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A DANÇA DOS OUTROS - IMAGINAÇÕES DIASPÓRICAS

PARA INTERPELAR O MUNDO

The dance of others – diasporic imaginations to ask the world

Luciane Ramos-Silva1

Resumo: Entendendo movimento como prática social, cultural e política,


percebemos que nestes tempos sombrios algumas danças têm possibilitado o
surgimento de poderosos atos criativos. A partir da observação de um conjunto
de artistas negras e negros, que criam na contramão da engrenagem
compressora de desejos, discutimos, à luz de alguns intelectuais basilares para
a luta antirracista e a crítica cultural, fundamentos e formas de escritas de si
que desconstroem estigmas coloniais, inserem a discussão crítica da diferença
e possibilitam uma abordagem das identidades não como “pautas”, mas como
reelaboração de existências e disputa de narrativas.

Palavras-chave: Diáspora; Negritude; Dança.

Abstract: Understanding movement as social, cultural and political practice, we


realize that in these dark times some dances have enabled the emergence of
powerful creative acts. From the critical observation of a group of black artists
who create against the soul-crushing machine, we discuss, guided by important
intelectuals of the anti-racist struggle and the critical culture, foundations and
forms of self-writing that deconstruct colonial stigmas, insert the critical
discussion of difference and enable an approach to identities not as “agendas”
but as re-elaboration of existences and narrative in dispute.

Keywords: Diaspora; Blackness; Dance.

1
Doutora em Artes da Cena e mestre em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP).

Moringa Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 10 n. 2, jun-dez/2019, p. 91 a 98

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A maior cidade do hemisfério sujeitos de uma arte que não se
sul, além de abrigar edifícios separa da vida.
desejados e muros infinitos, é casa Para exemplificar, cito o
para uma quantidade insuspeita de Encruzilhada Style, procedimento
artistas da dança que nos últimos de pesquisa e criação forjado pelo
anos propuseram atos criativos grupo Fragmento Urbano, que
potentes nas suas múltiplas facetas aproxima as danças hip hop e as
estéticas, bem como em sua chamadas danças populares;
capacidade de interrogar os destaco ainda as escritas
sistemas legitimados de poder. De dançantes e símbolos elementares
suas camadas históricas brotam focados nas representações
conhecimentos em dança que performáticas de origem Bantu,
desvelam leituras de mundo criados pela artista Kanzelumuka,
necessárias para o nosso tempo. co-fundadora da Nave Gris Cia
Tal necessidade não se mostra Cênica; temos a dramaturgia da
apenas no discurso político, obra Rés, criada pela Corpórea Cia
presente e anunciado, nem de Corpos, desvelando o universo
tampouco na assunção identitária, do encarceramento feminino no
tema espinhoso e controverso em Brasil a partir da obra da advogada
nossos dias. Aparece, sim, na
e militante Dina Alves; acrescento a
pesquisa técnica, na elaboração de referência importante que é a
linguagem e na busca por Dança da indignação, proposta de
epistemologias que irrompem com linguagem que foca na canalização
um continuum marcado pela
da revolta para a ação criativa,
colonialidade, pelo racismo e por criada por Gal Martins, diretora da
inequidades de outras ordens que, cia Sansacroma e, no mais, aponto
juntas, compõem uma engrenagem o olhar para a Bateção de pé:
violenta, e por vezes subterrânea, proposta pedagógica do artista
na gestão de imaginários, desejos Fredyson Cunha como fruto de sua
e valores. Interlocutores da longa pesquisa entre as
diáspora – espaço gestado entre populações Bororo do Mato Grosso
dilemas e transbordamentos –, reverberando em ferramentas para
esses artistas e seus atos são instrumentalizar o corpo na cena.

