imperial. Surgiram pro fissões para
administrar os bens que despencavam
febrilmente das ma nufaturas. O espaço
doméstico da classe média estava
abarrotado como nunca de móveis,
relógios, espelhos, quadros, animais
empalhados, or namentos, armas e uma
miríade de bugigangas. Os novelistas
vitorianos davam testemunho da estranha
proliferação de mercadorias que pare ciam
ter vida própria, e navios enormes
carregados de ninharias e ber loques faziam
seu comércio entre os marcados coloniais
da África, do Oriente e das Américas 1• 1 \l ·,
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A nova economia criou um alvoroço não só
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das coisas, mas também dos signos. Como
afumou Thomas Richards, se todas essas
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novas mer cadorias tinham de ser
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administradas, seria preciso encontrar um
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cultural. Richards mostra como, em 1851, a
Grande Exposição no Palácio de Cristal
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serviu como monumento a un1a nova
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forma de consumo: "O que a primeira 1 11r. ,
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intimidade era a completa transformação da 1 1
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vida coletiva e privada num espaço para a
exibição espetacular das mercadorias"4• J
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quintessencial africana, como afirmava a
O implrilJ d1J saór,nete - '7?.acismo mercantil e
propaganda imperial
antropologia do século XIX, era central
para a modernidade industrial, habitando e
Não se pode esquecer, além disso, que a mediando as incertas zonas liminares entre
história das tentativas europeias de impor domesticidade e indústria, metrópole e
uma economia mercantil às culturas império.
africanas é também a história das diversas
tentativas africanas de recusar ou de SABÃO E O ESPETÁCULO MERCANTIL
transformar o fetichismo mercantil europeu
de modo a satisfazer suas necessidades . A Antes do fim do século XIX, a lavagem das
história do sabão revela que o fetichismo, roupas de vestir e de cama era feita na
longe de ser uma propensão maior parte dos lares apenas uma ou duas
vezes por ano em
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grandes reuniões comunais, usualmente em público em regatos ou rios8•
~anto a lavar o corpo, pouco tinha mudado desde os tempos em que a
Rainha Elizabcth I se distinguia pela frequência com que se lavava: "re gularmente
a cada mês, precisasse ou não"9• Nos anos 1890, porém, as vendas de sabão
estouraram, os vitorianos consumiam 260 mil toneladas de sabão por ano, e a
propaganda surgira como forma cultural central do capitalismo mercantil'º .
Antes de 1851, a propaganda praticamente não existia. Como forma
comercial, era em geral vista como confissão de fraqueza, uma espécie de
lamentável último recurso. A maioria dos anúncios se limitava a peque nos
avisos nos jornais, panfletos baratos e cartazes. Em meados do sécu
S. Leonorc Davidoít e Catherine Hall, Family Fortunes: /11/m and Hómm of the English J\1idd!t
Class (Londres: Routledge, 199i).
9. David T. A. Lindsey e Geoffrey C. Bamber, SMp-Making. Past and Prnmt, 1876-1976
(Nottingham: Gerard Brothers Ltd., 1985), p. 34.
10. Idem,op. cit., p. 38. Quão profundamente a relação entre sabão e propaganda acabou
misturada na memória popular se vê cm expressões como "nap opera" [equivalente :1 nossas
novelas de rádio ou TV]. Para histórias de propaganda, ver também Blanche B. EUiott, A
Hist1Jry of English Advertísing (Londres: Business Publications Ltd., 1962); e T. R. Nevctt,
//dvertising in Britain: A Hútory (Londres: l lcinc:111ann, 1982).
