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RESENHA

KAMALI, Mohammad Hashim. The middle path of moderation in Islam: The Qur’ānic
principle of wasaṭiyyah. New York: Oxford University Press, 2015. 320 p.

Wasaṭiyyah:
a moderação e o caminho do meio no Islam
FELIPE FREITAS DE SOUZA*

dimensionados, uma vez que cada um


deles é sujeito a diferentes leituras e
acepções, sendo resultantes de um longo
processo de reflexão mais do que do
dogmatismo que se propaga.
Apesar da multiplicidade de sentidos
das palavras utilizadas para
compreender-se a religião, surge outro
conceito como relevante para termos
uma compreensão para além dos grupos
tidos como “terroristas” e “violentos”
no mundo muçulmano, um conceito que
poderia ser compreendido como
“moderação”. Na verdade, esse
conceito, o de wasaṭiyyah, se coloca
como de central relevância para
Quando acompanhamos notícias ou compreendermos a maioria silenciosa e
mesmo artigos sobre o Islam, muitas moderada do Islam, ameaçada por
vezes nos deparamos com leigos e aqueles que “falam mais alto” – mas
especialistas fazendo uso das palavras não representam, definitivamente, a
jihād e sharīʿah, como se possuíssem maioria. Sua tradução poderia ser
um conhecimento profundo sobre o “moderação”, “parcimônia”,
assunto. Geralmente não são os “temperança”. Devido a tais possíveis
muçulmanos que discutem sobre compreensões que optamos por não
conceitos profundamente complexos, traduzir tal termo, termo este
sequer considerando os teóricos mobilizado enquanto mote da recente
islâmicos em suas pretensas análises. pesquisa de Mohammad Hashim
Obviamente tais elementos, Kamali em The middle path of
apresentados desconexos do complexo moderation in Islam: The Qur’ānic
sistema de pensamento do qual se principle of wasaṭiyyah.
originam, são, nas melhores hipóteses, Partindo de investigações
trabalhados de modo reducionista ou fundamentadas principalmente no
obscurantista. Aspectos que se referem Qur’ān, nos ahādīth (pl. de ḥadīth,
ao Islam devem ser devidamente registros de falas do Profeta

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Muhammad validadas por sua ʾisnād, contrários às fontes islâmicas que
ou “cadeia de transmissão”) na sunnah propagam originalmente tolerância,
(exemplos biográficos da vida do reflexão e diálogo.
Profeta Muhammad) e nas
interpretações de acadêmicos sunitas e Um dos exemplos mobilizados pelo
xiitas, o autor demonstra o quanto a autor é a existências das escolas de
wasaṭiyyah é fundamental para jurisprudência islâmicas (as maḏāhib,
compreendermos o Islam e as pl. de maḏhab). Tal pluralidade de
populações muçulmanas – muito mais leituras é inerente à própria comunidade
do que as leituras combativas ou de estudiosos islâmicos, não havendo
repressivas de jihād e sharīʿah, uma comunidade com o monopólio da
demonstrando mesmo que tais leituras “verdadeira leitura”, mas sim um
são inadequadas perante a interpretação esforço coletivo. A coexistência de
da Mensagem do Islam. Algo que os visões plurais e a assimilação de
teóricos de diferentes denominações diferentes influências na elaboração das
islâmicas afirmam comumente é a escolas reforçam o elemento de
necessidade de afastar-se das “margens” tolerância e coesão interna no Islam. A
e “extremos” da religião, mantendo-se concordância é acompanhada também
em uma “posição mediana”, dado que a da discordância, mas não do repúdio
possibilidade de ultrapassar tais pela forma de fé do outro, a não ser que
fronteiras, incorrendo em equívocos, tal crença esbarre exatamente no
acompanha aqueles que efetivamente se extremismo (ou ghulāt). A procura pelo
afastam do cerne da fé. consenso, pelo diálogo e troca de
conhecimentos é muito mais a base para
Prefaciado por Tariq Ramadan, a obra a jihād e sharīʿah, por exemplo, do que
divide-se em duas partes: na primeira as ideias de “Guerra Santa” (aliás, um
surgem as análises conceituais e termo ocidental) e “lei totalitária”
temáticas sobre wasaṭiyyah, respectivamente. A wasaṭiyyah remete à
identificando-a nas fontes tradicionais sabedoria prática que o muçulmano
islâmicas (citadas acima) suas pratica em suas relações cotidianas e
definições, manifestações concretas e a consigo mesmo. O excesso de caridade,
identificação dos principais movimentos por exemplo, é ressaltada como um
contemporâneos que abordam esse problema, uma vez que alguém não
princípio. Na segunda parte, temos haveria de prejudicar sua própria
perspectivas temáticas que lidam desde família para fazer caridade, assim como
o meio-ambiente aos status da mulher a ausência de caridade é um problema:
no mundo muçulmano, além de uma o essencial é a postura mediana, é a
reflexão importante sobre o Islam e a caridade na devida medida para cada
modernidade. Perpassa por toda a obra indivíduo em sua condição peculiar. De
referências ao Qur’ān e que julgamos modo contrário, o desperdício (de
como extremamente importantes por recursos naturais, por exemplo) e o
refutarem a noção de que se trata de um consumo do ilícito não devem ser
livro violento ou mesmo intolerante – praticados, dado que comprometeriam a
cf. a obra O Corão: uma biografia de wasaṭiyyah.
Bruce Lawrence. Pelo contrário, o Islam
é apresentado como isento dos Um documento citado muitas vezes é a
extremismos praticados por uma parcela Mensagem de Ammam (Ammam
ínfima da população muçulmana Message) de 2005. Nesse documento,
direcionada por interesses escusos, existe um reconhecimento mútuo dos