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Estes são apenas alguns não mudou qualitativamente nos


exemplos de atos criativos capazes dias de hoje. No caminho de
de forjar novos mundos, cuidar e formações discursivas, o Mesmo,
conviver na cidade de São Paulo. “solidamente aterrado no presente,
Outros e mesmos inventa, restaura e dota de
significados o Outro” (MUDIMBE,
Os termos Mesmo e Outro, 1988, p. 196).
que ora adoto para nomear duas
instâncias concebidas como Temos ouvido com certa
opostas a partir da elaboração frequência referência às relações
eurocêntrica de mundo, têm “Nós/Outros”3 – que aqui optamos
referência nos trabalhos do literato por denominar “Mesmos/Outros” –
e ensaísta Y.V. Mudimbe: The em debates, curadorias,
Invention of Africa (1988) e The formações, residências, mesas de
Idea of Africa (1994) nos quais o congressos e até mesmo em
autor aborda as fundações dos espetáculos de dança.
discursos eurocêntricos sobre os Consequência das percepções
povos negros. críticas contemporâneas e de uma
reflexão inevitável sobre a
Dois conceitos do autor nos realidade que nos cerca, considerar
interessam: o “eurocentrismo que existem muitos “Outros” sociais
epistemológico”, segundo o qual a e que sempre há “Outros” em
África é definida a partir daquilo relação à maneira com que cada
que falta em relação à Europa, e o pessoa/grupo se constitui é, em
“etnocentrismo epistemológico”, certa medida, uma perspectiva
envolvendo um excesso de comum em alguns espaços de
especificação das culturas reflexão sobre dança, mesmo que,
indígenas e a essencialização do muitas vezes, a ideia de “Mesmos”
discurso sobre elas. Segundo o seja estrategicamente nebulosa
autor, a percepção da outridade2
como monstruosidade e aberração 3
O termo “Outro” vem do latim alteru – que
significa “o segundo” ou o outro de uma
enumeração. O Other, no inglês, se origina na
2
Optamos por traduzir “otherness” como palavra alemã anders – “anterior”, “fora”, “o
outridade. não-eu”.

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naquilo que se afirma enquanto processos de des-historicização e
racialidade. Como no Brasil ainda desumanização de determinados
engatinhamos lentamente para sujeitos sociais, entre eles os
uma conversa crítica sobre sujeitos negros, e percebermos a
branquitude, raramente vemos engrenagem que estigmatizou as
pessoas brancas se posicionarem formas africanizadas de escrita de
enquanto “Mesmos” da relação. si4, e que ainda movimenta, na
Daí vem aquele lenga-lenga contemporaneidade, ideias gerais
perverso da mestiçagem ou a acerca dos corpos negros que
reivindicação de “outridades” de dançam.
diferentes ordens, como as de Com isso, traçamos uma
gênero ou classe: “ah gente, eu linha contínua entre colonialismo e
sou branco, mas sou pobre. Então
sou também Outro”. 4
Utilizamos o termo “formas africanizadas de
escrita de si” em referência a modos de se
É notório e longamente imaginar e construir a existência a partir de
discutido pela crítica social que as valores que, interseccional e dinamicamente,
se referem a fundamentos africanos
inequidades são frutos de reelaborados nas Américas. Nossa inspiração
intersecções: uma mulher negra para o uso desse termo originou-se do termo
“formas africanas de escrita de si” que intitulava
lésbica acumula camadas um texto do filósofo Achille Mbembe (2010, p.
diferentes de opressões em relação 22). Na obra, o autor desenha a crítica às
correntes ideológicas e pensadores do
a uma mulher negra hétero ou a continente africano que elaboraram discursos
de reivindicação de uma identidade africana
um homem branco hétero. ligada a elementos simbólicos, reivindicações
Entretanto, isso não nos isenta de políticas, correspondências raciais e
geográficas que se queriam justificadoras de
uma apreciação separada do uma possível autonomia. O teor polêmico do
quesito racial, considerando aquilo texto, entre outros aspectos, refere-se à
afirmação do autor de que as respostas
que a percepção da raça forja na africanas às opressões europeias foram
compreensão da experiência diversas e que a colonização também seduziu
os próprios africanos, gerando utopias
brasileira. A raça importa. recíprocas. Esse texto foi revisto pelo autor e
posteriormente publicado com o título “Formas
africanas de autoinscrição”. Tomamos
Mirando o espelho trincado emprestado o primeiro título do autor, não
como uma associação direta ao conteúdo que
ele dá ao termo, já que trata de um contexto
Parece importante específico diferente do nosso, mas atentando
retomarmos brevemente os para modos de se imaginar e se construir
fundamentados pelas africanidades no
elementos chave que levaram aos movimento dinâmico do mundo.