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Couro imptrial
lo, entretanto, os
fabricantes de sabão
foram pioneiros no
uso da propa ganda
ilustrada como parte
central da política do
negócio. O ímpeto
inicial para a
propaganda do sabão
veio do lado do impé
rio. Com o
florescimento do
algodão imperial nas
plantações escravistas
veio o excedente de
peças baratas de
algodão, ao lado do
crescente poder de
compra de uma classe
média que pela
primeira vez podia
consumir tais bens
cm grandes
quantidades. De
modo semelhante, as
fontes ba ratas de
óleo de palma, coco e
sementes de algodão
se multiplicavam nas
planta',=ôt:s
impt:riais da África
Ocidental, da
Malásia, Ceilão, Fiji e
Nova Guiné. À medida que rápidas mudanças na tecnologia de fabrica ção do
sabão aconteciam na Grã-Bretanha depois do meio do século, surgia a
perspectiva de um grande mercado doméstico de sabonetes, que até então
tinham sido um llLxo só acessível à classe mais alta. A competição
econômica com os Estados Unidos e com a Alemanha criou a necessidade de
uma promoção mais agressiva dos produtos bri tânicos e levou às primeiras
inovações na propaganda. Em 1884, ano da Conferência de Berlim, foi
vendido o primeiro sabonete embalado sob uma marca. Esse pequeno evento
significou uma grande transformação no capitalismo, quando a competição
imperial fez surgir os monopólios. Daí em diante, itens anteriormente
indistinguíveis entre si (sabão ven dido simplesmente como sabão) passariam
a ser comercializados por sua marca corporativa (Pears, Monkey Brand etc.).
O sabão veio a ser uma das primeiras mercadorias a registrar a mudança
histórica de miríades de pequenas companhias aos grandes monopólios
imperiais. Nos anos 1870, centenas de pequenas fábricas de sabão
comercializavam o novo negócio da higiene, mas no fim do século, o
comércio era monopolizado por dez grandes companhias.
A fim de administrar o grande show do sabão, surgiu uma nova espé cie de
publicitários agressivamente empreendedores, dedicados a bene ficiar cada
produto caseiro com um halo radiante de encanto imperial e de potência
racial. O agente de propaganda, como o burocrata, desem penhava um papel
vital na expansão imperial do comércio e.xterior. Os propagandistas
chamavam a si mesmos de "construtores do império" e se exaltavam com "a
responsabilidade da missão histórica imperial".
312
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corações dos trabalhadores em todo o globo11• A marca Pears, em parti .. • i:-' 1..
cular, veio a ser intimamente associada com uma natureza purificada
magicamente limpa da indústria poluente (gatinhos saltitantes, cachor
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ros fiéis, crianças enfeitadas de flores) e uma classe trabalhadora purifi
cada magicamente limpa do trabalho poluente (empregadas sorridentes ern
engomados aventais brancos, meninas de rostos rosados e ajudantes de
cozinha esfregados)'3•
De qualquer maneira, a obsessão vitoriana com o algodão e a limpe za
não era simplesmente um reflexo mecânico do e.xcedente econômico. Se
o imperialismo extraía grande quantidade de algodão barato e óleos para
sabão do trabalho colonial forçado, o fascínio da classe média vito riana
com corpos limpos e brancos e roupas limpas e brancas derivava não só da
exploração desenfreada da economia imperial, mas também dos domínios
do ritual e do fetiche.
O sabão não floresceu quando a efervescência imperial estava no { ..
pico. Ele surgiu comercialmente numa era de crise iminente e calamida de
social, servindo para preservar, através do ritual fetichista, as frontei
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Apud Diana e Gcoffrcy H indlcy, Adwrtising in J/'i(forian England, 1837-1901 (Londres:
11.
v\':1yland, 1972), p. 117.
Mikc D cmpsey (org.), B11bbl,s: Early Ad'IJ(rtising Arr frtJm P,ars Lrd. (Londres: Fontana,
12.
1978).
Laurcl Bradlcy, "From Eden to Empirc: John Evcrett Millais' Chcrry Ripe", Vi(forian
IJ.
1
Srr,dits 34, • {t99,), pp, 179· 203. Ver também .l'vlid,~cl Dcmpscy, Ba/J/Jl,s ... 33
Couro impaial
ras incertas de identidade de classe, gênero e raça numa ordem social que
se sentia ameaçada pelos fétidos eflúvios dos cortiços, a fumaça das
indústrias, a agitação social, sublevação econômica, competição imperial e
resistência anticolonial. O sabão prometia a salvação e a regeneração
espiritual através do consumo de mercadorias, um regime de higiene
doméstica que poderia restaurar a potência ameaçada do corpo poütico e da
raça imperiais.