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grupos islâmicos signatários, sejam em zonas de trocas intelectuais, comerciais
suas práticas ou leituras. Enquanto e culturais – vide o convívio entre
marco do diálogo sunita-xiita, a judeus, cristãos e muçulmanos que,
Mensagem de Ammam é uma apesar de não serem despidos de tensão,
importante lição para compreender-se o se estabeleceu historicamente.
quanto eventuais disputas dos membros
A presente obra, apesar de abordar
dessas comunidades refletem muito
fundamentos dos estudos islâmicos e ser
mais questões locais e históricas do que
voltada, em um primeiro momento, aos
divisões e deslegitimação recíproca.
religiosos, encontra-se publicada na
Seria necessário, pelo princípio da
Oxford University Press. Isso é
wasaṭiyyah, procurar evitar os
indicativo de uma importante medida
malefícios nesse mundo; dentre tais
tanto de diálogo com os estudiosos
malefícios, a cisão é identificada como
islâmicos quando de difusão de
um problema por si. conhecimentos cruciais sobre os
Em uma época onde temos uma muçulmanos que aquela editora
profusão de notícias sobre o Daesh (ou promove. Um dos méritos dessa obra
“Estado Islâmico”), a Al-Qaeda, o está em comprovar o quanto o
Taleban e outros grupos muçulmanos terrorismo é avesso ao Islam e o quanto
extremistas, uma obra como essa reflete tal associação, entre Islam e terrorismo,
o quanto o desconhecimento da fé afasta as pessoas do real conhecimento
islâmica acaba por levar a da religião – aliás, as palavras “paz” e
generalizações e fantasias islamofóbicas “submissão [à vontade de Allah]” são
que não representam uma fé praticada traduções possíveis do termo Islam.
por mais de um bilhão e meio de
Nas conclusões do livro, o autor nos
pessoas. Os muçulmanos, de modo
traz algumas sínteses acerca de modos
geral, vivem em sociedades com
de promover a wasaṭiyyah; destacamos
estruturas determinadas que, apesar de
o valor dado à educação, à
passarem por desafios oriundos dos
responsabilidade dos meios de
colonialismos, mantém-se produzindo
comunicação, ao combate das
ciência, tecnologia, cooperação,
desigualdades sociais e à paz. São todos
diálogo, tolerância, promoção da
esses elementos que contribuem para a
dignidade humana e do raciocínio. Uma promoção de sociedades pluralistas e
das manifestações de extremismo que é
pacifistas. Como síntese, podemos
ressaltada pelo autor é algo praticado afirmar que combater a ignorância é um
pelos grupos extremistas que citamos: a
esforço ativo do qual os muçulmanos
procura ostensiva por expor e encontrar
também participam.
as faltas alheias, julgando e condenando
as pessoas nesse processo, é contrária
mesmo ao convívio embasado no Recebido em 2016-04-22
reconhecimento mútuo. Mesmo o Publicado em 2016-08-05
convívio dos muçulmanos com outros
povos retrata o estabelecimento de
*
FELIPE FREITAS DE SOUZA é Mestre em
Educação Tecnológica pelo Centro Federal de
Educação Tecnológica de Minas Gerais; aluno
no Instituto Latino Americano de Estudos
Islâmicos.

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