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Luciane Ramos-Silva1
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Doutora em Artes da Cena e mestre em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP).
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Luciane Ramos-Silva
A maior cidade do hemisfério sujeitos de uma arte que não se
sul, além de abrigar edifícios separa da vida.
desejados e muros infinitos, é casa Para exemplificar, cito o
para uma quantidade insuspeita de Encruzilhada Style, procedimento
artistas da dança que nos últimos de pesquisa e criação forjado pelo
anos propuseram atos criativos grupo Fragmento Urbano, que
potentes nas suas múltiplas facetas aproxima as danças hip hop e as
estéticas, bem como em sua chamadas danças populares;
capacidade de interrogar os destaco ainda as escritas
sistemas legitimados de poder. De dançantes e símbolos elementares
suas camadas históricas brotam focados nas representações
conhecimentos em dança que performáticas de origem Bantu,
desvelam leituras de mundo criados pela artista Kanzelumuka,
necessárias para o nosso tempo. co-fundadora da Nave Gris Cia
Tal necessidade não se mostra Cênica; temos a dramaturgia da
apenas no discurso político, obra Rés, criada pela Corpórea Cia
presente e anunciado, nem de Corpos, desvelando o universo
tampouco na assunção identitária, do encarceramento feminino no
tema espinhoso e controverso em Brasil a partir da obra da advogada
nossos dias. Aparece, sim, na
e militante Dina Alves; acrescento a
pesquisa técnica, na elaboração de referência importante que é a
linguagem e na busca por Dança da indignação, proposta de
epistemologias que irrompem com linguagem que foca na canalização
um continuum marcado pela
da revolta para a ação criativa,
colonialidade, pelo racismo e por criada por Gal Martins, diretora da
inequidades de outras ordens que, cia Sansacroma e, no mais, aponto
juntas, compõem uma engrenagem o olhar para a Bateção de pé:
violenta, e por vezes subterrânea, proposta pedagógica do artista
na gestão de imaginários, desejos Fredyson Cunha como fruto de sua
e valores. Interlocutores da longa pesquisa entre as
diáspora – espaço gestado entre populações Bororo do Mato Grosso
dilemas e transbordamentos –, reverberando em ferramentas para
esses artistas e seus atos são instrumentalizar o corpo na cena.
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naquilo que se afirma enquanto processos de des-historicização e
racialidade. Como no Brasil ainda desumanização de determinados
engatinhamos lentamente para sujeitos sociais, entre eles os
uma conversa crítica sobre sujeitos negros, e percebermos a
branquitude, raramente vemos engrenagem que estigmatizou as
pessoas brancas se posicionarem formas africanizadas de escrita de
enquanto “Mesmos” da relação. si4, e que ainda movimenta, na
Daí vem aquele lenga-lenga contemporaneidade, ideias gerais
perverso da mestiçagem ou a acerca dos corpos negros que
reivindicação de “outridades” de dançam.
diferentes ordens, como as de Com isso, traçamos uma
gênero ou classe: “ah gente, eu linha contínua entre colonialismo e
sou branco, mas sou pobre. Então
sou também Outro”. 4
Utilizamos o termo “formas africanizadas de
escrita de si” em referência a modos de se
É notório e longamente imaginar e construir a existência a partir de
discutido pela crítica social que as valores que, interseccional e dinamicamente,
se referem a fundamentos africanos
inequidades são frutos de reelaborados nas Américas. Nossa inspiração
intersecções: uma mulher negra para o uso desse termo originou-se do termo
“formas africanas de escrita de si” que intitulava
lésbica acumula camadas um texto do filósofo Achille Mbembe (2010, p.
diferentes de opressões em relação 22). Na obra, o autor desenha a crítica às
correntes ideológicas e pensadores do
a uma mulher negra hétero ou a continente africano que elaboraram discursos
de reivindicação de uma identidade africana
um homem branco hétero. ligada a elementos simbólicos, reivindicações
Entretanto, isso não nos isenta de políticas, correspondências raciais e
geográficas que se queriam justificadoras de
uma apreciação separada do uma possível autonomia. O teor polêmico do
quesito racial, considerando aquilo texto, entre outros aspectos, refere-se à
afirmação do autor de que as respostas
que a percepção da raça forja na africanas às opressões europeias foram
compreensão da experiência diversas e que a colonização também seduziu
os próprios africanos, gerando utopias
brasileira. A raça importa. recíprocas. Esse texto foi revisto pelo autor e
posteriormente publicado com o título “Formas
africanas de autoinscrição”. Tomamos
Mirando o espelho trincado emprestado o primeiro título do autor, não
como uma associação direta ao conteúdo que
ele dá ao termo, já que trata de um contexto
Parece importante específico diferente do nosso, mas atentando
retomarmos brevemente os para modos de se imaginar e se construir
fundamentados pelas africanidades no
elementos chave que levaram aos movimento dinâmico do mundo.