A CAMPANHA DA PEARS
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O implrio do sabo,uu - 'R.gdsmo mer,antil, propaganda Importando
um quarto de milhão de
imperial
moedas de cêntimo francesas, Barratt as
fez estampar com o nome Pears e as pôs emgrande inovação de .liarratt foi investir
circulação - gesto que ligava enormes somas de dinheiro na criação de
maravilhosamente o valor de troca com o um espaço estético cm torno de uma
nome ela marca corporativa. O expediente mercadoria. O desenvolvimento da
funcionou admiravelmente, trazendo muita tecnologia do cartaz e da impressão tornou
publicidade para o Pears e tal alarde públicopos
que um Ato do Par lamento foi passado
declarando ilegais todas as moedas 14. Barratt gastou 2.200 libras no quadro e 30 mil libras
estrangeiras. As fronteiras da moeda na produção cm massa de milhões de reproduções
nacional se fechavam em torno da individuais do quadro. Nos anos 1880, Pean gastava
entre 300 mil e 400 mil libras só cm propaganda.
doméstica barra de sabão.
15. Furioso com a poluição do sacrossanto reino da arte
Georg Lukács observa que a mercadoria pela economia, o mundo da arte atacou lVlillais
está no limiar entre cultura e comércio, (publicamente e não cm pri\-ado) por traficar no
confundindo as fronteiras supostamente sórdido mundo do co mércio .
Couro imp~rial
sível a reprodução en1 massa de tal espaço cm torno da imagem de uma
6
mercadoria 1 •
Na propaganda, aquilo que é rejeitado pela racionalidade industrial
(ambivalência, sensualidade, azar, causalidade imprevisível, tempo múl tiplo)
é projetado no espaço da imagem co1no repositório do proibido. A
propaganda se funda cm fluxos subterrâneos de desejo e tabu, 1nani pulando o
investimento do dinheiro excedente. A distinção da Pears, rapidament~
emulada por várias outras fabricantes de sabão, inclusive Moukey BraT1d e
Sunlight, e por incuntávci:; anunciantes, era inve:;tir o espaço estético em torno da
mercadoria doméstica do culto comercial do império.
O IMPÉRIO DO LAR
A racialização da domesticidade
O sabão
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transformação metafórica do tempo imperial em esparo de 37
Couro imperial
O macaco
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O império do
saóoneu - 'R.g<ismo mer,a11til e propaganda imperial
sem negros, não se sentiria tanto, mas suas peles, exceto onde queimadas
pela exposição, eram tão brancas como as nossas":º.
No anúncio da Monkey Brand, a assinatura do macaco no trabalho
("Meu próprio trabalho") assinala uma dupla negação. O sabão é mas
culinizado, figurado como produto masculino, enquanto o trabalho (cm sua
maioria feminino) dos trabalhadores nas enormes fábricas insalu bres é
negado. Ao mes1no tempo, o trabalho de transformação social na limpeza
e esfrega de pias, panelas e pratos, de pisos e corredores do es paço
do1néstico vitoriano desaparece - redefinido con10 espaço ana crônico,
primitivo e bestial. As criadas desaparecem e no lugar delas aparece um
híbrido masculino fantasma. Assim, a domesticidade - vista como a esfera
mais afastada do mercado e do tumulto masculino do império - toma forma
em torno das ideias inventadas do primitivo e do fetiche da mercadoria.
Na cultura vitoriana, o macaco era um ícone da metamorfose, servin do
perfeitamente ao papel liminar do sabão em mediar as tran:;forma·· ções
da natureza (sujeira, lixo e desordem) em cultura (Limpeza. raciona lidade
e indústria). Como todos os fetiches, o macaco é uma imagem
contraditória, encarnando a esperança do progresso imperial pelo co
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mércio e ao mesmo tempo fazendo visíveis os profundos temores vi ,.
torianos em relação à militância urbana e à desordem colonial. O sabão I
20 Charles Kingsley, carta à sua mulher, 4 de julho, 1860, in Charlu Kingsley: His Letters and
Memories of His Lift, Francis E. Kingslcy (org.) (Londres: Henry S. King & Co., 1877), p.