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racismo a partir da ideia-matriz de moderno, definia uma ordem de


alienação colonial em Fanon (2008) valores onde o conhecimento não
enquanto impossibilidade de uma pertencia à esfera corporal – esta
pessoa se constituir sujeito, para seria o lócus da natureza, dos
refletir sobre a relação de instintos primitivos e irracionais.
apreciação/depreciação dos Lembremos que a certeza
saberes oriundos das culturas indubitável, “penso, logo existo”,
negras e as consequentes ficções proposta pelo filósofo René
e estigmas construídos a respeito Descartes, baseava-se em uma
delas. Na perspectiva do autor, a objetivação do mundo que excluía
lógica binária imposta pela o corpo como lugar de
supremacia eurocêntrica afeta pensamento:
também os sujeitos negros que, Concluo justamente que minha
essência consiste nisto apenas,
absorvendo a dualidade que eu sou uma coisa pensante
razão/emoção, natureza/cultura, [...] E no entanto, talvez [...]
fortalecem o olhar essencializado, tenho um corpo ao qual estou
estreitamente ligado, tenho, de
a partir do qual as negritudes são um lado, uma ideia clara e
percebidas enquanto alteridades definida de mim mesmo como
uma coisa pensante, não
extremas. Assim, os atos criativos
extensa, e, de outro lado, uma
citados anteriormente constituem- ideia nítida de meu corpo como
se como reações críticas face às uma coisa extensa e não
pensante; é certo, portanto, que
opressões externas assim como sou realmente algo distinto de
desconstroem as camadas de meu corpo e posso existir sem
concreto que enrijecem as ele. (DESCARTES, 1987, p. 71)
existências de seus sujeitos,
Assim, é relevante
abrindo frestas para o autocuidado,
refletirmos sobre como esse
a valoração de si e a cura.
modelo de apreensão da realidade
Na história do pensamento irá habitar profundamente os
eurocêntrico, o corpo foi visto como diversos universos de produção de
algo a se dominar, já que o corte conhecimento, conformando-se em
cartesiano corpo/mente, fonte epistemologias e, no limite, em
estruturadora do pensamento ontologias, a partir de uma virada

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da ordem da natureza para a da ideias fortalecem a possibilidade de
racionalidade. Essa virada tem extermínio dessas culturas.
relações de causa e efeito no Sendo a identidade negra
encontro do europeu com a pessoa atribuída desde fora e
negro-africana. À medida que esta acompanhada de uma
última, inserida em contextos nos exterioridade radical, cria-se uma
quais a própria noção de pessoa se espécie de fronteira cultural
estabelece na relação com a definitiva que enclausura os
natureza, elas se tornam – na visão saberes dos subalternizados como
eurocêntrica – mais próximas de inferiores, caricatos e
um estado de natureza e são estereotipados. Nela, o Outro,
relegadas a um estágio inferior que definido em oposição ao Mesmo,
os europeus já haviam acumula tudo aquilo que o Mesmo
supostamente superado. A reboque não é e, frequentemente, não quer
dessas teorias permanece o ser, mas quer acompanhar e se
imaginário da animalização e alimentar à distância. Essa
reificação, fazendo do ser negro realidade é deveras atual e
uma identidade limitada pelo presente nas relações sociais dos
pensamento branco-europeu. nossos tempos, quando se torna
Assim, podemos compreender a
conveniente se apropriar das
relação entre a modernidade experiências subalternas sem
ocidental e as práticas coloniais. assumir responsabilidades. No
É digna de nota a campo da dança, especificamente,
proposição desenvolvida pela são inúmeras as apreciações
socióloga Denise Ferreira da Silva, interesseiras de danças sociais,
em sua obra Toward a Global Idea danças urbanas, populares e de
of Race (2007), na qual discute o expressões da cultura pop negra.
impacto da narrativa racional Em “Eating the Other”, Bell Hooks
determinista preconizada pelo traz uma interessante afirmação
cogito cartesiano “penso, logo sobre o assunto:
existo”, nas existências das
distintas sociedades, coletividades A mercantilização da
e culturas. Segundo a autora, tais alteridade tem sido tão bem-
sucedida porque é oferecida