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da ordem da natureza para a da ideias fortalecem a possibilidade de
racionalidade. Essa virada tem extermínio dessas culturas.
relações de causa e efeito no Sendo a identidade negra
encontro do europeu com a pessoa atribuída desde fora e
negro-africana. À medida que esta acompanhada de uma
última, inserida em contextos nos exterioridade radical, cria-se uma
quais a própria noção de pessoa se espécie de fronteira cultural
estabelece na relação com a definitiva que enclausura os
natureza, elas se tornam – na visão saberes dos subalternizados como
eurocêntrica – mais próximas de inferiores, caricatos e
um estado de natureza e são estereotipados. Nela, o Outro,
relegadas a um estágio inferior que definido em oposição ao Mesmo,
os europeus já haviam acumula tudo aquilo que o Mesmo
supostamente superado. A reboque não é e, frequentemente, não quer
dessas teorias permanece o ser, mas quer acompanhar e se
imaginário da animalização e alimentar à distância. Essa
reificação, fazendo do ser negro realidade é deveras atual e
uma identidade limitada pelo presente nas relações sociais dos
pensamento branco-europeu. nossos tempos, quando se torna
Assim, podemos compreender a
conveniente se apropriar das
relação entre a modernidade experiências subalternas sem
ocidental e as práticas coloniais. assumir responsabilidades. No
É digna de nota a campo da dança, especificamente,
proposição desenvolvida pela são inúmeras as apreciações
socióloga Denise Ferreira da Silva, interesseiras de danças sociais,
em sua obra Toward a Global Idea danças urbanas, populares e de
of Race (2007), na qual discute o expressões da cultura pop negra.
impacto da narrativa racional Em “Eating the Other”, Bell Hooks
determinista preconizada pelo traz uma interessante afirmação
cogito cartesiano “penso, logo sobre o assunto:
existo”, nas existências das
distintas sociedades, coletividades A mercantilização da
e culturas. Segundo a autora, tais alteridade tem sido tão bem-
sucedida porque é oferecida
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Os trabalhos que citei no FANON, Frantz. Peles negras,
início deste texto são muitas vezes máscaras brancas. Salvador:
reconhecidos ou acomodados à EdUfba, 2008.
priori nas tais realidades HALL, Stuart; WOODWARD,
identitárias, permanecendo em Kathryn. Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos
segundo plano suas competências
culturais. São Paulo: Vozes, 2014.
estéticas, técnicas e poéticas.
HOOKS, Bell. Comendo o outro:
O corpo de conhecimento desejo e resistência. In: ______.
desses artistas reterritorializa suas Olhares Negros: raça e
existências, integrado que está às representação. São Paulo : Editora
Elefante, 2019.
lógicas de concepção de mundo
MBEMBE, Achille. As formas
em que os valores civilizatórios e a
africanas de auto-inscrição.
organização histórica da realidade Estud. Afro-asiát. [online]. 2001,
se estruturam a partir das vol. 23, n. 1, pp. 171-209.
experiências negras. Aqui, lembro MBEMBE, Achille. Formas
de Muniz Sodré, na obra “O terreiro africanas da escrita de si. Lisboa:
e a cidade” (1988), quando discute ArtAfrica, 2010. Disponível em:
a ideia de território como categoria <www.artafrica.info>. Acesso em 5
fundamental para as culturas não jan. 2014. Site atualmente fora do
hegemônicas e especificamente ar.
para as culturas da diáspora negra. MUDIMBE, Valentin Yves. The
invention of Africa: gnosis,
Na pauliceia de muitos tons philosophy, and the order of
escuros, tem gente dançando para knowledge (African systems of
entender e se fazer entender para thought). Indianapolis: Indiana
reexistir. University Press, 1998.
SILVA, Denise Ferreira da. Toward
Recebido em: 01/08/2019 a Global Idea of Race. Minessota:
Aceito em: 26/08/2019 University of Minnesota Press,
2007.
Referências Bibliográficas SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a
Cidade. Petrópolis: Vozes, 1988.
DESCARTES, René. Discurso do
Método. São Paulo: Nova Cultural,
1987.
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