107. Ver também Richard Keamey (org.), 'lhe lrish. Mind (Dublin: \-Volfhound Press, 1985);
321
Couro
imperial
O espelho
322
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O implrio do sabomu - '"R.gdsmo mercantil e propaganda imperial
quanto as origens industriais das mercadorias domésticas. No mundo
doméstico dos espelhos, os objetos se multiplicam sem intervenção hu mana
aparente numa promíscua economia de autogeração.
Por que a atenção à superfície e ao reflexo? O polimento era dedica do, e1n
parte, ao policiamento dos limites entre o privado e o público, removendo
qualquer traço do trabalho, substituindo a evidência desor denada das
trabalhadoras pela substituição da superfície como verniz, o espetáculo da
mercadoria con10 superfície, a casa arrumada como teatro de limpas
superfícies para exibição de mercadorias. O espelho/ merca - doria devolve o
valor do objeto como exibição, espetáculo a ser consu mido, admirado e
exposto por sua capacidade de encarnar um duplo valor: o valor de mercado
do homem e o status de exibição da mulher. A casa existia para exibir a
feminilidade como portadora apenas de valor de exibição, além do mercado
e, portanto, por decreto natural, além do poder político.
Um anúncio do creme para móveis Stephensan mostra uma criada impecável,
de quatro, sorrindo de um chão tão limpo que espelha seu reflexo. O creme
garante "não exibir marcas de dedos". Um sabão supe rior não deve deixar
manchas denunciadoras, nenhuma impressão de trabalho feminino. Enquanto
as criadas vitorianas perdiam a indivi dualidade nos nomes genéricos que seus
empregadores lhes impunham, também o sabão apagava as marcas do
trabalho das mulheres na história da classe média.
A DOMESTICAÇÃO DO IMPÉRIO
21 Durante a Guerra dos Bôeres, as forças britânicas foram vistas como tendo sido valente· ,ncntc
rcfor-.adas pela farinha de milho Johnston, pelo uísque Pattison e pelo chocol:ttc
323
Couro imperial
cionais como a bandeira, Britannia,John Buli e o agressivo leão eram
dispostos numa celebração reformada do espetáculo imperial (Figu ras
5.3-5.5). O império era visto como defendido por lronclad Porpoi se
Bootlaccs [Cordões de sapato do boto] e sabão Sons of the Empire [Filhos
do império], enquanto Henry Morton Stanley acudiu ao res gate do Emin
de Pasha abarrotado de enormes caixas de biscoitos Huntley and Palmers.
A propaganda vitoriana tardia apresentava uma vista da África con
quistada pelas mercadorias domésticas21• Na bruxuleante lanterna má gica
do desejo imperial, chás, biscoitos, tabaco, latas de cacau e, acima de
ao leite Fryc. Ver Robert Opie, Trading on tlu British lmage (Middlesex: Penguin, 1985),
para uma excelente colcçio de imagens de propaganda.
22 Num capitulo brilhante, Richards explora como a convicção imperial do explorador e
escritor Henry Mocton Stanley, de que ele tinha a missão de civilizar os africanos ensi
nando-lhes o valor das mercadorias, *revela o grande papel que os imperialistas atribuíam
à mercadoria na propulsão e justificação da luta pela África". Richards, 1lu Commodity
Cultun ... , p. UJ,
32 4
O império do
sabontlt - 'Rgcismo
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Figura 5.5 - Fetichismo nacional
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Figura 5.8-A mdgica mer,antil e o desapar"imento do trabalho ftminino. 327
(ouro impaial
23. Como observa Richards: "Cem anos antes, o na,io ao largo tcr·s:-ia preparado para es
cravizar fisicamente o africano como objeto de troca; aqui, o objeto é incorpor:1-lo à ór bita da troca.
Nos dois casos, esse momento liminar postula que o capitalismo depende do mundo não capitalista,
pois a superprodução endêmica do sistema capitalista só pode continuar mandando mercadorias para
áreas li minares, onde, presumivelmente, seu v:uor 1
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nio ser:i imediatamente :lpreciado". lochards, 77,, Commodity Culrurt ... , p. 140. •
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329
Couro imptrial
Figura 5.9 - O mito do priwuiro contato.