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como um novo deleite, mais estudos culturais”, Hall ressalta o


intenso, mais satisfatório que caráter descentralizado, fluido e em
os modos normais de fazer e
sentir. Dentro da cultura das constante transformação das
commodities, a etnicidade se identidades, mostrando que são
torna um tempero, conferindo construídas ao longo de discursos,
um sabor que melhora o práticas e posições muitas vezes
aspecto da merda insossa
que é a cultura branca antagônicas.
dominante (HOOKS, 2019, p. As chamadas políticas ou
66)
pautas identitárias comovem,
Se o corte do capital é incomodam, complicam e movem
atravessador inevitável, há que se nervos entre os diversos atores
recuperar sensos éticos e sociais – sejam críticos
reconhecer privilégios. hegemônicos, militantes ou artistas.
Mesmo passíveis de críticas
Danças identitárias? quando expostas aos seus limites e
contradições, mais que questões
Se o tema da “identidade” específicas de grupos minoritários,
sempre foi complexo para as são maneiras de interpelar as
ciências sociais e ao longo dos estruturas hegemônicas, demandar
anos 90 foi devidamente igualdade e espaço para criação de
problematizado pelos estudos políticas públicas e garantia de
culturais, ainda hoje continua direitos (mesmo que o Estado
provocando discussões quentes brasileiro costume tratar tais
em outros contextos de produção direitos como distribuição de
de conhecimento. Reconhecendo a migalhas). Políticas identitárias
contribuição dos conceitos forjados engendram as lutas de pessoas e
por intelectuais como Stuart Hall, coletivos em prol de causas
começamos por colocar o termo comuns e são elementos-chave
devidamente no plural. Identidades. para reexistências. As contradições
Retomando algumas das ideias do e conflitos gerados dentro e fora
autor na obra “Identidade e delas parecem ser parte do
Diferença: a perspectiva dos movimento do mundo.

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Os trabalhos que citei no FANON, Frantz. Peles negras,
início deste texto são muitas vezes máscaras brancas. Salvador:
reconhecidos ou acomodados à EdUfba, 2008.
priori nas tais realidades HALL, Stuart; WOODWARD,
identitárias, permanecendo em Kathryn. Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos
segundo plano suas competências
culturais. São Paulo: Vozes, 2014.
estéticas, técnicas e poéticas.
HOOKS, Bell. Comendo o outro:
O corpo de conhecimento desejo e resistência. In: ______.
desses artistas reterritorializa suas Olhares Negros: raça e
existências, integrado que está às representação. São Paulo : Editora
Elefante, 2019.
lógicas de concepção de mundo
MBEMBE, Achille. As formas
em que os valores civilizatórios e a
africanas de auto-inscrição.
organização histórica da realidade Estud. Afro-asiát. [online]. 2001,
se estruturam a partir das vol. 23, n. 1, pp. 171-209.
experiências negras. Aqui, lembro MBEMBE, Achille. Formas
de Muniz Sodré, na obra “O terreiro africanas da escrita de si. Lisboa:
e a cidade” (1988), quando discute ArtAfrica, 2010. Disponível em:
a ideia de território como categoria <www.artafrica.info>. Acesso em 5
fundamental para as culturas não jan. 2014. Site atualmente fora do
hegemônicas e especificamente ar.
para as culturas da diáspora negra. MUDIMBE, Valentin Yves. The
invention of Africa: gnosis,
Na pauliceia de muitos tons philosophy, and the order of
escuros, tem gente dançando para knowledge (African systems of
entender e se fazer entender para thought). Indianapolis: Indiana
reexistir. University Press, 1998.
SILVA, Denise Ferreira da. Toward
Recebido em: 01/08/2019 a Global Idea of Race. Minessota:
Aceito em: 26/08/2019 University of Minnesota Press,
2007.
Referências Bibliográficas SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a
Cidade. Petrópolis: Vozes, 1988.
DESCARTES, René. Discurso do
Método. São Paulo: Nova Cultural,
1987.

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