24. Thomas Carlylc, Sarlor Resartus, in 1lu IVorh of1homas Carlyle (Londres: Chapman and
Hall, 1896-1899, vol. l), p. 30.
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O implrio do
saóonete - 'R.gdsmo
mer,antil e
propaga11da
imperial
uma e outra comunidade. Rituais de purificação, todavia, podem tam bém
ser regimes de violência e contenção. Povos que têm o poder de invalidar
os rituais de limites de outros povos demonstram, assim, a ca pacidade de
impor violentamente sua cultura aos outros. Viajantes colo niais,
comerciantes, missionários e burocratas censuravam constante mente a
suposta ausência, na cultura africana, de uma "vida doméstica apropriada",
particularmente a suposta falta de higiene dos africanos27• l\1as a inscrição
dos africanos como sujos e não domesticados, longe de ser uma descrição
acurada das culturas africanas, servia para legitimar a violenta imposição
dos valores culturais e econômicos dos imperialistas, com a intenção de
purificar e, assim, subjugar o sujo corpo africano e impor-lhe os valores
culturais e de mercado mais úteis à economia mer cantil imperial. O mito
das mercadorias imperiais arribando às praias nativas, para serem aí
bem-vindas por estupefatos nativos, apaga da me mória a longa e intrincada
história da troca comercial dos europeus com os africanos e a longa e
intrincada história da resistência africana à co lonização e à Europa. O
ritual doméstico se tornou uma tecnologia da disciplina e da expropriação.
O ponto fundamental não está simplesmente nas contradições for mais que
estruturam os fetiches, mas também na questão historicamen te mais
exigente de como certos grupos têm sucesso, pela coerção ou hegemonia,
em excluir a ambivalência que o fetichismo encarna impon
27. Mas sabão de óleo de palma fora feito e usado durante século, na África Ocidental e
equatorial. Em Travds in Hfst Afrfra, Mary Kingslcy registra o costume de escavar ba nhos
profundos na terra, enchendo-os com água ferve me e ervas fragrantcs, com lu.xuo sas coberturas de
argila úmida. No sul da África, esse sabão não era muito usado, mas lamas, scivas e cascas de
árvores eram processadas como cosméticos, e arbustos conheci· dos como "moitas de sabão" eram
usados na limp~a. Mary H. Kingslcy, Travds in West ·' ,
AJrfra (Londres: MacmiUan, 1899). Atividades dos homens tswanas como caça e guerra
eram elaboradamente preparadas e reguladas pelo tabu. "Em cada caso", como escrevem
\
Jean e John Comaroff, "os participantes se encontra,-am fora dos limites da aldeia, vesti
dos e armados para o combate, e eram sujeitos a uma cuidadosa lavagem ritual (go foka
marumo)". Jean e John Comasoff, O/ R=e/ation and Reuo/ution: Chrútianity, Co/onia/úm
a,rd Comci;umm in S,uth Afrfra (Chicago: University of Chicago Press, 1991, vol. 1), p.
164. Em geral, as pessoas passav:im cremes, lustravam e poliam seus corpos com uma
variedade de óleos, ocres rosados, gorduras animais e argílu coloridas.
333
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Couro impuial
18
do seu sistema econômico e cultural sobre os outros . O imperialismo
cultural não significa que as contradições sejam permanentemente re
solvidas, nem que não possam ser usadas contra os próprios coloniais. De
qualquer maneira, parece importante reconhecer que o que foi alar deado
por alguns como a indecidibilidade permanente dos signos cultu rais
também pode ser violenta e decisivamente rejeitado pela força mili tar
superior ou pelo domínio hegemônico.
28. Pan uma excelente c.xploração da hegemonia colonial no Sul d:i Africa, ver Jean e John
Comaroff, ~H omc-:-.ifade Hegcmony: Modemity, Domcsticity and Colonialism in South
Africa~, in Karen Hansen (org.), Encounlcn With DomcJlicity (Ncw Brunswick: Rutgers
Univcrsity Press, 1992), PP· 37-74.
29. Daniel Dcfoe, 71,, Farther Ad--.xnf'Jres of Rohinnn Crus«, in 7hc Shal:cspcarc Hcad Edition
o/ thc Nowls and Stlmd Writings of Danid Dif«. (O xford: Basil 81:ickwell, 1927-1928, v::,l,
3), p.177.
30. Para uma excelente análise do fetichismo da mcrc:ldoria, ver \.V. J. T. Micchell, Í(onology: lmagc,
Tcxt, Idcology (C hicago: Univcrsity of Chicago Prcss, 1986), p. 193. Ver também ;
\Volfg2ng Frin H 3ug, Critique of Commodity Atsthrtüs: Appcaranu,
Scxuality and Aiwr tising in C;,pitaliJt Sodtty, trad. Robert Bock
(Minncapolis; University of Minnesota Prcss, 1986). Ver o ensaio
bibliogrifico de Catherine Gallagher cm Critidsm 19, 2 (1987),
334
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·i
Apud Masy H. IGngsley, Traveis in Wut ///rica, p. 622.
31.
Simpson, Fetishism and lmagination ... , p. 29.
32.
"Tradc Goods Used in thc Early Trade with Africa as Givcn by Barbot and Other \1/ritcrs
33.
of thc Scvcntccnth Ccntury", in IGngsley, Trtw,I, in ~,1 Afrita, pp. 6u- 25. 335
Couro imptrial
meia dúzia de Ayub K.hans"36. Ele não era o
único a recomendar fortemente a força de
presas de elefantes, dentes de hipopótamos,
Eno na restauração da supre rnacia branca.
penas de avestruz, cera de abelhas, couros
O comandante A.J. Lofrus, hidrógrafo de
de animais e bolsas de almíscarH. A
Sua Majestade
absoluta mercantili zação da humanidade e
a genuflexão colonial diante do fetiche do
lucro era revelada da maneira mais grotesca34. Idem, op. cit., p. 614.
na listagem indiscriminada de escravos en1 35. O fetichismo foi definido muitas vezes como uma
meio às ninharias e bugigangas. predileção infantil. Em Typu, de Hcr· man Mclvillc,o
herói descreve as pedras-fetiche das pessoas como
Ao definir as trocas econômicas e crenças "diversões infantis[ ... } co_mo aquelas cm que um
rituais de outras culturas como grupo de crianças brinc:i com bonecas e casinhas". The
"irracionais" e "fetichistas", os coloniais North wcstern-Newberry Edition, Harrison Ha}'ford,
Hershel Parker e G. Thomas Tansclle (or~.). 1l;e
tentavam rejeitá-las como sistemas W6tings of Herman i\1dvi!le (Evanston: Northwestern
legítimos. A enorme quantidade de trabalho University Prcss; Chi· cago: The Ncwberry Libnry,
que entrava no trnnsporlc <lt: 1968), pp. 47·77.
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11
O império do sabo,uu - ~cismo mercantil t propaganda impuial
337
Couro imptrial
o mais exasperante dos povos com que tínhamos que lidar [ ... ] O pobre Sa
wyer teve enormes dificuldades; as pessoas tinham uma ideia de que podiam
fazer o que quisessem com o encarregado da fábrica e frequentemente saíam
com os bens sem pagar por eles, ao que Sawyer naturalmente se opunha, e
isso geralmente acabava em luta livre, e minha gente às vezes levava a pior''.
338
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O império do sabomu - '7?.!cismo mu,antil e
propaganda imperial
... ] ria dos presentes e não os admirava.
Ele parecia conhecer os europeus"45• Como
cair sempre, descartando-os, colocando-os
observa Simpson: "O lenço é um atributo
em lugares errados ou indo embora com
da 'civilização,' uma ferramenta para fazer
eles. Indignado, Stanley chama a isso de
desaparecer o desagradável suor da testa, a
roubo"4:. Desde o início, o fetichismo
descar
envolveu uma contestação intercultural
eivada de ambiguidade, erros de
42. Richards, 1he Commodity Culture ... , p. n5.
comunicação e violência. Os coloniais
43. Ibidem.
eram propensos a ter ataques de fúria
44. James Cook, A Voyag, to the Paâjic Ouan,
quando os africanos se recusavam a
Undn-tak.en by the Comma!'d of Hir Majesty,far
mostrar o devido respeito a suas bandeiras, 1\!Jaking DiJ,0•11eries in the Nurthern Hemisphn-e
coroas, a seus mapas, reló gios, armas e (Londres: James Cook, 1784, vol. 2), p. 10. 45. Lewis
sabões. Stanley, por exemplo, registra ter de Bougainvillc, A J'oyag, Round th, World, P,rfarmed
by th, Ordn- of His i'vtost
executado três carregadores africanos por Chrütian lv!ajuty, in th, Y,crs q66, 1767, q68, q69, trad.
terem removido rifles, embora admita que John Rcinhold Forstcr (Lon Jrcs, 1772), !'· 360.
os condenados não entendiam o valor dos
rifles ou o princípio pelo qual tinham sido
condenados à morte43• Outros carregadores
foram execu tados por infrações como
deixar cair bens nos rios.
Anedotas também revelam quão
rapidamente a fúria colonial ex plodia
quando os africanos deixavam de mostrar
espanto diante das es tranhas bugigangas
que os coloniais lhes ofereciam, pois não
demorou muito para que a curiosidade e a
tolerância dos não europeus virasse
derrisão e desprezo. Na Austrália, Cook
censurava a ingrata recusa dos habitantes
locais em reconhecerem o valor das
bugigangas que lhes trouxera: "Alguns dos
nativos não abriam mão de um porco, a
menos que recebessem um machado em
troca; mas pregos e contas e outras ni
nharias, que, durante nossas viagens
anteriores, tinham tanta circulação na ilha,
eram agora tão desprezados que poucos se
dignavam até mesmo a olhar para cles"44•
De Bougainville também lembra como um
nativo das i\ilolucas, quando recebia "um
lenço, um espelho ou outra quinquilharia [
339
Couro imptrial
ga nasal dos climas frios e talvez as lágrimas da emoção excessiva". O
lenço branco também era (como as luvas brancas) o ícone vitoriano da
pureza doméstica e do apagamento dos sinais do trabalho. A recusa do
molucano ao lenço e ao espelho exprimia uma franca recusa a dois dos
principais ícones do consumismo vitoriano de classe média46•
Em alguns casos, formas elaboradas de mímica foram criadas pelos africanos para
manter o controle do comércio. Como observaram os Comaroff, os Tlhaping, os
Tswana do sul, tendo obtido contas para si mesmos, tentaram impedir os europeus de
aventurarem-se mais para o interior, fazendo a mímica dos estereótipos europeus da
I
selvageria negra l
e retratando seus vizinhos como "homens de hábitos ferozes", bárbaros
demais para misturarem-se com eles•7•
1
Na zona imperial contestada, fetiches encarnavam conflitos no do t
1nínio do valor e eram eloquentes de uma recusa africana contínua a
aceitar as mercadorias europeias e os rituais de limites nos termos dos
coloniais. A saga do sabão e o culto da domesticidade demonstram vivi
damente que o fetichismo não era original nem do capitalismo indus trial
nen1 das economias pré-coloniais, mas era desde o início a encarna ção e
marca de um encontro incongruente e violento.
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46. Barbot admite que os africanos da costa ocidental "sofreram com tanta
frequência impo· sições dos europeus, que, cm eras anteriores, não tiven.m
escrúpulos cm enganá-los na qualidade, no peso e nas medidas dos bens
que, no principio, recebiam contentes, porque, diziam, nunca passaria por
seus pensamentos que os homens brancos[ ... ] eram baL~os a ponto de
abusar de sua credulidade [ ... ) e examinavam peça por peça e muito de perto
toda nossa mercadoria". Não demorou muito para que os africanos
inventassem seus próprios subterrugios pua enganar os europeus e ganhar
na troca. Pelo relato de Barbot, eles enchiam com madeira pela metade os
barris de óleo, acresccntav:im :igua e ervas ao óleo, para ·que fermenrasse e,
assim, enchiam os barris com a metade do óleo. Kingsley, Traveis in West A/rira, p. 582.
47. Jean e John L. Coma.roff, O/ RnNlation and R«>0lution ... , p. 166.